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quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Identidade e Identitarismo - Edmar Bacha, Eduardo Gianetti e Antonio Risério(Academia Brasileira de Letras)


Identidade e Identitarismo

Academia Brasileira de Letras, 14/06/2023

Sob a coordenação de Edmar Bacha, com a participação de Eduardo Gianetti e Antonio Risério.

https://www.youtube.com/watch?v=RpIXowLAgxs

Identidade e Identitarismo" foi o tema do debate dessa semana do ciclo “Ponto e Contraponto – discursos em tensão”, que ocupará o Teatro R. Magalhães Jr. durante o mês de junho. O Acadêmico Eduardo Giannetti e o antropólogo Antonio Riserio, que participou de forma online, discutiram, entre outros temas ligados ao assunto, a fronteira entre identidade e identitarismo. 


segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

2021, o ano Merquior (2): Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras

 

Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, 11/03/1983

Nos 17 lustros de vida desta egrégia Companhia, a Cadeira que, em vossa magna indulgência, houvestes por bem confiar-me só contou três ocupantes: o Conde Afonso Celso (1897-1938), o Professor Clementino Fraga (1939-1971), o Embaixador Paulo Carneiro (1971-1982). Um espírito irônico seria tentado a dizer que, nesta Poltrona, assenta-se com demasiada convicção a crença na quimera da nossa imortalidade... Todavia, a densidade moral e humana da Cadeira 36 sempre andou na razão inversa da demográfica, e no modelo de meus predecessores há muito mais a imitar do que a mera longevidade.

Pedia Pope que, no crítico, não se perdesse o homem: “[...] nor in the critic let the man be lost!” Deixai-me seguir o preceito do poeta e, antes mesmo de referir qualquer traço da obra desses autores, lembrar aqui que eles foram não apenas três homens de bem, senão também de caráter – de caráter posto à prova em momentos diversos –, mas igualmente decisivos, dessas três vidas tão exemplares quão gloriosas. Já advertia o romancista que, em nossa época, o que falta não são os homens de ação e sim as ações de homem. Pois bem: essas ações, Afonso Celso, Clementino Fraga e Paulo Carneiro não se eximiram de praticá-las, quando os tempos se tornaram desafio. Logo lhes recordaremos a têmpera, ao evocar-lhes o temperamento intelectual.

Desta Cadeira de profícuos provectos, o Patrono, por contraste, morreu bem jovem. Foi ele Teófilo Dias (1854-1889), o poeta das Fanfarras (1882), livro em que o despudor antirromântico refletia o trato com a superfície das Fleurs du Mal, e no qual figura um poema antológico, “A Matilha”, assinalado pelo outro Teófilo, Teófilo Braga, e não desdenhado por Manuel Bandeira na seleção – Poesia do Brasil (1963) – em que me deu a honra, nos meus primeiros passos de Crítica, de secundá-lo. A Teófilo Dias se aparentava, como protoparnasiano, o poeta Afonso Celso, embora com musa de mais recato, mais afeita ao intimismo de Gonçalves Crespo que à sensualidade de aparato. Daí a escolha do sobrinho de Gonçalves Dias, desaparecido com o Império, para padroeiro desta Poltrona.

Sobrinho de Gonçalves Dias, encaminhado no ensino da Corte pela mão de Benjamin Constant, e casado na grei dos Andradas, Teófilo Dias nos faz pensar que a Cadeira 36, à força de resistir à Parca, como que buscou compensar a pequena galeria de seus ocupantes por uma espécie de nexo simbólico, tecido na biografia dos que a ela se associaram, com os próprios numes tutelares da nacionalidade. Assim, se, na vida do Patrono, se entrelaçam os vultos do Patriarca da Independência, do primeiro poeta central do Brasil soberano e do fundador da República, o quadro se completa com as sombras de Oswaldo Cruz, a cuja plêiade de diletos discípulos pertenceu o jovem Clementino Fraga, de Caxias, em cuja estirpe se casou Paulo Carneiro, e de Rondon, que foi seu padrinho na Igreja Positivista. Que secreta e harmônica magia, nesse pano de fundo biográfico, verdadeiro compêndio de brasilidade!

