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terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

846) Portugal, antes do Brasil...

O Brasil não tem absolutamente nada a ver com a exposição. O título deste post é puro "brasilocentrismo" deste blog.
A exposição, sim, é lusocêntrica e excepcional. Transcrevo matéria da imprensa.

Brasília: Exposição revela passado de Portugal
Exposição revela passado de Portugal, no aniversário de 200 anos - A galeria
circular recebe, no térreo, os ambientes dedicados à Presença Islâmica,
Cristianismo Medieval e Presença Judaica.
Revista Fator


Exposição revela passado de Portugal, no aniversário de 200 anos da chegada
da família real ao Brasil

A cultura brasileira é um mosaico de múltiplas influências. Todo brasileiro aprende, já no primário, que estamos assentados sobre uma tríplice ancestralidade: os ameríndios (povos que primitivamente ocupavam o território), os europeus (que chegaram ao país em 1500) e os negros (trazidos como escravos). É certo que neste caleidoscópio entram ainda várias outras raças e etnias que foram desembarcando nestas terras, como
aventureiros ou como trabalhadores e que, a exemplo dos demais, integraram o processo de miscigenação. Desde 2002, o Centro Cultural Banco do Brasil tem se dedicado a explorar as matrizes da cultura brasileira, primeiro com a exposição Arte da África e, em seguida, com Antes - Histórias da Pré-História e Por Ti América. Agora, uma mostra vai revelar um pouco da matriz européia que primeiro se envolveu neste caldeirão cultural.
É LUSA: a matriz portuguesa, uma grande exposição que abre as portas no próximo dia 26 de fevereiro, no CCBB em Brasília e fica montada até o dia 4 de maio, com visitações sempre de terça a domingo, das 9h às 21h. Entrada franca. A abertura para convidados acontecerá no dia 25 de fevereiro, com a presença do curador Ivo Castro, conferencista internacional especializado em História da Língua Portuguesa. Professor da Universidade de Lisboa, Ivo Castro faz palestra sobre Língua portuguesa: de onde veio? para onde vai?, aberta ao público no próprio dia 26 de fevereiro, no auditório do CCBB, a partir das 19h30, com entrada gratuita. O mestre promete falar da formação
da língua portuguesa e das variações que sofreu nos diferentes países que adotaram o idioma.
Idealizada por Marcello Dantas, LUSA: a matriz portuguesa apresenta o componente que faltava neste passeio pela formação étnico-cultural do Brasil, o elemento europeu e particularmente o português. O espectador terá a oportunidade de conhecer a cultura e a história de Portugal, antes mesmo da era dos Descobrimentos, através da exibição de cerca de 150 peças do acervo de algumas das mais prestigiadas instituições portuguesas. Embora permaneça praticamente desconhecido no Brasil, o passado de Portugal é riquíssimo e começa bem antes da conquista romana, ainda com povos
pré-históricos.
A exposição busca reunir esse passado de séculos, organizando as diferentes camadas que formaram a etnia, a cultura e a identidade do povo português. Para contar esta história de uma forma narrativa, foram criadas salas dedicadas a períodos e temas, que proporcionam uma imersão nas origens de Portugal, falam da formação de suas fronteiras, mostram sua preparação para uma das maiores aventuras de todos os tempos: o período dos Descobrimentos.
Esta trajetória é apresentada através de 147 peças do acervo de 38 das mais prestigiadas instituições portuguesas. Estarão em exposição 39 tesouros nacionais de Portugal, que nunca tinham atravessado antes o Atlântico e muitos sequer haviam deixado o país. Exemplos são um guerreiro calaico de granito (datado provavelmente do século I a.C.), com quase dois metros de altura e pesando uma tonelada, e um torques, que é um colar de ouro maciço usado por estes guerreiros. Um grande percurso pela história antiga, medieval, renascentista, que dá início às comemorações pelos 200 anos da vinda da família real para o Brasil. LUSA esteve montada no CCBB do Rio de
Janeiro (de outubro do ano passado a fevereiro deste) e recebeu um público
