O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Recordar e viver, ou pelo menos sorrir... - Janer Cristaldo, sobre dois velhos amigos...

Esta crônica imaginária é de 1989, ou seja, antes que o socialismo desse dois suspiros e depois morresse (de morte morrida, não de morte matada), e foi retirada do e-book do Janer Cristaldo, Crônicas da Guerra Fria, um tempo que não volta mais, onde as coisas eram (aparentemente) mais simples: havia o lado de cá, e havia o lado de lá, ou seja, a famosa divisão de classes, operários de um lado, burguesia do outro, imperialismo de um lado, resistentes do Terceiro Mundo do outro, e assim íamos, tranquilitos, resistindo contra os malvados e proclamando velhos ideias de igualdade e justiça.
Depois a coisa se complicou um pouco, mas sempre é bom lembrar: recordar é viver, como diria uma antiga canção...

CUMBRE EN CUBANACAN
Janer Cristaldo
A Notícia (Joinville, SC), 22.01.1989

Havana (Urgente) — Em sua recente entrevista com Fidel Castro, o Dr. Luís Inácio da Silva, candidato do PT à presidência da República, revelou insuspeitados dotes de estadista, emergindo deste encontro no Caribe como um dos mais lúcidos líderes de Nuestra America. Hóspede oficial do governo cubano, Dr. Lula sequer necessitou deslocar-se de Cubanacan para discutir com o Líder Máximo os destinos do continente: na noite mesmo de sua chegada, mais precisamente às 23h30min de sábado passado, Fidel foi, verborrágica e pessoalmente, cumprimentá-lo. Exausto pela longa viagem e ciente da monologomania do velho ditador, mal Fidel esboçou um “bienvenido sea el compañero de luchas por la felicidad y bienestar de nuestro pueblo latinoamericano, impertérrito adversário del capitalismo y de la libre iniciativa, líder incontestable de las luchas laborales en Brasil...”, Dr. Lula cassou-lhe o verbo.
— Sei, sei — resmungou Dr. Lula, com a nonchalance de um plenipotenciário — e além do mais dispenso salamaleques, em verdade estou aqui apenas de passagem, mais diria em campanha eleitoral, pois se stalinismo passou de moda na Europa, ainda rende votos no Brasil. Quero em todo caso cumprimentá-lo por esta permanência de três décadas no poder, façanha que sequer foi atingida pelos militares brasileiros, com armas e atos institucionais em punho, sonho longe do alcance de caudilhos menores como Pinochet, desautorizado em plebiscito mal completou década e meia de governo. E quero particularmente cumprimentá-lo, camarada Fidel, por façanha bem mais insólita, a de preservar a simpatia da imprensa toda do Ocidente após trinta anos de ditadura, a propósito, bem gostaria que me passasse esta fórmula, nunca se sabe quantos séculos são necessários para educar uma nação.
Perplexo ante o sangue frio do jovem estadista, mal Castro esboçou um tímido “pero...”, Dr. Lula o atalhou:
— Ni pero, ni pera, Fidel. Você há de convir que trinta anos é um exagero. Se nem a CIA e o cigarro conseguiram te matar, mais dez aninhos e empatas com Franco. Visitar a ilha é uma espécie de batismo, sei disso, o Caetano e o Chico também sabem, acontece que nós envelhecemos e as gerações se renovam, estou aqui apenas para um gesto de aceno a meus companheiros de geração, acontece que conseguimos introduzir na Nova constituição o direito de voto a maiores de dezesseis anos, o que nos fornece uma fatia virgem no mercado eleitoral, são cinco ou seis milhões de eleitores, em sua maioria em fase de revolta com os pais, ou seja, voto certo no PT. Cá entre nós, camarada, esta minha visita até que me desprestigia, a imprensa burguesa vai gozar com a minha cara, ainda nem voltei e aposto que nalguma redação algum jornalista reacionário já deve estar me preparando alguma. Cuba já não dá mais crônica social, Fidel. A moda agora é Nicarágua e é pra lá que estou indo. Há centenas de jovens da classe média e alta classe média pagando mil dólares para passar fome e colher café para os nicas, que afinal isso de ser revolucionário não é para qualquer pé-rapado, não é qualquer zé-povinho que se pode dar ao luxo de pagar tanto para passar tão mal, e a classe média é muito intuitiva, assim que penso comer algumas lagostas em Havana, daquelas que você reserva para quem traz dólares e no meio da semana já estou voando pra Manágua, que mais não seja para abraçar “compa” Ortega. Desculpe o camarada Fidel minha franqueza, mas há razões que a razão não desconhece, são as famosas razões de Estado.