“Brasilidade”, bem o sabeis, é vocábulo criado por Afonso Celso (1860-1928). Polígrafo de valor, o futuro conde papal começou pela Lírica e a Oratória parlamentar. Em 1881, mal completa a maioridade, sai deputado pela lei Saraiva, que conjugava a eleição direta com o retorno ao sistema distrital, a que só agora forcejamos por voltar. Filho de um dos maiores próceres liberais do fim do Segundo Reinado, declara-se republicano e é, na Câmara de 1886, o único abolicionista confesso. Mas eis que a queda do Império o torna monarquista, em parte por fidelidade a seu pai, o visconde de Ouro Preto, estadista dos mais vilipendiados no início do novo regime, e em parte por altivo repúdio ao adesismo generalizado da classe política. Com sarcástica dignidade, resume o sentido de sua conversão:
   
Manifestei-me outrora republicano e presentemente monarquista. Modificaram-se-me as convicções. Deu-se comigo o mesmo que se deu com a quase totalidade dos políticos ora figurantes. A diferença consiste em que o meu republicanismo terminou no momento em que o deles emergiu, isto é, a 15 de Novembro.
   
A bravura de Afonso Celso recusava o conselho de Maquiavel: stà con chi vince! Quixotescamente, decide, como Eduardo Prado e alguns poucos mais, fustigar nossa vitoriosa fronda pretoriana (a expressão é de Sérgio Buarque de Holanda) por meio de “guerrilhas” jornalísticas – título com que, efetivamente, coligirá, em 1895, seus artigos antirrepublicanos.

Jornalístico é, de resto, todo o estilo de Afonso Celso, inclusive nos períodos breves de seu gráfico memorialismo (Oito Anos de Parlamento, Vultos e Fatos). A diferença entre o Jornalismo e a Literatura, zombava Oscar Wilde, é que o primeiro é ilegível, e a segunda não se lê... Pois Afonso Celso compôs artigos altamente legíveis que, hoje, se deixam percorrer como Literatura da boa. Relede, por exemplo, o retrato de Nabuco em Oito Anos de Parlamento: não cede, na sua precisão evocatória, a vinhetas que o próprio modelo nos legou, no seu primoroso Um Estadista do Império. Como seus dois sucessores nesta Casa, Afonso Celso possuía um estilo eminentemente verbal que, longe de ser verboso, refletia da oralidade o hábito da fluência elegante, acostumada ao adjetivo definidor e ao ritmo vivaz da frase.

Muito haveria que falar sobre o homem, o escritor e o líder cultural. Sobre o grande viajante, que palmilhou (coisa rara na época) nosso hemisfério e não só a culta Europa e acabou sendo instado, em Salt Lake City – belo homem que era – a render-se à prática da poligamia... Sobre o ficcionista e o copioso poeta sentimental. Sobre o intelectual católico, que, em suas próprias palavras, pertenceu apenas ao partido de Cristo. Sobre o operoso presidente, por todo um quarto de século, do Instituto Histórico, precursor operoso do descortino e dedicação de Pedro Calmon. Mas prefiro despedir-me de meu Fundador, lembrando nele o promotor da Ação Social Nacionalista e o criador do ufanismo. Numa época em que nacionalismo não era xenofobia, nem arte de inventar bodes expiatórios para nossos erros e falhas, e sim empenho de valorização do nosso passado e da nossa raça frente à descrença na viabilidade do Brasil e nas virtualidades de seu povo, Afonso Celso, em pleno quarto centenário do Descobrimento, lançou seu breviário patriótico – Porque Me Ufano de Meu País. É impossível não aproximar esse ufanismo de 1900 do brasileirismo de 22. Ao ensaísmo dos modernistas, coube desenvolver numa dimensão analítica a mensagem animadora de Afonso Celso. Mensagem na qual o Gilberto Freyre de Ordem e Progresso não vacila em reconhecer um “corretivo” para o desprezo que outrora acometia os brasileiros, ao refletir sobre as suas origens étnicas e históricas.

