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domingo, 16 de junho de 2019

Sergio Abranches: agruras do nosso presidencialismo de coalizão (ou seria de corrupção?)

Uma análise abrangente, completa, do presidencialismo deformado que subsiste precariamente, representado por um personagem menor, incapaz de conduzir racionalmente o processo de governança, e que nunca teria chegado ao pináculo do poder não fossem as trapalhadas políticas e os crimes econômicos do lulopetismo anterior.
Paulo Roberto de Almeida

Muitos analistas do modelo político brasileiro mostram contrastes significativos entre a versão de 1946 do presidencialismo de coalizão e a versão de 1988, aos quais atribuem os ganhos de governabilidade do modelo atual. Em síntese, na primeira versão o presidente era relativamente fraco e o Congresso relativamente forte. Na segunda, inversamente, o presidente é relativamente forte e o Congresso relativamente fraco. Todavia, é preciso considerar que o bicameralismo passou por mudança importante em 1988, e o Senado conquistou o poder de iniciar legislação, equiparando=se à Câmara em vários aspectos. Isso aumenta a dependência do presidente à coalizão no Legislativo, mesmo sendo muito mais forte do que na versão anterior.
As duas versões têm em comum pelo menos dois elementos, eu diria, definidores do nosso presidencialismo de coalizão. A coalizão aparece como um imperativo em ambos, porque é improvável que o partido do presidente alcance a maioria nas duas Casas do Legislativo e praticamente impossível que chegue à maioria necessária para emendar a Constituição (60%). O segundo elemento é que o eleitorado do presidente é nacional e plural, levando-o a ter uma agenda mais abrangente do que a agenda dos partidos de sua eventual coalizão.
O eleitorado brasileiro é muito heterogêneo social e regionalmente. A correlação eleitoral de forças entre os partidos varia muito ao longo da federação. As características sociológicas do eleitorado, a lógica da representação proporcional com lista aberta e as regras para organização partidária propiciam e incentivam a fragmentação partidária. Essa combinação dificulta ainda mais a conquista da maioria parlamentar por um só partido, além de gerar bancadas com agendas mais diferenciadas, carregadas de demandas locais, corporativistas e setoriais.
Dotado de poder de agenda, o presidente tem a capacidade de coordenar e dirigir o processo legislativo. Essa possibilidade se assenta em vários privilégios de agenda. O chefe do Executivo tem a iniciativa legislativa preferencial. Isto é, se ele se mostra disposto a implementar sua agenda legislativa, tende a dominar a pauta de deliberação no Congresso, deixando pouco espaço — em geral não superior a 20% — para as propostas do próprio Poder Legislativo. A presidência tem exclusividade de iniciativa em vários campos, como o orçamentário. Tem a capacidade de determinar a tramitação em urgência de seus projetos, portanto, a precedência na deliberação das proposições de sua autoria que considera prioritárias. A primeira faculdade, de preferência, é genérica; a segunda, específica, aplica-se ao que é prioritário. Tem o poder de legislar por decretos e medidas provisórias. E tem o poder de veto. Não é uma lista exclusiva, mas contém os elementos mais decisivos na atribuição de maior poder de agenda ao presidente do que ao Congresso.
O que limita esse poder quase absoluto de agenda da Presidência, no presidencialismo de coalizão brasileiro? A coalizão, os mecanismos contramajoritários de freios e contrapesos, como o controle jurisdicional de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal, o controle de contas pelo TCU, a defesa da probidade administrativa pelo Ministério Púbico, entre outros. No plano político, o fator decisivo que qualifica o poder presidencial é a disposição e a capacidade de formar uma coalizão majoritária, o mais homogênea e compacta possível dado o grau vigente de fragmentação partidária, e compartilhar com ela parte os bônus decorrentes desse poder. No plano substantivo, a principal condicionante é ser capaz de formular uma agenda que, respeitando suas preferências ideológicas, expresse a pluralidade de interesses presentes na maioria que o elegeu.
Na conjuntura atual, estamos vivendo o período seguinte a uma ruptura político-eleitoral, que desestabilizou nosso modelo político, na versão da Constituição de 1988. Tratei da ruptura político-eleitoral, que desfez o padrão de disputa bipartidária pela presidência entre PT e PSDB, com dominância do primeiro, e a competição multipartidária nas proporcionais, visando à maximização de bancadas para formar a coalizão de governo, em "Polarização radicalizada e ruptura eleitoral"1 e em "Eleições Disruptivas". Mas houve, também, uma ruptura político-ideológica muito significativa. Com a polarização extremada, a vitória de Bolsonaro levou à Presidência, pela primeira vez, uma agenda antagônica tanto à adotada pelo PSDB nos governos FHC — uma terceira via social-liberal — quanto à do PT — social-democrática, preservando partes da pauta social-liberal anterior. Adicionalmente, o atual mandatário rejeita e antagoniza as condições institucionais do modelo político, por confundi-las com práticas de clientelismo e corrupção. As áreas substantivas de divergência absoluta são aquelas mais sensíveis à interpretação ideológica, direitos humanos, liberdade de expressão e cátedra (educação, ciência e cultura), meio ambiente, "minorias", limitação de posse e porte de armas, aborto.
