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domingo, 20 de novembro de 2011

O Fim do Desenvolvimento: agora só falta melhorar socialmente o Brasil - Paulo Roberto de Almeida (2004)

O trabalho abaixo foi publicado, e assim não é totalmente inédito. Mas ele foi divulgado num veículo relativamente obscuro: revista Intellector (Rio de Janeiro, Centro de Estudos em Geopolítica e Relações Internacionais (CENEGRI), v. I, n. 2, jan/jun. 2005, ISSN: 1807-1260; http://www.4shared.com/file/6388387/6f93ba6f/pauloralmeida.html). Nem sei se o link ainda funciona
Apenas por isto estou divulgando-o novamente, pois acredito que é suficientemente provocador para justificar o debate.
Paulo Roberto de Almeida 


O Fim do Desenvolvimento
(agora só falta melhorar socialmente o Brasil)

Paulo Roberto de Almeida

Resumo: Ensaio crítico contestando a tradicional postura assumida pelo Brasil enquanto “país em desenvolvimento”, argumentando que o Brasil já finalizou seu processo de industrialização e completou, no essencial, as tarefas básicas vinculadas ao desenvolvimento econômico e tecnológico do país. Resta completar o processo de inclusão social de imensas massas ainda excluídas desse desenvolvimento e, de fato, da economia de mercado, mas isso não depende de qualquer avanço suplementar no desenvolvimento econômico e sim, basicamente, de investimentos em educação. 

Pretendo, neste texto deliberadamente provocador e voluntariamente desprovido do aparato referencial constante dos ensaios “científicos”, formular uma série de argumentos sobre o que eu entendo ser o caráter basicamente desenvolvido da formação econômica e política do Brasil. A ausência de citações e remissões a obras acadêmicas não quer dizer que meus argumentos tomem como base apenas opiniões pessoais ou que eles refletem tão somente uma interpretação subjetiva da realidade que pretendo descrever. Ao contrário, meus argumentos tendem a expressar o resultado de vários anos – talvez décadas – de estudo dos problemas de desenvolvimento econômico, político e social do Brasil, em perspectiva histórica e numa visão comparada com outras experiências internacionais.
As seções seguintes estão, justamente, organizadas em função desses argumentos, que constituem uma série de afirmações um tanto quanto provocadoras, consoante meu desejo de confrontar a opinião corrente, que reputo como de “senso comum”, sobre o processo evolutivo e o estágio atual do que chamei de “desenvolvimento brasileiro”. Isto é, ao considerar que o processo de desenvolvimento está “acabado” no Brasil, parto da idéia de que o Brasil conseguiu realizar o essencial de uma trajetória relativamente bem sucedida de desenvolvimento, ainda que isto não se reflita inteiramente nos indicadores sociais mais eloqüentes a este respeito. Sei que meus argumentos são controversos, mas estou disposto a sustentar o “fogo adverso”, com base em argumentos bem informados sobre os problemas aqui levantados.
Todo exercício de “contrarianismo acadêmico” tende a provocar reações que se dirigem, muitas vezes, mais ao formulador dos argumentos expostos do que à substância da matéria em si, o que espero não ocorra no presente caso. Convido, em todo caso, o leitor destas linhas a tentar abstrair o invólucro “desenvolvimentista” que costuma enquadrar as análises econômicas e sociais sobre a situação brasileira, para ver a condição do país do ponto da ciência social “normal”, isto é, aquela que se dirige à própria essência da questão, não diferenciando entre países em função de categorias políticas, criadas artificialmente.