Clementino Fraga (1880-1971) inaugura na Cadeira 36 e reforça na Academia uma valiosa tradição: a aliança de Ciência e Humanismo, que Paulo Carneiro tão bem saberia prolongar. Filho de modestos agricultores do Recôncavo, o moço Clementino viveu numa Salvador onde as aulas de Ernesto Carneiro Ribeiro, o filólogo e contendor de Rui, se alternavam com a volúpia da vida praiana, sem esquecer aquele gosto pelas festas populares a que só a Bahia sabe dar uma aura simultaneamente cósmica e telúrica. Imaginai uma vocação de “capitão de areia” que fosse ao mesmo tempo aluno brilhante, clara promessa intelectual: aí tendes, em síntese, a infância feliz de Clementino, entre livros e saveiros.

Na minha adolescência, conheci vários monumentos de Salvador pela mão de seu irmão Artur Fraga, destacado comerciante daquela praça e pude perceber que o amor ilustrado à decana das cidades brasileiras era, entre os Fraga, uma virtude de família. Como o é no mais antigo de meus amigos e mentores baianos: Luís Viana Filho.

Assessor de Oswaldo Cruz na epopeia sanitária do governo Rodrigues Alves, amigo e admirador admirado de Carlos Chagas e Miguel Couto, príncipe dos esculápios de sua terra na segunda década do século, douto e querido lente das escolas médicas da Bahia e do Rio, Clementino enfrentou, com a maior valentia, no crepúsculo da República Velha, o retorno da febre amarela à capital do País, agora em forma insidiosamente epidêmica. Paulo Carneiro, em seu discurso de posse, traçou com mão de mestre o dramático alcance dessa batalha, conduzida por Clementino Fraga na qualidade de diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública, cerca de dez anos antes de ocupar a Secretaria de Saúde do então Distrito Federal, na gestão do Prefeito Henrique Dodsworth.

Clementino Fraga foi um representante exponencial de uma espécie ora julgada por muitos em vias de extinção: a raça dos médicos cultos, íntimos do pensamento e das Letras. De Francisco de Melo Franco e Manuel de Macedo, o médico que nunca clinicou, ao superclínio Luís Delfino e a Afrânio Peixoto; de Jorge de Lima, José Geraldo Vieira e Peregrino Jr. a Guimarães Rosa e Pedro Nava, vários foram os doutores que enriqueceram deveras, em todos os seus períodos, a nossa Literatura. E, mesmo aqueles que não cultivaram o verso ou a ficção, contribuíram em alto grau para a excelência da Crítica, do Ensaio e da Oratória, ainda quando ilustrar esses gêneros lhes fosse uma projeção da atividade científica: se o crítico Afrânio Coutinho trocou muito moço a Medicina pela anatomia da forma literária, aí estão Deolindo Couto e Carlos Chagas Filho para mostrar que o bem escrever e o comércio com as humanidades não são apanágio dos literatos puros. A prosa tersa, frequentemente irônica, de Clementino Fraga, repassada de humanismo experiente, pertence a essa linhagem, que seus filhos Hélio e Clementino prolongaram entre a cultura médica do Rio de Janeiro.
   
   
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Conheci Paulo Carneiro na Paris pré-maio de 1968; pela mão de Guilherme Figueiredo, ao tempo da marcante embaixada de Bilac Pinto. Logo fiquei cativo da excepcional fidalguia do seu trato, sempre manifesta em ocasiões sociais na embaixada, na UNESCO, ou na companhia de outros aristocratas do espírito de frequente passagem por Paris – um deles, velho amigo de Paulo Carneiro e como ele, veterano das lides da UNESCO: esse alto poeta e sábio pedagogo que se chama Abgar Renault. Outro, o historiador e biógrafo Francisco de Assis Barbosa, com quem muito conversei, desde esse tempo, sobre duas gerações: a de Paulo Carneiro e a de seus pais, os positivistas da nossa Belle Époque.