superior a 600 mil pessoas.
A Exposição: LUSA - a matriz portuguesa apresenta uma coleção fascinante, com obras emprestadas por instituições de prestígio como o Museu Nacional Arqueológico de Lisboa, o Museu Islâmico de Mértola, a Torre do Tombo, o Museu da Marinha, a Biblioteca Nacional de Lisboa, o Museu Nacional de Arte Antiga, o Museu Nacional de Arqueologia, a Fundação Calouste Gulbenkian, o Museu Arqueológico de Sines e o Museu Arqueológico de Silves. São peças em pedra, mármore, cerâmica, ouro, azulejos, pinturas, esculturas, achados arqueológicos, mapas e até projetos multimídia que exploram a formação da língua portuguesa e apresentam a palavra de especialistas.
Esta imersão nas origens de Portugal, da pré-história aos Descobrimentos, é feita através de ambientes históricos e temáticos. Dentre os históricos estão aqueles dedicados aos períodos e influências religiosas: Pré-história, Presença Romana, Alta Idade Média, Presença Islâmica, Cristianismo Medieval e Presença Judaica.
Os espaços temáticos abordam assuntos centrais na história de Portugal, como as Descobertas Científicas e os Descobrimentos, além de destacarem a importância do Comércio e da Língua como elementos de afirmação, identidade e unidade lusitana, motivo e conseqüência da expansão. Há ainda um ambiente que serve como sala para consulta de referências literárias e históricas, assim como espaço educativo. Ali, o espectador pode se situar numa detalhada linha do tempo.
As salas traçam um itinerário cronológico e conceitual da mostra. Estão presentes objetos ligados à navegação, pesos e medidas, à matemática, arquitetura, astronomia, agricultura e exemplares que revelam a nova geografia do mundo ("a terra é redonda"). Já no ambiente dedicado à Língua e Comércio, a exposição apresentará potes de vidro contendo exemplares das especiarias que motivaram tantas jornadas, além de reproduções de livros fundamentais para o entendimento da formação lingüística e cultural
portuguesa, como Os Lusíadas, de Luís de Camões, e A formação do Estado de Portugal, considerado o primeiro documento escrito em português, em edições fac-símiles que o público pode manusear.
Ema cada sala há ainda um espaço dedicado à projeção de vídeos com depoimentos de especialistas - historiadores, arqueólogos, lingüistas - que explicam a formação de Portugal e sua própria matriz miscigenada. Os curadores estão "presentes" nas salas, ilustrando o background histórico e cultural das peças em mostra.
O percurso - Os ambientes foram montados seguindo um código cenográfico cuja disposição é caracterizada pelas cores predominantes em cada período. Assim, o espaço dedicado a explorar a influência romana será marcado pela cor branca, no ambiente islâmico predominará o azul, o vermelho no cristão, o negro no judaico e assim por diante. Além disso, o roteiro de LUSA se distingue por três momentos experienciais: o primeiro é histórico, formal, cronológico. O segundo, vivencial, de identidade, imersivo e lúdico. E o terceiro e último oferece uma perspectiva conceitual, de interpretação, reflexão e leitura.
Um dos espaços mais curiosos da exposição é a Cama Sonora. A palavra cama é uma das únicas que permaneceram na língua desde o período ancestral, anterior à chegada dos romanos. Cama é um dos objetos do mundo rural dos antepassados portugueses que não tinham equivalente na língua latina. Por isso, a palavra se conservou no idioma, sobrevivendo às diversas invasões e imposições lingüísticas. Assim, Dantas concebeu uma imensa cama sonora que convidará os visitantes a se deitarem nela. Uma vez deitados, poderão ouvir as diversas sonoridades lingüísticas do português, as palavras de origem árabe, as latinas, indo-européias, indígenas, africanas, etc.
Cada área explorada na mega-exposição recebeu uma curadoria específica, feita por especialistas portugueses. No total, são nove os curadores da mostra: Luís Raposo (Pré-História) , Conceição Lopes (Presença Romana), Santiago Macias e Paulo Almeida Fernandes (Alta Idade Média), José Custódio Vieira da Silva (Cristianismo Medieval), Cláudio Torres (Presença Islâmica), Maria José Ferro Tavares (Presença Judaica), Jorge Couto (Ciência e Descobrimentos) e Ivo Castro (Língua e Comércio).
