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domingo, 15 de setembro de 2013

Diplomatas "transgressores" - Fabio Koifman (FSP)

Transgressões no Itamaraty
FÁBIO KOIFMAN
Folha de S.Paulo, 15/09/2013

RESUMO Dentro de um ministério regido por hierarquia e normas próprias como o Itamaraty, atos de rebeldia são pouco comuns. Historiador das relações internacionais faz um apanhado de casos em que representantes do país atuaram contra as regras estabelecidas, com motivações diversas, da convicção ética à pequeneza pessoal.
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Como em uma orquestra, vige no Itamaraty, ministério hierarquizado e dotado de regras próprias, um ritual de obediência que visaria desmotivar, cercear e eventualmente punir a dissidência. A Casa --como muitos chamam o MRE-- não estimularia a independência de pensamento.
A desobediência não é fato tão comum na história do ministério. A maioria dos diplomatas é disciplinada e segue as regras. Quase sempre é quando as ordens ferem os princípios de um diplomata que pode surgir um transgressor.
Em 2008 fui chamado a falar sobre o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas (1876-1954) aos alunos do Instituto Rio Branco em Brasília. Era um sinal positivo e curioso que a Casa convidasse alguém para falar aos futuros diplomatas sobre um embaixador que fez o que eles não deveriam de modo algum fazer: deixar de cumprir as orientações e ordens da chefia.
Representante do país na França ocupada, Souza Dantas não seguiu as orientações do Estado Novo (1937-45) de Vargas e praticou ajuda humanitária, emitindo vistos a perseguidos do nazismo.
Alguns articulistas, acadêmicos e jornalistas têm se referido a Souza Dantas quando opinam a respeito do recente caso envolvendo o diplomata brasileiro Eduardo Saboia, que ajudou na fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina, asilado na Embaixada do Brasil em La Paz por quase 500 dias.
Em uma primeira análise, os casos de Souza Dantas e de Saboia têm pouco em comum. Enquanto Souza Dantas encontrou dificuldades morais em seguir a determinação da Secretaria de Estado, Saboia aparentemente teria enfrentado o silêncio quanto a como proceder para contornar a situação envolvendo o senador boliviano.
Nem todas as transgressões ocorridas no MRE deixaram registros escritos; alguns casos de diplomatas rebeldes só puderam ser apurados nos corredores da Casa. Nem todas, também, se deveram a motivos de consciência ou humanitários -várias tiveram mesmo origem em fatos comezinhos.
PERU
Eram fins de 1902 quando Manuel de Oliveira Lima foi indicado para a nossa representação no Peru. Desagradado com o destino, postergou o quanto pôde sua volta do Japão, onde estava lotado, apesar de o barão do Rio Branco ter solicitado com máxima urgência seu retorno ao Brasil --a demora se estendeu por mais de seis meses.
O desentendimento com o barão do Rio Branco agravou-se ao longo de 1903, com a publicação de artigos de Oliveira Lima em jornais expressando críticas às decisões da política externa brasileira. Citando o visconde de Cabo Frio, teria afirmado: "Peru só na mesa, assado, e para quem gosta. Eu não gosto".
Eleito para a Academia Brasileira de Letras, em seu discurso de posse em julho de 1903, na presença do presidente da República e de outras autoridades, Oliveira Lima teceu críticas à situação da carreira diplomática brasileira. Desejava ir para a Europa, mas acabou sendo enviado para a Venezuela onde permaneceu por três anos.
A intempestividade em público também atingiu Rui Barbosa.
Sem ser diplomata de carreira, em 1916 ele foi escolhido para representar o Brasil em importantes cerimônias comemorativas na Argentina. Naquele momento, o governo brasileiro ainda se mantinha neutro em relação ao conflito que seria conhecido mais tarde como Primeira Guerra Mundial.
Em 14 de julho, sob o argumento de que já estavam concluídas as cerimônias oficiais e que se expressava não como representante diplomático --embora tivesse exigido um salário mensal de embaixador--, Rui Barbosa pronunciou um discurso no qual assumia posição favorável a um dos lados em conflito, o dos aliados.
