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sexta-feira, 10 de maio de 2019

O legado e a atualidade de Ruy Barbosa, 170 anos - palestra de Celso Lafer na ABL

Celso Lafer fez uma palestra sobre Ruy Barbosa na Academia Brasileira de Letras, no último dia 4 de abril, que transcrevo abaixo. Ele repassa as grandes contribuições imorredouras do "homem mais inteligente do Brasil" (segundo os baianos, e provavelmente verdade quanto à diversidade de seus interesses intelectuais), do qual registro uma reflexão (ao final) sobre o ler, o pensar, o refletir e expressar ideias. Transcrevo, pois também me serve como ensinamento: 

Concluo com uma das grandes lições de Ruy na Oração aos Moços: que ele seguiu na sua vida, obra e percurso: “os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas”.

Grande Ruy Barbosa, grande Celso Lafer!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de maio de 2019


Ruy Barbosa, 170 anos: dimensões da atualidade do seu legado

CELSO LAFER
Palestra na Academia Brasileira de Letras, 4 de abril de 2019

-I-
Ruy Barbosa faleceu em 1923 e como Joaquim Nabuco, seu colega na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e confrade na Academia Brasileira de Letras, nasceu há 170 anos, em 1849. Foi um contemporâneo mais moço de Machado de Assis, a quem sucedeu na presidência da ABL, tendo proferido quando de seu falecimento, em nome de seus confrades, em 30 de setembro de 1908, o “Adeus a Machado de Assis”. Daí as convergências geracionais e de sensibilidade deste ciclo de conferências, que hoje se encerra.
Ruy teve em vida, pela sua atuação pública, uma presença indiscutível na cena nacional. Usufruiu na sociedade brasileira de seu tempo de um generalizado reconhecimento como um ícone intelectual, admirado orador e advogado, homem de notável cultura e excepcional conhecimento e domínio da língua portuguesa. Uma de suas mais relevantes dimensões é a de publicista e, como tal, é uma estrela de primeira grandeza, no que José Veríssimo qualificou de literatura de questões públicas em nosso país.
O culto a Ruy e a preservação de seus múltiplos legados se prolongou após o seu falecimento e a Casa de Ruy Barbosa, inaugurada pelo Presidente Washington Luís em 11 de agosto de 1930, vem se dedicando a manter viva a sua memória, cabendo destacar a publicação, com cuidados editoriais e prefácios de muita qualidade de destacados ruístas, das dezenas de volumes de suas obras completas, uma empreitada ainda não concluída explicitadora da amplitude dos seus interesses.
A esta ciclópica tarefa dedicou-se Américo Jacobina Lacombe que foi nosso confrade. Explica em seu À sombra de Ruy Barbosa que colocou em ordem e foi preparando para publicações o acervo de Ruy, do qual se considerava o “Guarda-mór” – uma responsabilidade que exerceu com zelo e qualidade durante décadas – na condição de Diretor da Casa de Ruy Barbosa.
A obra e a personalidade de Ruy são múltiplas na sua unidade. Comporta por isso muitos ângulos de abordagem no seu trato, que os seus estudiosos, no correr dos anos vêm analisando à luz das suas próprias preferências intelectuais. Exemplifico com trabalhos dos nossos confrades.
Foi com A vida de Ruy Barbosa que Luis Viana Filho iniciou o seu percurso de grande biógrafo, que foi a marca da sua identidade intelectual. João Neves da Fontoura, foi um notável orador que marcou a cena pública do nosso país; compreensivelmente escreveu Ruy Barbosa, Orador. Miguel Reale, meu antecessor na cadeira 14 esclareceu “A posição de Ruy Barbosa no mundo da filosofia” em consonância com o seu recorrente interesse pela história das ideias no Brasil. Elmano Cardim, foi jornalista e diretor do Jornal do Comércio e escreveu, como seria de se esperar, Ruy Barbosa, o jornalista da República. Nosso confrade Alberto Venâncio Filho, grande estudioso do pensamento jurídico brasileiro, dedicou-se à análise de Ruy Barbosa, como advogado e jurista.
O legado de Ruy Barbosa, como se vê, estimulou e inspirou muitas gerações. Qual é hoje a sua atualidade?