A mega-exposição ocupa todos os principais espaços expositivos do CCBB. Em cada um deles, vídeos com depoimentos dos curadores explicam o período ao qual o espaço e as peças se referem e dão detalhes das obras expostas. A galeria circular recebe, no térreo, os ambientes dedicados à Presença Islâmica, Cristianismo Medieval e Presença Judaica. No subsolo, estão montadas as salas dos Descobrimentos e Descobertas Científicas. A galeria retangular foi reservada para os períodos da Pré-História, Presença Romana e Alta Idade Média. Já no Pavilhão de Vidro poderão ser vistos o ambiente da Língua e Comércio, a Cama Sonora e o espaço direcionado ao estudo das
referências cronológicas e bibliográficas. Para a Sala de Vídeo ficaram reservados o Livro das Aves (o único exemplar em português do manuscrito do século XIV) e o filme Finisterra, vídeo-projeção realizada em Portugal, reunindo depoimentos dos historiadores em formato de instalação.
Uma história feita de conquistas - Em 2008, Portugal está em evidência global. São comemorados os 200 anos da vinda da corte portuguesa ao Brasil, acontecimento fundamental para a criação das instituições que habilitaram a colônia a se tornar independente 14 anos depois. Em Washington, o Smithsonian, maior complexo de museus do mundo, realizou, no segundo semestre de 2007, uma gigantesca exposição, dedicada a falar das aventuras marítimas e das descobertas de Portugal nos séculos 16 e 17. A mostra recebeu quase 5 mil pessoas só no primeiro dia de visitação. Em Berlim e
Bruxelas duas outras exposições sobre o tema serão destaque nas agendas de 2008. LUSA vem se somar a outras iniciativas que ocorrem em solo brasileiro.
A origem dos brasileiros é tão diversificada quanto a dos portugueses. No território português existiu uma população antiga, anterior à chegada dos romanos na Península Ibérica. Eram povos dos quais não se sabe nem o nome, pois não deixaram registro escrito, mas que aprenderam a falar latim quando os romanos chegaram. Com a decadência do Império Romano, juntou-se uma terceira camada: os chamados povos germânicos. Em seguida, vieram os árabes, que entraram pelo sul, ocuparam dois terços da Península Ibérica em poucos anos e tiveram no território de Portugal 500 anos de "convívio" com os cristãos do norte. Os árabes foram os introdutores na Península Ibérica de
contribuições muito significativas da navegação à filosofia, do conceito de miscigenação à música e à arte. Há uma percentagem quase de 20% de palavras de origem árabe no vocabulário português tradicional. Em Portugal aconteceu uma islamização.
Foi no período islâmico que as bases da identidade portuguesa se formaram.
Desse momento ficaram as noções de comércio, a miscigenação, a expressão artística na arquitetura, nas artes e conceitos hoje identificados como "essencialmente portugueses" são na verdade heranças do período árabe e islâmico de Portugal. É a partir de 1249, data em que se estabeleceu a supremacia do cristianismo de língua portuguesa, e também das populações do norte que paulatinamente foram conquistando as várias cidades do sul, até aí sob poder árabe, que terminou oficialmente a "Reconquista" . A partir desse momento deu-se a fusão das culturas árabe e européia. Os árabes não foram massivamente afastados do território. Foram ficando e misturaram-se muito lentamente.
As fronteiras de Portugal ficaram definidas e consolidadas oficialmente em 1297 (Tratado de Alcanices). No início do século XV Portugal estava em condições de aproveitar toda a experiência do passado e todos os conhecimentos que foram desenvolvidos até então, aproveitando a rara situação de vivências partilhadas de cristãos, árabes e judeus, e vocacioná-los para o Sul. Foi essa circunstância portuguesa, única, que permitiu que os avanços tecnológicos, náuticos, financeiros, políticos fossem aproveitados e acontecessem no início do séc. XV, levando ao
"arranque" dos Descobrimentos. A partir daí, a concepção do mundo mudou radicalmente.