Como resistir ao encanto do parisiense chevronné, fino gourmet e consumado esteta, que se dava ao trabalho de apresentar ao terceiro-secretário ainda nas fraldas da carrière alguns dos templos da gastronomia da Rive Gauche? Como não sucumbir ao sortilégio de sua conversa ao mesmo tempo amena e filosófica? O terceiro-secretário, na instintiva petulância da juventude, pensava que sabia tudo, ou quase; o embaixador, ainda vigoroso no limiar da velhice, sabia que saber é sobretudo conhecer quanto se ignora. No entanto, quanta aceitação o primeiro encontrava no segundo, ao sabor das tertúlias provocadas pela voga estruturalista, ou pelo refluxo dos événements de Maio!

Por vezes, na Maison de l’Amérique Latine ou em outra sala de prestígio, Paulo Carneiro nos brindava com uma palestra. Conferencista nato, seu domínio do francês era um objeto legendário da admiração de sucessivas gerações intelectuais e diplomáticas. Ouvi-lo, na sua perfeita elegância de dicção e exposição, equivalia a concordar com o aforismo inglês: o bom poeta põe um mundo em poucas palavras; o bom orador, de poucas palavras extrai um mundo.

“Quem nada tem a dizer”, pensava Bernard Shaw “não tem nem pode ter estilo”. Paulo Carneiro tinha sempre muito a dizer, conforme é fácil concluir ao mero manuseio de seu livro-suma: Vers un Nouvel Humanisme, editado por Pierre Seghers em 1970. Este orador, que tinha o gênio da comemoração, jamais se perdia na palavra fútil. Assim punha ele no mais mundano dos gêneros literários – a conferência extracurricular – uma constante substancialidade de pensamento, sem qualquer laivo de oportunismo intelectual e, em particular, sem a mínima veleidade de seguir as modas ideológicas reinantes. Pouco ou nada lhe importavam os decretos da haute couture do espírito, os ucasses dos gurus germanopratinos; e, quando se abalava a comentar algum, era única e exclusivamente em função do que houvesse de autenticamente relevante na sua obra, para além de todo modismo. Foi com esse discernimento que se interessou, por exemplo, pela renovação da antropologia devida a meu mestre Lévi-Strauss, sobre cujas afinidades com certos aspectos do Positivismo Paulo Carneiro discreteava com especial sagacidade.

Pronunciei enfim a palavra: Positivismo. Paulo Carneiro foi, todos o sabemos, o último grande apóstolo da fé comteana – no Brasil e na França. Falar dele sem falar nela seria omitir o perfil mais próprio de sua fisionomia intelectual e moral. Permiti, portanto, que vos diga duas ou três coisas sobre o que foi – o que representou – o Positivismo entre nós.

Do Positivismo Brasileiro, já se disse que foi “a vocação espiritual mais sincera e mais heroica” de nossa Cultura. Sabeis de quem são esses superlativos? De algum idólatra, decerto, pensarão alguns. Engano – são de um não positivista, cético à Renan na mocidade e católico convicto no outono de seus anos: ninguém menos que Joaquim Nabuco. É que não escapou a Nabuco o sentido genuinamente espiritual da mensagem de Comte e, sobretudo, da prática de seus maiores discípulos tropicais – os positivistas brasileiros das três primeiras gerações republicanas. Não lhe escapou a estatura moral dessa espiritualidade sem transcendência, que foi sem vacilação abolicionista, republicana, socialíssima sem ser socialista, profundamente humanista e visceralmente pacifista, tudo isso em meio a um ambiente viciado pelas formas mais estéreis e predatórias de individualismo e autoritarismo. Pois o Positivismo foi principalmente um momento de vertebração ética de nossa consciência social. Daí o acendrado ascetismo (logo notado por Nabuco) de seus fundadores, Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Daí, quem sabe, nossos comtistas terem sido mais ortodoxos que os próprios epígonos franceses de Comte e terem dado tanta ênfase – exceto entre os castilhistas – ao tema da “religião da humanidade”.

