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domingo, 19 de agosto de 2012

Interpretacoes do Brasil: Paulo Prado, Sergio Buarque, Gilberto Freyre


Ensaios de interpretação do Brasil

A reedição de 'Retratos do Brasil', livro clássico de Paulo Prado, nos leva a indagar sobre a possível atualidade desse gênero. Será que ainda há espaço, hoje, para ensaios desse tipo? Os sociólogos Renan Springer de Freitas e Leopoldo Waizbort respondem a essa pergunta no 'sobreCultura 9', suplemento trimestral da CH.
Por: Renan Springer de Freitas e Leopoldo Waizbort
Ciência Hoje online, em 11/08/2012
Ensaios de interpretação do Brasil
Além de e 'Retratos do Brasil', 'Raízes do Brasil', de Sérgio Buarque de Holanda, e 'Casa-grande & senzala', de Gilberto Freyre, são exemplos de livros que no passado tentaram interpretar o país. (foto: Breno Peck/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)

Mórbido exercício de ajustar contas com o passado

por Renan Springer de Freitas
Receio que o tempo dos ‘ensaios de interpretação do Brasil’ já tenha ficado para trás. Claro, ninguém pode ser impedido de se mover nessa direção, da mesma forma que ninguém pode ser impedido de escrever um poema épico, mas duvido muito que qualquer desses caminhos possa se revelar promissor. Na verdade, essa analogia não é muito feliz porque os poemas épicos têm uma grandeza que os ditos ‘ensaios de interpretação do Brasil’ jamais tiveram.
Receio que o tempo dos ‘ensaios de interpretação do Brasil’ já tenha ficado para trás
Tomemos o caso de Casa-grande & senzala – para muitos, o que de melhor já se produziu no gênero. Nesse livro, Gilberto Freyre se empenha em mostrar que o nosso passado colonial imprimiu sua marca sobre a ‘nossa’ maneira (especial) de ser. Como tantos estudiosos de sua geração, Freyre se deixou seduzir pela ideia de converter a ‘singularidade brasileira’ em objeto de reflexão sociológica e, na medida em que o fez, sua obra capital pode mesmo ser considerada um ‘ensaio de interpretação do Brasil’. 
No meu entendimento, entretanto, a grandeza do livro nada tem a ver com isso. Ela reside, antes, na prosa incomparável e no extraordinário talento etnográfico do autor. São os registros etnográficos, muito mais que as considerações a respeito das raízes socioculturais do ‘modo brasileiro de ser’ ou das características distintivas do ‘brasileiro’, que fazem de Casa-grande & senzala o monumento que é.
Em Sobrados e mocambos, publicado poucos anos depois, já não há vestígio daquela preocupação em interpretar o Brasil. O desafio, agora, está em reconstruir o processo de transformação pelo qual passou a sociedade brasileira entre os séculos 18 e 19. Limito-me a um exemplo: até o século 18, as mulheres dos sobrados eram confinadas à cozinha. Freyre mostra como isso vai gradativamente se alterando; como as mulheres vão pouco a pouco conquistando os novos cômodos dos sobrados, até ganharem as janelas. 
Uma etnografia dessa natureza, cuja riqueza chega ao ponto de incluir uma descrição do modo como o corpo das mulheres se altera com o tempo, nada tem de ‘ensaio interpretativo’: não se busca, aqui, especular sobre as raízes das características distintivas da sociedade brasileira. Talvez seja conveniente esclarecer que nada vejo de errado em discorrer sobre este ou aquele traço característico dos brasileiros. Crônicas inspiradas podem ser produzidas por meio desse exercício. Mas ‘crônica inspirada’ não se confunde com etnografia e muito menos com a erudita e laboriosa reconstrução de processos históricos feita por historiadores. 
Capa, Raízes do Brasil
O que acabo de dizer não é novidade para os leitores do historiador Evaldo Cabral de Mello. Para ele, Raízes do Brasil é o livro menos importante de Sérgio Buarque de Holanda (embora o mais conhecido) exatamente por reverberar o “vezo entre mórbido e narcísico de ajustar contas com o passado nacional” peculiar à literatura ensaística da década de 1930. 
A literatura sobre o Brasil que se produziu nessa época, esclarece Evaldo Cabral no posfácio aRaízes do Brasil, “constituiu uma moda intelectual que, da península Ibérica, transmitiu-se ao Brasil e América hispânica. Sintomaticamente, este gênero de ensaio não frutificou nem na Europa nem nos Estados Unidos, como se, através de uma cadeia de mediações complexas, ele cristalizasse a própria marginalização histórica a que Espanha e Portugal se viam relegados e, com eles, as suas ex-colônias americanas”. 
Posteriormente, em 1998, em entrevista à revista Veja, Evaldo acrescentou que esforços em produzir interpretações sobre o próprio país, como se vê, por exemplo, em Retrato do Brasil, de Paulo Prado, foram uma moda peculiar aos países europeus que, no século 19, padeciam (em razão de sua condição periférica) de uma “angústia de identidade”.
Não precisamos proceder como se vivêssemos com um furúnculo latejante a nos atormentar...
Curiosamente, há um sociólogo alemão cujos escritos conduzem à mesma conclusão. Refiro-me a Norbert Elias (1897-1990). Não tenho conhecimento de sociólogo americano que tenha se interessado em ‘interpretar’ os Estados Unidos, nem de sociólogo inglês em ‘interpretar’ a Inglaterra ou francês em ‘interpretar’ a França. Mas Elias escreveu Studienüber die Deutschen (Os alemães, na tradução brasileira). Há uma razão óbvia para isso: a ascensão do nazismo se deu na Alemanha e isso levantou a questão de saber o que havia de errado em relação aos alemães. O mórbido exercício de ajuste de contas com o passado tornou-se imperativo nesse caso. Como escreve Elias pouco antes de morrer: “Tem-se frequentemente a impressão de que o furúnculo Hitler ainda não estourou. Lateja, mas o pus ainda não saiu. Os estudos que se seguem estão primordialmente interessados em problemas do passado alemão”. 
Elias se pôs, então, a discutir o modo como o “passado alemão” imprimiu sua marca no modo de ser ou, como ele diz, no habitus alemão. Mas é ele próprio quem ressalva: “encontramo-nos hoje num ponto de mutação em que muitos dos problemas, incluindo os de habitus, estão perdendo sua pertinência, e novas tarefas para as quais não existem paralelos históricos estão surgindo de todos os lados”. Mais de 20 anos se passaram desde que Elias escreveu essas palavras. Muita coisa mudou. O furúnculo Hitler (assim quero crer!) já estourou; o mórbido exercício de prestação de contas em relação ao passado para descobrir “o que significa ser alemão” perdeu sua razão de ser. O “problema do habitus”, que então apenas “perdia sua pertinência”, já a perdeu (assim espero!) completamente. O mesmo vale para o Brasil. Não precisamos proceder como se vivêssemos com um furúnculo latejante a nos atormentar...

