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segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

1962: o ano que nao terminou nas relacoes internacionais - RBPI 2/2012, Editorial A.C. Lessa e P.R. Almeida

Um ultimo (acredito) trabalho publicado em 2012: o editorial que o editor Antonio Carlos Lessa e eu, como editor-adjunto, assinamos neste numero da RBPI, tratando de todos os temas ainda pendentes de 1962, cinquenta anos depois.

Editorial - O ano que ainda não terminou nas relações internacionais: 1962 nas páginas da RBPI, por Antônio Carlos Lessa & Paulo Roberto de Almeida

Cinquenta anos atrás, esta revista recém completava quatro anos, a partir de seu lançamento, em 1958. A periodicidade, estabelecida em seu número inaugural, se fazia à razão de quatro números por ano: a revista, portanto, abria o ano de 1962 com o número 17, já contando com o prestígio que lhe conferia a condição de ser uma espécie de “porta-voz” por escrito (embora informal) da política externa independente, inaugurada um ano antes com a ajuda do famoso artigo do presidente eleito Jânio Quadros na prestigiosa Foreign Affairs. A Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI) republicou a versão original, em português, desse texto seminal da nova diplomacia brasileira na seção de documentos de seu número 16, de dezembro de 1961 (Nova Política Externa do Brasil, já, então, como “artigo do ex-Presidente Jânio Quadros”), junto com o texto integral da Carta de Punta del Este, conferência diplomática na qual tinha sido instituída a Aliança para o Progresso.
O que se poderia dizer a respeito do ano de 1962 é que ele ainda não terminou de acabar, tanto para a RBPI quanto para o próprio mundo; tantos foram e tantos ainda são, mesmo hoje, os processos ali forjados, ou os eventos então ocorridos que continuam a impactar o cenário contemporâneo. Sua continuidade é manifesta, seja na área da segurança estratégica – armas nucleares e não proliferação –, seja na questão do desenvolvimento – a partir da descolonização da África e de boa parte da Ásia –, nos primeiros passos da integração latino-americana, no deslanchar de mudanças nas regras do comércio internacional, ou ainda na própria revolução cubana.
O que, sim, terminou foi a bipolaridade estrita das duas grandes potências nucleares, numa época em que o Reino Unido já era estritamente alinhado aos Estados Unidos, em que a França recém começava a testar seus primeiros artefatos nucleares (no deserto argelino) e quando a China comunista ainda não havia se capacitado nessa área (o que ela faria apenas em 1964). O segundo grande contendor, a União Soviética, que desafiava os EUA pela voz de Krushev na Assembleia Geral da ONU, dizendo que o socialismo iria “enterrar o capitalismo”, já não existe mais. Não obstante o fato de que o atual cenário geopolítico se apresente sob outras roupagens, ele preserva, de certa forma, algumas feituras do anterior, ao preservar a divisão entre os cinco “mais iguais” do Conselho de Segurança e todos os demais, embora a República da China tenha sido finalmente substituída pela República Popular.
Vários outros temas, alguns de bastante atualidade, enchiam as páginas da revista, com um sabor que alguns americanos chamariam de déjà-vu all over again: tensão no Oriente Médio, corrida armamentista, Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), valorização dos produtos de base, emergência do Sul e financiamento do desenvolvimento, entre outros ainda bem presentes no menu de todas as boas revistas de Relações Internacionais. Vale a pena, pois, conferir o que a RBPI publicou nesse ano que ainda não terminou. Uma nova visita aos índices do ano de 1962, meio século depois, pode ser útil, portanto, ainda que fosse apenas para confirmar tanto a importância diplomática e a relevância continuada de vários desses temas para os nossos dias quanto a essencialidade da RBPI para toda e qualquer pesquisa acadêmica que se empreenda, hoje, para uma retrospectiva da época ou para efetuar qualquer avaliação que se pretenda fazer, à distância, no que tange a agenda diplomática do Brasil naquela conjuntura.
O último número de 1961, publicado em dezembro, e circulando, portanto, no início de 1962, trazia artigos de diplomatas sobre as relações Brasil-Estados Unidos (Henrique Valle) e sobre o intercâmbio comercial entre o Brasil e a União Soviética (Paulo Leão de Moura), fluxos ainda engatinhando, depois de um primeiro artigo do ex-chanceler Oswaldo Aranha (n. 2, junho de 1958), defendendo, já sob a administração de Juscelino Kubitschek, a retomada das relações diplomáticas entre os dois países: se pretendia, então, a intensificação das vendas de café para os mercados socialistas. Naquele contexto, a RBPI refletia os primeiros passos da Política Externa Independente, com o seguimento das primeiras reuniões do MNA e a promoção de relações comerciais com a China de Mao. Por meio de artigos ou de notas tópicas, a RBPI seguia todos esses movimentos, profundamente desafiadores para a diplomacia brasileira de então.