Há uma certa dificuldade no acesso à sua mensagem, pois o seu estilo de grande orquestrador das palavras não se amolda com facilidade aos que tem preferência pela palavra sintética. Esta dificuldade se magnificou na era digital, seja por parte dos que apreciam o sincopado não argumentativo do “twitter”, seja pelo instantâneo do metabolismo incessante das mídias sociais, que não abrem espaços para os nexos do enquadramento que caracterizou o modo de argumentar de Ruy.
Na defesa destes nexos afirmou em A Imprensa e o dever da verdade: “O discurso não entra a cair no vício de sobejo, senão quando excede a matéria do seu tema. Só principia a superabundância, onde se começa a descobrir a superfluidade.”
Há, porém, uma outra razão no plano das idéias que cabe mencionar, destacado por Bolivar Lamounier no seu livro-ensaio sobre Ruy, de 1999. Em síntese aponta Bolivar que a obra e o legado de Ruy enfrentaram depois da sua morte uma dupla desqualificação, que se aguçou com o clima político e intelectual abastecido pelos desdobramentos da Revolução de 1930. Uma proveio do pensamento autoritário da Direita, outra, do pensamento autoritário da Esquerda, ambas coadjuvadas pela ciência social acadêmica. Todas têm em comum a deslegitimação do Direito como instrumento de ação política que caracterizou Ruy, cujo pensamento foi tido como um expressão de um formalismo liberal e juridicista, desconhecedor das diferenças que separam o Brasil real do Brasil legal, o ser do dever-ser, a dinâmica das forças sociais e econômicas da infraestrutura que moldam a superestrutura.
Esta desqualificação deixou na sombra um dos grandes legados de Ruy que foi o de ter se dedicado no correr da sua vida e da sua atuação, como registra Bolivar “a formação da esfera pública e a criação institucional da democracia no Brasil”. É esta vertente e a sua atualidade que vou explorar neste texto, indicando igualmente sua coerência com a atuação internacional de Ruy que foi episódica, mas muito significativa.

-II-
Inicio com a Oração aos Moços – o discurso de paraninfo com que Ruy Barbosa brindou a turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, registrando que fazia parte do meu “léxico familiar”. A turma de 1920 foi a de Horácio Lafer que integrou a comitiva dos estudantes que foi ao Rio convidar Ruy para o paraninfado. Meu pai assistiu a formatura e guardou a lembrança do impacto que sentiu ao ouvir A oração aos Moços, que foi lida - porque Ruy, adoentado, não pode comparecer à cerimônia – pelo Prof. Reinaldo Porchat que veio a ser o primeiro reitor da USP. Soares de Melo que foi denodado artífice de Ruy como paraninfo da sua turma, relata em sua circunstanciada História da Oração aos Moços a qualidade da leitura que Porchat fez da mensagem de Ruy.
Aponto preliminarmente, também na condição de professor da Faculdade na qual Ruy estudou, que um grande marco da sua trajetória de orador, vincula-se à sua vida de estudante na Faculdade. Foi seu discurso de 8 de dezembro de 1868 – uma admirável “oraison funèbre” pronunciada na sessão cívica em São Paulo, em homenagem a José Bonifácio, o moço. José Bonifácio, que tinha sido seu professor e de Joaquim Nabuco na Faculdade de Direito de São Paulo, foi uma grande personalidade pública do Império, com o qual Ruy subsequentemente conviveu no parlamento e na vida política. Era de cariz radical, guiado pela “ideia a realizar” da participação popular das massas ativas da população – como mostrou nosso confrade Francisco de Assis Barbosa na introdução do seu Perfil Parlamentar publicado pela Câmara dos Deputados.
José Bonifácio, o moço, foi notável orador e admirável liderança da mocidade acadêmica da Faculdade de São Paulo no século XIX, como relatam Almeida Nogueira em Tradição e Reminiscências e Spencer Vampré nas Memórias para História da Academia de São Paulo. José Bonifácio foi um paradigma que influenciou Ruy ao lidar, como disse, com a sociedade do seu tempo ”pela eloquência na tribuna, pela mocidade na cátedra, pela controvérsia na imprensa, pela política no parlamento”.
