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quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Um programa emergencial para um Estado falido - Paulo Roberto de Almeida

Muitos meses atrás, mais exatamente em maio de 2018, eu já me preocupava com a situação falimentar do Estado brasileiro, na verdade do país, de sua economia. E formulava algumas ideias básicas para sua recuperação. Agora, que estamos no limiar da escolha livre pelos cidadãos de um novo governo, permito-me divulgar essas poucas ideias formuladas ao correr da pena, ou à discrição do teclado.
O Comitê de Salvação Pública pode ser considerado uma provocação indevida, mas é justamente isto: considero a situação do Brasil tão grave, que requer a constituição de uma equipe encarregada da recuperação do país, em amplas bases consensuais, com os melhores economistas disponíveis no mercado.
Deixo aos comentários dos interessados.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 3 de outubro de 2018

Um programa de recuperação para um Estado falido
  
Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: ensaio especulativo; finalidade: superação de letargias e anomias]

Introdução
Este pequeno texto constitui um exercício ideacional para aplicação prática em caso de necessidade emergencial em previsão de falência próxima dos órgãos públicos de governança em um Estado hipotético. Poderia ser um manual de governança, mas esse tipo de documento é geralmente usado para situações normais, ou seja, governos estáveis apenas necessitando de pequenos ajustes na sintonia entre os diversos órgãos de Estado, para seu funcionamento adequado. Em caso de graves anomalias, crises severas de natureza econômica, perda de legitimidade das lideranças políticas, cabe tomar, em consequência, todas as ações práticas visando à superação dos problemas de curto prazo, bem como planejar as ações necessárias para que esse país hipotético em crise temporária possa retomar uma trajetória normal de atividades e funções, com vistas a constituir-se numa nação normal, que deve caracterizar-se pelos seguintes aspectos: 

1) Estado de direito legítimo, reconhecido dentro e fora de sua jurisdição;
2) Estabilidade política, base necessária à estabilidade e à gestão econômicas; 
3) Sistema legislativo transparente e responsável perante os cidadãos eleitores;
4) Sistema judiciário funcional, isento de eventual arbítrio pessoal de juízes;
5) Respeito aos contratos, aos bens públicos e privados; repressão a violadores;
6) Mercados abertos, sem estatais e monopólios; inserção na economia global;
7) Pleno respeito aos direitos humanos e às liberdades individuais;
8) Diplomacia universalista, focada no interesse nacional e no direito internacional.

Caso um Estado qualquer não cumpra, em todo ou em parte, esses requisitos, e se encontre, eventualmente, em grave crise política e econômica, não descartando um possível estado pré-falimentar, com deterioração da governança, desrespeito à lei e graves violações da legalidade institucional e dos direitos humanos, caberia nesse caso distinguir entre medidas emergenciais para o restabelecimento da governança e um conjunto de outras medidas de caráter estrutural, para a reforma das políticas públicas no sentido de se alcançar as características acima apontadas. Com base nessas premissas, vejamos quais poderiam ser essas medidas de curto e médio prazo.

