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sábado, 11 de maio de 2013

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (3) - Paulo Roberto de Almeida

Continuação da postagem anterior.

A luta armada no Brasil: depoimento de um quase combatente (3)

Paulo Roberto de Almeida


(...)
Ocorreram perdas nessa fase – primeiro Ché Guevara, depois Marighella – (...) mas ainda restava Carlos Lamarca, que havia desertado alguns meses antes de um quartel em Quitaúna, SP, com muitas armas, e prometia ser o próximo chefe da revolução: as divisões, subdivisões, dissidências e reagrupamentos eram comuns, nesta fase (final de 1969, início de 1970), os grupos armados já se encontravam na defensiva, lutando apenas pela sobrevivência. Essa foi a realidade da luta armada, quase quixotesca, se não fosse trágica: muitas vidas sacrificadas, criminosamente ou por “acidente”, para nada.
Isso eu não sabia, exatamente, mas vim a descobrir imediatamente após: eu – e o pequeno grupo de colegas estudantes e trabalhadores de escritório que eu coordenava, informalmente – procurava justamente discutir as bases, os conceitos e os fundamentos programáticos dos grupos revolucionários, examinar com os “verdadeiros revolucionários” os caminhos da revolução no Brasil, um pouco como Lênin havia feito com seus colegas bolcheviques no exílio suíço. Minha intenção declarada era a de estabelecer com eles primeiro uma “colaboração de trabalho”, que antes de qualquer outro engajamento, seria intelectual, ou teórica, para depois levar ao grupo as propostas dos camaradas revolucionários e decidir conjuntamente “o que fazer”, como diria ainda o revolucionário russo. (...)
À minha indagação sobre as posições políticas do grupo armado, sobre nossa intenção de discutir os fundamentos da “ação revolucionária” antes de  decidir qualquer curso de ação, o que obtive como “resposta” foram algumas tergiversações em torno de quase nada...
(,,,) depois de ter recebido alguns papéis muito elementares, e terrivelmente mal escritos, sobre o fabuloso programa revolucionário dos companheiros – que nos decepcionaram terrivelmente, a mim e a meus colegas, pela pobreza argumentativa, já nem diria intelectual, apenas militante, daquelas mal traçadas linhas – decidimos que não cabia, realmente, ingressar numa causa tão mal costurada, tão mal justificada, feita apenas de revolta quase infantil contra a toda poderosa ditadura. Fiquei realmente surpreendido pela miséria intelectual dos documentos dos “revolucionários profissionais”, eu que estava acostumado com a “alta literatura” bolchevique-kominterniana, todas as obras filosóficas de Marx e Engels, e mais alguns materiais paralelos, de certa estatura intelectual. Enfim, decidi que não havia nada a ser feito no plano intelectual, e que a hora era mesmo de tentar “salvar os cacos” do movimento revolucionário, ou seja, tentar salvar os companheiros, antes que todos desaparecessem na voragem da repressão.
Nunca cheguei a pegar em armas, e nem tentei fazê-lo, por constatar a completa inanidade, talvez a insanidade, de qualquer decisão nesse sentido. Nos poucos meses que ainda permaneci no Brasil – antes de partir para um longo exílio de sete anos na Europa, no final de 1970 – tentei compreender as razões da insanidade... Os companheiros precisavam, é claro, de “companheiros de armas”, que os ajudassem a assaltar alguns bancos, ou quem sabe sequestrar algum burguês bem abastecido, para ajudar na simples sobrevivência física dos outros companheiros escondidos e clandestinos, coisas que eu não pretendia fazer, e isso estava claro.
(...)
 A única coisa que conclui desses meses agônicos do início do milagre brasileiro – e da vitória na Copa do Mundo, o que parece ter complicado nossa tarefa “revolucionária” – foi de que não havia nada a esperar de terrivelmente intelectual, ou de simplesmente politicamente sensato, desse bando de cowboys do asfalto, que pensavam estar fazendo a revolução, quando a única coisa que faziam era roubar alguns bancos, sequestrar alguns embaixadores (no desespero para libertar os companheiros presos) e roubar algumas armas, para se manterem no ofício maluco que tinham concebido para si mesmos. Já estava claro que a luta armada não tinha qualquer futuro.
Quanto a discussões políticas de alto nível, obviamente que não vi nada disso. Mas algumas coisas pude constatar pela leitura dos poucos e pobres documentos que nos foram repassados, talvez um pouco a contragosto pelos companheiros do “ponto” – “esses caras não veem que já superamos essa fase, que já estamos fazendo a revolução?”; “eles não ouviram falar da décima-primeira tese sobre Feuerbach, até aqui os filósofos interpretaram o mundo,...?” – e essas coisas podem ser resumidas nas “descobertas” seguintes. Qualquer que fosse o glorioso regime de justiça social e de igualdades estruturais que justificavam nossa luta contra a ditadura, nenhum de nós pretendia instaurar uma “democracia burguesa” no Brasil, longe disso.
Os documentos mais explícitos falavam claramente em ditadura do proletariado, como já tinha ensinado Lênin em 1917 e, antes dele, o Marx da Comuna de Paris; os mais enrolados falavam de “democracia de massas”, ou de “regime de transição para o socialismo”, o que, em qualquer hipótese significava derrubar o sistema capitalista e dar início à propriedade coletiva dos meios de produção. Parece que, no meio disso tudo, teríamos que inevitavelmente eliminar os latifundiários e, quem sabe?, meia dúzia de grandes capitalistas, para “dar o exemplo” aos demais. Quanto às Forças Armadas, a serviço da burguesia e do imperialismo, depois de derrotadas, elas seriam recompostas no formato do exército popular, ou de qualquer outra coisa que não fosse o exército antipopular, assassino e repressor. O modelo era o soviético, ou até chinês maoísta.
Essas não eram todas as loucuras companheiras, mas já era o bastante para eu concluir, como aquele personagem de desenho animado, que tudo aquilo não podia dar certo, que aquilo não daria certo (sem qualquer sorriso de hiena, claro). Foi suficiente para eu concluir que estava na hora de retirar o meu time de campo, antes que algo mais prejudicial à minha saúde, ou à minha integridade física, sobreviesse repentinamente. “Liberei” os “meus” companheiros de qualquer compromisso com a revolução, e lá fomos, cada um cuidar de sua vida, à espera de tempos melhores. Quanto a mim, resolvi sair do país, estudar na Europa e conhecer o mundo. Acho que foi mais salutar...

(Continua)

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