Ruy dá o seu testemunho do magistério de José Bonifácio, dizendo que graças a ele como professor teve “pela primeira vez a revelação viva da grandeza da ciência que abraçávamos.” É um dado relevante de sensibilidade e memória, explicativa do porquê inicia a Oração aos Moços afirmando a importância que os seus “cinquenta anos de consagração ao Direito viesse a receber no templo do seu ensino em São Paulo, o selo de uma grande benção.”

-III-
A Oração aos Moços pode ser considerada o testamento político de Ruy. Nela fez uma avaliação do seu meio século de trabalho na jurisprudência que se conjugou aos seus cinquenta anos de serviços à Nação. Observou que atuou sem os meios e manhas da política tradicional, mas que “em compensação tudo envidei por inculcar ao povo os costumes da liberdade e à república as leis do bom governo, que prosperam os Estados, moralizam a sociedade e honram as nações”.
Entre os serviços à nação cabe destacar a ativa participação, que compartilhou com Joaquim Nabuco, na campanha abolicionista. Ruy sublinhou que a questão da escravidão era a questão das questões, a que todas as outras se subordinavam pois “encarna em si o começo da solução de todas as demais”. Afirmou: “É no direito cientificamente real de nossa época e de nossa nacionalidade que nos firmamos contra a legalidade caduca do cativeiro”.
Rui participou com destemor e precisão jurídica do movimento abolicionista brasileiro; por isso é figura de relevo do recente livro de Angela Alonso Flores, votos e balas que desse movimento trata com originalidade, baseada em abrangente pesquisa.
As limitações do tempo só me permitem apontar que entre os serviços prestados à nação por Ruy estão: seus inovadores pareceres sobre ensino apresentados na Câmara dos Deputados do Império como relator da Comissão de Instrução Pública e que estão lastreadas na sua visão do papel regenerador da educação no desenvolvimento material e moral do nosso país e de nossa gente. Conjugam-se com sua subsequente preocupação em propiciar à economia da República, a melhoria das condições de vida e progresso do povo, indo além da sua base agrícola e abrindo espaço para o desenvolvimento da indústria, o que não ocorreu no Império por muitas razões, dentre elas a escravidão.
Ruy também em conferência de 1919 na sua segunda campanha presidencial foi atento à questão social. Reconheceu progressos em matéria de direitos humanos mas propugnou pela sua abrangência por meio de sua necessária extensão aos direitos sociais.
João Mangabeira, que foi seu discípulo e teve o prazer da sua intimidade, afirmou: “na questão social ninguém no Brasil viu tão cedo, tão largo e tão longe quanto Ruy na sua época”. Foi o único, dentre os líderes brasileiros, como realça Mangabeira em Ruy, o Estadista da República, que se declarou pela democracia social. Mangabeira foi uma destacada figura pública brasileira, de orientação socialista e cariz democrático. Daí o relevo de sua afirmação, reiterada por Hermes Lima, que foi nosso confrade e também como João Mangabeira figura pública de linhagem socialista. Desta matéria tratou em texto de 1983 de maneira circunstanciada e abrangente, como era do seu feitio, nosso saudoso confrade Evaristo de Moraes Filho, inspirado pela ação e pelo convívio do seu pai, Evaristo de Moraes, com Ruy.
Em Figuras do Direito, que recolhe dois admiráveis estudos sobre Ruy, San Tiago Dantas observou que transfundir na história a força operativa de um pensamento está fora do alcance da vontade individual. Ruy, no entanto, exprimiu na trajetória da sua vida e obra, com efetiva ressonância nacional, a trama dos problemas políticos da sociedade brasileira, não só do seu tempo, mas as dos nossos dias, com destaque para os desafios da consolidação e vigência das instituições democráticas.
Ruy tinha a capacidade de sacrifício e sempre soube perder, lembra Oswald de Andrade. Assim, nas palavras do grande modernista “como a semente do Evangelho que precisa morrer para frutificar, ele sempre soube morrer pelo dia seguinte do Brasil.” Por isso a árvore da liberdade está subjacente ao seu legado. É o que vou a seguir destacar.