Medidas de caráter emergencial para a superação de grave crise conjuntural
Um governo “normal” não terá, eventualmente, plena capacidade de atuação em situações de crise, daí que se recomenda a constituição de um “Comitê de Salvação Pública” – de preferência sem guilhotinas de qualquer tipo – criado pelo parlamento (se este se encontrar em funcionamento normal) e integrado por um número reduzido de representantes das diversas correntes de opinião em que se divide o espectro político. Não poderão integrar esse Comitê – e a fortiori o governo, qualquer que seja ele – personalidades que de alguma forma estejam envolvidas em atos de corrupção, que tenham sido acusadas a qualquer título em crimes dessa ordem, pessoas já condenadas pela justiça por essas violações da legalidade, bem como representantes de partidos que tenham sido responsáveis por atos de corrupção de qualquer espécie. 
O Comitê de Salvação Pública deve se ocupar, em primeiro lugar, do próprio funcionamento do governo, e das relações entre os poderes, pois todo o cerne da crise deriva, não de alguma crise externa, mas do próprio governo, que impede o Estado de funcionar corretamente. Por isso, sua primeira tarefa recomendatória seria tratar das relações entre o executivo e legislativo, recomendando, seguindo a linha de um “código de ética” bastante estrito, a demissão imediata de todos os integrantes eventualmente envolvidos em atos de corrupção, objeto de investigações judiciárias ou policiais, passíveis de condenação penal (mesmo não definitivas), tais como lavagem de dinheiro, fraude fiscal e outros delitos graves, de natureza mafiosa. A interdição de compor o governo se estende também aos membros de partidos envolvidos nessas acusações, ou de todo e qualquer indivíduo que apresente um conflito de interesse com a causa pública e as ações do governo.
O Comitê de Salvação Pública convocará um grupo de trabalho integrado por economistas independentes – da academia, do setor privado, de órgãos da sociedade civil – e por membros da própria tecnocracia governamental para elaborar um plano emergencial de ajuste fiscal, uma vez que a crise fiscal parece estar na origem de todos os males do país. Tanto o Comitê quanto o GT fiscal não devem tergiversar sobre as palavras: trata-se, sim, de um programa de austeridade, a mais estrita e a mais completa, sobretudo nos três poderes, visando a estabelecer o equilíbrio permanente das contas públicas; ele deve atuar também sobre o crescimento inaceitável da dívida pública.
O GT distinguirá as medidas de curto prazo – corte de gastos, redução de despesas, fim de subsídios, corte de privilégios e mordomias em todos os órgãos públicos – e as medidas estruturais de médio e longo prazo, mas às quais também cabe dar início imediatamente: reforma e unificação dos sistemas previdenciários, sem qualquer distinção de categoria; fim da estabilidade na maior parte do serviço público; privatização de todas as empresas estatais e criação de um sistema regulatório que vise assegurar plena concorrência nas atividades e ramos desestatizados; revisão completa do sistema tributário no sentido da diminuição dos impostos, das alíquotas específicas e da carga fiscal total; eliminação de subsídios não justificados; abertura econômica e liberalização comercial, concomitantemente à redução da carga fiscal incidindo sobre todas as atividades produtivas; desburocratização geral da vida econômica, com a criação de um novo ambiente regulatório caracterizado pela liberdade econômica. 
O Comitê de Salvação Pública instituirá um GT de Vigilância, destinado a verificar o cumprimento das medidas políticas que serão adotadas na esfera pública, com vistas a informar ao governo e ao parlamento a efetivação das medidas propostas. Esse GT velará sobre prazos e modalidades de implementação dessas medidas. Da mesma forma, esse GT fará a observância da honestidade e da ética em todas as ações tomadas pelos poderes do Estado, podendo denunciar atos em violação dos objetivos.
Déficit orçamentário e dívida pública constituem os focos principais da ação do Comitê, dos seus grupos de trabalho, assim como da ação do governo e do parlamento. Em nenhuma hipótese se aceitará a elevação da carga fiscal ou da dívida pública não necessária ao cumprimento de um programa de salvação nacional: todas as ações se destinam a reduzir o peso do Estado na vida econômica e na vida dos cidadãos. O estímulo ao crescimento será de responsabilidade do setor privado, desde que aliviado da carga extorsiva de impostos, taxas e contribuições com que ele é gravado atualmente, e todo o peso dos ajustes incidirá sobre o Estado e os órgãos de governo, sobretudo os estratos privilegiados do setor público. Os órgãos de controle se encarregarão de vigiar a implementação dessas medidas e de informar o Comitê de Salvação Pública.
Os órgãos de defesa do Estado, da lei e da ordem se encarregarão de assegurar o pleno funcionamento dos órgãos públicos, contra as violações que continuamente são perpetradas contra o patrimônio público e o privado. Não apenas os indivíduos que participam desses atos serão detidos, como também os chefes e responsáveis pelos movimentos que os estimulam a praticar atos contrários à lei. Manifestações públicas não podem, em nenhuma hipótese impedir a livre circulação dos cidadãos, ou ameaçar o funcionamento de órgãos públicos e a propriedade privada. A segurança da nação começa pela segurança de cada um dos cidadãos honestos do país. 