1. O Brasil é um país desenvolvido
(mas ele ainda não sabe disso e parece não querer ser informado a respeito)
            O Brasil completou seu processo de desenvolvimento no final dos anos 1980, como resultado do acabamento de sua industrialização básica – que se arrastava desde o primeiro terço do século XX, pelo menos –, dos avanços obtidos no ramo intermediário e em etapas mais sofisticadas do aparato produtivo (a exemplo da indústria aeronáutica) e da criação de um sistema de pesquisa e desenvolvimento moderno e razoavelmente integrado (ainda que apresentando carências operacionais na fase de transposição da pesquisa em tecnologia produtiva). Esse itinerário de acabamento do processo industrializador completou nosso desenvolvimento material e ele foi, do ponto de vista técnico e empresarial, razoavelmente bem sucedido.
            As insuficiências sociais – e elas são gritantes – do processo de desenvolvimento econômico e tecnológico não têm tanto a ver com a ausência de desenvolvimento, quanto com aspectos peculiares de nossa estruturação enquanto sociedade. Por equívocos de nossas elites – monárquicas e republicanas – persistimos no alijamento da maior parte do povo dos benefícios da educação universal e do ensino técnico de boa qualidade, assim como insistimos num processo de redistribuição de ganhos eminentemente concentrador, o que nos faz exibir, atualmente, um coeficiente de Gini quase duas vezes superior à média mundial. Mas isso tem pouco a ver com insuficiências supostas ou reais do processo de desenvolvimento, e sim com deformações institucionais e políticas que precisariam ser corrigidas, sem que isso implique em prejuízo do aparato produtivo já consolidado.
            A maior parte dos brasileiros, refletindo construções das ciências sociais que são eminentemente artificiais, prefere, porém, caracterizar o país como subdesenvolvido, como não desenvolvido, como em desenvolvimento, como emergente, ou qualquer outro epíteto que signifique a existência de uma barreira entre um grupo aparentemente bem sucedido de países – desenvolvidos por “direito divino”? – e o grupo mais numeroso dos países “mal sucedidos” nesse processo. Insistimos em preservar tal dicotomia, que parece constituir o mais poderoso indutor de nosso subdesenvolvimento mental.

2. Como o Brasil se tornou desenvolvido
(pequeno manual de desigualdades sociais)
            Como em todo processo de desenvolvimento, incorporamos técnicas por imitação, cópia servil, pirataria e outros mecanismos de apropriação (legal e ilegal) do progresso técnico, aprendemos a digerir os processos de fabricação, formamos um número razoável de técnicos em “transferência de tecnologia” e conseguimos aprender, ainda que de modo imperfeito, a reproduzir a tal “esfinge” tecnológica. A partir de um certo momento, esse processo se torna auto-induzido, o que tem sido difícil de lograr no Brasil por motivos basicamente institucionais, não técnicos ou econômicos.
            Esse processo de capacitação e de qualificação técnica atingiu, tão somente, uma parte da população, a que era suficiente para sustentar o processo de modernização do aparelho produtivo, em suas vertentes técnicas e tecnológicas. Vale dizer: incorporamos a classe média, pois que ela era que dava sustentação política às elites no poder, mas continuamos a jogar na “lata de lixo da história” todos os demais componentes do povo, considerados excedentes não necessários ao processo produtivo ou aos mercados de consumo. Fomos bastante eficientes na qualificação da parte da população incorporada, pois que um cientista ou tecnólogo brasileiro tem tanta qualificação técnica quanto um seu contraparte de país desenvolvido. Fomos menos eficientes – mas talvez isso não fizesse parte do programa político da classe média no poder ou da missão histórica das elites – na incorporação das camadas ditas subalternas, mas elas, de toda forma, não contavam em termos de representação política e influência social. Elas foram tranquilamente deixadas de lado e quando se cogitou de incorporá-las, via escola pública a partir dos anos 1950 e 60, o Estado não forneceu ao sistema de educação os meios necessários para garantir um ensino de qualidade a todos os “filhos do Brasil”: os mais prósperos foram para o ensino privado e a escola pública afundou lentamente em cruel decadência operacional e institucional. Ela ainda não se recuperou do desastre, ainda que tenha recebido a missão, nos últimos anos, de acolher número substancialmente maior de filhos das camadas populares.
Os aspectos ainda “não desenvolvidos” de nosso aparato produtivo correspondem a detalhes menores do processo industrializador – explicáveis geralmente pela ausência de economias de escala, não por incapacidade técnica absoluta – e não invalidam a presente caracterização do Brasil como país essencialmente desenvolvido. Políticas setoriais de tipo indutor, promovidas pelo Estado ao longo das últimas décadas, conformaram esse padrão de desenvolvimento satisfatório na indústria, na agricultura, nos serviços e na pesquisa científica de qualidade. A despeito das dificuldades fiscais e orçamentárias das últimas duas ou três décadas, o Estado continua motivado, por força de suas elites dirigentes e para atender à demanda dessas camadas médias, a servir ao objetivo básico do desenvolvimento brasileiro, que é a busca do padrão mais elevado de progresso industrial e tecnológico.
Com alguma sorte e investimentos internos e externos, o ritmo de crescimento econômico voltará a índices conhecidos em outras épocas, mas os patamares de inclusão social continuarão, para desconforto das camadas subalternas, renitentemente modestos, para não dizer limitados ao extremo. Em outros termos, continuaremos a ser um país desenvolvido, mas socialmente desigual e excludente. Esta é a verdadeira tragédia do Brasil, mas isso não impede o país de ser uma economia desenvolvida.