- IV-
O Direito representou para Ruy o caminho do seu empenho político. Este foi o de ser “o mais irreconciliável inimigo do governo do mundo pela violência, o mais fervoroso predicante do governo dos homens pelas leis”. (Discurso de 18 de maio de 1911 no Instituto dos Advogados) e um defensor do civilismo que norteou as suas duas campanhas presidenciais. O programa do civilismo, para Ruy, estava voltado para a observância das condições de justiça, e requer “o governo da lei contraposta ao governo do arbítrio”. (O Dever do Advogado, 1911).
Ruy viveu o direito, como aponta Miguel Reale, em função do agir e o seu excepcional domínio das doutrinas e das instituições jurídicas esteve a serviço da implantação das práticas democráticas republicanas em nosso país. Sustentou a defesa do positivo papel que os advogados podem exercer na vida pública de uma democracia. Para ele, “o trato usual do Direito, o hábito do seu estudo, a influência penetrante de sua assimilação, conduz a independência dos juristas “. (Discurso de 18 de maio de 1911 no Instituto dos Advogados).
A autonomia do jurista em relação ao poder é um traço marcante da personalidade de Ruy e do sentido apostolar do seu percurso. Neste sentido, no mundo do Direito brasileiro, Francisco Campos é, como aponta San Tiago Dantas, o seu oposto, por força de um realismo implacável e de um criticismo que relativiza todas as posições doutrinárias. Por isso, os seus grandes talentos de jurista estiveram à vontade para acomodar os impulsos autoritários do pragmatismo do poder. Disso são exemplos o seu decisivo papel na redação da Constituição de 1937 do Estado Novo e no Ato Institucional nº 1, inaugurador do regime implantado em 1964.
Na Oração aos Moços, Ruy engloba na missão do advogado, uma espécie de magistratura: o da justiça militante. Nisto inclui “não transfugir da legalidade para a violência”; “não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínios a estes contra aqueles”; não “quebrar da verdade ante o poder”; não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniqüidade ou imoralidade”; “não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas.”
Ruy em O Dever do Advogado, observa que a ordem legal se manifesta por duas exigências: a acusação e defesa. Esta independentemente do execrável do delito “não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira.” Cabe ao advogado ser “voz do Direito no meio da paixão pública, tão suscetível de se demasiar.” “Tem a missão sagrada, nesses casos, de não consentir que a indignação degenere em ferocidade e a expiação jurídica em extermínio cruel.” Por isso, “faz-se mister resistir à impaciência dos ânimos exacerbados, que não toleram a serenidade das formas jurídicas.
Ruy exerceu a Magistratura de Justiça Militante na sua análise do caso Dreyfus, um grande exemplo de quebra da “verdade ante o poder”. O caso Dreyfus também é um exemplo em que as circunstâncias políticas, nas quais a “paixão pública” se expressa por movimentos que obedecem “a verdadeiras alucinações coletivas”. Elas também ocorrem, como diz Ruy em O Dever do Advogado, mesmo em nações adiantadas e cultas.
O texto de Ruy é de 1895, e data do período de seu exílio na Inglaterra, a que se viu forçado pelo arbítrio da presidência de Floriano Peixoto. Foi publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro e passou subsequentemente a integrar Cartas da Inglaterra. Ruy o escreveu, como disse, por ter o caso nele vibrado “profundamente no coração a corda da justiça”. O texto de Ruy realça a importância para a convivência coletiva da legalidade ferida nas garantias processuais pelo sigilo do “huis clos”, como observou Baptista Pereira no prefácio à 2ª edição de Cartas da Inglaterra, que nele identifica uma “autópsia do militarismo”, válida também para o Brasil de Floriano Peixoto, que postergou na experiência de vida de Ruy, a vigência das garantias legais.
O texto de Ruy também corrobora a defesa que fez em 1920 sobre o dever da verdade - nos debates, nos atos, no governo, na tribuna, na imprensa – e da transparência do espaço público, pois, como afirmou, “o poder não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol”. “A política não é uma maçonaria, e sim uma liça.”. Daí a inaceitabilidade da falsificação e da mentira nas instituições (A Imprensa e o dever da verdade). Estas foram as que permearam o processo e a condenação de Dreyfus.