Não disponho de tempo, nem vós, certamente, de paciência que me permita evocar aqui, em sua plenitude, a configuração ideológica do Positivismo. Bastará, a rigor, esboçar uma distinção: a diferença entre o Positivismo-clima e o Positivismo-seita. O primeiro foi uma atmosfera mental, na verdade o substrato comum do que já se chamou com acerto de Ilustração brasileira, e corresponde, na história de nossa Cultura, à época parnasiano-positivista. Desse clima ideológico, andou impregnado, nos anos 80, Rui Barbosa, e na dobra do século, Euclides da Cunha.

Já o Positivismo-seita foi algo mais específico: uma espécie de teocracia leiga, caracterizada, no caso brasileiro, pela mais estrita ortodoxia. Josué Montello, em página recente, exumou deliciosa anedota, que bem retrata o purismo doutrinário dos positivistas do Apostolado, no Rio de Janeiro. Naquele tempo, era corrente distinguir-se o ortodoxo do simpatizante. Só que não se dizia simpatizante e sim “simpático”. Um belo dia, Teixeira Mendes, santo homem proverbialmente distraído, demandando o templo positivista, perdeu-se no dédalo das ruas pecaminosas da Lapa. Uma mulher-dama, debruçada de uma sacada, põe-se a chamá-lo: “Vem cá, simpático...” Ao que nosso apóstolo, indignado, prontamente replica: “Não sou simpático, minha senhora – sou ortodoxo!”

Minha educação secundária ainda recolheria – no Instituto Lafayette, criatura do positivista Lafayette Cortes – os últimos clarões desse ethos altruísta e generoso, que unia amor ao saber e amor ao próximo, fundindo assim o melhor do Cristianismo com o melhor da Ilustração. O Positivismo foi a tentativa mais consistente de alcançar uma síntese entre Iluminismo e Romantismo, razão crítica e sentimento comunitário. Por aí se explica sua voga no anteontem de nossa história – naquele Brasil que era, no dizer de Manuel Bonfim, pouco mais do que um mundo de escravos dominado por um mundo de ignorantes: um meio social por definição supercarente do hábito do conhecimento e da vivência da comunidade.

Nada mais fácil que caricaturar os excessos doutrinários de Comte, o mimetismo de suas obsessões litúrgicas, o anacronismo de tal ou qual ponto de seu credo epistemológico. Bem mais remunerador, entretanto – hoje que já dispomos da necessária distância histórica para compreender o fenômeno positivista – é procurar entendê-lo como um nobre esforço para levar a sério o terceiro mandamento da Revolução Francesa, demonstrando que a síntese das duas tendências dominantes do mundo moderno, liberdade e igualdade, passa, necessariamente, pela lúcida mediação do dever e sentimento de fraternidade.

Da liberdade e da igualdade, nossos positivistas não descuraram nem um pouco. Pregaram a liberdade de opinião e de confissão religiosa, combatendo com empenho as ameaças à livre expressão dos católicos e monarquistas. Insistiram na liberdade de profissão, como se pressentissem que os séculos marchavam para o despótico e desacreditado formalismo da “sociedade de diploma”. Defenderam, quase sozinhos, o direito de greve e a humanização da condição operária. Compreenderam o papel social da família, valorizaram a mulher e enalteceram o apego à pátria sem nenhuma concessão ao Nacionalismo estreito. Mas foi certamente seu senso único e ativo de fraternidade que levou o estudante burguês Paulo Carneiro, bisneto de notáveis do Império, a viver, por todo um ano, como aprendiz de ferreiro no Engenho de Dentro.

