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sábado, 7 de março de 2015

Servidor do Estado, nao de governo: reflexoes de circunstancia - Paulo Roberto de Almeida


Servidor do Estado, não de governo:
algumas reflexões de circunstância (e de sempre)

Paulo Roberto de Almeida

Sou servidor do Estado, mais exatamente um funcionário concursado em uma das carreiras do Estado, especificamente no Serviço Exterior do Brasil, um país que dizem que é federativo, e no qual deveriam coexistir harmoniosamente uma União e os outros entes federados. Escrevo deveriam porque me parece que o Brasil ainda não é um mercado comum, uma vez que existem legislações tributárias diferentes em cada um dos estados da federação. Pelo menos é a impressão que me dá quando, ao viajar, deparo com aqueles sinais na estrada que obrigam os caminhões a serem inspecionados por sua carga. Por força de meu aprendizado da história, sempre penso na Idade Média, quando os senhores de terra cobravam pedágio pelo uso de uma ponte, de uma travessia de rio, pela simples passagem inocente nos caminhos do seu feudo. Enfim, passons...
Segundo a Receita Federal, a minha classificação, no serviço público federal começa pelo número 21, “Membro ou servidor público da administração direta federal”, e termina pelo número 106, “Diplomata e afins”. Nunca soube, exatamente, o que queria dizer “afins”, mas suponho que o termo se refira a oficiais de chancelaria, a assistentes de chancelaria e outros afins. Enfim, suponho, mas deve ser isso. A Receita Federal, como todos sabem, é um órgão sempre atento e atencioso para com todos nós, desde que não deixemos de cumprir nossos deveres e obrigações; sim, claro, a Receita só costuma cuidar dos nossos deveres e obrigações, não dos direitos e vantagens. Mas a vida é assim mesmo. Passons, mais uma vez...
Na União existe um Governo. No Governo deveriam conviver harmoniosamente os famosos três poderes (e mais alguns que vão sendo acrescentados sem que a gente perceba) e ao que parece é o que eles mais fazem: parece que, de fato, eles convivem harmoniosamente, sem esquecer da possibilidade eventual de algum desentendimento tópico, mas isso não é da nossa conta, a não ser que você seja o responsável por um dos três poderes (ou de algum outro, que dizem existir). Enfim, a Constituição federal diz exatamente o que cada um dos poderes deve fazer, e acho que isso basta, embora eu esteja em desacordo com um bocado de coisas que existe na carta constitucional, em especial na sua parte econômico, mas isso não vem ao caso agora. Passons, encore...
Volto ao meu caso. Sou portanto servidor do Estado, o que não me converte automaticamente em funcionário do governo, o que ocorreria se eu estivesse ocupando algum cargo público que responde diretamente a alguma diretiva do governo. Aqui cabem algumas distinções. Servidores de Estado cumprem as funções burocráticas que estão previstas nas leis e nos regulamentos, independentemente de quem exerce um determinado governo momentaneamente. Juízes julgam, policiais policiam, investigadores investigam, cobradores de impostos cobram impostos, carcereiros encarceram, segundo as ordens que recebem de outros funcionários de Estado, e não de governo. Como esses dignos colegas, eu sou um agente do Estado, não do governo, nas minhas atuais funções, e apenas espero não ter de servir a um governo com o qual eu tenho contradições fundamentais, como diriam os marxistas (pelo menos antigamente). Já vou me explicar como isso acontece, mas antes cabe um esclarecimento sobre minha situação pessoal.
Trabalhando atualmente como agente do Estado num modesto consulado de província, sigo fielmente as leis e regras do meu serviço atual, ajudando todos os brasileiros que se apresentam para cumprir suas obrigações (alistamento eleitoral, militar, inscrição na Receita Federal, etc.), para exercer os seus direitos (entre eles o de votar, mas este também é uma obrigação), ou que necessitem de quaisquer atos notariais para os quais estamos habilitados (procurações, autorizações, declarações, etc.). Até aí vão as obrigações, mas sempre procuramos fazer um pouco mais, pois é dura a vida de um emigrado – voluntário ou não, isso não vem ao caso agora – num país distante, sem domínio perfeito da língua, sobretudo quando se é um ilegal, sem autorização de residir. A gente sempre tenta ajudar mais um pouco, consoante aqueles velhos valores da solidariedade humana que não fogem à nossa consciência. Tudo bem: até aí chega a minha condição de agente do Estado.