Ruy escreveu o seu texto no calor da hora e com base nas informações hauridas na imprensa inglesa. Foram suficientes, como o tempo demonstrou e a revisão do processo Dreyfus comprovou, para Ruy demonstrar, de maneira inequívoca, que Dreyfus fora vítima de uma flagrante denegação da justiça por total carência de devido processo legal, tendo realçado que a clandestinidade do processo o inquinava de suspeita. Entreviu que a verdadeira causa da condenação de Dreyfus foi o antissemitismo. Apontou que o processo correu no segredo de um tribunal militar e “era pleito sentenciado pela opinião pública”, registrando que esta, na França daquele momento, vivia “o espasmo do ódio insaciável” que agitava contra o acusado todas as classes da população.
Em 1919, na sua segunda campanha presidencial, Ruy, em conferência de 24 de maio referiu-se a seu texto em defesa de Dreyfus - como registra, o primeiro arrazoado jurídico escrito na discussão de sua causa – para dela extrair uma lição de civilismo, apontando que na França foi “crucificada a justiça na pessoa de um soldado pelas intrigas da política de fações”, destacando no contexto, a importância do direito, da justiça e da legalidade.
Em 1985 Ruy fez verter para o francês o seu texto, que foi publicado no Rio de Janeiro. O texto chegou às mãos de Dreyfus depois de sua liberação, mas antes de sua plena reabilitação pela Corte de Cassação, em 1906. Dreyfus, no seu livro Souvenirs et Correspondences registra que leu o texto de Ruy em 1900 identificando “no autor um discernimento notável e uma grande liberdade de espírito.”
O caso Dreyfus foi um caso rumoroso, de alcance internacional, cuja relevância Ruy anteviu desde o primeiro momento. Dividiu e mobilizou a opinião pública da França da 3ª República com repercussão na Europa. Hannah Arendt sublinha o seu alcance histórico para o século XX, considerando-o uma cristalização antecipatória, explicativa das origens do que veio a ser o totalitarismo.
Na defesa de Dreyfus alinharam-se no tempo as correntes liberais e democráticas. Neste sentido cabe lembrar que a posição de Ruy, que estava em sintonia com essa corrente, repercutiu favoravelmente na diplomacia aberta, caracterizadora da Conferência de Haia de 1907, que deu espaço ao papel da imprensa na cobertura de suas atividades. O influente jornalista William Stead que escreveu sobre o Brasil em Haia apontou que Ruy como chefe da delegação brasileira não só se impôs no âmbito multilateral, pelo seu conhecimento e combatividade em relação aos demais delegados. Sua pioneira defesa de Dreyfus, atestada pelo próprio Dreyfus, à ele deu “um cunho de distinção”, que conferiu à Ruy prestígio perante a opinião pública esclarecida que acompanhou de perto a Conferência.
Haia foi o primeiro grande ensaio da diplomacia multilateral no século XX e o momento inaugural da presença brasileira nos grandes foros internacionais.
Nela, Ruy atuou com informações sobre a cena internacional que lhe foram previamente dadas por Joaquim Nabuco e em estreita coordenação com o Chanceler Rio Branco. Foi bem sucedido porque tinha todas as qualidades para a diplomacia parlamentar do multilateralismo: o pleno domínio dos assuntos, a vocação de infatigável trabalhador e a capacidade de exprimir-se, inclusive de improviso e com perfeição, em francês - a língua oficial da Conferência – a que se conjugou a combatividade, que sempre o caracterizou, como advogado, político e parlamentar.
Ruy em Haia contestou a igualdade baseada na força e sustentou, no âmbito do Direito Internacional Público, a igualdade dos Estados. A posição do Brasil, pela sua voz, representou uma primeira formulação brasileira da tese da democratização do sistema internacional e, nesta linha, uma contestação ao exclusivismo, até então preponderante, do papel da gestão da vida internacional atribuída às grandes potências. Assim, da mesma maneira que em nosso país a sua prática de homem público e de publicista esteve voltada para a construção de um espaço público democrático, e neste contexto, o Direito foi o meio para o seu perseverante fazer político , assim também em Haia, na sua prática diplomática, voltou-se coerentemente para os males das imperfeições do sistema internacional, indicando o papel do Direito na democratização do espaço internacional.