Meio século mais tarde, ao escolher uma epígrafe para seu livro, ele se lembrou da Segunda Epístola de São João: “[...] não amemos de palavra nem de língua, mas por obra e em verdade.”

Mas o aprendizado social não era, para o filho do doutor Mário Barbosa Carneiro, modelo de servidor público da nossa Primeira República, mera efusão sentimental. Antes se conjugava com o desabrochar de uma autêntica vocação de pesquisador, que em breve floresceria no viveiro científico do Instituto Pasteur, onde o químico Paulo Carneiro realizaria suas experiências com o curare. O brilhante aluno da Politécnica, pupilo de Julio Lohmann, tinha encontrado seu caminho. E, pela mesma época, veraneando no vale de Itaipava, ganhou o coração da jovem e bela Corina de Lima e Silva, sua futura mulher e mãe de seus dois filhos, Beatriz e Mário. Consta que Tennyson seduziu sua companheira desfechando-lhe à queima-roupa, num desses bosques mágicos do sul da Inglaterra, a pergunta irresistível: “você é uma náiade ou uma dríade?...”. Suspeito que o encontro de Paulo e Corina, o sedutor e a ninfa, não terá sido muito diverso.

De volta ao Brasil, após seu estágio inicial em Paris, Paulo Carneiro penetra na casa dos trinta, conquistando garbosamente a livre docência de química geral na Escola Politécnica – e mergulhado de peito aberto na vida pública. Mas esse filho do século não estava destinado à política e sim à “ação” pública (e quantas vezes as duas são antônimas!), à prática destemida do “reformismo ilustrado”. Seus maiores esforços se resumem em duas memoráveis campanhas. Mil novecentos e trinta e três: Juarez Távora, sucedendo a Mário Barboza Carneiro na Pasta da Agricultura, convida o filho de seu predecessor para, como cientista, assessorar o gabinete do ministro. Delegado brasileiro à conferência preparatória do III Congresso Internacional de Indústrias Agrícolas, realizado em Paris, Paulo Carneiro se bate contra a política de destruição de estoques – inclusive do nosso café – e concita as autoridades econômicas a adotarem formas racionais de aproveitamento dos produtos em superprodução. Esse inconformismo do jovem cientista contra a economia selvagem daqueles anos de crise prefigurava, em sua humanitária preocupação com o desemprego, certos aspectos da visão reformadora de Keynes. O positivista afeito à consciência dos problemas sociais se sentia desinibido para desobedecer aos tabus do laissez-faire e via mais longe do que os gestores do capitalismo em crise.

Em breve, essa audácia intelectual se completaria, na trajetória de Paulo Carneiro, com seu momento de maior coragem moral. Refiro-me – já o adivinhastes – aos nove meses em que ele esteve, em 1935, a convite do governador Carlos de Lima Cavalcanti, à frente da Secretaria de Agricultura do Estado de Pernambuco, com o mandato expresso de remodelá-la. A determinação com que o novo secretário equacionou o problema da subnutrição no Estado cedo o levou a propor medidas de reforma agrária, abrangendo a desapropriação das reservas florestais e dos latifúndios incultos, para que fossem explorados em regime de economia mista.

Tanto bastou para que se assanhasse contra ele, indignada e intransigente, a oligarquia rural da velha província. Paulo Carneiro lutou. Debateu na Assembleia, apelou para o clero, argumentou pela imprensa – tudo em vão. Debalde, os jornalistas independentes da época lhe prestaram seu concurso. Um deles, particularmente intimorato em ano tão agitado de nossa História, pois que marcado pelo embate do comunismo primário e do anticomunismo não menos crasso, não hesitou em prevenir: “Creio que o secretário de Agricultura de Pernambuco, Sr. Paulo Carneiro, vai ser tachado de vermelho, só porque voltou os olhos para os mocambos e quis melhorar a sorte dos operários das usinas e dos engenhos, que se alimentam de farinha e rapadura.” E o mesmo artigo – publicado no Diário da Noite em outubro de 1935! – advertia que a justiça social, além de perfeitamente cabível nas instituições liberal-democráticas, serviria de barreira à violência das massas oprimidas. Quereis o nome do autor? Ali está ele: era Austregésilo de Athayde.

