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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O Brasil e os Estados Unidos: contraponto a Roberto Mangabeira Unger (2002)

Sempre que eu me confrontava a uma matéria sobre a política externa brasileira com a qual eu estivesse de acordo, eu buscava colocá-la à disposição de outros eventuais leitores. Mas sempre que eu me confrontava a uma matéria com a qual eu NÃO estava de acordo, também procedia da mesma forma, mas eventualmente precedida de meus comentários e observações críticas, por vezes um artigo inteiro como esse abaixo.
Caberia talvez ler antes o artigo de Roberto Mangabeira Unger, e depois o meu...
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 18 agosto 2018

O Brasil e os Estados Unidos:
Contraponto a Roberto Mangabeira Unger

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 18 maio 2002

            Em artigo na Folha de São Paulode 7 de maio de 2002, o Prof. Mangabeira Unger reincide no diagnóstico de que o Brasil estaria “sem política exterior”, ficando apenas com a “prática de negociações comerciais e com o medo dos Estados Unidos”. Ele recomenda, em lugar do medo, uma “estratégia de reposicionamento no mundo, que exprima e consolide projeto nacional de desenvolvimento”, propondo, então, uma série de ações que integre um “novo projeto brasileiro, (e que) comece a mudar as premissas da nossa relação com os Estados Unidos” De maneira a não deixar que suas idéias caiam no vazio, mas não concordando em que o Brasil esteja com medo ou diminuido frente aos EUA, vejamos quais são suas propostas e como poderiam elas ser colocadas a serviço da afirmação do Brasil no cenário mundial, em especial nas relações com os EUA. 
“Primeiro: buscar aliados dentro dos Estados Unidos que ajudem a reorientar a agenda americana com respeito à Alca e ao Brasil.” De acordo, mas seria importante identificar precisamente que forças são essas num país de mais de 250 milhões de  habitantes, atomizado em milhares de organizações de interesse específico, e que de toda forma não parecem ser capazes de se opor às forças muito mais poderosas que atuam junto ao Congresso americano, que acaba de aprovar uma série de ações – subsídios maciços aos produtores primários, mandato restritivo para negociações comerciais, apoio às salvaguardas para produtos siderúrgicos e várias outras mais – que vão todas contra nossos interesses concretos. O Prof. Mangabeira começaria bem por nos indicar quais são essas forças que ainda não lograram concretizar-se e como fazer, com a modéstia de meios que são os nossos no plano da ação externa, para mobilizá-las em nosso favor.
“Segundo: trazer à tona a empatia imensa e suprimida que os americanos nutrem pelo Brasil.” O que os americanos nutrem mesmo por nós é uma imensa e profunda ignorância, como aliás em relação a qualquer outro povo, com exceção daqueles estereótipos do mexicano de sombrero e coisas do gênero. Eles podem até gostar de nossa música e entreter imagens “exóticas” sobre nossa licenciosidade “relacional” e a exuberância de nossas florestas, mas não parecem ir muito além disso. Parece-me por outro lado ingenuidade acreditar que aUnião Européia insiste “em vincular mais comércio com maior igualdade”, o que não é de forma nenhuma confirmado pelas práticas absolutamente nefastas, para o Brasil e outros países em desenvolvimento, da “loucura agrícola comum” e toda sorte de obstáculos protecionistas ao acesso de nossos produtos aos mercados da UE.
“Terceiro: compreender que só seremos levados a sério pelos Estados Unidos quando começarmos a atuar seriamente no mundo.” De acordo, mas será que os “outros grandes países continentais periféricos, sobretudo a China, a Índia e a Rússia” podem prover-nos daquilo que mais necessitamos para “atuar seriamente no mundo”, ou seja: capitais, mercados, tecnologia, know-how, sem falar do necessário diálogo para influenciar efetivamente o processo de tomada de decisões em determinados organismos que se situam no coração de nossa inserção internacional (como OMC, FMI, BIRD, etc)?. De acordo, também, em criar “contrapesos ao unilateralismo americano”, mas o que significam, concretamente, “trajetórias alternativas de desenvolvimento”? Alguma nova receita não explicitada para a promoção de nosso progresso econômico e social? Seria preciso conhecer os componentes ativos dessa nova receita.
Mas, o professor também adverte que “Ao atuar como catalisadores de uma aproximação entre os países continentais em desenvolvimento, criando contrapeso ao poderio dos Estados Unidos, nós nos arriscamos a amedrontar o governo americano e a afastar a sociedade americana.” Trata-se aqui daquilo que os economistas chamam de “trade-off”, ou seja as consequências involuntárias, ou não desejadas, de determinadas ações, que sempre provocam impacto em outras áreas não necessariamente submetidas ao nosso controle ou influência. Este aliás me parece ser o perigo menos evidente, pois o Brasil tem mantido com os países indicados (China, Índia, Rússia) um diálogo que se tem desdobrado em alguns casos – como nos satélites com os chineses, por exemplo – em resultados concretos em termos de parcerias tecnológicas e comerciais. Não há portanto novidade na recomendação.
Finalmente, o professor termina por um afirmação que me parece pelo menos duvidosa do ponto de vista de sua legitimidade democrática ou simplesmente de sua viabilidade política prática. Ele diz, por exemplo, que essa “empreitada, inseparável de nossa afirmação nacional”, seria “digna, pela multiplicidade de seus elementos e pela vastidão do terreno em que se terá de desdobrar, de um Bismarck.” Ora, invocar um notório autocrata, conhecido representante histórico daquilo que os sociólogos – como um Barrington Moore, por exemplo – chamam de “modernização conservadora”, ou de “via prussiana para o desenvolvimento” (com todas as suas implicações em termos de processo político), invocar essa personagem desencarnada do século XIX como suposta inspiradora da ação de homens públicos no Brasil do século XXI representa, para os democratas sinceros, um curioso sintoma de involução democrática.
Em todo caso, aguardemos novas propostas concretas do conhecido professor, de maneira a podermos também prosseguir nosso diálogo à distância com o mentor intelectual de uma das candidaturas presidenciais no Brasil. 

