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terça-feira, 10 de agosto de 2010

Mitos amazonicos, paranoias brasileiras...

Antes de Henry Ford, se acreditava que os EUA queriam conquistar a Amazônia para "exportar" os negros americanos. Depois dele vieram outros iludidos com as "fabulosas riquezas" da selva, apenas para enterrar dinheiro no mato, como fizeram o próprio Ford e Keith Daniel Ludwig nos anos 1970.
Bem depois surgiram os boatos em torno da "internacionalização" da Amazônia, uma fraude que contou com a ativa colaboração de militares de extrema direita e militantes bocós de extrema esquerda, numa pouco santa aliança em torno de montagens deliberadas de mapas e supostos livros americanos (tenho um dossiê sobre isso no meu site).
O livro abaixo é sério e demonstra como os homens mais bem assessorados do planeta podem cometer as piores bobagens com base em informações erradas, mas animados por uma vontade irracional de crer em alguns mitos sem fundamento.
Paulo Roberto de Almeida

Um sonho de sociedade perdido no meio da floresta
Por Anamarcia Vaisencher
Valor Econômico, 10/08/2010 – p. D12

Amazônia: Henry Ford não conseguiu levar para a selva seu ideal do "american way of life"

Fordlândia - Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva
Greg Grandin. Tradução de Nivaldo Montingelli Jr. Rocco. 397 págs., R$ 56,00

Henry Ford pretendia harmonizar agricultura e indústria num projeto que garantiria a segurança americana

A Amazônia ainda carrega a herança deixada por Henry Ford como desdobramento de sua tentativa de implantar na selva um espaço de racionalidade econômica chamado Fordlândia. E com a inestimável colaboração local de governantes, políticos, lobistas e gente que atuava na sombra, como Jorge Dumont Villares (sobrinho de Alberto Santos Dumont), articulador do plano que induziu Ford a pagar por terras que provavelmente teria recebido de graça do governo para implantar seu ambicioso projeto.

Muito se disse e escreveu sobre a tentativa de Ford de levar para a Amazônia, ali no vale do Tapajós, um "american way of life" que ele próprio idealizara. Mas "Fordlândia", de Greg Grandin, professor de história da Universidade de Nova York, não é um relato comum. Apoiado em farta documentação e pesquisa, o encadeamento de fatos proporciona uma leitura de reveladora substância.

Se fosse possível simplificar a aventura fordiana, ela teve menos a ver com a necessidade de assegurar o fornecimento de borracha para a fabricação de pneus e uso em outras partes de automóveis, no imenso complexo industrial de River Rouge, nos Estados Unidos, do que com aquilo que o autor chama de "pastoralismo americano" de Ford - uma concepção de sociedade em que as atividades agrícola e industrial estariam em salutar equilíbrio, sem predomínio de uma sobre a outra, numa espécie de simbiose entre terra, mão de obra, recursos, fabricação, finanças e consumo. "Com um pé na indústria e outro na agricultura, a América estará segura", sentenciava Ford. Fordlândia seria um lugar que permitiria antecipar essa convergência. Ele preservava, porém, uma visão quase onírica da realidade corrente em seu país, pois em 1928 se declarava "otimista" em relação ao ano seguinte, "certo de que a nova fábrica de River Rouge, localizada em Dearborn, sua cidade natal, perto de Detroit, seria capaz de atender à demanda" (por seu novo modelo de carro, agora da série A, depois do T).

Em janeiro daquele ano, Ford aproveitou a inauguração do imenso complexo de River Rouge - que integrava praticamente todo o processo de fabricação do automóvel, desde a produção de aço - para anunciar que logo voaria até a Amazônia para inspecionar sua plantação de seringueiras, no vale do Tapajós. O látex era o único recurso natural que Ford não controlava. Grandin não deixa em branco o paradoxo que seria a semente da falência do megalomaníaco projeto no qual Ford despejou vários milhões de dólares. De um lado, o pioneiro que havia aperfeiçoado a linha de montagem e dividira o processo de fabricação em componentes cada vez mais simples, concebendo-o para tornar um produto reproduzível infinitamente, com o primeiro indistinguível do milionésimo. Do outro, a Amazônia, dona de si mesma, reino da natureza avassaladora.

