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terça-feira, 22 de agosto de 2017

Geraldo Eulalio do Nascimento e Silva: um exegeta diplomatico - Paulo Roberto de Almeida

Minha homenagem a um mestre do Direito, uma vez que não poderei comparecer à esta sessão de hoje à noite:

3152. “Geraldo Eulalio do Nascimento e Silva: um exegeta diplomático”, Brasília, 17 agosto 2017, 4 p. Texto de homenagem ao grande jurista para ser lido pelo prof. Paulo Borba Casella, por ocasião do lançamento do livro: Paulo Borba Casella, Raphael Carvalho de Vasconcelos, e Ely Caetano Xavier Junior (orgs.): Direito Ambiental: o legado de Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva (Brasília: Funag, 2017, 492 p.; ISBN: 978-85-7631-673-2), na Faculdade de Direito da USP, em 22 de agosto de 2017, 19hs. 

 
Geraldo Eulalio do Nascimento e Silva: um exegeta diplomático

Paulo Roberto de Almeida
[Homenagem ao jurista, professor e diplomata, por ocasião do lançamento de seu livro “Direito Ambiental: o legado de GENS”; Faculdade de Direito da USP: 22/08/2017]


Exegese, segundo as mais simples definições, é um comentário ou dissertação que tem por objetivo esclarecer ou interpretar minuciosamente um texto, uma palavra, ou ainda, uma interpretação de obra literária, artística ou outra qualquer. Em dicionários mais elaborados, a exegese se refere, etimologicamente, à interpretação ou explicação crítica de textos religiosos; tradicionalmente esteve associada a comentários bíblicos. Ela teve um papel preeminente no processo civilizatório que levou à conformação do mundo moderno, aliás desde antes dos descobrimentos, vindo da antiguidade greco-romana, passando pela Idade Média, para chegar à era contemporânea.
De fato, um dos mais poderosos fatores do progresso das sociedades ocidentais pode ser atribuído à faculdade que sempre tiveram seus estudiosos, na antiga tradição judaico-cristã, continuando nas fragmentações católica-ortodoxa e protestante, de se dedicar, mais ou menos livremente, à discussão da palavra divina, isto é, sua capacidade de interpretar os textos sagrados. Essa característica explica, em certa medida, a preeminência ocidental sobre outros povos e nações nos últimos cinco séculos, uma vez que tal liberdade deu amplo espaço a elaborações artísticas, científicas e filosóficas, que se refletiram, por sua vez, nos progressos tecnológicos e materiais da Europa ocidental, comparativamente a outras sociedades menos abertas à interpretação de livros sagrados.
Geraldo Eulálio podia ser considerado um exegeta, mas seus “livros sagrados” eram os tratados, as convenções e os atos internacionais no domínio do Direito. Como estudioso e intérprete das “tábuas da lei” do Direito, seu infatigável esforço exegético possuía várias dimensões: bibliográfica, didática, doutrinal, diplomática, intelectual, humana simplesmente. Uma pesquisa no catálogo da biblioteca do Itamaraty retorna enorme lista de dezenas de obras: sua importante contribuição ao direito diplomático brasileiro é comparável a de outros grandes mestres de nossa tradição jurídica e política.
Seu papel como professor, como instrutor, como sistematizador didático dos grandes temas do direito internacional encontra poucos paralelos, tanto na academia, quanto no cenáculo do próprio Itamaraty, onde ingressou em plena Segunda Guerra, tendo imediatamente se tornado membro (mais tarde presidente) da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, assumindo depois a cadeira de Direito Internacional no Instituto Rio Branco, do qual também foi diretor-geral. Em meados dos anos 1950 ele coletou e publicou os primeiros pareceres dos consultores jurídicos do Itamaraty sob a República. Mas ele foi, sobretudo e principalmente, um exegeta e um sistematizador do direito internacional, retomando o bastão antes empunhado por Hildebrando Accioly. O manual de Direito Internacional Público, que leva o nome dos dois juristas nas muitas edições que teve até o começo do milênio, passou a partir daí a ser publicado sob a responsabilidade do professor Paulo Borba Casella. Trata-se de manual que nenhum candidato à carreira diplomática pode se permitir ignorar, uma vez que os primeiros autores viviam imersos, por assim dizer, na própria matéria prima do livro, que era o trabalho diplomático do qual se ocupavam tanto Accioly quanto Geraldo Eulalio.
O livro póstumo sobre Direito Ambiental constitui uma assemblagem dos seus muitos textos que, desde antes da Conferência de Estocolmo de 1972 sobre o meio ambiente, foram compostos a partir dos debates mais importantes em curso na comunidade internacional sobre esse tema emergente (não para ele) da diplomacia mundial. Essa compilação, devida aos esforços dos professores Paulo Borba Casella, Raphael Carvalho de Vasconcelos e Ely Caetano Xavier, e disponível na Biblioteca Digital da Funag (http://funag.gov.br/loja/download/1196-DIREITO-AMBIENTAL_25_08_V_FINAL.pdf), é tanto de caráter didático e jornalístico, embora de alto nível – o que os franceses chamam de haute vulgarisation –, quanto exegética, embora eu prefira, nesse vertente, seus grandes livros interpretativos sobre as duas grandes convenções de Viena sobre relações diplomáticas e consulares.
Mas, antes mesmo de se dedicar a esses dois grandes instrumentos das relações internacionais contemporâneas, de corpo e alma, se ouso dizer – uma vez que ele participou da construção, e depois escreveu sobre eles – Geraldo já tinha uma noção precisa sobre a forma e o conteúdo substantivo dessas relações, simplesmente por ser um protagonista histórico dos grandes eventos e processos que moldaram o mundo atual, desde o período do entre-guerras, sobretudo para quem, como ele, era nascido na França em 1917, e tinha contemplado a ascensão aos extremos na Europa do entre guerras. Em seu livro Diplomacia e Protocolo (1969), Geraldo Eulalio acentua as grandes diferenças entre as atividades diplomáticas praticadas no período 1919-1939, ou seja, anteriores à Segunda Guerra Mundial, e aquelas do pós-guerra. Como ele próprio sublinha no prefácio a esse livro:
Mesmo antes do término da guerra, a necessidade de serem encontrados métodos mais eficientes visando a soluções imediatas, em que negociações prolongadas pudessem ser evitadas, provocaram uma quase institucionalização da diplomacia em alto nível, isto é, entre chefes de Estado e de Governo ou entre os respectivos ministros das Relações Exteriores. (p. 11)