Nessa época, Luiz Martins de Souza Dantas respondia interinamente pelo Ministério das Relações Exteriores. Mesmo com antigas ligações de amizade entre as famílias, a defesa de posição divergente produziu acusações mútuas, bate-bocas nos jornais e o rompimento definitivo entre os dois.
Curioso foi o caso em que uma rebeldia foi respondida com outra.
Mário de Pimentel Brandão era embaixador na Bélgica quando os alemães invadiram o país, em 1940. Bruxelas estava sob bombardeio, o que levou o governo belga e todo o pessoal diplomático a fugir -Brandão inclusive. Do Rio, o secretário-geral do Itamaraty, embaixador Maurício Nabuco, dirigiu a Brandão uma repreensão por ter abandonado o posto sem a devida autorização do governo brasileiro e a divulgou por circular.
A resposta de Brandão, também aberta, foi de que se na antiga Roma de Calígula um cavalo havia sido feito cônsul, não era de se admirar que no Brasil moderno outro cavalo (algumas versões mencionam "burro") houvesse chegado a embaixador e a secretário-geral.
Sem conseguir do governo punição de Brandão pela resposta, Nabuco passou a transgressor: simplesmente abandonou o posto e viajou para Petrópolis e lá permaneceu. Foram precisos meses (e pedidos cordiais do presidente da República) para que o secretário-geral voltasse ao trabalho.
CÉLULA
Em 1952, com o Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade, cinco diplomatas foram, a partir de uma denúncia, acusados de criar uma "célula comunista" dentro do MRE. Eram eles João Cabral de Melo Neto, Antônio Houaiss, Amaury Banhos Porto de Oliveira, Jatyr de Almeida Rodrigues e Paulo Cotrim Rodrigues Pereira.
Em 20 de março de 1953 foi publicado o despacho do presidente da República: Vargas seguiu o parecer do Conselho de Segurança Nacional e a proposta do ministro das Relações Exteriores, assinando decretos que colocavam os cinco "em disponibilidade inativa" --ou seja, sem remuneração.
O processo ainda foi enviado à chefia de polícia para promover a apuração "da responsabilidade criminal dos indicados". Os cinco impetraram ações no Supremo Tribunal Federal e só no ano seguinte seriam reintegrados ao Itamaraty. Houaiss e Almeida Rodrigues seriam aposentados compulsoriamente depois do golpe de 1964.
Álvaro de Barros Lins não era diplomata de carreira, mas em setembro de 1956 foi nomeado embaixador do Brasil em Lisboa por Juscelino Kubitschek. Desgastou-se com a ditadura salazarista por criticar o Tratado de Amizade e Consulta entre Brasil e Portugal, que considerava "lesivo" aos interesses brasileiros.
Em 1959 o Brasil concedeu asilo político ao general Humberto da Silva Delgado, líder oposicionista português. O governo português não reconheceu o asilo. Considerando a reação de Kubitschek ao fato insuficiente e acusando-o de cúmplice com as ditaduras, saiu do posto em outubro do mesmo ano. Delgado foi assassinado pela polícia política de Salazar próximo á fronteira espanhola em 1965.
Foi contra a nascente ditadura brasileira que se insurgiu, em 1964, o embaixador Jayme de Azevedo Rodrigues. Em serviço em Genebra na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), ao receber o comunicado da deposição do presidente João Goulart, telegrafou ao Itamaraty: "Não sirvo a governos gorilas". No dia 2 de julho, sua aposentadoria foi publicada com base no primeiro dos atos institucionais militares.
ZUM-ZUM
O regime militar brasileiro teria no diplomata Manoel Pio Correa um aguerrido defensor da ordem. Em 1966, ao assumir a função de secretário-geral, Pio Correa deixou claro que não gostava de diplomatas "pederastas", "vagabundos" e "bêbados" --os termos são do próprio diplomata, conforme citados em suas memórias ("O Mundo em que Vivi").
Logo descobriu que Vinicius de Moraes, lotado ali, não era assíduo ao trabalho. Além disso, era contratado da casa noturna Zum-Zum, em Copacabana, onde se apresentava todas as noites.