3. O desenvolvimento é uma “fatalidade”, humana e civilizacional
(mas muitos insistem em velhas atitudes mentais)
A despeito do que querem fazer acreditar certos arautos das ciências humanas e da economia, inclusive, entre nós, alguns gurus do pensamento acadêmico, não é verdade que o processo de desenvolvimento tenha características distintas nos países que hoje são considerados desenvolvidos e no imenso grupo de países ditos “em desenvolvimento”. Em todos eles, o processo de desenvolvimento segue os mesmos padrões de acumulação (no início lenta) de progressos técnicos, de disseminação de resultados instrumentais para o aumento do bem estar social e de progressiva incorporação de qualificação educacional ao conjunto da população, o que constitui, obviamente, o mais importante fator de progresso material (já que o aumento do bem estar se mede, basicamente, em termos de aumento da produtividade social do trabalho humano).
Em outros termos, a economia política e as políticas econômicas funcionam de maneira igual, no Brasil e no Pólo Norte, no Alasca ou na Patagônia, na Irlanda ou nos países do Sudeste Asiático: são as condições institucionais, os arranjos políticos locais e, eventualmente, condicionantes estruturais muito fortes que “explicam” diferenças na eficácia relativa de políticas macroeconômicas ou setoriais em cada um desses países. Se alguém lhe disser que “receitas” econômicas não podem ser transplantadas, não acredite: a economia política é uma só, ainda que produzindo resultados diversos, com efeitos distributivos distintos, em função das variáveis envolvidas em cada um dos sistemas econômicos nacionais. Princípios econômicos formulados dois séculos atrás por Adam Smith ou David Ricardo continuam a funcionar, seja na economia mais avançada do planeta, seja em alguma tribo de bushimans ou num bando de nômades tuaregues: dado o devido tempo, e os estímulos necessários, estes povos também desenvolverão mecanismos de intercâmbio econômico tão sofisticados quanto os de Wall Street, eles apenas ainda não tiveram necessidade de derivativos financeiros.
Alguns países logram, por motivos de ordem essencialmente institucional, acelerar o nível e o ritmo do progresso técnico, gerando um processo endógeno e auto-sustentado de inovação tecnológica, ao mesmo tempo em que conseguem disseminar os frutos desse progresso técnico em camadas cada vez mais amplas da população. Outros, por razões basicamente institucionais, não conseguem combinar esse “mix” de fatores sociais que os faria saltar de baixos níveis de produtividade humana para etapas mais avançadas de progresso material. O Brasil é um exemplo clássico desse segundo itinerário, não se podendo imputar a qualquer tipo de “exploração estrangeira” as razões do seu fracasso enquanto sociedade (não enquanto economia desenvolvida).
A despeito, também, do que dizem e repetem incontáveis pregadores de teses não provadas – como as do “intercâmbio desigual” –, o aumento da distância entre países hoje “ricos” e os atualmente “pobres” não se deve à colonização, à exploração ou à dominação de uns pelos outros, ainda que isso possa contradizer muitos adeptos do “senso comum” (e mesmo alguns “perfeitos idiotas latino-americanos”). As desigualdades nos processos de desenvolvimento econômico se explicam, grosso modo, por diferenciais de produtividade do trabalho humano, ou seja, ritmos divergentes de crescimento econômico e de incorporação do progresso técnico. Os fatores causais mais importantes que explicam esses diferenciais são de natureza institucional, isto é, são de ordem interna, não externa, aos sistemas nacionais envolvidos.
Formações colonizadas, por certo, não dispõem de autonomia política para determinar seu próprio modo de articulação com outras economias nacionais, mas essa é uma realidade que, no caso do Brasil, foi declarada formalmente concluída no início do século XIX e, de forma geral, a segunda metade do século XX assistiu à conclusão dos movimentos independentistas. Desde então, o fulcro dos processos de desenvolvimento deslocou-se para a questão da qualidade das políticas econômicas nacionais. Logrados os estímulos adequados, todos os países e sociedades irão se desenvolver em um momento dado, mas é evidente que alguns desses países e sociedades têm suas possibilidades tolhidas por estímulos inadequados, por políticas equivocadas ou por uma combinação de ambos.
As “velhas atitudes mentais” referidas no título desta seção consistem em pretender “explicar” o “não-desenvolvimento” por um funcionamento deficiente do mecanismo econômico, que assim precisaria ser complementado por “políticas corretas”, geralmente induzidas por via estatal, o que vale dizer, por um bando de tecnocratas iluminados ou formuladores de políticas heterodoxas (isto é, confrontando o núcleo central de um certo consenso secular em torno da chamada mainstream economics). Como regra básica, o estágio do desenvolvimento é obtido ao longo de um processo de crescimento que tem por fundamentos a estabilidade de preços no terreno macroeconômico, a livre competição na esfera microeconômica, uma grande abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros no plano externo e uma forte ênfase na formação de recursos humanos no plano interno.
Logrado um consenso societal em torno desses estímulos e políticas, o processo de desenvolvimento pode tornar-se uma “fatalidade”, mas parece evidente, também, que muitos se encontram mentalmente comprometidos com “políticas alternativas” cuja única explicação possível parece ser a velha receita de pretender corrigir as “imperfeições dos mercados”. Certamente que os mercados não são perfeitos – eles nunca o serão – mas a concepção salvacionista do mundo consegue construir imperfeições bem superiores àquelas criadas pelo livre jogo dos mercados. Constitui certamente uma característica histórica das sociedades humanas o fato de que o livre mercado das idéias econômicas nunca conseguiu obter uma situação de preeminência intelectual em face do amplo e bem sucedido mercado das crenças políticas e das ideologias sociais.

