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sábado, 8 de dezembro de 2012

Acordo Trans-Atlantico de Livre Comercio (2) - Paulo Roberto de Almeida


Um acordo UE-EUA de livre comércio?
Paulo Roberto de Almeida
(trechos do capítulo conclusivo de um próximo livro meu, sobre a integração regional) 

Voltam a frequentar as páginas dos jornais do mundo norte-atlântico notícias sobre uma aspiração antiga, de certa forma recorrente e, até o momento, “inconclusiva”: a retomada, e eventual finalização, de negociações para a assinatura de um acordo de livre comércio entre as duas maiores economias do planeta, a União Europeia, de um lado, e os Estados Unidos, de outro (com o potencial, inclusive, de “arrastar” o Canadá e o México, já sócios deste último no Nafta, e, possivelmente, outros países associados, por diferentes tipos de acordos, à UE ou aos próprios Estados Unidos).
Se realmente levada a termo, essa antiga ideia de promotores da liberalização comercial dos dois lados do Atlântico tem o potencial de produzir uma pequena revolução na economia mundial. Sua importância, na verdade, é bem maior do que a própria dimensão dos fluxos comerciais que seriam criados a partir desse acordo, reconhecidamente limitada, uma vez que as duas grandes economias já desfrutam de amplo grau de abertura e de imbricação recíprocas, independentemente da conclusão bem sucedida – isto é, sem muitas exceções setoriais – de um acordo desse tipo. Afinal de contas, ambas economias regionais já estão vinculadas entre si por laços históricos de comércio, investimentos, licenciamentos tecnológicos, joint-ventures industriais, seja no âmbito bilateral, seja no contexto da OCDE, além da intensa troca de capital humano que se estabelece continuamente nas mais diferentes esferas da cooperação científica e educacional, para não falar, obviamente, das barreiras notoriamente limitadas que existem para os mais diversos intercâmbios que existem, desde mais de três séculos entre as duas regiões, tanto sob a forma de poucos obstáculos substantivos às trocas privadas e oficiais, como na modalidade tarifaria, com alíquotas bastante reduzidas praticadas na maior parte dos casos. Ou seja, existem poucos entraves ao intenso fluxo de bens, serviços, capitais, tecnologia, pessoas entre essas duas grandes regiões econômicas do mundo, a da UE e a da América do Norte, inclusive porque a segunda foi construída, historicamente, pela primeira, até que o dinamismo da segunda, expressa em suas maiores taxas de crescimento da produtividade, veio a colocar em segundo plano o peso da primeira, a fonte original da ordem econômica global, tal como a conhecemos nos últimos cinco séculos.
Mas, se o impacto econômico efetivo desse tipo de acordo é pequeno, por que destacar com tanta ênfase, o que não parece deixar de ser, até aqui, uma mera possibilidade teórica, tantas vezes anunciada e tantas vezes frustrada em sua implementação prática? Existem muitas razões, e elas têm a ver com diferentes aspectos que foram discutidos ao longo do livro, e que podemos agora retomar seletivamente para algumas lições que podem ser extraídas dos capítulos precedentes e como guias para o possível mundo do futuro de médio ou de longo prazo.
 A importância de um acordo entre dois gigantes do comércio internacional – os quais, justamente, estão no centro do fenômeno da regionalização, um pelo lado do livre comércio, o outro pela integração profunda – situa-se precisamente no fato concreto de que ambos mobilizarão proporção relevante, atualmente determinante, do PIB global e do comércio internacional, mesmo se o acordo, em si, não agregará muito aos fluxos que já vem sendo efetivados “naturalmente” entre os dois lados do Atlântico. Se e quando efetivado tal acordo – e as apostas contrárias também são poderosas –, ele terá um impacto profundo em termos institucionais (ou seja, sobre o sistema internacional de comércio e suas rodadas de negociação) e em relação a terceiros mercados, para dentro e para fora dos dois blocos eventualmente unidos pelo livre comércio. Mais ainda, um acordo desse tipo parece sintetizar todos os bons efeitos e todos os defeitos, todos os méritos e muitos vícios do minilateralismo comercial.
Cabe destacar, em primeiro lugar, que o que se discute entre a União Europeia e os Estados Unidos não é nenhuma forma mais elaborada de integração, e sim um acordo de livre comércio, pura e simplesmente, embora bem mais abrangente e complexo do que aqueles usualmente registrados na OMC, provavelmente concebido, aos olhos americanos, no estilo e no formato do Nafta. A retomada dessas negociações, depois de muitos anos de torpor burocrático, apresenta evidências de novos elementos, de caráter político, que não estavam presentes quando se cogitou, originalmente, de um tipo qualquer de desarme tarifário entre os mesmos personagens (a UE contando, então, com um número bem mais reduzido de membros). A resposta está, provavelmente, no fator China, mas convém, antes de qualquer outra consideração, ressaltar o impacto positivo de um real arranjo liberalizador que se faça entre a UE e os Estados Unidos.
