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segunda-feira, 17 de maio de 2010

Agora que a crise está passando...

...releio um trabalho que havia escrito no comecinho dela, discutindo algumas das propostas que estavam sendo feitas na ocasião.
Acho que nenhuma delas foi implementada, e por isso estamos como estamos: uma nova crise se anunciando e falta completa de novas (e boas) ideias. Apenas velhas ideias...


Sobre a proposta de uma nova autoridade financeira mundial
Paulo Roberto de Almeida (2008)

A julgar pelas propostas que vêm sendo oferecidas para remediar a presente e evitar novas crises financeiras internacionais, é preciso reformar as atuais instituições da governança econômica mundial e implementar novos mecanismos de controle e de monitoramento dos fluxos globais de capitais e moedas. Sem dúvida que as atuais instituições econômicas internacionais – basicamente FMI, BIRD e OMC – não são perfeitas, mas qualquer proposta de reestruturação das existentes ou criação de novas precisa esclarecer exatamente o que se pretende fazer e que efeitos as novas medidas ou instrumentos teriam sobre a ordem econômica mundial, tal como a conhecemos.
O que temos até aqui são recomendações vagas – como a demanda de Pascal Lamy por um “novo Bretton Woods”, por exemplo – ou então propostas que, se implementadas, podem engessar inutilmente o sistema financeiro internacional, ao aumentar os custos e tornar mais lento e demorado o acesso aos mercados de capitais, que podem ser importantes para países e empresas. Qualquer controle, como se sabe, carrega consigo um custo-oportunidade, pois vem carregado de condicionalidades e de limites que impedem a boa fluidez do sistema. O excesso de liquidez pode ser responsável, como ocorre de fato, por crises eventuais, derivadas do uso exagerado da alavancagem financeira e da má informação – a montante e a jusante – sobre a solvência relativa dos tomadores e devedores. Mas o excesso de regulação também acaba gerando perdas, ao limitar a “boa especulação”, aquela que alimenta apostas inovadoras, que fazem, justamente, circular o dinheiro na economia.
Todo sistema financeiro baseia-se em princípios muito simples: juntar a vontade de rentabilizar o seu capital, do lado dos poupadores, à vontade de dispor de um maior volume de ativos, do lado dos tomadores. Credores e investidores estão nas duas pontas de um sistema que deveria funcionar de modo relativamente equilibrado, qual seja: a taxa de juros – preferencialmente a mais alta possível para os poupadores e a mais baixa possível para os devedores – deveria ser, em sistemas “normais”, aquela de mercado, isto é, a resultante do encontro entre oferta e demanda de capitais, na suposição de que não existam barreiras à entrada ou excesso de regulação. Os intermediários deveriam ser livres para encontrar a maior comissão possível nessa tarefa de juntar as duas pontas do sistema, não fossem as regras intrusivas emitidas pelas autoridades monetárias para impedir que alguns “pilantras” se beneficiem da posição privilegiada para lucrar excessivamente às custas dos dois lados, ou simplesmente pegar o dinheiro e fugir, como ocorria no “sistema” bancário dos EUA no século XIX. No meio de uma aparente anarquia monetária, o dinheiro acaba fluindo de um lado para outro, alimentando empreendimentos que de outra forma dificilmente poderia ver a luz do dia. Alguns ganharão, outros perderão, mas a dinâmica econômica é de longe preferível à estabilidade morna dos mercados ultra-centralizados e ultra-regulados.
Pois bem, o que explica agora que autoridades nacionais, entre elas do Brasil, estejam agora demandando uma nova “autoridade monetária mundial”? Os problemas decorrentes da atual quebra do sistema hipotecário nos EUA, que precipitou a crise no sistema bancário, e que ameaça estender-se ao setor real da economia, não são, absolutamente, a obra de especuladores gananciosos, como avançaram algumas dessas autoridades, ou sequer a conseqüência da falta de regulação num sistema regido essencialmente pelo “livre mercado”, como quiseram outros (ou talvez os mesmos). O sistema está longe de ser “desregulado” – seja lá o que isso queira dizer – e, se houve liberalização, esta foi benéfica a muitos tomadores e emprestadores, pois que reduziu custos e aumentou a base de “recolhimento” das poupanças individuais, canalizando recursos para eventuais investidores e agentes individuais. Os excessos no mercado hipotecário podem ser explicados, justamente, pela “presença invisível” do Estado, que era suposto garantir a solvabilidade dos títulos emitidos por duas das principais agências do setor, Fannie Mae e Freddie Mac. Na ausência dessa garantia implícita, o mercado teria, provavelmente, sancionado mais cedo o alto grau de exposição – inclusive irresponsável – dessas “vacas leiteiras” do sistema hipotecário.
