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domingo, 17 de abril de 2011

Mercosul aos 20 anos (2): crises e turbulências - Paulo Roberto de Almeida

Publiquei, no mês passado, o primeiro artigo desta série:

Mercosul aos 20 anos (1): um pouco de sua história
Paulo Roberto de Almeida
Especial para o iG, 28/03/2011

Agora, o segundo de não sei quantos, exatamente. Aguardem...
Paulo Roberto de Almeida

Mercosul aos 20 anos (2): crises e turbulências
Paulo Roberto de Almeida
Especial para o iG, 17/04/2011 (link)

A crise do Mercosul se deve a que os governos foram tímidos ou demoraram demais em fazer reformas necessárias e não prepararam os países para as etapas da continuidade e do aprofundamento da estabilização macroeconômica, ou para os ajustes setoriais vinculados aos requerimentos do processo de integração.

A crise no Mercosul foi frequentemente apontada como tendo sido causada pela “desvalorização” brasileira de 1999 e seus efeitos desastrosos sobre a balança bilateral com a Argentina, o que é absolutamente insuficiente como explicação. A Argentina já vinha acumulando desequilíbrios – fiscais, monetários, cambiais – desde muito tempo, tendo sido justamente “ajudada” pela primeira fase de estabilização brasileira, quando o real conheceu uma tendência à valorização relativa (deteriorando a própria balança comercial brasileira, e produzindo, justamente, superávits a favor da Argentina). A “desvalorização” não foi decidida “contra” a Argentina, uma vez que ela foi simplesmente imposta pela realidade dos desequilíbrios acumulados. Estes se manifestaram de forma aguda, no Brasil, mais do que de maneira sistêmica, como no caso argentino, que exibia um modelo de conversibilidade baseado na chamada paridade absoluta com o dólar, uma verdadeira camisa de força cambial.

A carência de análises, na esfera governamental, sobre as raízes profundas dos desequilíbrios monetários, cambiais e de balanço de pagamentos existentes tanto na Argentina quanto no Brasil, em 1999 e no seu seguimento imediato, assim como certo voluntarismo por parte de dirigentes políticos explicam a atmosfera de “crise política do Mercosul” então criada – mais na Argentina do que no Brasil – em torno da questão cambial e de seus reflexos no ambiente negociador ao seio do bloco, atmosfera que nunca chegou a ser recomposta no período subsequente, tanto pelo aprofundamento desses desequilíbrios quanto por divergências objetivas nas orientações de política econômica adotadas dali para a frente, para não mencionar questões prosaicas, como o relacionamento entre chefes de Estado. Mesmo a adoção de expedientes ad hoc para atuar como barreiras à propagação desse tipo de “crise” – como, por exemplo, a criação de um grupo de trabalho sobre a coordenação de políticas macroeconômicas em 2000, mais virtual do que efetivo – não permitiu retomar o processo de aprofundamento, ou de consolidação, do Mercosul comercial, enveredando-se logo depois para subterfúgios políticos e o desenvolvimento do que foi chamado de “Mercosul social”.

Não cabem dúvidas, porém, de que a passagem a um regime de flutuação cambial no Brasil – à falta de alternativas credíveis para sanar os desequilíbrios de transações correntes acumulados nos quatro anos anteriores – constitui apenas um episódio numa sucessão de descompassos efetivamente contrários aos objetivos estipulados no artigo 1º do TA, de “coordenação de políticas macroeconômicas”, cujo marco mais importante sempre foi a adoção pela Argentina de um regime de paridade absoluta – ou seja, de rigidez – em sua política cambial, sistema adotado no momento mesmo em que se tratava de construir o Mercosul. Ora, a coordenação cambial com a Argentina, nessas condições, implicava a adoção pelos demais países membros do mesmo regime de conversibilidade ao par, o que significava, de fato, o abandono de qualquer política cambial pelos Estados Partes do bloco, ou seja, uma não-solução a um problema real. Infelizmente, os dois grandes não conseguiram tampouco caminhar para esse tipo de coordenação quando, em 2001, a Argentina abandonou formalmente o regime de conversibilidade para também adotar um modelo de flutuação (embora administrada num viés de desvalorização desde então), ao passo que o Brasil, depois de comportamentos erráticos no momento das eleições de 2002, o câmbio seguia uma via de valorização gradual como tinha sido o caso no período anterior à flutuação (aliás, para maior conforto comercial da Argentina, que continua temendo uma desvalorização brasileira capaz de lhe retirar seu acesso privilegiado aos mercados do grande vizinho).

Em qualquer hipótese, não se pode atribuir a esses descompassos conjunturais nos ritmos ou processos de estabilização respectivos do Brasil e da Argentina a causa principal da crise no processo de integração, uma vez que eles já se manifestavam desde o início do processo e não impediram, de modo absoluto, o crescimento do comércio e o aprofundamento da integração nos primeiros oito anos do processo. Se eles se manifestaram negativamente depois foi porque, justamente, os governos foram tímidos nas reformas, demoraram demais em fazer reformas e não prepararam seus países para as etapas seguintes, seja a da continuidade e aprofundamento da estabilização, seja a dos ajustes setoriais para acomodar a agenda e os requerimentos do processo de integração, que representa uma espécie de mini-globalização controlada (já que em grande medida administrada pelas burocracias nacionais).

