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domingo, 22 de outubro de 2017

Programa do PT para as eleicoes presidenciais de 2002 - comentarios PRA

Como em vários outros casos, não pude dar divulgação pública de minhas análises e comentários aos programas e plataformas eleitorais apresentados pelos diversos candidatos às eleições presidenciais de 2002, quando eu ocupava o cargo de ministro-conselheiro da embaixada do Brasil em Washington. Esses textos foram mais dirigidos aos programas e propostas do PT porque simplesmente se tratava do partido mais vocalmente dedicado à expressão pública de seus pontos de campanha, e também porque eu já pressentia que o partido iria ganhar as eleições.
Como nos aproximamos de novas eleições presidenciais, quando as mesmas propostas podem voltar a ser feitas, no mesmo tom demagógico e eleitoreiro, dou conhecimento de minhas críticas feitas 15 anos atrás. Quem sabe os candidatos melhoram suas propostas desta vez?
Paulo Roberto de Almeida


O Programa de Campanha do PT em 2002:
arredondando o quadrado ou ainda a quadratura do círculo?

Washington, 29/06/2002

Depois de muita discussão, alguma hesitação e certamente toneladas cúbicas de transpiração, o PT conseguiu finalizar e apresentar ao distinto público seu programa político para a campanha presidencial de 2002. A versão definitiva ainda está sendo trabalhada pelos líderes do Partido (que, espera-se, devem corrigir alguns erros de Português da versão resumida apresentada pelo jornal O Estado de São Paulo), mas o texto que foi transcrito no Estadão deste sábado 29 de junho já é suficiente para termos uma idéia do que vem pela frente em termos de propostas inovadoras e idéias criativas para tirar o Brasil do impasse e conduzi-lo a uma nova fase de crescimento com justiça social.
Se eu pudesse resumir o sentido geral do documento, ainda que correndo o risco de ser massacrado pelos meus amigos petistas, eu diria tão simplesmente: neoliberalismo envergonhado e compromisso retórico com o social. Senão vejamos.
A reportagem abre com uma síntese das boas intenções do PT: “O programa de governo do PT propõe crescimento econômico de 7% ao ano, garante que o partido não vai romper contratos nem revogar regras estabelecidas. Diz ainda que os compromissos internacionais serão respeitados e que as mudanças necessárias serão feitas “democraticamente, dentro dos marcos institucionais”.
Bem, se não há rompimento de contratos, nem revisão de regras e se as mudanças serão todas feitas dentro dos marcos institucionais, o que isto significa senão reformismo puro e simples? Algo de diferente ocorreria com o PSDB, com o PPS ou mesmo com o PFL? Provavelmente não, o que confirma a enorme evolução do PT desde as campanhas fracassadas de 1989, 1994 e 1998. Por outro lado, a “proposta” de crescer 7% não deve ser levada a sério, pois se trata… de simples proposta, sem garantia de concretização. Assim fica fácil montar programa, pois pode-se fazer um “caderno de desejos” e oferecer ao eleitor crédulo.
O objetivo é certamente nobre, pois como afirma o documento revelado pelo Estadão, o governo do PT “vai trabalhar dia e noite para que o País evolua da âncora fiscal para o motor de desenvolvimento”. Aqueles que apreciam raciocínios lógicos, isto é, um mínimo de correspondência conceitual entre os elementos de uma mesma equação, ficam se perguntando como é possível comparar “âncora fiscal” (um mero instrumento monetário e contábil) com “motor de desenvolvimento”, projeto grandioso que abarca praticamente todos os instrumentos de política econômica à disposição de um governo. Concedamos, porém, ao PT, o benefício da dúvida: ele quer colocar o desenvolvimento no centro das políticas econômicas, sem que ele diga exatamente como vai alcançar a taxa indicada (7%, indicada como “vocação histórica” do Brasil). Os economistas, como eu, sempre serão um pouco mais céticos em relação a essas metas pré-fixadas, mas vamos e venhamos: todos os economistas do Brasil não conformam sequer 1% da população, o que constitui, para todos os efeitos, um eleitorado insuficiente para definir qualquer tipo de votação (ainda que esse número seja suficiente para criar ou desfazer credibilidades). Primeira constatação, portanto: o PT já é um partido reformista, ainda que ele não se reconheça como tal.