4. Quais problemas impedem o Brasil de se considerar realmente desenvolvido?
(um outro manual sobre tarefas aparentemente simples) 
O Brasil é, portanto, um país desenvolvido, mas comportando, igualmente, um número anormalmente elevado, em escala comparativa internacional, de pobres (e mesmo de miseráveis, ainda que estes provavelmente sejam em número menor do que pretendem fazer acreditar estatísticas oficiais e políticas assistencialistas governamentais). Sendo um país desenvolvido com um número “excessivo” de pobres, o Brasil poderia, dadas as políticas corretas, absorver esse excedente de pobres e miseráveis, de maneira a integrá-los na economia de mercado, a forma civilizacionalmente correta de criar e distribuir riquezas. O fato de que o país não logre fazê-lo, não significa que exista alguma falha fundamental no mecanismo econômico da sociedade, apenas que esta não está conseguindo implementar as políticas “corretas” para diminuir aquele número de miseráveis não funcionais para a existência e a continuidade de seu sistema econômico.
Por políticas “corretas” devem ser entendidas aquelas que, assegurando aquelas condições especificadas acima – macroeconomia estável, microeconomia concorrencial, abertura econômica e formação de recursos humanos –, logrem criar estímulos adequados para que o conjunto dos cidadãos, ricos e pobres, consigam colocar seus talentos em jogo e passem daí a criar e distribuir riquezas segundo as velhas regras de mercado. Um grande obstáculo ao atingimento desse consenso básico parece ser a atitude mental que consiste em considerar o jogo econômico como um exercício de soma zero, seja no plano interno, seja no externo. Uma derivação dessa atitude é a que redunda em manter uma concepção em grande medida estática desse mesmo jogo econômico, o que implica na formulação de políticas que pretendem atuar sobre a distribuição dos estoques societais – ou patrimônio individual, que é a sua forma em escala micro –, em lugar de se fixar o objetivo de buscar aumentar os fluxos para uma redistribuição ampliada a partir de novas escalas produtivas.
Essas concepções têm presidido à formulação e execução de políticas econômicas no Brasil – e em muitos outros países “subdesenvolvidos” – nas últimas décadas, daí o caráter basicamente defensivo dessas políticas: elas são contra o capital estrangeiro, contra a abertura ao comércio internacional, contra a livre concorrência, contra a regulação pelos próprios mercados, contra os movimentos de capitais, contra a dispensa de autorizações, enfim, contra a criação “anárquica” de riquezas e contra a acumulação irrefreada de capital, vistas como tendencialmente nocivas ao “equilíbrio” social e à “solidariedade” grupal. As políticas setoriais são igualmente defensivas, e tímidas, naquilo que constituiria o único grande aporte estatal ao bem estar social: a formação maciça de recursos humanos, nos ciclos de ensino fundamental e na qualificação técnica da grande massa da população. Em resumo: o Estado possui uma enorme agenda “desenvolvimentista”, menos uma agenda minimamente ativa naquelas áreas nas quais seria mais necessária a sua presença, como é obviamente o caso da educação universal. Não se pode desejar combinação mais perversa de políticas e atitudes mentais.