LUSA: a matriz portuguesa, de 26 de fevereiro a 4 de maio de 2008, de terça a domingo, das 9h às 21h no Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília (DF). Entrada franca. Informações: (61) 3310-7087. Objeto Sim Projetos Culturais, telefone e fax (61) 3443- 8891 e 3242- 9805 | E-mail. Site.

Um comentário:

Nuno Castelo-Branco disse...

Rio de Janeiro, capital de Portugal

"Ele foi o único soberano da Europa que teve a firmeza e a sabedoria de fazer precisamente o que devia", disse James Ligham, acerca da decisão do príncipe Regente de retirar a Corte para o Brasil.
***

Desde meados do século XVI, o Brasil surgia como uma terra da promissão, um horizonte infinito para uma expansão, que mitigada na Europa pelas contingências geográficas, políticas e demográficas, levava o reino português a procurar no além-mar, novas fronteiras propiciadoras pela aventura dos Descobrimentos. Martim Afonso de Sousa, o grande impulsionador da ampliação do domínio e da colonização lusa nas terras de Vera Cruz, foi talvez, o primeiro a vislumbrar as imensas possibilidades oferecidas pelo novel domínio, aconselhando D. João III à simples e efectiva transferência da sede da Monarquia, para a recém descoberta colónia.

Após Alcácer Quibir e reconhecendo implicitamente a primazia legal dos direitos de D. Catarina, duquesa de Bragança, à sucessão do trono, Filipe II de Espanha, parece ter considerado seriamente a entrega do domínio americano à Casa de Bragança, em troca da efectiva posse do território português na península ibérica. A Restauração de 1640, ocorreu num momento difícil de total despojamento material da nação, levando o Pde. António Vieira a preconizar a opção brasileira, garantindo a criação de um verdadeiro império, dada a extensão territorial das conquistas, a ausência de inimigos directos nas fronteiras e uma privilegiada situação no Atlântico, o novo grande palco do confronto naval pela supremacia entre as grandes potências. D. Luís da Cunha, foi outro entusiasta desta solução, procedendo a uma copiosa e exuberante enumeração das vantagens decorrentes, garantindo uma nova dimensão ao poderio português, libertado desta forma, das peias que uma situação geográfica difícil e a ausência de recursos, ditava um paulatino e inelutável declínio de Portugal como factor relevante na Europa.

No século XVIII, a instabilidade no precário equilíbrio europeu, fez eclodir guerras nas quais todo o continente se envolveu de forma directa - Guerras da Sucessão da Espanha e da Áustria e intervenção dos Bourbon espanhóis na Itália, para nos referirmos apenas aos principais conflitos -, que inevitavelmente perturbaram a já tradicional política portuguesa de não envolvimento nos conflitos continentais. Se excluirmos uma breve e quase simbólica participação da Armada portuguesa (1717) na guerra Liga cristã contra o Império Otomano, Portugal manteve-se coerentemente ausente dos campos de batalha europeus, durante mais de cinco décadas.

A indirecta intervenção na Guerra dos Sete Anos, deveu-se sobretudo, a uma tentativa bourbónica de neutralizar o importante ponto de apoio da Royal Navy na península, essencial para o controle da navegação atlântica e colonial. Considerando seriamente as hipóteses decorrentes de uma invasão das tropas do Pacto de Família, Pombal ponderou a transferência da corte e do governo - a Soberania -, para o vice-reino do Brasil, a fonte dos recursos que permitiam a existência do próprio Estado português.

A Revolução Francesa de 1789 e a posterior ascensão de Bonaparte, destruiram a velha ordem estabelecida ao longo de séculos. Preceitos, doutrinas, convenções e modus operandi universalmente aceites pela velha diplomacia europeia, volatilizaram-se diante dos disparos da artilharia, ou jazeram para sempre esmagados pelas cargas dos couraceiros franceses que arrasaram tronos, pisotearam Estados antigos e fizeram movimentar massas populacionais de uma forma jamais vista. É hoje difícil imaginarmos o espanto e a tragédia vivida por milhões, que assistiram impotentes, ao desabar de um mundo que para a imensa maioria, era o fruto de uma ordem natural ou divina.