De fato, a primeira consequência mais geral de um acordo desse tipo é, essencialmente, um efeito demonstração, ou seja, o exemplo positivo dado pelo engajamento de dois grandes parceiros, na verdade os maiores, do sistema multilateral de comércio, no sentido de confirmar a vocação liberalizadora que esteve presente no momento de criação do Gatt e que se manteve mais ou menos constante nas primeiras cinco ou seis rodadas de negociações comerciais multilaterais. Infelizmente, esse impulso começou a se perder a partir dos anos 1970, quando, tanto em função do menor peso das tarifas nos processos liberalizadores – já que elas tinham sido consideravelmente reduzidas desde o final dos anos 1940, adquirindo maior importância, então, os temas sistêmicos, ou de caráter regulatório – quanto em virtude da perda de competitividade de velhas indústrias labor-intensive dos países desenvolvidos em face dos chamados “novos países industrializados”, alguns periféricos da Ásia e da América Latina (Coreia do Sul, Taiwan, Hong-Kong, Brasil, México, etc.) que passaram a competir agressivamente em grandes nichos de mercados nos quais possuíam vantagens comparativas (calçados, têxteis, manufaturas leves, etc.). Acresce a isto a crise fiscal e de “estagflação” dos países avançados, mais ou menos coincidente com a primeira e a segunda crise das dívidas externas dos países em desenvolvimento, que redundou no renascimento de instintos protecionistas no seio mesmo do sistema, entre aqueles que tinham garantido, até então, o sucesso das rodadas de liberalização de comércio.
O mundo atravessou, desde essa época, fases de maior ou menor fechamento comercial, ao mesmo tempo em que ensaiava a revitalização dos velhos princípios multilateralistas que haviam guiado os negociadores em Bretton Woods, e que tinham resultado na criação de uma primeira organização mundial de comércio, inscrita na Carta de Havana (março de 1948), mas que infelizmente não foi implementada na prática. Em todo caso, o processo foi retomado na segunda fase da rodada Uruguai (entre 1991 e 1992), quando se decidiu relançar a ideia de uma organização de pleno direito – uma vez que o Gatt era um simples acordo entre partes contratantes, dotado de um secretariado mínimo, esquema que tinha permanecido “provisoriamente” em vigor durante meio século – o que foi concretizado em Marraqueche (1993), com a assinatura da Ata Final da rodada, da qual emergiu a OMC (1995).
Mas a institucionalização da OMC também foi contemporânea da maior expansão já vista dos acordos regionais preferenciais, um pouco em todos os continentes, como já constatado nos capítulos precedentes. O minilateralismo parecia querer ganhar preeminência sobre o multilateralismo e, de fato, nas estratégias comerciais das grandes, como nas das pequenas e médias potências da economia mundial, ganhava força a ideia de que a solução para os problemas de acesso a mercados e de compatibilização de regras não tarifárias não estava mais no âmbito do Gatt, ou da OMC (dependendo do tipo de acordo), mas na constituição de blocos restritos, ditos de regionalismo aberto, mas potencialmente discriminatórios.
O anúncio, portanto, de que Estados Unidos e UE vão voltar a discutir a criação de uma vasta zona de livre comércio recíproco – a maior do mundo, talvez só superável quando os países membros da Asean e seus parceiros da bacia da Ásia Pacífico fizerem a sua, em algum momento da próxima década – é auspiciosa, no sentido em que essa iniciativa pode representar um novo impulso à (conclusão da?) Rodada Doha de negociações comerciais multilaterais, cuja partida foi dada em 2001. Supõe-se que, uma vez concretizada a nova superaliança comercial, seus dispositivos liberalizadores representem inclusive um avanço sobre o estado atual das negociações comerciais, em termos de desmantelamento de barreiras e do estabelecimento de regras uniformes para o mútuo reconhecimento de padrões industriais e de diversas outras normas que podem atuar (deliberadamente, segundo os casos) como medidas protecionistas disfarçadas.
As respectivas barreiras tarifárias, em si, são pouco relevantes, representando uma média de 3% para os produtos manufaturados, mas como o comércio inter, intraindustrial e também intrafirmas, entre os dois lados, é especialmente intenso, mesmo uma pequena diminuição dos custos pode significar, no plano microeconômico, um incremento significativo para as empresas engajadas no intercâmbio, estimulando inclusive novos investimentos diretos estrangeiros, das duas regiões e de terceiras partes. Subsistem zonas de protecionismo setorial, sobretudo na agricultura – e aqui é provável que ambos lados conservem não apenas entraves protecionistas, como subsídios por vezes abusivos –, bem como políticas de sustentação de setores ditos estratégicos (como aviação civil, por exemplo) que poderiam ser objeto de mais alguma unificação de critérios nas medidas de apoio doméstico ou comunitário.
Haveria, do lado americano, bem menos resistências políticas e sociais, no Congresso ou dos sindicatos, a um acordo com os europeus, uma vez que não estariam presentes as mesmas preocupações com um suposto “dumping social” mexicano que quase comprometeram a aprovação do Nafta, exigindo a negociação de acordos paralelos para lograr a superação de paranoias setoriais e a aprovação congressual. Em resumo, tanto no plano teórico – como a efetivação de economias de escala e os estímulos ao crescimento econômico, do emprego e da renda – quanto no plano prático – tendo em vista a uniformidade relativa de padrões produtivos e financeiros, já obtida no âmbito da OCDE –, diferentes elementos concorrem para reforçar os traços positivos que esse tipo de integração comercial entre as duas maiores economias planetárias pode representar não apenas para as partes no acordo, mas para outros parceiros externos e, sobretudo, para o sistema multilateral de comércio.
 (...)

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