Enquanto persistir a concepção “soma zero” do mecanismo econômico da sociedade e enquanto subsistir a atitude defensiva em face dos mercados vai ser difícil ao Brasil – e a outros países também considerados “subdesenvolvidos” – incorporar suas camadas ditas subalternas à prosperidade de que já desfrutam suas elites (seja por mimetismo importado, seja por criação efetiva de riquezas no próprio país, o que certamente é o caso do Brasil). A superação desse estado mental de subdesenvolvimento não é tarefa fácil, pois que fomos acostumados, desde muito anos, a considerar que o processo de desenvolvimento nacional dependia de tais e tais políticas “públicas”, isto é, estatais.
Ouso arriscar a hipótese de que foi a “perseguição” constante – isto é, desde antes da República, ou pelo menos desde os anos 1930 – dessas políticas estatais supostamente indutoras de “desenvolvimento” que atrasaram ou dificultaram o processo brasileiro de incorporação de novas camadas sociais à prosperidade criada pelo capitalismo nacional, que permaneceu limitado em suas possibilidades transformadoras. Não pretendo “provar”, neste momento, esta “tese”, que parece ir em sentido contrário às “evidências históricas” que nos foram servidas durante muitos anos para “demonstrar” que o Estado desempenhou, sim, um papel crucial no processo de desenvolvimento. Não desejo contestar, agora, essas crenças que nos são oferecidas prima facie, isto é, como verdades elementares, sobre o curso aparentemente inevitável de nosso “keynesianismo desenvolvimentista”. Estou apenas querendo avançar a hipótese de que, na construção do capitalismo industrial em nosso país, as políticas privilegiadas atuaram em detrimento da inclusão social, sem afetar o próprio processo de desenvolvimento econômico e tecnológico.
Atualmente, a despeito do baixo nível de crescimento e dos formidáveis obstáculos institucionais a um processo sustentado de crescimento econômico – que também resultam das mesmas políticas indutoras de desenvolvimento von oben, isto é, pelo alto, por obra e graça do Estado –, o Brasil não deixa de configurar um caso relativamente bem sucedido de desenvolvimento, ainda que um péssimo exemplo de desigualdade social. Nas fases de crescimento acelerado do Estado desenvolvimentista, algumas migalhas eram atiradas para os mais pobres, o que os mantinha num estado anômico. A atual crise fiscal do Estado – um extrator de recursos e um despoupador líquido – simplesmente inviabiliza qualquer processo de crescimento sustentado e, portanto, qualquer política distributiva de tipo assistencialista, preservando as distâncias sociais. É esse quadro trágico de desigualdades de todo gênero, com cenas de iniqüidades sociais verdadeiramente “africanas”, que impede que nos consideremos um país “desenvolvido”, por mais que nosso potencial industrial e tecnológico nos habilite legitimamente a reivindicar um tal estatuto (absolutamente e relativamente, isto é, em escala internacional igualmente).