Em resumo, rejeitando as supostas insuficiências institucionais, as fantasmagóricas assimetrias estruturais e os reais, mas exagerados choques adversos advindos de crises conjunturais, tem-se que os fatores efetivos da crise no Mercosul e os impedimentos objetivos para o seu progresso continuado são constituídos: em primeiro lugar, pela incapacidade ou indisposição dos governos em empreenderem as tarefas mínimas associadas ao próprio processo de integração; em segundo lugar, pela falta de vontade, ou de coragem política, dos mesmos dirigentes, de implementar os acordos, normas e decisões adotadas nas reuniões de cúpula do bloco, depois de solenemente, ou de forma ingênua, em alguns casos, terem decidido avançar no processo por meio de medidas aceitas consensualmente, o que foi feito, supostamente, depois de um cuidadoso exame técnico sobre seu custo-benefício, ou seja, sobre os impactos e efeitos imediatos e delongados que as mesmas trariam para suas economias.

Avultam, dentre as inadimplências constatadas, os processos delongados de internalização das decisões adotadas solenemente pelo bloco – pois que quase nada é aplicado de maneira automática no Mercosul, sendo necessária cada uma das aprovações nacionais e sua confirmação pela chancelaria paraguaia – e os descumprimentos práticos, em grande medida ilegais, dos dispositivos regulando o acesso a mercados. Um dos anexos do TA, por exemplo, relativo à cláusula de salvaguarda, indica que os Estados Partes se comprometem a usar esse dispositivo só excepcionalmente, e apenas até o final do período de transição (31/12/1994).

Não é desconhecido por ninguém que, de forma abusiva e arbitrária, a Argentina contrariou seus compromissos sob o TA – e também desrespeitou o código pertinente, no âmbito do Gatt-OMC – ao passar a introduzir salvaguardas discriminatórias contra produtos brasileiros, de forma crescente a partir de 2003; a leniência demonstrada pelo governo brasileiro em relação a essas medidas ilegais, alegadamente para acomodar os projetos argentinos de recuperação econômica e de reindustrialização, em lugar de reforçar o Mercosul, na verdade fragilizam seu arcabouço institucional e enfraquecem a eficácia de suas normas mais relevantes. No regime europeu de violações aos instrumentos fundacionais, o país que rompe compromissos e regras comuns, sobre acesso a mercados, por exemplo, pode ser sancionado, inclusive pecuniariamente, pela corte de Justiça, recurso inexistente no caso do Mercosul (ainda que se admita levar o caso à arbitragem, hélas, não usada pelo Brasil).

Numa avaliação global, pode-se dizer que a distância entre a retórica da integração, excessivamente usada pelos chefes de Estado, e a marcha efetiva do processo, em seus encaminhamentos práticos, tem sido, no Mercosul e em outros esquemas regionais, uma realidade constante desde que líderes políticos se convenceram, ou foram convencidos por outros, de que o modelo integracionista – e não simplesmente livre-cambista, geralmente privilegiados pelos anglossaxões pragmáticos – de cunho europeu (ou seja, menu completo) era o mais adequado para impulsionar o desenvolvimento de seus países e a integração de suas economias no mainstream mundial. Na raiz dessa incompreensão – ou ilusão – está o fato de que o processo europeu foi de fato bem sucedido naquilo que ele pretendia atingir: o desarme “psicológico” e definitivo entre as duas maiores economias continentais e a realização formal, institucional, daquilo que já vinha ocorrendo naturalmente desde séculos: a integração física, econômica e social do mosaico europeu.

Poucos historiadores da Europa, ou de seu processo de integração, se dedicaram ao estudo dos custos – implícitos e explícitos – da integração europeia, preferindo enfatizar seus benefícios reais ou supostos (e eles, de fato foram muitos, mas cabe aos analistas equilibrados sempre fazer um balanço completo do experimento). Da mesma forma, poucos analistas do Mercosul colocam ênfase nas enormes diferenças entre os processos do Cone Sul e do continente europeu, tanto pelo lado positivo – disparidade de grandes conflitos geopolíticos entre os dois grandes – quanto pelo lado “negativo”, ou seja, inexistência de densidade suficiente nas interdependências recíprocas para fundar um processo real de criação de um espaço econômico conjunto.

No caso do Mercosul, em especial, o mimetismo não foi levado ao ponto alto de suas possibilidades teóricas – ou seja, um modelo reconhecidamente comunitário ou supranacional –, mas mesmo se julgarmos pelo outro modelo europeu de integração em nível de união aduaneira, o Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo, desde 1948), os resultados alcançados são decepcionantes, ou mesmo irrisórios, pelos padrões de responsabilização – ou de accountability – pelos quais devemos medir projetos verdadeiramente “estratégicos”, e definidos como tal, por administrações sucessivas. O fato é que, sem ter alcançado seus objetivos primários – uma zona de livre-comércio completa e uma união aduaneira acabada – os países membros se deixam envolver em novos projetos mirabolantes – como um Fundo de Correção de Assimetrias, um Parlamento completo, institutos para diferentes causas sociais, e até um risível projeto de moeda comum – que representam, na verdade, uma “fuga para a frente” e um escapismo de natureza política à sua incapacidade de realizar o prometido e de cumprir os requisitos mínimos dos objetivos fixados nos instrumentos constitutivos.

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, diplomata, professor de Economia Política nos programas de Mestrado e Doutorado do Uniceub. Site: www.pralmeida.org; Nenhum dos argumentos ou posições apresentados neste ensaio especulativo – em caráter exclusivamente pessoal – representa posições oficiais do governo brasileiro ou podem ser identificados a propostas do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

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