As sucessivas tentativas da manutenção da neutralidade, encontraram no alvorecer de 1800, uma real impossibilidade de concretização. O génio militar de Napoleão e a violência dos seus ímpetos, fizeram dissipar qualquer veleidade de estabelecimento de alianças consistentes no continente, susceptíveis de permitir, pelo menos, a contenção de um expansionismo que não conhecia limites e nem sequer garantia uma razoável moderação, no sentido da criação de uma nova ordem negociada e aceite pelo conjunto dos Estados.

Os ministros portugueses - entre os quais destacamos Domingos de Sousa Coutinho, Rodrigo de Sousa Coutinho e o marquês de Alorna -, instaram com o Regente no sentido de fazer pender Portugal, para a fidelidade à já antiga aliança com a Grã-Bretanha. Conhecendo bem a dependência portuguesa do comércio além-mar e a supremacia inglesa - hegemónica após Trafalgar (1805) - nos mares, consideravam qualquer aproximação de facto à política continental napoleónica, como pressuposto para a imediata perda das possessões ultramarinas. Os ingleses não tardariam muito em proceder à ocupação ou anexação da Madeira, Açores, Goa e Macau. Eram bem conhecidas as ambições expansionistas na América do Sul que surgia como um perfeito sucedâneo das ainda recentemente perdidas Treze Colónias norte-americanas. Em "A Decadência do Ocidente", Oswald Spengler sublinha o projecto de Hobbes, que visava a conquista inglesa de todo o continente, como condição de uma efectiva hegemonia imperial.

Em 1807 e após o decretar do Bloqueio Continental, a Inglaterra encontrava-se ameaçada e sem aliados na Europa. Não parece lícito trabalhar sobre meras hipóteses. A História faz-se sobretudo, da análise dos factos e da documentação, mas também - e este aspecto tem sido ostensivamente negligenciado desde há mais de um século -, com o estudo comparado de eventos demonstrativos de tendências de políticas, situação económica e social dos Estados e doutrinas prosseguidas por estes. Desta forma, poderemos seguramente proceder a uma análise comparativa de situações ocorridas durante os conturbados anos de 1799-1807: a anexação do Piemonte e de Parma (1802), a ocupação de Viena (1805), de Berlim (1806), a anexação da Holanda e destituição da Casa de Orange (1806), a deposição dos Bourbon de Nápoles (1806) e a destruição da frota dinamarquesa e bombardeamento de Copenhaga pela armada britânica, como represália pelo alinhamento da Dinamarca com a França de Napoleão (1807).

Em Novembro de 1807, a barra do porto de Lisboa, já se encontrava bloqueada por uma poderosa frota britânica, onde os sinais de impaciência pela não clarificação da atitude do governo português - sempre confiante até ao fim na obtenção da manutenção de uma neutralidade negociada -, poderiam ter conduzido a um irreparável desenlace: a captura ou destruição da frota portuguesa e o consequente bombardeamento de Lisboa. Estas chegaram a ser opções ponderadas, no caso do prolongamento de uma já insuportável situação dúbia. Sabia-se da rápida aproximação do exército invasor de Junot e era urgente a concretização daquilo que fora acordado pela chamada Convenção Secreta luso-britânica (22 de Outubro de 1807) que indicava a transferência da família real e do governo para o Rio de Janeiro. Para os ingleses, era crucial a manutenção de um aliado no concerto dos Estados europeus, propiciador de um exemplo de sucesso face às ambições expansionistas da França.