Mais de trinta anos depois, o conceito social de propriedade da terra finalmente vingaria entre nós, em tácita homenagem a pioneiros como Paulo Carneiro. É suficiente lembrar que, somente num ano – 1981 – o Governo Federal distribuiu títulos de propriedade agrária abrangendo uma extensão total superior à área de Portugal: mais de 100 mil Km2.

Não foi esta a última cruzada de envergadura a que se dedicou Paulo Carneiro, como cientista militante. Citarei apenas mais uma: seu bom combate pela abordagem científica da Hileia Amazônica, desenvolvido na UNESCO, em 1946 – o primeiro ano de sua longa e fecunda gestão como delegado (ministro e depois embaixador) do Brasil junto ao braço educacional, científico e cultural da ONU.

Mas não antecipemos. A metamorfose definitiva de Paulo Carneiro no maior diplomata cultural latino-americano do nosso tempo data do pós-guerra. Antes dela, no clima carregado do período pré-bélico, o químico voltou às suas pesquisas no Instituto Pasteur, enquanto o jovem intelectual estreitava relações com luminares do pensamento europeu e se ligava, com filial afeto, ao embaixador Sousa Dantas, o amigo de Briand, grande representante brasileiro na França da III República.

Em quase cinquenta anos de residência em Paris (interrompidos tão-somente pelo internamento em Baden Baden (com Guimarães Rosa) e em Bad Godesberg (com Sousa Dantas) por força do ingresso do Brasil no conflito, em favor dos Aliados), a projeção adquirida por Paulo Carneiro fez dele um paradigma de diplomacia. Seu prestígio pessoal na UNESCO o situa, na opinião unânime dos que bem conhecem a hoje atribulada organização, entre seus maiores patronos, ao lado de Julian Huxley, Jean Rostand, Torres Bodet...

Quando cheguei em posto a Paris, Paulo Carneiro já tinha passado o bastão da Délégation du Brésil ao renome e dinamismo de seu amigo Carlos Chagas. Por outro lado, não faltavam, na representação diplomática latino-americana, chefes de missão do melhor gabarito intelectual. Lá estavam, entre outros, Miguel Angel Asturias (a quem Jorge Amado me apresentou); o insigne historiador mexicano Silvio Zavala; o notável ficcionista cubano Alejo Carpentier... Porém, manda a verdade que se diga: para orgulho do Brasil, nenhum deles desfrutava da situação de “Paulô Carnerô” entre os intelectuais de Paris, que não são, como sabeis, apenas faróis da França e sim estrelas de todo o Ocidente. Pode admirar que o tenham escolhido para integrar o conselho executivo da UNESCO, para membro correspondente do Instituto, para presidente da União Latina e, finalmente, para liderar sua própria criação, a Academia do Mundo Latino, que também se reúne sous la coupole?

Nesta última, a seu convite, participei de um júri, tentando conferir sua láurea máxima ao outro europeu, entre nossos intelectuais de sua geração: o grave e grande poeta que foi Murilo Mendes.