Ele se refere, então, a reuniões de cúpula como a do Pacto do Atlântico (entre Roosevelt e Churchill em 1941), e as subsequentes, em Moscou, Teerã, Cairo e Ialta, para mais adiante referir-se à Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, que ele chama de “Carta Magna para as relações diplomáticas”, e da qual ele veio a tornar-se o grande intérprete, divulgador e defensor, em seus inúmeros trabalhos e livros a respeito nas décadas seguintes. Aliás, ele menciona igualmente o Regulamento de Viena, de 1815, sobre o problema da precedência, ou seja, um dos principais elementos das questões de protocolo e cerimonial, que podem adquirir uma importância crucial no relacionamento jurídico e político entre Estados soberanos.
Tendo participado da elaboração da Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas, Geraldo Eulalio sistematizou e expos seu conhecimento sobre esse grande instrumento da vida diplomática contemporânea, do qual ele fez um exame detalhado de cada um dos 53 artigos dessas “tábuas da lei” do direito internacional. Seu trabalho de exegese da Convenção desce a detalhes raramente encontrados nas demais obras explicativas dos seus dispositivos, consistindo numa verdadeira anatomia etimológica desse ato fundamental na vida internacional das nações, já que regulando as relações bilaterais e seus direitos e obrigações com respeito aos enviados. Em cada um dos capítulos, ele relata como se desenvolveram os trabalhos para se alcançar um texto consensual em cada um desses dispositivos, referindo-se às posições dos diferentes delegados dos países ali representados.
Aliás, em sua longa introdução explicativa, não deixa de mencionar o protesto do delegado soviético quanto à ausência das demais repúblicas socialistas (a China comunista, a Alemanha oriental, a Coreia do Norte, a Mongólia e o Vietnã), o que para ele, Geraldo Eulálio, “representava uma violação do princípio da igualdade jurídica dos Estados” – como teria gostado de lembrar Rui Barbosa, se ali estivesse – e um obstáculo a que “a Convenção pudesse ser aceita e aplicada universalmente” (Convenção de Viena sobre relações diplomáticas. 3a. ed.; Brasília-Rio de Janeiro: Funag-Forense, 1989, p. 4). Ele se refere, igualmente, nesse texto e nos diferentes capítulos, às muitas emendas apresentadas pela delegação brasileira, mencionando a si mesmo na terceira pessoa – “intervenção em Plenário, de Nascimento e Silva” – como tendo, por exemplo, apresentado “uma fórmula que, com ligeira modificação de forma, seria acolhida” (p. 10). Ou seja, ele não só esteve “presente na criação” – para usar o título das memórias de Dean Acheson – de um dos mais importantes pilares das relações diplomáticas contemporâneas, como pode ser considerado, sem qualquer desdouro para os demais delegados, como um dos “pais da criança”, da qual ele pode legitimamente se orgulhar. O mesmo estilo exegético foi igualmente mobilizado no caso da convenção sobre as relações consulares, de 1963, e também no do tratado sobre o direito dos tratados, de 1969, ambos instrumentos submetidas ao sua poderoso bisturi analítico.
Assim procedia o jurista exegeta Geraldo Eulalio, um dos mais importantes mestres do direito internacional do Brasil e no Brasil. A amplitude de suas publicações em outras línguas, sobretudo em espanhol, inglês e francês, também o converte num publicista de alcance mundial, cuja memória vem sendo doravante mantida por seus discípulos nos mais diversos ambientes do direito nacional.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de agosto de 2017

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