Conhecemos bem os detalhes do embarque e ao longo de um século e meio, sobrevalorizaram-se os aspectos anedóticos que eram aliás, inevitáveis, devido às condições precárias do momento. No entanto, a alegada "fuga" - que jamais ocorreu -, faz--se de uma forma inédita em toda a História europeia: é todo um aparelho de Estado que embarca, a quase totalidade do tesouro e uma inquantificável quantidade de documentos, 60.000 livros da Biblioteca Real e bens sumptuários, enfim, uma sociedade inteira que se traslada para um território longe da rapina inimiga e que se exime também - talvez o aspecto mais relevante para a mentalidade da época -, ao vexame da capitulação. Seria bastante útil, procedermos ao completo levantamento e apreciação da reacção da ainda incipiente opinião pública dos diversos países europeus que, naquele momento de todas as incertezas e temores, decerto vislumbrou o bruxelear da chama de uma resistência à prepotência, latrocínio e violência a que os povos estavam submetidos. Foi na verdade, a primeira vez que Bonaparte não venceu e disso deu testemunho nas suas Memórias.

Muito mais tarde, decorridos cento e trinta anos, outros governos e soberanias imitariam, de uma forma ainda mais apressada e sobretudo, menos digna, o exemplo dado pelo Regente D. João, encontrando novos portos de abrigo onde se eximiram aos ditames do vencedor do momento. A rainha Guilhermina da Holanda e os reis Haakon, Pedro II e Jorge II da Noruega, Jugoslávia e Grécia, respectivamente, puderam organizar a resistência nacional à invasão nazi. A derrota militar foi apenas uma batalha perdida e possibilitaram com essas "fugas", o forjar de armas e exércitos que desafrontaram as suas nações. O Armistício francês de Junho de 1940, foi prenhe de consequências nefastas, das quais a França jamais se libertou e podemos legitimamente imaginar, como teria evoluído a II Guerra Mundial, no caso do governo francês não ter ido à Canossa indicada pela vencedora Wehrmacht.

Podemos apenas imaginar o que teria sucedido se Junot tivesse conseguido executar as ordens recebidas das mãos do seu imperador. O Regente e toda a sua família, conheceriam o mesmo destino dos Bourbon de Espanha, partindo coactos para um incerto exílio em França, onde uma abdicação era a hipótese mais provável. O Brasil tal como hoje o conhecemos, jamais existiria na sua grandeza territorial e talvez, até na sua estrutura e multiplicidade étnica. As ilhas atlânticas, seriam hoje, possíveis territórios da coroa britânica, à semelhança de Gibraltar. Embora a derrota final de Napoleão fosse inevitável - dada a relação de forças em presença e a hegemonia inglesa nos mares -, é lícito questionar, se Portugal não teria um destino semelhante ao da Noruega, Finlândia ou Polónia, que no Congresso de Viena, foram sacrificadas às razões do equilíbrio de poder na Europa e à política de simplificação do mapa e de compensações.

Pelo contrário, a declaração de guerra à França - assinada já pelo Regente na sua nova capital além-mar -, possibilitou a manutenção da legitimidade e existência do Estado como entidade soberana. O levantamento nacional, a organização de um exército que foi um instrumento precioso sob o comando de Wellington, garantiram a presença de Portugal na Grande Mesa do Congresso, ao lado da Inglaterra, Rússia, Áustria, Prússia, França e Espanha. Foi talvez, o momento áureo da velha aliança luso-britânica e do efectivo nascimento do Brasil como nação internacionalmente reconhecida, com o nome de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

O Regente D. João prestou um grande serviço ao país, e ao fazê-lo, criou uma segunda uma segunda Pátria que é também de todos nós. O Brasil, como diz aquele bem conhecido Fado Tropical, talvez ainda se ..."vai tornar num imenso Portugal"... É esta a nossa garantia de sobrevivência como cultura, língua e destino, que são ímpares na Europa. No passado sábado, estava - sei eu lá porquê? - hasteada uma bandeira brasileira na grande varanda do Palácio de S. Bento. Naquele momento de passeio por Lisboa, recordei agradecido, a decisão tomada numa hora de grande comoção nacional. Se pudesse ter visto a fachada do Parlamento, D. João VI teria sorrido com bonomia. A prudência e a memória eram duas das suas grandes qualidades. Saibamos aproveitar o precioso legado.