A autonomia do jurista em relação ao poder, que caracterizou a maneira de ser de Ruy, também marcou a sua atuação na Haia. Nela encontrou o tom certo para afirmar a posição independente do Brasil, cuja especificidade era distinta, como observou, dos que imperavam na “majestade de sua grandeza” e dos que se encolhiam “no receio da sua pequenez”.
Ruy manteve a posição independente do Brasil em relação aos EUA quando este, como potência em ascensão, se alinhou com as demais Grandes potências. Relevante, neste sentido, a propósito das relações do Brasil com os EUA, o que Ruy, mais adiante, disse na sua Conferência, A Imprensa e o dever da verdade: “Não quero, nem quererá nenhum de vós, que o Brasil viesse a ser o símio, o servo ou a sombra dos Estado Unidos. Não acho que devemos nos entregar de olhos fechados à sua política internacional, se bem haja entre ela e a nossa, interesses comuns bastante graves e legítimos, para nos ligarem na mais inalterável amizade, e nos juntarem intimamente em uma colaboração leal na política do mundo. Tal é o meu sentir de ontem, e amanhã.”
 Na sua avaliação dos resultados de Haia, Ruy em discurso de 31 de outubro de 1907 fez uma observação que antecipou o tema “soft power”, que é de grande relevância para o mundo interdependente em que estamos envolvidos: ”Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca em nossos dias os povos subsistem de sua reputação no exterior”.
O tempo não me permite explorar o alcance de uma subsequente ação diplomática de Ruy que foi a Embaixada em Buenos Aires, de 1916. Nela representou o Brasil no centenário da independência da República Argentina. Os documentos desta missão foram reunidos no volume XLIII, 1916, Tomo 1 das Obras Completas de Ruy, publicados em 1981 pela Casa de Ruy Barbosa, precedida de um notável prefácio de Evaristo de Moraes Filho.
Em Buenos Aires, Ruy destacou em mais de uma oportunidade a relevância do potencial de cooperação entre o Brasil e a Argentina em uma vasta construção na ordem política, na ordem econômica e na ordem jurídica. É assim um dos importantes patronos da parceria argentino-brasileira que veio a ser, com grande atualidade, um dos temas fortes da agenda diplomática de nosso país.
Ruy também proferiu uma importante Conferência na Faculdade de Direito de Buenos Aires sobre os conceitos modernos do Direito Internacional, também conhecido como o dever dos neutros, nela analisado à luz da violência que caracterizou a 1ª guerra mundial. A Conferência de Ruy teve larga, repercussão, inclusive na França. Desta substanciosa conferência permito-me destacar como Ruy, com presciência observou que dada a “interdependência em que até as nações mais remotas vivem umas das outras, a guerra não pode isolar-se nos estados entre os quais se abre o conflito”. Sua comoção, estragos e misérias repercutem sobre a fortuna dos povos mais distantes. Neste sentido, Ruy antecipou o tema da indivisibilidade da paz que posteriormente veio a ser consagrada, depois do término da 1ª guerra mundial, pelo Pacto de Sociedade das Nações. (Art. II).
Ruy extraiu da sua avaliação sobre a guerra um papel diverso do que teve a neutralidade no passado, como examina circunstanciadamente na sua Conferência. Nas suas palavras: “A imparcialidade na justiça e solidariedade no Direito, a comunhão na manutência das leis escritas pela comunhão, eis aí: a nova neutralidade, que se deriva positivamente das Conferências da Haia, não flui menos imperativamente das condições sociais do mundo moderno.”
Haia e Buenos Aires resultam do empenho de Ruy em arguir no plano externo os méritos da domesticação pelo Direito da força e dos benefícios da juridicidade nas relações internacionais. A posição de Ruy está em consonância com dispositivos que regem as relações internacionais do Brasil, contempladas no art. 4º da Constituição Federal, entre eles a defesa da paz e a solução pacífica de controvérsias. O empenho de Ruy internacionalista guarda total coerência com a sua dedicação no plano interno em submeter a razão de Estado à razão do Direito.