Convocou-o propositalmente em uma manhã bem cedo para lhe dar duas opções: ou largava o trabalho noturno e assumia uma função ou pedia licença sem vencimentos. Vinicius foi obrigado a licenciar-se. O AI-5 o aposentaria compulsoriamente em 1968.
A atividade artística quase foi daninhas a outro homem de letras. José Guilherme Alves Merquior foi, desde cedo, muito presente no meio intelectual de sua época.
Em 1962, aluno do Instituto Rio Branco, ele participou da organização de um festival de cinema russo. No ano seguinte (ao fim do qual tomaria posse como terceiro secretário do Itamaraty), foi convidado a dar um curso de introdução à estética no Instituto Superior de Estudos Brasileiros e chamou a falar o marxista Leandro Konder. Teria ainda coordenado uma exposição de fotógrafos cubanos.
Designado para servir em seu primeiro posto internacional em 13 de maio de 1966, teria sido inquirido a respeito dessas atividades que flertavam com a ideologia comunista --segundo conta-se, por pouco não foi cassado.
Uma disputa de cunho pessoal quase coloca o Brasil em um grave incidente com a Síria de Hafez al-Assad --pai do atual ditador sírio, ele havia tomado o poder via golpe de Estado em 1970.
Entre 1969 e 1972, Roberto Luiz Assumpção de Araújo era embaixador em Damasco. Assad passou a cobiçar a casa na qual Assumpção estava instalado, tentando convencê-lo a se mudar. O embaixador não cedeu, e os dirigentes sírios passaram a utilizar outros meios de pressão, que incluíram o corte sistemático de energia e água da residência. Sem sucesso, obstruíram o esgoto, o que produziu uma situação insustentável.
Assumpção, ao invés de dar-se por vencido, arriou a bandeira brasileira e seguiu com o protocolo de rompimento de relações diplomáticas com o país árabe. O caso produziu alvoroço na comunidade sírio-brasileira, que se lançou em reclamações contra Assumpção. Uma ordem expressa de Brasília finalmente convenceu o embaixador a deixar a casa.
Para alguns, os atos de José Maurício Bustani quando diretor-geral da Organização para a Proibição das Armas Químicas (Opaq) o qualificam como transgressor --e, se não o foi com relação ao Itamaraty, certamente pode-se dizer que ele entrou em choque com o governo norte-americano.
Eleito para a Opaq no período 1997-2000 e reeleito para o quadriênio seguinte, 2001-2005, ele agiu de maneira independente a fim de tentar fazer fazer com que as regras valessem do mesmo modo para todos os países.
O governo George W. Bush passou a vê-lo como obstáculo, e Bustani não chegou a concluir o segundo mandato: menos de um ano antes do início da segunda guerra do Iraque, os Estados Unidos passaram a articular pela sua remoção do posto, o que acabou por ocorrer em abril de 2002.
DESALINHO
Com a inauguração do governo Lula e sua diplomacia influenciada pela perspectiva do PT, diversos funcionários tidos como contrários à nova política foram marginalizados na carreira e em suas funções. Um dos casos mais notórios foi o do também acadêmico Paulo Roberto de Almeida, conhecido autor de diversos artigos em "desalinho" com as novas orientações ideológicas.
Ainda há muita nebulosidade em relação ao ocorrido no caso recente envolvendo o nosso diplomata Saboia e o senador boliviano. No momento não é possível saber em que medida instruções informais foram ou deixaram de ser cumpridas. Houve consulta preliminar sobre eventual saída clandestina? Houve resposta negativa e Saboia descumpriu a ordem? Não existiu qualquer ordem e ele atuou no limite ou além de sua competência? Quais foram precisamente as orientações e ações da secretaria de Estado para solucionar o impasse? Os apelos para uma solução foram respondidos?
O distanciamento temporal dos fatos e o acesso suficiente às informações são elementos fundamentais para o esclarecimento das ideias e das ações e bons balizadores de toda e qualquer transgressão, potencialmente transformando os transgressores em egocêntricos, vítimas --nem sempre do Itamaraty, mas também dos governos--, idealistas ou até heróis.

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