Em segundo lugar, se diz que “A inflação será mantida sob controle, para que a poupança nacional seja orientada e estimulada, garante o PT.” Excelente, mas no mesmo dia em que aparece essa proposta inteligente, o “economista-chefe” do PT, professor Guido Mantega, deu entrevista ao mesmo jornal criticando o sistema de “metas de inflação” do governo e dizendo que um indice de “4% em 2003 ainda não é realista”. Depois de afirmar nominalmente que “A burrice gera inflação”, Mantega considerou que as metas de inflação num governo Lula serão mais realistas, dizendo o o seguinte: “Serão estabelecidas metas mais realistas, o que não significa frouxidão inflacionária. Não vou falar do próximo ano. Mas para este ano, 2002, eu diria que 5% ou 5,5% seria uma meta razoável.
Ora, um candidato ao cargo de ministro da Fazenda que já começa antecipando que a inflação está muito baixa e que ele se “contentaria” com um pouquinho mais, é porque pretende fazer o povo sofrer. Em primeiro lugar, nenhum ministro econômico são de espírito e nenhum presidente de Banco Central com os neurônios funcionando ficam expressando satisfação com um objetivo mais elevado para a inflação. Em segundo lugar, se esse desejo é tomado como “meta”, ele servirá certamente de piso para o novo patamar de crescimento de preços, o que atua seguramente em detrimento de todos aqueles que não têm condições de corrigir os seus “preços” de mercado (poupança, salários, rendimentos fixos etc.). Alguém já viu pobre ganhar da inflação? Segunda constatação, portanto: o PT gosta de fazer o povo sofrer.
Num terceiro conjunto de questões, conseguimos ficar mais perplexos do que o militante do PT que estava esperando uma ruptura com o capitalismo e com as políticas neoliberais. O partido confessa que não sabe o que colocar no lugar da “âncora fiscal”. O programa diz textualmente: “É preciso evitar que se consolide uma nova armadilha no País, aquela que estabiliza, mas impede o crescimento. Já tivemos a armadilha cambial. Saímos dela em 1999 com muitas dores, mas sobrevivemos. Agora, temos o dilema da âncora fiscal. A questão é como superá-la sem atentar contra a estabilidade da economia”. Trata-se de verdade de um dilema hamletiano: como fazer o país expandir a economia sem disparar a sineta dos desequilíbrios nas contas públicas. Crescer ou não crescer, eis a questão! Seria bom que o PT pudesse oferecer uma alternativa credível em termos do mecanismo que pretende colocar no lugar do superávit ou da “âncora fiscal”. Terceira constatação, portanto: o PT tem muitas dúvidas e poucas respostas. Como aliás a maioria dos economistas. Bem vindo à realidade!
Um bom exemplo desse tipo de dilema aparece na questão do volume necessário do superávit primário. Segundo o programa, “O nosso governo vai preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente em relação ao PIB e destrua a confiança na capacidade do governo de cumprir seus compromissos.” Mas se ele fizer apenas isso não vai conseguir baixar os juros. O que o PT deveria fazer, desde já, seria anunciar que pretende elevar o superávit para 5 ou 6% do PIB, pois isso significaria, de imediato, que o governo não precisará se abastecer no mercado, não vai concorrer com os particulares e portanto não vai pressionar os juros e, a rigor, terá recursos suficientes para recomprar uma parte dos títulos da dívida pública que ficam servindo de “prato feito” para esses verdadeiros gigolôs da despoupança estatal que são os banqueiros. Se o PT fizer apenas o necessário nessa área, seu governo vai continuar refém desses sanguessugas da economia nacional que são os banqueiros. Quarta constatação: o PT adora banqueiro (ainda que ele não desconfie disso).