São muito significativas as iniciativas e contribuições de Ruy na construção institucional do país e que perduram, com os ajustes do tempo até os dias de hoje. Ruy foi desde o tempo do Império um defensor do federalismo. Entendia que o sistema federativo era o único adaptável ao Brasil. Avaliou que a autonomia federativa dos Estados, republicanizava o país mais depressa e mais seriamente do que se imaginava, substituindo a inércia das antigas províncias. Daí a importância do seu papel na modelagem jurídica do federalismo brasileiro desde o governo provisório até a feição que assumiu na Constituição de 1891.
A criação e o papel do Supremo Tribunal Federal tiveram em Ruy o seu grande patrono. Destacou, a propósito do STF no seu discurso de posse de 19 de novembro de 1914 como presidente do Instituto dos Advogados “o direito-dever de guardar a Constituição contra os atos usurpatórios do governo e do Congresso.” Guiou-se pelo seu tema recorrente de “sujeitar à legalidade os governos, implantar a responsabilidade no serviço à nação” e opor-se “à razão de estado” como a “negação virtual de todas as constituições”.
Na Oração aos Moços aponta que “entre as leis ordinárias e a lei das leis, é a justiça quem decide, fulminando aquelas, quando com esta colidirem”. Também recomendou como paraninfo aos alunos da turma de 1920 que iriam ser magistrados “não perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito”; não cortejar a popularidade; não transigir com as conveniências; não ter negócio em secretarias; não deliberar por conselheiros ou assessores.
Cabe igualmente lembrar que Ruy, como advogado, respaldado na Corte pelo Ministro Pedro Lessa – antigo professor de Filosofia do Direito no Largo de São Francisco e membro da ABL – teve um grande papel na construção do alargamento da doutrina brasileira do “habeas corpus” como garantia constitucional, que inspirou mais adiante o instituto do mandado de segurança.
Ruy promoveu desde o governo provisório (Decreto nº 119-A, de 7/01 de 1890) a separação da Igreja e do Estado e a laicidade do Estado, consagrada na Constituição de 1891 e nas constituições subsequentes. Implantou-se deste modo uma nítida distinção entre, de um lado, instituições, motivações e autoridades religiosas e, de outro, instituições estatais e autoridades políticas, de tal forma que não haja predomínio de religião sobre a política. A laicidade não se circunscreve ao reconhecimento da liberdade de consciência, religião e culto, assinaladora do pluralismo da sociedade e um dos grandes ingredientes da tutela dos direitos humanos. Significa que o Estado se dessolidariza e se afasta de toda e qualquer religião, em função de um muro de separação entre Estado e Igreja, na linha da primeira emenda da Constituição norte-americana. Esta matriz norte-americana da laicidade, que influenciou a visão de Ruy, parte do pressuposto que a laicidade é uma característica de organização do Estado. Não implica na laicidade da sociedade civil, que é uma esfera autônoma para o exercício, sem interferência estatal, da liberdade religiosa e de consciência. Trata-se, na lição de Michael Walzer, de uma expressão da sabedoria liberal da arte da separação. Politicamente representa uma maneira de responder, no plano jurídico, aos ímpetos intransitivos da intolerância. Daí a vedação de relação de dependência ou aliança do Estado com qualquer culto ou igreja, como se lê no § 7º do artigo 72 da Constituição de 1891, que está alinhado com o artigo 19-1 da nossa atual Constituição. Por isso, num Estado laico como Ruy institucionalizou no Brasil, as normas religiosas das diversas confissões são conselhos e orientações dirigidas aos fiéis e não comandos para toda a sociedade.
Esta contribuição de Ruy para a consolidação e vigência do espaço público e das instituições democráticas em nosso país é da maior atualidade. Contém o muito presente risco do indevido transbordamento da religião para o espaço público. Tutela a finalidade pública da laicidade que é a de criar para todos os cidadãos, não obstante sua diversidade e conflitos político-ideológicos, uma plataforma comum na qual possam encontrar-se enquanto integrantes de uma comunidade política democrática.
Concluo com uma das grandes lições de Ruy na Oração aos Moços: que ele seguiu na sua vida, obra e percurso: “os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas”.
  

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