Ford tinha mais de 60 anos quando fundou Fordlândia (hoje Belterra, e esquecida durante 39 anos após a derrocada do projeto), localizada a leste de Santarém e a 726 quilômetros de Manaus. O lugar era definido por alguns visitantes como um "oásis", um verdadeiro "sonho do Meio-Oeste", nas palavras do major Lester Baker, adido militar dos Estados Unidos, com luz elétrica, telefone, máquinas de lavar, vitrolas, refrigeradores, piscinas e até campo de golfe.

Grandin lembra que hoje, como há 80 anos, ainda são necessárias cerca de 18 horas em um lento barco fluvial para chegar a Fordlândia, a partir da cidade importante mais próxima. Não bastasse isso, "os primeiros anos do local foram marcados por desperdício, violência e vícios" - em suma, tudo que o antissemita, admirador do nazismo e antissindicalista ferrenho mais abominava. Entre as incongruências do projeto, o fato de que não batia com a realidade porque, em 1925, quando Ford e o amigo Harvey Firestone pensavam em entrar no ramo da borracha, a prosperidade da hevea brasiliensis já chegara ao fim. Graças, inclusive, à ação de Henry Wickam, que passara pela Amazônia mais de meio século antes para piratear sementes de seringueira que levaria para Londres e que constituiriam a base genética das plantações britânicas em suas colônias.

Justiça seja feita: já nas primeiras décadas do século XX, Ford falava em reciclagem de resíduos para evitar desperdícios e em uma futura carroceria de automóveis inteiramente feita de plástico à base de soja.

A aventura fordiana não teve (não tem ainda) um final feliz. Mais de meio século depois de a Ford Motor Company abandonar sua propriedade de um milhão de hectares na Amazônia (novembro de 1945), por lá - mesmo a título de isca turística - ainda se espera por Henry Ford. Os "barões da borracha" retomariam o poder, mas perderam uma guerra maior para a importação de látex de Cingapura. Quanto a Ford, que "ajudou a liberar o poder da industrialização para revolucionar as relações humanas, passou a maior parte do resto da vida tentando colocar o gênio de volta na garrafa, conter o rompimento que ele mesmo provocara (...)". Ou seja, segurar as forças do capitalismo.

Manaus foi o retrato em branco e preto das "desenfreadas" forças do capitalismo. A cidade só se recuperou no fim dos anos 1960, quando o regime militar transformou-a numa zona de livre comércio. E, também graças à isenção de impostos, Manaus "tornou-se o empório nacional do Brasil", e uma zona de montagem (semelhantes à das maquiladoras mexicanas), descreve o autor. Uma cidade da Belíndia onde, ao lado de luxuosos condomínios, proliferam palafitas. "Uma paisagem dramática de desigualdade em um dos países mais desiguais do mundo. Em comparação, ela torna desprezível a distância que separava os lares dos gerentes americanos daqueles dos brasileiros", como reportava a imprensa. Citando artigo publicado no "Los Angeles Times" em março de 1993, Grandin sintetiza: "A tentativa de reproduzir a América na Amazônia levou à terceirização da Amazônia pela América".

De algum modo, Manaus se recuperou. Fordlândia também. "(...) Mas a ironia mais profunda está atualmente em exibição no local da tentativa mais ambiciosa dele [Henry Ford] de realizar sua visão pastoralista. No vale do Tapajós, três elementos importantes da visão de Ford - madeira, com a qual esperava lucrar, encontrando ao mesmo tempo maneiras de conservar a natureza; estradas que, para ele, uniriam as pequenas cidades e criariam mercados sustentáveis; e a soja, na qual investiu milhões, esperando que a produção industrial pudesse reviver a vida rural - tornaram-se os principais agentes da ruína da Amazônia, não só de sua flora e fauna, mas também de muitas de suas comunidades."

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