— Pe... pe... — quis balbuciar um Fidel perplexo — no que foi calado pelo líder petista.
— Ni pe ni pa, camará! Estou em campanha eleitoral e fica cada vez mais difícil, para um homem que ambiciona o poder e precisa namorar as esquerdas, explicar tua ilha. Quando jovem, vibrei com teu combate em Sierra Maestra, brindamos a queda de Fulgencio Batista, inovamos a autodeterminação dos povos e a Doutrina Monroe por ocasião da invasão da Baía dos Porcos. Pena que vivemos na era das comunicações, compañero, e não há hoje quem não saiba que na Cuba de Batista quem quisesse abandonar o país só precisava fazer as malas. Aquela fuga em massa pra Miami, lá por 80, caiu muito mal, meu caro Castro. Até o general Pinochet já fez plebiscito, mais ainda, aceitou o resultado da consulta, o que nos deixa numa situação muito desconfortável quando, convidado a confirmar tua legitimidade, declaras que os cubanos já fizeram um plebiscito há trinta anos. Como é que eu fico, Fidel, logo eu que lutei e luto pelas eleições diretas, como ficamos nós que denunciamos que há vinte e sete anos não votamos para presidente? Você há de convir que não é fácil explicar às novas gerações estas contradições dialéticas, certamente inevitáveis no processo histórico, mas dificilmente inteligíveis em um país onde a imprensa infelizmente é livre. Estamos te mandando turistas, camarada, e todos com os bolsos cheios de dólares e é claro que te somos gratos pela recepção, temos acesso a mordomias com as quais cubano algum ousa sonhar. O Chico, por exemplo, sempre cantou tua revolução, claro que ele sempre prefere sua cobertura no Rio, seu apartamento em Paris, mas isto é humano, Brecht já dizia que quem não sabe bem comer, bem beber e bem tratar uma mulher na cama não pode ser revolucionário. A reflexão é pertinente, só que dificilmente inteligível pelas massas. E nunca falta o jornalista de má-fé que insista em perguntar: mas se turismo é comércio de ida-e-volta, por que não vemos turistas cubanos no Brasil? Para os menos esclarecidos sempre podemos alegar que não se faz omelete sem quebrar os ovos, ameaça imperialista ao Norte, fortaleza sitiada pelo capitalismo, etc., mas meu suporte é a classe média e a classe média bem ou mal lê ou viaja e já não engole mais tais potocas. Camarada Castro! — e então Lula tentou erguer o braço até os ombros do Líder Máximo — até Gorbachov está conquistando o Ocidente, com não mais que duas palavrinhas, glasnost e perestroika. Custa muito ao camarada fazer uma concessãozinha aos ventos do Leste?
— Pe... pe... peres... que? — balbuciava atônito o Líder Máximo.
— Perestroika, camarada. Glasnost. Reestruturação. Transparência. Words, words, only words. Você acha que Gorbachov vai abrir fronteiras ou permitir críticas a seu governo na imprensa? Você imagina que vai liberar o xerox ou derrubar o Muro de Berlim? Nada disso, companheiro. Gorbachov está apenas tentando chegar ao século XX, antes que o Ocidente chegue ao século XXI. Mera ofensiva de charme. Estou até pensando em ver se descolo um encontro com o perestroistchki tovaritch Gorbachov, não há hoje quem não saiba que se ele deixa de enviar dólares aos bilhões à tua ilha, dia seguinte estás sem emprego. E depois, Fidel, isso de nomear sucessor. Logo um irmão! Eu, que fiz minha fortuna política xingando os militares, nem disso pude acusá-los! Trinta anos, meu caro — e Lula esfregou sua barbicha nas vetustas barbas do Caudilho — bem que eu gostaria de um período assim para endireitar aquele país, infelizmente lá a imprensa é livre, repito, e nunca falta um negativista profissional que nos cobre alternância de poder, eleições livres, em suma, esses empecilhos democráticos que nos impedem de construir a utopia.