A posição do Brasil na conferência de Punta del Este de 1961 está inteiramente refletida no artigo do intelectual Alceu Amoroso Lima, membro da delegação brasileira, no primeiro número de 1962 (ano 5, n. 17, março). Seguia-se um artigo do americano Richard Goodwin, sobre O futuro da liberdade e a Aliança para o Progresso, mas também um outro de Pedro C. M. Teichert sobre a América Latina e o impacto socioeconômico da revolução cubana. A seção de documentos trazia a posição do Brasil sobre a questão de Angola na ONU, onde se discutia a resistência do governo português em garantir a independência para sua maior colônia africana, como tinha ocorrido com quase todas as demais dependências europeias naquele continente; merecia ainda destaque nessa mesma seção a transcrição da Declaração dos Chefes de Estado ou de Governos dos Países não compromissados(como alguém traduziu os depois chamados não alinhados). O MNA acaba de realizar uma conferência em Teerã (agosto de 2012), talvez com as mesmas acusações às potências capitalistas que eram feitas em 1962.
O segundo número do ano (n. 18, de junho de 1962) se abria com um artigo do já prestigiado diplomata economista Otávio Dias Carneiro sobre o comércio entre o Brasil e a Europa Oriental. O jornalista nacionalista Barbosa Lima Sobrinho comparecia em seguida com um tema que animou as relações do Brasil com os Estados Unidos: O Brasil e a encampação de concessionárias estrangeiras. O historiador José Honório Rodrigues, que logo depois publicaria seu livro pioneiro sobre as relações entre o Brasil e a África (“novos horizontes”, como ele caracterizou), estava presente com um artigo sobre O presente e o futuro das relações africano-brasileiras. Mestre Gilberto Freyre criticava asIdeias errôneas sobre o Brasil e o então deputado Nelson Carneiro, depois conhecido como o “pai do divórcio no Brasil”, já se preocupava com A situação dos contratados das legações, ou seja, dos funcionários estrangeiros nas embaixadas do Brasil no exterior.
A seção Resenha desse número – na verdade compilando notas de atualidade – registrava a visita do presidente João Goulart aos Estados Unidos e ao México e a viagem a Washington do ministro San Thiago Dantas, buscando aliviar a difícil situação cambial em que se debatia então o Brasil. A seção de Documentos, por sua vez, trazia, entre outros atos de importância, um discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas do Senador Afonso Arinos (que tinha sido chanceler de Jânio Quadros) sobre a posição do Brasil em Punta del Este, onde a questão central foi a postura de Cuba socialista em face do sistema hemisférico interamericano. Esse ponto permanece, portanto, embora o Brasil tenha hoje caminhado para reinserir plenamente Cuba no contexto latino-americano; no plano do balanço de pagamentos e da disponibilidade de divisas, a situação, hoje, é infinitamente mais confortável.
No segundo semestre, o número 19 (de setembro de 1962) se abria com um novo artigo do diplomata economista Otávio Dias Carneiro sobre um dos temas mais relevantes da diplomacia econômica brasileira durante décadas: o comércio internacional de produtos de base; eles são, ainda hoje, uma presença constante na pauta exportadora brasileira, até com maior intensidade do que nas décadas imediatamente seguintes, ocupadas pela promoção comercial e a busca de novos mercados para os produtos manufaturados brasileiros. José Honório Rodrigues também voltava a abordar O presente e o futuro das relações africano-brasileiras (II), enquanto o diplomata jurista Geraldo Eulálio Nascimento e Silva discorria sobre a conferência de Viena sobre relações e imunidades diplomáticas, ainda uma das bases das relações internacionais contemporâneas. Entre os livros resenhados, encontra-se a primeira edição da coleção de discursos e artigos de San Tiago Dantas, Política Externa Independente, que a Fundação Alexandre de Gusmão acaba de republicar, em nova edição ampliada com estudos contemporâneos.
Finalmente, o quarto número do ano (n. 20, de dezembro de 1962) se abria com um artigo do então secretário da Organização dos Estados Americanos (OEA), ex-presidente equatoriano Galo Plaza, sobre um problema infelizmente ainda atual na região: Problemas de educação na América Latina. Um outro, do ex-presidente da Costa Rica, José Figueres, também tocava em assunto recorrente, talvez não mais tão tenso, embora tampouco desprovido de conflitos: O comércio entre países pobres e ricos como causa de tensões. Um dos economistas pioneiros nas questões do desenvolvimento dos países então chamados de subdesenvolvidos, Arthur Lewis, comparecia com um artigo sobre osProblemas econômicos do desenvolvimento.
Esses foram, portanto, os principais assuntos abordados nas páginas da RBPI em seus quatro números de 1962. Curiosamente não comparecia o grande assunto do ano, a crise dos foguetes soviéticos em Cuba, ocorrida em duas semanas tensas de outubro, provavelmente pelo caráter absolutamente imediato daqueles eventos dramáticos, que ameaçaram, de fato, deslanchar pela primeira vez um enfrentamento nuclear entre as duas grandes potências. O tema estaria presente, contudo, em diversos números posteriores, como ainda percorre as páginas de vários periódicos importantes da área.