Medidas de caráter sistêmico ou estrutural de médio e longo prazo
O foco central dessas medidas continua sendo de caráter fiscal-tributário, no sentido de assegurar que o esforço emergencial de estabilização, via austeridade, se prolongue numa trajetória de estabilidade macroeconômica permanente, baseada em metas de inflação, câmbio flutuante, responsabilidade fiscal (inclusive e principalmente para o governo central), juros de mercado, abertura bancária, liberalização dos fluxos de capitais, abertura econômica e liberalização comercial unilateral. O princípio básico será a simplificação do sistema tributário e a redução da carga fiscal total, com um imposto federal sobre o valor agregado cobrado no destino e desgravação da cadeia. Taxas e contribuições passam a integrar a base tributária nacional, no sentido da descentralização fiscal, de maneira a evitar transferências erráticas para as menores unidades da federação, que passarão em consequência a assumir responsabilidade sobre sua própria manutenção essencial. Bens básicos, como combustíveis e bens de consumo popular, inclusive remédios, serão taxados muito modestamente.
As despesas dos três poderes de governo serão drasticamente diminuídas, com vistas a se constituir um Estado enxuto, sem qualquer tipo de privilégio e mordomia a seus membros. Seus integrantes serão incorporados a uma grade salarial única, ainda que diferenciada, com a eliminação concomitante de gratificações e acréscimos indevidos. Salários e vencimentos serão progressivamente alinhados aos indicadores de produtividade do setor público, notoriamente inferiores aos do setor privado. A máquina pública será drasticamente reduzida, com corte da burocracia ministerial, diminuição do número de ministérios, eliminação de órgãos desnecessários e racionalização de toda a estrutura do Estado. Parte importante das reformas será feita pelo fim da estabilidade na maior parte das funções públicas, preservando o princípio apenas onde estritamente necessário. Todas as atividades de Estado que puderem ser oferecidas em bases de mercado serão transferidas para o regime de concessões públicas, de privatização e sobretudo de desmonopolização em todas as instâncias possíveis. 
Muitas dessas medidas exigirão reformas constitucionais, e o Comitê de Salvação Pública poderá constituir um GT Institucional com vistas a examinar se será necessário convocar uma nova Assembleia Constituinte, para elaborar um texto mais simples e reduzido aos princípios fundamentais, ou se as medidas propostas, de tipo emergencial ou estrutural, podem ser feitas pela via das emendas constitucionais. O objetivo, de toda forma, é o de se obter uma Carta Magna reduzida ao essencial. 
As universidades públicas devem ganhar plena autonomia de funcionamento, com a transferência de recursos limitados às suas operações essenciais, mas dotadas de total liberdade para decidir sobre seus outros regimes de atuação, inclusive na gestão dos recursos humanos e nas suas vinculações com o setor privado e as comunidades nas quais se inserem. Regimes funcionais poderão variar de acordo com os seus conselhos de gestão, podendo a estabilidade ser concedida apenas em situações especiais e muito limitadas. A atuação principal do Estado federal será concentrada nos dois primeiros ciclos de estudos e no ensino técnico-profissional, com uma reforma racionalizadora dos currículos e uma ênfase sobre a formação adequada dos professores. Metas serão estabelecidas em vários níveis, com vistas à elevação dos padrões de qualidade, numa base meritocrática, com o fim da isonomia em todos os níveis. 
No campo da assistência social, cabe atuar na linha de sua redução progressiva, uma vez que nenhum país pode ser considerado normal mantendo um terço, ou mesmo um quarto de sua população em regime de caridade pública. Deve-se também separar estritamente regimes previdenciários (unificados e reformados) dos programas de assistência social. Na Previdência, o objetivo seria substituir progressivamente o sistema de repartição por diferentes sistemas de capitalização, suscetíveis de reforçar o empenho na poupança privada, contribuindo para taxas mais robustas de investimento. A educação é um componente essencial do esforço nacional para incrementar os ganhos de produtividade e os processos de inovação tecnológica, e por isso deve receber uma atenção especial, apontando para uma verdadeira revolução em suas estruturas. 