E o que isso tem a ver com a segunda parte do meu título: “não de governo”? Aparentemente nada, pois se trata de algo objetivo, que ocorreria com qualquer um que estivesse ocupando as funções de agente do Estado brasileiro, não como servidor de um governo específico, para cuja função se requereria uma designação formal, em ato de governo, colocando um servidor do Estado (mas também pode ser um cargo de confiança, ou seja, de pessoa alheia ao quadro funcional do Estado) numa das funções previstas ou existentes num determinado governo. Por sorte a minha, não me cabe fazer isso, pois é muito provável que eu enfrentasse certos dilemas morais, como podem acontecer com funcionários de Estado, como eu, que são obrigados a desempenhar certos papeis, ou a empreenderem certas atividades, com os quais eles estão em profundo desacordo.
Dou um exemplo concreto da minha carreira, da minha condição funcional, das minhas atividades normais, mas consideradas hipoteticamente. O que aconteceria comigo se, designado para uma função de governo, eu fosse obrigado, por exemplo, a defender uma ditadura abjeta, que viola os mais sagrados valores da democracia e dos direitos humanos, impondo sacrifícios de diversos tipos à sua própria população? Eu provavelmente objetaria a isto, e por isso seria sancionado pelo governo que me deu tais instruções, ao me recusar a desempenhar uma função que eu acharia execrável e violadora de princípios aos quais julgo que todo cidadão normal, em sã consciência, deve se ater, para seu conforto pessoal e sua plena tranquilidade psicológica. Representaria uma violação desses princípios e valores eu ser obrigado, como disse, a defender algo que se choca diretamente com certas coisas nas quais acredito, entre elas a de que certas normas de comportamento civilizado devem ser compatíveis com nossa dignidade pessoal. Acho que fui bastante claro quanto ao que eu faria e quanto ao que eu não faria, certo?
Pois bem, ao recusar a cumprir determinadas ordens, ou instruções, considero que o governo, qualquer governo, está inteiramente correto ao punir seus funcionários, servidores do Estado ou  não, que incorrerem nessa postura de rebeldia contra ordens legítimas (desde que não ilegais, obviamente). Mas algumas distinções podem ajudar na avaliação desse tipo de antagonismo, ou contrarianismo, que surge inevitavelmente em situações que se abrem a variantes interpretativas, ou em função das quais resultados diferentes podem ser esperados. Um soldado, na frente de combate, por exemplo, não pode recusar-se a cumprir ordens de seu comandante, com o que o conjunto da operação pode sofrer danos irreparáveis. Mas aqui estamos falando de uma situação limite, na qual está em causa o próprio conceito de segurança nacional, ou algo que o valha.
Diferente é o cenário no caso da maior parte das escolhas de políticas públicas, onde uma diferente composição de mecanismos, de insumos, ou de atores, pode levar a resultados completamente diferentes, segundo os caminhos adotados, embora talvez nada que comprometa o conjunto, uma vez que opções de políticas públicas estão sempre sendo integradas a um complexo maior de determinações e investimentos sociais. Ainda que fosse o caso, e a determinação por uma política, e não outra, seja decisiva, pode-se sempre substituir o funcionário relutante, que é uma mera correia de transmissão num processo decisório geralmente mais vasto. Sempre existem vontades concordantes e espíritos submissos em quaisquer empreendimentos humanos, a fortiori naqueles identificados com determinadas opções políticas ou ideológicas (que são as que existem normalmente, e estão à disposição de qualquer ser pensante e atuante).