Os problemas maiores começam pela recusa do presidente Bolsonaro em governar de acordo com o modelo institucional, adotando novos critérios de formação da coalizão, sem toma-lá-dá-cá espúrio e sem corrupção. Prefere governar como presidente minoritário, negociando — com enorme dificuldade — maiorias eventuais e casuais e apelando à sua — declinante — base social para pressionar o Congresso. Agravam-se os problemas com sua preferência por uma agenda estreita, miúda, que representa apenas o núcleo minoritário dos que o elegeram. O quadro de complicações se completa com um presidente de mentalidade autoritária, arroubos populistas, politicamente fraco, que usa os poderes presidenciais com imperícia.
Presidente minoritário, em uma relação estressada com o Congresso, recorrendo a seus poderes de agenda e decreto com imperícia e estreiteza de objetivos, convocando sua base social às ruas, em meio à qual sobressaem grupos que atacam as instituições republicanas, namora — para usar um termo do seu vocabulário — a instabilidade política crescente. Abre uma larga brecha para a iniciativa do Legislativo, transferindo para ele, inadvertidamente, parte do poder de agenda. Aqueles setores unidirecionados, como os que só miram o curto prazo e, no momento, a reforma da previdência, vêem, com alívio e esperança, o que chamam de protagonismo do Legislativo. Tratei desse protagonismo em "O mito do Legislativo como agente principal no presidencialismo".Não percebem que, no contexto de relações crispadas, como no momento, a maior parte do ativismo legislativo tende a ser retaliatório. O protagonismo do Legislativo manifesta-se como crise, não como alternativa funcional, mesmo se permite a aprovação de uma ou outra medida relevante.
De fato, as derrotas recentes de Bolsonaro no Congresso têm essa natureza retaiatória. Primeiro, o maior engessamento orçamentário, ampliando a faixa impositiva das liberações de recursos, numa tentativa de travar a discricionariedade do presidente na alocação dos recursos orçamentários, em retaliação à negativa de negociar emendas. Tratei extensamente desse poder discricionário do presidente sobre o orçamento e o gasto público e suas disfuncionalidades em Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Trajetória do Modelo Político Brasileiro.2Adicionalmente, aumenta a tendência de recurso ao decreto legislativo, para barrar decretos presidenciais que avançam sobre as atribuições do Congresso. Acaba de acontecer com o decreto liberando a posse e o porte de armas. As mudanças nas regras, sobretudo nos prazos, de exame das medidas provisórias, limitarão de forma não desprezível esta prerrogativa presidencial. Acopladas às mudanças que já haviam sido feitas em períodos anteriores, dificultam muito a aprovação de MPs mais controvertidas, caso da maioria daquelas assinadas por Bolsonaro.
Presidente politicamente fraco, minoritário, com atitudes atritosas com o Congresso, insistindo em uma agenda unilateral e pouco representativa da maioria eleitoral que eventualmente o elegeu, com a popularidade em queda, tende a ter poder decrescente de atração das forças políticas. O mais provável é que o quadro evolua para o afastamento dessas forças políticas, que passam a gravitar em torno de outras lideranças políticas. Isso já começou a acontecer. Daí o poder de atração do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e, até, do presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Maia não era uma liderança forte, antes do novo governo. No vácuo gerado pelo presidente e pela demissão eleitoral de muitas lideranças, cresceu. Alcolumbre, em condições normais de temperatura e pressão não chegaria nem à presidência das comissões-chave do Senado. Preside a Casa e começa a se constituir em um polo de atração. É, neste mesmo sentido, sintomática a aglutinação de uma maioria pelo senador do PSDB, Tasso Jereissati, ara salvar o marco regulatório do saneamento. Ele coordenou, com sucesso, a aprovação, em regime de urgência, do marco regulatório para o saneamento básico, em lugar da MP presidencial com o mesmo objetivo, que caiu por decurso de prazo. Uma matéria típica de política pública, em uma área de déficit vergonhoso para um país do porte do Brasil, que o Executivo foi incapaz de articular e terminou conduzida por um senador.
A judicialização tornou-se outro fator de limitação do poder presidencial. O caso, mais recente, é o do decreto que extingue conselhos na administração federal, alguns essenciais, como o que regula Internet.
Há muito fio desencapado nessa transição pós-ruptura político-eleitoral. Basta juntar três e se terá um curto-circuito institucional capaz de comprometer a governabilidade. Houve a ruptura do quadro político-institucional anterior, mas não houve nem reforma, nem substituição do modelo político. Portanto, ele está falhando serialmente. No momento, está em estado disfuncional. Algumas medidas mais técnicas ou de necessidade urgente, com pouca perda para as bases dos parlamentares, pode passar. Mas há paralisia crescente e áreas essenciais de governo totalmente paralisadas sob comando inepto, sem base política, como na Educação. Um presidente minoritário e com mentalidade autoritária em atrito com o Legislativo e criando antagonismos plurais na sociedade representa risco presente e iminente de crise de governança. Ele descontenta mais do que satisfaz, como mostram as pesquisas de popularidade. Perde recursos de poder, no movimento de redução dos poderes presidenciais pelo Legislativo e pelo Judiciário. Se as análises de especialistas competentes e de variada tendência estão certas, este é um quadro premonitório de crises de governabilidade.

1. Sérgio Abranches — "Polarização radicalizada e ruptura eleitoral", em Sérgio Abranches e outros — Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje, Companhia das Letras, 2019, pp 11-32.
2. Sérgio Abranches — Presidencialismo de Coalizãoi: raízes de trajetória do modelo político brasileiro, Companhia das Letras, 2018.

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