Cabe dar continuidade à reforma dos regimes laborais e das regras da Justiça do Trabalho, aumentando a contratualidade, eliminando a rigidez da legislação e, se for possível, eliminar a própria Justiça do Trabalho, com maior recurso ao sistema arbitral e a varas especializados nas relações de trabalho. A Justiça do Trabalho é, na verdade, uma estimuladora de conflitos trabalhistas, custando mais à sociedade do que o próprio valor individual dos litígios julgados. A noção de salário mínimo nacional, da mesma forma, é uma barreira ao pleno emprego, e deveria ser simplesmente eliminada. A Justiça, em geral, deve sancionar severamente os ataques à propriedade privada, a começar pela eliminação dessa aberração conceitual que é a sua “função social”: as ocupações de propriedades são na verdade invasões ilegais e violações do princípio da propriedade privada, não cabendo, portanto, qualquer leniência nesse capítulo. 
A política externa deve guiar-se exclusivamente pelo interesse nacional, no pleno respeito das obrigações assumidas e dos princípios do Direito Internacional. Em nenhuma hipótese ela pode se deixar influenciar por ideologias ou posturas partidárias de escasso, ou nenhum, interesse nacional relevante. Relações bilaterais ou regionais atenderão ao mesmo sentido, ausentes quaisquer reducionismos de caráter geográfico ou supostamente político, visando selecionar parcerias que contrariem a visão universalista que sempre foi, e deve ser, a de uma diplomacia pragmática, ou simplesmente sensata. Objetivos de integração econômica – que em muitos casos são discriminatórios e podem provocar desvios de comércio e de investimentos – devem ser compatíveis com os mais altos interesses da nação e de sua economia, sem grandes considerações de natureza política em decisões de tão alta relevância. 
O objetivo principal, obviamente, é o de uma maior integração do país às cadeias globais de valor, o que deve ser alcançado pela via da abertura econômica ampla e irrestrita e pela liberalização comercial, se necessário for pelo método da redução unilateral – ou seja, sem qualquer tipo de negociações bilaterais ou multilaterais – das barreiras tarifárias, bem como de vários outros mecanismos de protecionismo comercial. Esse processo de inserção dinâmica à economia global pela via da redução da proteção efetiva e de instrumentos defensivos deve ser feito concomitantemente ao processo já evidenciado como necessário de redução geral da carga tributária, em especial sobre as atividades produtivas e sobre os investimentos e emprego. 

Estes são, de modo geral e em caráter preliminar, os itens que podem integrar processos paralelos de ajuste emergencial, no caso de um Estado falido, e de reformas sistêmicas, de caráter mais permanente, de modo a reconstruir esse mesmo Estado para que ele possa servir, na plenitude de suas instituições, a um país normal. O coração desses processos é o correto funcionamento do aparelho econômico da sociedade, no setor privado, aquele deve estar no centro das preocupações das elites dirigentes, não a satisfação primária dos interesses dos próprios integrantes do Estado, que se apropriam, por vezes ilegitimamente, quando não ilegalmente, dos recursos e da riqueza criados pelos produtores primários de renda e emprego. Quando o Estado se torna o centro da vida nacional já não se está mais em face de um país normal. A principal tarefa dos estadistas consiste em que um país possa funcionar normalmente. É o mínimo que se pode esperar de qualquer nação organizada. De outro modo, o declínio é inevitável. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de maio de 2018

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