Nos números seguintes, a RBPI continuaria a abordagem dos grandes temas da agenda diplomática mundial e brasileira, com artigos e ensaios de autores brasileiros e estrangeiros: Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc) (Henrique Valle), comércio internacional de produtos de base (Otávio Dias Carneiro), África (Arthur Cézar Ferreira Reis), o incidente nas relações Brasil-França causado pela chamada “guerra da lagosta”, além do seguimento dos projetos da Aliança para o Progresso. Já nessa época se discutia a desnuclearização da América Latina, que seria objeto do Tratado de Tlatelolco, de 1967, não muito bem-visto pela diplomacia brasileira.
Pouco adiante, em meados de 1963, a revista registrou a assinatura do primeiro instrumento de contenção da proliferação, o Tratado de Proscrição das Experiências com Armas Nucleares na Atmosfera, no Espaço Cósmico e sob a Água, tema ainda atual, embora o Comprehensive Nuclear-Test-Ban Treaty (CTBT), o tratado de proscrição completa dos testes nucleares, dos anos 1990, não tenha ainda entrado em vigor. Um outro número desse ano trazia a resenha de um livro, já então sob a forma de alerta, do famoso economista Robert Triffin, sobre o ouro e a crise do dólar, denunciando as fragilidades do sistema de Bretton Woods e antecipando e prenunciando o fim da era do padrão ouro-dólar, o que só ocorreria dez anos depois.
Todos esses exemplos, recolhidos um pouco aleatoriamente nas páginas da RBPI entre o final de 1961 e o início de 1963, demonstram como a conjuntura de meio século atrás ainda impregna o panorama atual das relações internacionais, tanto em seus aspectos políticos e de segurança estratégica quanto nos seus elementos econômicos e sociais. Uma releitura desses números, sobretudo os de 1962, nos instrui, realisticamente, sobre a imanência dos grandes temas da agenda diplomática internacional e brasileira, confirma, infelizmente, a modéstia das capacidades humanas em transformar positivamente o mundo, mas nos enriquece, intelectualmente, sobre a grande marcha da história e sobre as grandes e pequenas tragédias da política internacional.
A RBPI, que nasceu sob essa conjuntura histórica de transformação – que ainda é a nossa, meio século depois –, continua a alimentar o debate, o conhecimento e a pesquisa sobre esses temas cruciais das relações internacionais. Já tendo completado, ela mesma, 54 anos de existência continuada, a RBPI promete continuar, nos próximos 46 anos que a separam de seu primeiro centenário, o mesmo trabalho de compilação de análises relevantes sobre a atualidade internacional. Se recordar é viver, como diz a canção popular, a RBPI tem vida longa pela frente.
Temos trabalhado intensamente no resgate da nossa memória, do acervo de artigos, estudos, análises e documentos publicados ao longo da nossa trajetória. Todos os números da RBPI estão digitalizados e estão sendo progressivamente incorporados a bases de dados acessíveis a todos os pesquisadores. A denominada série Rio de Janeiro está inteiramente disponível no projeto de divulgação científica Mundorama (disponível em ).
Ao mesmo tempo, temos operado importantes mudanças na nossa linha editorial, justamente para que essa extraordinária tradição possa se renovar em parâmetros modernos e de elevada competitividade. Fizemos a partir deste número um novo e importante ajuste na política editorial da RBPI: a partir da próxima edição publicaremos apenas contribuições em inglês e em português, privilegiando os trabalhos em língua inglesa. Esta edição, portanto, é a última em que publicamos trabalhos em espanhol. Incentivaremos os nossos autores a submeterem as suas contribuições em bom inglês, ou buscaremos meios para traduzir em número crescente os artigos mais impactantes. É nosso desejo que, em pouco tempo, o formato impresso circule predominantemente em língua inglesa, ao tempo em que cuidaremos para que versões em português sejam publicadas paralelamente na nossa página no Scielo.
Entendemos que esses são ajustes que nos permitirão perseverar com a sincronização das nossas tradições com o perfil de uma revista moderna e inspirada por uma visão arrojada e cosmopolita de procedimentos e políticas editoriais, uma publicação que soube se renovar e se fazer a cada dia mais relevante, publicando ciência impactante tanto para a comunidade brasileira de Relações Internacionais quanto para o crescente número de especialistas de outros países que se motivam em acompanhar o debate especializado no nosso país.

Antônio Carlos Lessa é Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), editor da Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (aclessa@gmail.com).Paulo Roberto de Almeida é Professor do Centro Universitário de Brasília (Uniceub), diplomata de carreira e editor-adjunto da RBPI (pralmeida@me.com).

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