Nesta cumbre, como dizem meus colegas de fala espanhola, o líder petista deixou claro que, uma vez presidente da República, só pensaria em uma aproximação com Cuba a partir do momento em que o Líder Máximo devolvesse aos cubanos o direito de voto.
— Não que eu acredite lá muito em eleições, camarada Fidel. Bem sabemos que a violência é o fórceps da História. Acontece que os brasileiros desde há muito estão contaminados pelos tais de ideais democráticos, culpa talvez em parte nossa, admito, afinal tanto falamos em democracia para contestar a ditadura que o povo acabou por intoxicar-se. A última tentativa de chegarmos ao poder pelas armas, o camarada viu no que deu e até hoje deve doer-lhe no bolso, meu caro Castro, aquele milhão de dólares repassadas a El Ratón, é assim que vocês chamam o Brizola aqui em Cuba, não é verdade? Por outro lado, compañero, isso de manter intelectuais e opositores na prisão, isso já era, Fidel, já era. As “autocríticas” de prisioneiros políticos não convenceram nem na época do Stalin. Aquela do Heberto Padilha, que desastre, hombre! Perdeste teus melhores garotos-propaganda, o Sartre, a Simone, Pasolini, Alain Resnais, Susan Sontag, Carlos Fuentes, Juan Rulfo, Vargas Llosa e vou ficando por aqui. O Gorbachov já está reabilitando Trotsky e você insiste em manter intelectuais no cárcere. Perestroicisesse, hombre, perestroicisesse antes que seja tarde.
— Pero pa qué si yo... — tentou atalhar Castro, impotente ante a verve do ex-metalúrgico.
— Ni pa que sí ni pa que no, camarada. Tua sorte foi a Armênia, não fosse aquele terremoto o Gorbachov dava entrevista no “Granma” e eu pagava pra te ver censurando o chefe, dia seguinte ele dispensava teu açúcar e fechava a torneira dos dólares. A propósito, isso do jornal da revolução ter um nome ianque, isso também cai mal, meu querido. Sem falar que eu tenho vergonha de voltar para o Brasil com um exemplar dele, lá no Brasil qualquer jornaleco de província tem mais informação e crítica do que este Diário Oficial. E mais, Fidel — e então o ex-metalúrgico foi de dedo em cima do Líder Máximo — tem mais, meu caro, isso de fazer discurso com pombinha branca no ombro é recurso fajuto de tua assessoria, imagina se lá no Brasil um milico, com farda e tudo, subisse a uma tribuna de pombinha ao ombro pra comemorar datas, ia ser mais divertido que ouvir o Sarney falando espanhol. Ou achas que alguém ignora tua presença armada em Angola? Isto nos coloca problemas terríveis, a nós, intelectuais de esquerda — (e neste momento o rosto do camarada Lula foi perpassado por um ligeiro rubor) — como explicar às massas que o cidadão cubano só come macarrão com ketchup o dia todo, isso quando tem a sorte de encontrar os dois? Como explicar os dois pares de sapato por ano a que tem direito os cubanos, quando não faltam coturnos para tuas tropas em território africano? Cá entre nós, Fidel, não é fácil vender tua revolução, quando se sabe que o turista em tua ilha tem acesso às dollarshops, ao que de mais sofisticado o capitalismo oferece, enquanto o ilhéu fica chupando no dedo. Acontecesse isso no Brasil, tuas lojinhas de caça ao dólar viravam cacos de vitrine no dia seguinte.
— Pe... pe... pero, Lula — tentava protestar o Supremo Comandante, já próximo à apoplexia, quando o futuro presidente da nação brasileira acalmou-o com um gesto imperioso:
— Tranqüilito, Fidelito, tranqüilito. Te convido para uma missa, sabes muito bem que só existo graças à Igreja, não é por acaso que me assessora um dos maiores ficcionistas catarinenses, frei Leonardo Boff. Ele vai oficiar uma missa e nós vamos rezar, meu querido, por muitos e muitos anos de vida a Stroessner. Sim, o Líder Máximo paraguaio. Pois se o homem morre, camarada, vais ganhar a desconfortável comenda de Decano dos Tiranetes da América Latina.

Um comentário:

pseudopseud disse...

Obrigado por nos indicar esse livro da internet.Também adorei o artigo que ele escreveu cujo título é "Lá".Deveria ser lido e distribuído em todas as escolas e faculdades.