5. O fim do desenvolvimento
(só falta trabalhar mais um pouco) 
Parece contraditório, ou mesmo francamente ridículo, proclamar-se o “fim” do desenvolvimento no Brasil, numa situação de aparente “anomia social”, com tantos miseráveis espalhados pelas esquinas das grandes metrópoles brasileiras, com tantos excluídos dos benefícios mais elementares da moderna civilização material. E pur si muove, isto é, a despeito de tudo, o Brasil, um país “galileano” por excelência, avançou de modo decisivo no caminho do desenvolvimento, tendo galgado quase todas as etapas que permitiriam caracterizá-lo como país basicamente desenvolvido, como tenho me esforçado por argumentar neste ensaio.
O que distingue basicamente o Brasil, de outros países “em desenvolvimento” e mesmo de alguns outros países considerados “desenvolvidos”, é justamente essa singular combinação de avanços tecnológicos, que compõem esse perfil material de país totalmente industrializado – repito, totalmente industrializado –, e essa quantidade anormalmente elevada de pobres, esse quadro deplorável de iniqüidades sociais das mais gritantes, que deveriam indignar o mais indiferente ou insensível dos líderes políticos. Muitos acreditam que, pelo fato de ostentar essa quantidade exageradamente elevada de pobres, o Brasil deveria ser considerado como um “país em desenvolvimento”, como se o fato de ter acumulado esse atraso social vergonhoso impedisse o sistema econômico de ter avançado a patamares mais elevados de progresso material.
Ouso argumentar no sentido contrário: a despeito de ter preservado um contingente considerável de miseráveis – não “funcionais” para fins de desenvolvimento, isto é, não requeridos socialmente para fins de construção do capitalismo industrial no país –, o Brasil é, fundamentalmente, um país desenvolvido, e não poderia mais escudar-se em supostas insuficiências materiais para eximir-se da tarefa estratégica de incorporar esse contingente de pobres ao seu processo de desenvolvimento econômico. Suas insuficiências, quando existentes, são basicamente políticas, isto é, derivam de políticas econômicas equivocadas e mal orientadas do ponto de vista da inclusão social do maior número de brasileiros. As políticas econômicas postas em prática até aqui foram concebidas para atender a uma parcela diminuta da população, aquela que contava do ponto de vista político e social, todos os demais eram “estruturalmente marginais”, política e economicamente.
Mesmo no auge do “desenvolvimentismo exacerbado” – que não foi, a despeito do que habitualmente se crê, a chamada “era Vargas” –, em pleno regime militar, as políticas foram concebidas tendo o Estado como centro fundamental – quando não único – do processo de desenvolvimento: tratava-se de um crescimento do Estado, para o Estado e pelo Estado. A burguesia industrial, os outros estratos das chamadas classes dirigentes e as camadas médias retiraram benefícios desse modelo concentrador e excludente. A ulterior descentralização, conduzida sob a égide da Constituição de 1988, não afetou esse arranjo básico do processo brasileiro de desenvolvimento: ele estava concebido a produzir um certo progresso material para os já incluídos e, de fato, conseguiu prolongar o modelo extrator e concentrador de desenvolvimento até os nossos dias.