É exatamente por isso que disse que tive a sorte – mas também sempre tem o outro lado da situação – de não ter de enfrentar escolhas difíceis no plano moral, ao me terem sido negadas quaisquer chances de servir o governo, além de minhas funções normais de servidor do Estado. Talvez já imaginando como eu poderia me posicionar, evitaram de me convidar para exercer determinadas funções ou ocupar certos cargos, digamos assim. Também não imagino quais poderiam ser os dilemas éticos e morais que enfrentaria estando colocado em determinadas posições. Ou imagino sim, mas não é o caso aqui de entrar numa discussão específica. O exemplo, citado acima, de um tipo qualquer de pronunciamento, ou posicionamento, em relação a uma ditadura ordinária, repulsiva, violadora das normais mais elementares do comportamento democrático ou do devido respeito aos direitos humanos, pode ilustrar o que estou dizendo.
Pode inclusive ocorrer que normas constitucionais, ou tratados internacionais, solenemente assinados e devendo ser observados pelo país, podem estar sendo violados, de maneira deliberada ou mesmo indireta pela ditadura abjeta em hipótese, o que aliás justificaria alguma atitude de rebeldia de qualquer funcionário público dotado de um mínimo de consciência e responsabilidade em relação a padrões aceitáveis de comportamento individual ou até estatal. Ainda no terreno das hipóteses, todo mundo sabe da existência de cláusulas democráticas em diversos instrumentos internacionais, pelas quais cabe zelar, uma vez que elas integram o patrimônio jurídico da nação.
Venho à conclusão: servidores do Estado podem ser cingidos, ocasionalmente, a também servir um governo cujas políticas eles desaprovam. Cabe fazer uma avaliação ponderada quanto ao alcance global e os impactos implícitos, e até indiretos, dessas políticas, para ver se elas são legais, legítimas, não se chocam com alguma norma constitucional ou não afrontam nenhum compromisso internacional livremente assumido pelo Estado em nome da nação. Para isso existe a necessária transparência nos negócios públicos, o que me parece totalmente contrário à existência de empréstimos secretos, sobretudo quando são feitos para ditaduras abjetas ou regimes deploráveis.
Creio ter deixado muito claro o que é e o que não é aceitável na função pública, e na condição de servidor do Estado. Esta é uma situação a que se chega numa base totalmente impessoal, uma vez que o Estado é uma instituição permanente, a princípio a serviço de toda a comunidade. Diferente é a situação, geralmente circunstancial, de servir a um determinado governo, que é passageiro, e pode estar ele mesmo submetido a forças políticas que de ordinário mereceriam o nosso repúdio como democratas sinceros ou como simples cidadãos respeitadores de determinados valores cívicos. Dou mais um exemplo: corrupção nos assuntos públicos é algo moralmente abjeto, sobretudo quando é praticada por funcionários públicos encarregados de zelar pelo bom uso dos recursos da coletividade. Aceitar que isso seja considerado um simples “malfeito” e obstar a que se conduza um processo adequado de investigação e de punição, me parece uma atitude violadora não apenas de normas legais, mas de simples preceitos éticos e morais. Eu não aceitaria, em nenhuma hipótese, trabalhar para um governo desse tipo.
Voilà: estão feitas estas reflexões de circunstância, mas que servem igualmente para expressar meu posicionamento concreto em face de qualquer Estado e de qualquer governo. Quando as coisas ficam claras, a gente se sente infinitamente melhor. E neste caso, não existe, nem pode existir, a famosa sigla, S.M.J. (salvo melhor juízo), pela qual funcionários públicos, se expressando burocraticamente, costumam concluir eventuais expedientes que alimentam o processo decisório. A decisão aqui já foi tomada, e ela vai sem qualquer outro juízo de valor: os meus estão claramente expressos no que precede.
Vale!

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 2787: 7 de março de 2015, 5 p.

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