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terça-feira, 16 de outubro de 2018

Fim de uma travessia do deserto? - Paulo Roberto de Almeida

Fim de uma travessia do deserto? Reflexões antecipadas

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: texto reflexivo; finalidade: depoimento sobre um período especial] 

Ainda arrastando os pés na areia – paisagem talvez incontornável nas atuais circunstâncias –, parece que estou aproximando-me do limiar do deserto. Este não é o deserto dos tártaros, como sugerido no romance de Dino Buzzati – pois o dele era o do prenúncio da chegada iminente dos bárbaros, quando no nosso caso os bárbaros já vieram, arrasaram tudo e tiveram de se retirar sob as vaias dos residentes da fortaleza –, mas foi o que se me apresentou como inevitável, quinze anos atrás, ao ter persistido na defesa de certas ideias, um deserto ao qual fui empurrado contra a minha vontade e mesmo a despeito de ter tido uma pretensão absurda: a de tentar educar nossos bárbaros.
Foram longos treze anos e meio de um deserto aparentemente interminável, que quase tinha sido delimitado quatro anos atrás – sem saber o que nos reservava sua eventual interrupção –, e que no entanto continuou no meu caso por mais dois anos e meio, apenas parcialmente compensado por um pequeno oásis nesse último período, mas sempre com a ameaça de nova expansão dominadora do deserto, com sua cota habitual de velhos e novos bárbaros, e vários salteadores dessas paragens inermes.
Agora que o deserto parece ter acabado, posso novamente olhar o horizonte, parar de sonhar com miragens, imaginar florestas na minha frente, e recomeçar a viver a vida mais movimentada das cidades e das aglomerações ruidosas e confusas. Isso não quer dizer que vida no deserto era de todo desagradável e impossível de se viver, longe disso. Uma das vantagens – se elas existem – de estar no deserto é aquela sensação de quase absoluta liberdade, a faculdade de poder andar a esmo, escolher o seu próprio itinerário, e vagar pela imensidão do deserto sem ter de prestar contas a ninguém, a não ser a si mesmo, e à sua consciência. Uma liberdade relativa, porém, pois além do deserto só tinha mais deserto, aquelas colinas arenosas onde se perder é obrigatório, assim como a noção do tempo também se torna relativa.
Pode-se fazer de tudo no deserto, e de tudo um pouco, desde que as pretensões sejam modestas: escolher uma sombra para ler, um outro canto mais confortável para escrever, uma reentrância discreta para refletir, e a certeza de poder se expressar impunemente, uma vez que o banimento para o deserto já representou uma condenação ao isolamento e à falta completa de eco. Se não fosse pela preservação dos escritos, poucos traços teriam restado dessa longa estada, se não fosse pela constância dos registros não teriam sobrevivido algumas reflexões contrarianistas, alertas feitas ao vento, vento que ainda assim carregou alguns desses manuscritos para além do deserto, folhas esparsas que alcançaram pequenos oásis perdidos naquela imensidão, outros quilombos de resistência intelectual durante a longa dominação dos bárbaros sobre todas as planícies e até sobre algumas montanhas. Se eu não tivesse levado papel e lápis para o meu exílio no deserto, não teria agora a recordação de algumas memórias para documentar essa longa jornada ostracismo adentro, dias infindos, meses incontáveis, anos seguidos. 
Devo a meus hábitos juvenis de leitura da história, às minhas incursões precoces nos livros de filosofia, às leituras maduras de história econômica, às minhas observações de política prática, essa minha certeza longamente mantida de que o deserto teria fim um dia, essa minha confiança de que o isolamento a que fui relegado na paisagem arenosa seria enfim superado, o meu absoluto otimismo quanto a que o meu exílio conheceria o seu término, de uma maneira ou de outra. Aparentemente chegou, ainda que eu não possa determinar exatamente as circunstâncias desse fim.
Talvez não tenha sido exatamente como eu teria, ou tivesse, gostado, com pleno reconhecimento da injustiça do ostracismo. Como já disse alguém, num livro que, aliás, se tornou um clássico, os homens fazem a sua própria história, mas não como eles gostariam que fosse, como eles imaginavam que pudesse ser, e sim segundo forças poderosas que eles nem sempre controlam, segundo circunstâncias cujas condições eles não conseguem determinar, um processo que ocorre por vezes fatalmente, e que é construído independentemente das ideias e até mesmo das ações da maior parte dos membros de uma determinada sociedade. Curiosamente, esse famoso livro foi escrito no momento mesmo em que começava uma nova ditadura, a de um líder bonapartista, obra que foi profética ao antecipar a relativa durabilidade, 18 anos da dominação carismática que se apoiava no apoio das massas incultas, mas sedentas pelos apelos de um discurso populista, ávidas pela demagogia habitual dos anunciadores de novos tempos radiantes, que acabam sendo, ao fim e ao cabo, apenas a preparação de novos desastres, o anúncio antecipado de frustrações garantidas a partir dos equívocos desse tipo de regime. 
Essas minhas leituras de clássicos da literatura política amenizaram em grande medida minha longa jornada no deserto, assim como reforçaram a minha crença em que, como das vezes anteriores, essa nova ditadura dos bárbaros também teria fim algum dia, e que eu poderia voltar ao convívio dos citadinos. Aproveitei, aliás, o ostracismo arenoso para escrever algumas peças que podem ter ajudado a manter na memória de alguns, uns poucos colegas de corporação, muitos outros em ambientes que eu sempre tinha frequentado, quando ativo na cidade dos homens, o que talvez tenha evitado um eclipse definitivo do que eu tinha a dizer. 