O Brasil não necessita de mais “desenvolvimento”, ou pelo menos não desse tipo de desenvolvimento, excludente e concentrador, tanto porque já conforma, como dissemos, uma economia essencialmente desenvolvida. Ele necessita de outras políticas econômicas, que não sejam indutoras de maior exação fiscal e de distributivismo em favor das camadas médias e altas da sociedade, como ocorreu até aqui. Ele necessita, na verdade, de mais mercado e de menos Estado, algo que parece dificilmente aceitável aos olhos de todos aqueles que se beneficiam, relativa ou absolutamente, com a atual situação. Mesmo aqueles que reivindicam, geralmente em nome do empresariado, menos Estado, estão na verdade pedindo apenas menos impostos, não mais mercado, pois que a regulação mental é um fato ainda insuperável no nosso sistema econômico.
O único “desenvolvimento” de que o Brasil necessita é o de seus recursos humanos, não necessariamente os de maior qualificação técnica, pois que os membros das classes médias e altas já se encarregaram de prover essa qualificação – com recursos públicos ou privados –, mas basicamente o desenvolvimento educacional e técnico das camadas ditas subalternas, as únicas que foram histórica e permanentemente excluídas do processo de desenvolvimento nacional. A importante componente racial da população brasileira, derivada da abolição tardia e da discriminação de fato que a ela se seguiu, também precisaria estar contemplada na nova equação do desenvolvimento social, com políticas de ação afirmativa de alcance universal mas focadas nos grupos mais desfavorecidos, o que compreende em primeiro lugar, parece óbvio, as populações negras.
Em suma: o Brasil já é um país economicamente desenvolvido, só basta agora trabalhar mais um pouco para elevar os padrões de produtividade social do conjunto da população, com ênfase nos setores subalternos, de molde a convertê-lo numa sociedade socialmente desenvolvida. Para isso, se requer uma pequena revolução mental que afaste velhos e novos mitos sobre nosso suposto “não-desenvolvimento”, que elimine do processo de formulação de políticas econômicas muitas concepções esdrúxulas sobre o processo de desenvolvimento e outras variantes econômicas do que poderia ser chamado de “teoria da jabuticaba”, isto é, uma construção intelectual especificamente brasileira, servindo para justificar equívocos perpetuados por nossa preguiça mental em aderir aos saudáveis princípios da teoria econômica convencional. Quem sabe uma volta a velhas concepções sobre a “riqueza das nações”, propostas que remontam ao terço final do século XVIII, não poderia representar, de verdade, um enorme progresso intelectual para o Brasil do século XXI? Talvez esta constitua a revolução intelectual que nos falta, enquanto sociedade…
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)
Brasília, 15 de novembro de 2004

Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia e diplomata de carreira desde 1977. Tem atuado como professor convidado em diversas instituições brasileiras e estrangeiras e é pesquisador autônomo em temas de história diplomática brasileira e de relações econômicas internacionais. Publicou inúmeros trabalhos e diversos livros nessas áreas, com destaque para o processo de integração regional, o multilateralismo econômico e a diplomacia econômica do Brasil (www.pralmeida.org).

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