No que se refere, por fim, à política externa ficamos avisados do seguinte: “A política externa será instrumento fundamental para que o governo implante um novo projeto de desenvolvimento nacional, diminuindo a vulnerabilidade do País frente à instabilidade dos mercados globais, agravada pelo crescente protecionismo e garantindo uma presença soberana do Brasil no mundo”.  Excelente como discurso grandiloquente, se não fosse pelo simples pormenor de que a intenção está completamente equivocada. Projeto de desenvolvimento nacional se define internamente, em função de instrumentos e políticas públicas de caráter interno, sendo a externa mera conseqüência daquela que se define no plano doméstico, não o contrário. O PT repete aqui o mesmo cacoete que parece ter atingido o presidente FHC quando este deblatera contra os “capitais voláteis” como fontes de instabilidade econômica e de crises financeiras.
Não parece passar pela cabeça desses senhores, FHC e Lula, que a instabilidade e os “ataques especulativos” não são seres alienígenas que resolvem um belo dia atacar algum país incauto, caindo sobre eles assim como um raio num céu azul de primavera. Não lhes vem à cachola que a instabilidade é um dado da realidade interna do País, não algo externo à ele, que o Brasil não é vulnerável porque os capitais americanos, europeus ou japoneses assim o decidiram, mas porque os fundamentos de sua economia não vão bem das pernas. Se isso não ficar claro, de uma vez por todas, o PT vai continuar disparando bobagens contra a “instabilidade dos mercados globais” e deixar de fazer o dever de casa, que é fortalecer a economia brasileira e torná-la assim menos suscetível de sucumbir aos ataques dos “capitais voláteis”. Os economistas do PT deveriam no entanto saber muito bem que não há capital volátil que resista a uma boa quarentena, ou a um imposto financeiro de 10 ou 15%, o que está inteiramente nas mãos do governo decidir.
Por que o governo brasileiro não o faz? Provavelmente porque não consegue se libertar da “drug addiction” do capital estrangeiro. E por que ele não consegue? Talvez porque tenha um desequilíbrio fundamental nas contas públicas, internas e externas. Essa equação vai ser resolvida externamente? Obviamente que não, daí a razão de porque o PT se equivoca completamente quando pretende atribuir à política externa uma missão que pertence inteiramente à política interna. Por outro lado, construir frases em torno do “crescente protecionismo” e pretender garantir “uma presença soberana do Brasil no mundo” não nos leva a lugar nenhum. Em primeiro lugar porque o protecionismo pode ser uma desculpa, ou no máximo uma explicação (parcial) para os nossos problemas, mas não uma solução. Em segundo lugar, porque soberania não se afirma, sobretudo de modo gratuito, sem definir seus instrumentos, mas ela se pratica, no dia a dia, determinando um IOF contra os “capitais especulativos”, por exemplo. Quinta constatação: o PT não sabe para que serve uma política externa ou quer fazê-la cumprir missões que pertencem ao terreno da política interna. Seu chanceler vai ter de passar por umas aulinhas no Instituto Rio Branco antes de poder se qualificar para o cargo…
Aprofundando no terreno da política externa, ficamos sabendo o que o PT pensa da Alca: “A implementação da Alca nos termos definidos pelo Senado dos Estados Unidos, e tendo em vista as recentes medidas protecionistas adotadas pelo governo daquele país pode representar a desestruturação do sistema produtivo dos países do continente, especialmente do Brasil. Sem o abandono das recentes medidas protecionistas do governo norte-americano, a política de livre comércio fica inviabilizada”. Aqui podemos desde logo começar por uma sexta e importante constatação: o PT é a favor do livre comércio, o que é absolutamente surpreendente conhecendo-se sua trajetória anterior e sua retórica reincidente contra o livre-cambismo.