Paulo Roberto de Almeida é sociólogo.

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O Brasil e os Estados Unidos


Roberto Mangabeira Unger
Folha de São Paulo(7 de maio de 2002)

Quando o Brasil deixou de ter política exterior, ficou, no lugar dela, com a prática das negociações comerciais e com o medo dos Estados Unidos. Combinação desastrosa. O que convém não é medo: é estratégia de reposicionamento no mundo, que exprima e consolide projeto nacional de desenvolvimento.
A situação dos entendimentos em torno da Alca revela o paradoxo. Enquanto continuarmos a conduzir nossa relação com os Estados Unidos dentro dos limites de um mercantilismo pontual e despolitizado, todas as soluções serão ruins. Ruim render-nos ao tipo de acordo prefigurado pelas restrições que o Congresso americano impôs às negociações. E ruim ficarmos sozinhos, abraçados a vizinhos que não nos acompanharão numa fuga ao isolamento sul-americano.
A insistência em negociar duramente não bastará para resolver o problema; Estados não são empresas. A solução está em ação política e diplomática que, fundada em novo projeto brasileiro, comece a mudar as premissas da nossa relação com os Estados Unidos.
Primeiro: buscar aliados dentro dos Estados Unidos que ajudem a reorientar a agenda americana com respeito à Alca e ao Brasil. Maior abertura às nossas exportações depende de acertos com as empresas numerosas e com os muitos Estados americanos que exportam ou querem exportar para nós. Ou que possam colaborar para nossa capacitação tecnológica. Sem tais alianças não derrubaremos barreiras a nossas exportações nem aproveitaremos o potencial do relacionamento com a economia americana.
Segundo: trazer à tona a empatia imensa e suprimida que os americanos nutrem pelo Brasil. Entre esses dois países tão diferentes e tão parecidos, em que a fé no possível esbarra na muralha da desigualdade, há base para parceria que ultrapasse a esfera dos governos e os interesses do dinheiro. Que engaje a sociedade americana em nosso trabalho de redenção social. E que insista, como na União Européia, em vincular mais comércio com maior igualdade. Não podemos calar a voz do egoísmo comercial. Não precisamos deixar que ela fale sozinha.
Terceiro: compreender que só seremos levados a sério pelos Estados Unidos quando começarmos a atuar seriamente no mundo. A lógica da nossa situação nos exige aproximação econômica, tecnológica e política com os outros grandes países continentais periféricos, sobretudo a China, a Índia e a Rússia. É o Brasil hoje o país com melhores condições para construir cadeia de entendimentos que una esses países. Que crie contrapeso ao unilateralismo americano. E que amplie oportunidades para trajetórias alternativas de desenvolvimento.
O êxito do pequeno comercialismo depende da sorte da grande política: não realizaremos o primeiro desses três conjuntos de objetivos sem avançar também nos outros dois. Entre o segundo e o terceiro, porém, há tensão. Ao atuar como catalisadores de uma aproximação entre os países continentais em desenvolvimento, criando contrapeso ao poderio dos Estados Unidos, nós nos arriscamos a amedrontar o governo americano e a afastar a sociedade americana.
Daí a delicadeza dessa empreitada, inseparável de nossa afirmação nacional. E digna, pela multiplicidade de seus elementos e pela vastidão do terreno em que se terá de desdobrar, de um Bismarck. Na relação com os Estados Unidos, somos, de longe, os mais fracos. Teremos de ser, de longe, os mais clarividentes.

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