Renan Springer de Freitas é professor de sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais
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O voo grandioso da síntese

por Leopoldo Waizbort
Ainda há espaço para ensaios de interpretação do Brasil? Eis aí um problema. Aponto algumas de suas faces. Os ‘ensaios’ são tentativas de uma síntese acerca do que seria o Brasil – o ‘povo’, a ‘nação’, a ‘história’, a ‘raça’, ou ainda alguma característica sua peculiar e potencialmente definidora. Uma síntese que fosse capaz de dizer algo de substantivo acerca de um ser, de algo que é: precisamente o que ele é, e como é. Ocasionalmente, de seu devir. E não se trata somente de síntese, mas, em mesma medida, de afirmação. Exige que se descubram os elementos a sintetizar, que se descubra a fórmula mágica da síntese, que se descubra o sentido da afirmação, que se revele por meio de tudo isso o verdadeiro ser.
Hoje as humanidades, o terreno dos ‘ensaios de interpretação do Brasil’, são muito diferenciadas e diversas. Diferenciadas disciplinar e institucionalmente; diversificadas conceitual, analítica e metodologicamente. Um conjunto de diferenças que torna, cada vez mais, as sínteses inalcançáveis, pois falta um chão comum e uma perspectiva que vislumbre por inteiro seu objeto. O resultado já se antevê: fragmento na perspectiva de abordagem e especialização como campo de decolagem (e pouso?). Seria possível um ‘ensaio’ nessas condições? Creio que aqui a resposta ‘não’ encontra argumentos fortes.
As sínteses oferecidas no passado foram sempre marcadas por uma subjetividade forte, que dobrava a objetividade do conhecido
E onde se poderia encontrar argumentos para um ‘sim’? Antes de tudo, na vontade daqueles que não querem abrir mão dessa modalidade de expressão cognitiva acerca do Brasil. Eles laboram perscrutando a história do gênero, escrevendo-a, reescrevendo-a e ensinando-nos a respeito do assunto. Conhecendo mais e melhor, ganhamos uma outra perspectiva, que se não é a que permite a síntese, ao menos a situa histórica e socialmente. Ao fazer isso, começamos a criar um chão comum em meio à diversidade. Em virtude da diversidade, tentativas de síntese só podem brotar sob a sombra de campos disciplinares e especializações determinadas, sem potencial analítico e metodológico para alçar o voo grandioso da síntese. Guarnecida pelo avanço do conhecimento, a visada restrita precisa abarcar já tanto – em virtude do processo de acumulação infindo das humanidades – que nos faltam maratonistas de fôlego. 
Não há dúvida de que sínteses são importantes. Elas, contudo, nas condições atuais do conhecimento, mal atingem a altura de uma perspectiva globalizante dentro da especialidade. Os balanços disciplinares estão aí para mostrar o tamanho da encrenca.Talvez grupos de pesquisa, no molde das novas formas de organização e gestão do conhecimento, possam criar espaços de síntese, mas vai faltar sempre o coração pulsante e apaixonado que possibilitava e orientava os antigos mestres. As sínteses que ofereceram no passado foram sempre marcadas por uma subjetividade forte, que dobrava a objetividade do conhecido. 
Não há dúvida de que sínteses são importantes. Elas, contudo, nas condições atuais do conhecimento, mal atingem a altura de uma perspectiva globalizante dentro da especialidade
Hoje, essa dobra, além de mais complexa, corre o risco de não ser aceita pela comunidade leitora potencial, que se afina evidentemente com os padrões historicamente desenvolvidos de análise, método,  conceito e exposição. A isso se soma a velocidade acelerada do processo do conhecimento, que não quer saber do tempo de construção da síntese, de maturação lenta.
Após os surtos de formação da universidade moderna no século 19, de especialização da universidade pós-moderna no século 20 e em meio ao atual surto de diplomação da universidade de massas contemporânea, não há mais lugar social para a concepção e execução desses ‘ensaios’; mas eles continuam ao alcance das mãos, para leitura e reflexão.

Leopoldo Waizbort é professor de sociologia na Universidade de São Paulo e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

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