Mas, os economistas do PT não precisam ficar de modo algum envergonhados com essa afirmação “herética” do programa, pois um brilhante predecessor também era a favor do livre comércio: Karl Marx! Isso mesmo, o velho barbudo, inimigo visceral do capital e dos capitalistas. Quem conhece o seu discurso sobre o livre comércio, pronunciado em reunião da associação de trabalhadores de Bruxelas, em 1847, antes que ele redigisse com Engels o Manifesto do Partido Comunista, sabe do que estou falando. Quem não conhece (e suspeito que são maioria no PT), recomendo ler urgentemente esse “texto fundador”: ali pode-se encontrar argumentos edificantes sobre como conciliar a luta contra o capitalismo e a favor do livre comércio. Nenhum problema de angústia filosófica, portanto, ao promover ao mesmo tempo a construção da Alca e a derrubada do capitalismo no hemisfério. Duas citações de Marx curam o problema existencial.
Agora vejamos os equívocos do resto do programa “alcalino” do PT. Ele recusa a “implementação da Alca nos termos definidos pelo Senado dos Estados Unidos”, mas a menos que o PT pretenda negociar dentro do Senado americano, ele vai mesmo encontrar os burocratas de sempre, do USTR, dos departamentos do Comércio, de Estado ou da Agricultura, nas reuniões do processo negociador hemisférico. As negociações se fazem com base em documentos apresentados pelos países, de demandas de acesso a mercados, de concessão de ofertas de abertura de seus próprios mercados, de definição de normas relativas a políticas de concorrência, propriedade intelectual, fitossanitárias etc. Ou seja, nada está definido nos termos de nenhum país em particular, e será a barganha do “toma lá, dá cá” que permitira definir os “termos” do futuro (e ainda hipotético) acordo da Alca.
Por outro lado, achar que “medidas protecionistas adotadas pelo governo [dos EUA] podem representar a desestruturação do sistema produtivo dos países do continente” representa simplesmente confundir medidas de apoio interno com os resultados de um processo negociador que visa, justamente, desmantelar essas medidas protecionistas e assegurar o acesso ao mercado interno. Sem esse acesso, ou seja, sem o desmantelamento progressivo de barreiras e de fatores distorcivos do comércio, não existe acordo comercial digno desse nome. Creio que isto está bem claro para o governo atual e sua diplomacia, e tem sido repetido à exaustão pelos principais negociadores brasileiros, a começar pelo próprio presidente FHC em Québec. Mas, enfim, tomamos nota de que o PT pretende viabilizar o livre comércio desmantelando as “medidas protecionistas do governo norte-americano”, o que sem dúvida se encaixa na perspectiva da atual política externa. Onde está a novidade nas relações internacionais do PT, então?
Por fim, em relação à reforma da Previdência, a constatação é mais uma vez bem-vinda: “Os poucos menos de 1 milhão de aposentados do setor público, que se retiraram da ativa com salários integrais impõem as cofres públicos um déficit em torno de R$ 40 bilhões.” Mas, o governo atual vinha dizendo isto desde 1995 pelo menos, e pretendia justamente acabar com a iniquidade da desigualdade previdenciária, no que não contou, para dizer o mínimo, com o espírito de colaboração do PT. Será que, com o PT no governo, o PSDB vai se vingar e recusar a aprovação dessa reforma? Cruel dilema…
Última constatação, portanto: o PT é bem vindo ao neoliberalismo econômico e à responsabilidade fiscal. Com um programa tão ortodoxo (corrigido dos poucos equívocos que aqui apontamos), ele está pronto para fazer um grande programa de administração social-democrática do processo de reformas de que necessita o Brasil. Enfim, nada de muito diferente do que vinha tentando fazer a administração FHC, mas essas são as ironias da história.

[Washington, 29/06/2002]

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