Agora que o deserto parece ter acabado, posso olhar para trás, não sem certo orgulho, ao ter sabido preservar o essencial de meu contrarianismo habitual. Nunca pedi água aos que me relegaram ao deserto, nunca lhes dei a satisfação de dizer que estavam certos, sempre reafirmei minha independência, e creio ter deixado bastante claro quais ideias, quais princípios e valores, quais posturas profissionais me separavam irremediavelmente deles. Nunca me considerei um dissidente, porque isso seria admitir que eu dissentia de alguma doutrina válida, de um conjunto de preceitos que seriam basicamente corretos, e aos quais eu me opunha apenas pela vontade de ser um contestador sem razão de ser, pela lógica dos bárbaros. Por mais desconforto e solidão que eu pudesse sentir no deserto, nunca experimentei o desprazer de servir aos bárbaros naquela que era a minha carreira profissional, o que certamente me poupou de muitos aborrecimentos, e a eles de constrangimentos adicionais, dada a minha postura. Por isso mesmo não ocorreram punições tópicas, como em ocasiões anteriores, além da própria condenação ao ostracismo, o que já deveria servir de exemplo e de alerta para outros eventuais incautos ou contestadores potenciais.
Minhas atividades de formiga do deserto não devem ter incomodado em nada a continuidade do regime, mas podem me ter dado o orgulho talvez egoísta de terem incomodado alguns dos responsáveis pelo meu exílio. Pelo menos não conseguiram me silenciar por completo, uma vez que, como garrafas jogadas por um náufrago ao mar, ideias também tem esse poder de voar com o vento, e até de alcançar as fímbrias do deserto.
Ao emergir agora dessa longa estada involuntária em terreno não demarcado – algo como o limbo das antigas crenças religiosas –, cabe não alimentar novas ilusões, não ser otimista demais quanto ao que vem pela frente, pois cidades e aglomerações, à diferença dos desertos, são lugares manifestamente confusos, contraditórios, até sujeitos a disputas, animosidades, enfrentamentos. O que cabe, sim, é fazer um diagnóstico realista da situação, examinar as fontes desses conflitos, determinar um modo de atuação em face da situação existente e traçar um plano mental quanto às melhores formas de atuação nos quadros do novo regime. Depois de tantos anos de desconstrução institucional, de erosão moral e de profunda deterioração ética, o trabalho reconstrução será tanto mais duro quando as principais dificuldades talvez não se situam exatamente no plano material, mas essencialmente no terreno da arquitetura mental e espiritual da sociedade. Tal compreensão da divisão da nação deve balizar, em meu entendimento, os esforços de soerguimento dos escombros deixados pelos bárbaros, que ainda estão à espreita, e precisam ser desativados basicamente pelas ideias, novas ideias.
De minha parte, sem qualquer pretensão quanto a desempenhar um papel de ator cênico, minha aspiração estaria, como é meu hábito, no oferecimento de reflexões e de sugestões no terreno pedagógico, que sempre foi o meu, um trabalho de análise, de diagnóstico e de iniciativas prescritivas que se encaixem no novo espírito da época. Aliás, não existe exatamente um novo Zeitgeist, apenas um panorama devastado e desolado por anos e anos de pregação divisionista, de doutrinas tortuosas, de propostas e medidas viciadas e viciosas, que levaram a nação à maior crise de sua história, uma recessão gigantesca, que condenou milhões à inação e ao desespero, sentimentos que, por sinal, alimentaram a rejeição dos bárbaros pela maioria dos cidadãos.
Sem ter tido qualquer papel – senão muito marginal, ao continuar alimentando a chama da resistência intelectual – na inversão da trajetória finalmente alcançada, posso agora, ao limpar os últimos traços de areia nas vestes, olhar com alguma confiança o futuro de médio prazo, sempre mantendo a mesma atitude básica que foi a minha com relação aos modos alternativos de organizar a política e a economia da nação: um ceticismo sadio, como compete a um contrarianista iluminista. Minha atitude, diga-se de passagem, nunca deixou de ser a mesma: a observação atenta da realidade ambiente, consulta demorada aos precedentes históricos, reflexão comparativa com outros casos de sucesso, ou de fracasso (mais instrutivo, neste caso), no encaminhamento de soluções aos problemas de toda e qualquer organização social. Com base nessa análise preliminar pode-se partir para a formulação de algum diagnóstico sobre os desafios detectados de maneira empírica, e com isso, finalmente, propor uma ação pedagógica – eventualmente complementada por alguma atuação executiva elementar – na direção das melhores respostas aos dilemas e desafios a serem superados.
Três lustros no deserto, sem ser eremita e sem ter vocação para anacoreta, também constituem boas oportunidades para o fortalecimento do caráter e para, longe da poluição citadina, ver um pouco mais claro, e mais longe, o caminho a ser seguido. Por isso sou finalmente grato aos responsáveis pelo meu exílio: eles me deram uma oportunidade que eu não teria no burburinho de um trabalho inserido em suas enormes contradições teóricas e práticas. 
Como disse alguém: a luta continua...


Paulo Roberto de Almeida
Paris-Rabat, em voo, 15 de outubro de 2018

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