Então, o que significa a demanda por um novo Bretton Woods e por uma nova entidade financeira internacional? Quem geralmente faz esse tipo de proposta não consultou adequadamente os livros de história para saber que Bretton Woods foi uma ocasião única numa conjuntura de turbulências e de imensas transformações na ordem econômica mundial, quando o que estava em causa era, justamente, a criação de um novo sistema monetário, em face da falência absoluta dos mecanismos de pagamentos internacionais e introversão quase absoluta de grande parte das economias nacionais. O sistema de Bretton Woods foi criado sob a falsa premissa da estabilidade cambial, num mundo em que as paridades monetárias necessariamente devem se alterar em função das dinâmicas econômicas nacionais, refletindo os ciclos econômicos e os fluxos reais de bens e de capitais entre os países. Era evidente que o valor do dólar não poderia permanecer imutável durante longo tempo, embora muitos dirigentes políticos tenham alimentado essa ilusão. Em algum momento, a posição relativa de cada um dos países – superavitária ou deficitária, segundo os ciclos – deveria se refletir no valor de sua moeda, que então seria alterada segundo as leis da oferta e da procura. A relativa rigidez cambial não poderia suportar os choques da realidade, como se revelou crescentemente ao longo dos anos 1960.
O encontro com a realidade ocorreu em agosto de 1971, quando se suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro a uma taxa fixa desde 1944, passando as moedas, a partir desse momento, a flutuar livremente entre si (pelo menos o FMI não mais voltou a determinar suas paridades respectivas). Mas o que pretendem, exatamente, aqueles que pedem uma nova autoridade financeira mundial?: uma volta ao padrão anterior de estabilidade cambial, que seria de toda forma insustentável? Ou, como pretendia Keynes, o estabelecimento de um sistema pelo qual os países superavitários financiariam automaticamente os deficitários? Ambos regimes seriam extremamente custosos e essencialmente instáveis, posto que baseados, um, numa rigidez inaceitável dos padrões monetários, o outro, numa “facilidade” que carregaria consigo a semente inevitável da irresponsabilidade com o equilíbrio do balanço de pagamentos. Em qualquer dos casos, o sistema não se sustentaria por muito tempo, como o laboratório da história já demonstrou mais de uma vez. Melhor deixar a lei da oferta e da procura fazer o seu trabalho de saneamento regular do sistema, rebaixando ou valorizando o poder de compra das moedas segundo a posição competitiva dos países, o que, em última instância, reflete seus ganhos reais de produtividade.
Não é isso, no entanto, que se ouve, seja do lado do G-7, seja do lado do G-24, o grupo financeiro dos países em desenvolvimento e em transição. Estes últimos, refletindo a promessa do G-7 de agir de modo concertado para garantir “liquidez ao sistema financeiro internacional”, se apressaram em pedir a introdução de uma nova “facilidade” – isto é, um direito de saque – ao FMI, além de uma flexibilização no regime de condicionalidades e um maior nível de acesso aos recursos do Fundo. Ou seja, todos, países desenvolvidos e em desenvolvimento querem um maior volume de dinheiro na economia, quando sabemos que é justamente o excesso de liquidez que provoca a especulação desenfreada – que, em si, nada mais é do que o reflexo da abundância exagerada de recursos, mas também do emissionismo irresponsável dos governos – e as recorrentes crises financeiras que são inevitáveis numa economia aberta como a de mercado.
Aparentemente, os dirigentes políticos e as autoridades econômicas pouco aprendem com as lições da história. Em lugar de sanear o sistema, deixando que os que arriscaram de forma irrefletida percam seus ativos, premiam os irresponsáveis, dando a eles parte do dinheiro suado arrecadado da massa de trabalhadores e de contribuintes responsáveis. Este é o caminho mais seguro para novas crises no futuro, que de toda forma virão por novas bolhas financeiras sempre possíveis dada a fértil imaginação dos homens que atuam livremente nas economias de mercado. O excesso de regulação que teremos nos próximos anos apenas tornará mais lenta a recuperação da dinâmica econômica e a criação subseqüente de riqueza. Assim caminha a história.

Brasília, 13 de outubro de 2008

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