O internacionalismo não era, para Paulo Carneiro como para o próprio Murilo, um cosmopolitismo oco e vazio, uma superfetação diletante. Homens como eles não concebiam a internacionalidade sem raízes. O católico Murilo em Roma, o positivista Paulo Carneiro em Paris jamais esqueceram suas origens – antes viviam a proclamá-las e ambos tomaram sempre a Cultura latina como a moldura natural e orgânica de nosso jeito íntimo de ser. Por isso, não havia neles o menor indício de desnacionalização em prol de não sei que postiça osmose às terras em que, por tanto tempo, viveram e atuaram longe do Brasil. Ninguém mais francófilo do que Paulo Carneiro – mas, igualmente, ninguém menos afrancesado. Sua ardente devoção à latinidade refletia essa postura autêntica. Latino tropical por direito de nascença, nunca o senti pedindo permissão às metrópoles do mundo românico para expressar sua latinidade peculiar – e o mesmo valia, mutatis mutandis, para o seu profundo sentido do europeu em Cultura. A assombrosa naturalidade com que Paulo Carneiro se movia no âmbito da civilização do Velho Mundo foi a melhor confirmação prática daquele agudo reparo de Borges: os verdadeiros europeus, a rigor, somos nós – os euramericanos; pois, num certo sentido, enquanto o francês é mais francês, o inglês mais inglês, o italiano mais ítalo que europeu, só nós é que conseguimos estabelecer, de chofre, uma relação espontânea com o conjunto da Cultura europeia. “Europeu”, culturalmente falando, é o euramericano culto – a figura humana de que Paulo Carneiro foi um exemplo quintessencial.

E, talvez por tê-lo sido, é que ele obteve, com tanto donaire, o que tão poucos de nós (a despeito desse potencial) alcançamos: a capacidade de levar Cultura à Europa, não de modo tópico e efêmero, mas de maneira permanente e frutífera. Foi exatamente isso o que fez Paulo Carneiro, como guardião da casa e do legado de Comte e fidelíssimo intérprete do seu pensamento.

A ele devemos os estudos mais iluminadores sobre a correspondência do filósofo de Montpellier, particularmente no tocante à elucidação de sua teoria social e política, apressadamente tachada de autoritária. E não foi menor o mérito de Paulo Carneiro ao acentuar a índole antidogmática da ideia comteana de Ciência, com seu acento na relatividade do saber. Relede o erudito ensaio sobre Galileu constante de Vers un Nouvel Humanisme: lá se mostra como Comte se recusava a absolutizar os resultados da Física Clássica. Não conheço nada mais alto, entre as várias doações do espírito latino-americano a suas culturas ancestrais, que o primoroso discurso com que Paulo Carneiro fez entrega ao primeiro-ministro Raymond Barre dos papéis de Auguste Comte, carinhosamente zelados por sua total dedicação durante décadas de quase completo descaso público. São os próprios franceses que o dizem: Paulo Carneiro transformou o culto inteligente de Comte numa admirável contribuição do Brasil à História da Filosofia Ocidental. Ao reler essa nobre alocução de oferta, redobra em mim o orgulho de figurar, ao lado de quem a proferiu, numa página acerca de brasileiros em Paris, das mais líricas nas memórias de Afonso Arinos.

Comte, o exaltador da latinidade, redivivo no cuidado de Paulo Carneiro! Percorrer, guiado por ele, as salas, os móveis, os livros e documentos da Rua Monsieur le Prince era uma espécie de rito iniciático – um suave mistério de penetração na vida, no pulso de todo um sistema de crença e análise. Revejo o vulto esbelto e encanecido do mago que presidia a visitação da aura... Que emoção não terá ele experimentado, por seu turno, quando, na glória dos seus setenta anos, dia por dia, seu cunhado Ivan Lins o recebeu neste salão – a ele, o sobrinho-bisneto de Teixeira Mendes, devotado à custódia do lar e da obra do Mestre, acolhido entre os díspares herdeiros do Bruxo do Cosme Velho pelo último abencerragem da fé positivista sob o Cruzeiro do Sul?...

Sem querer, minha lembrança voa para o gabinete de Comte; recorda o timbre lhano da voz do mago, na luz tamisada da tarde outoniça. Uma voz ática, de translúcida clareza. As longas, delicadas mãos do fino epicurista, que sublimara a vontade ascética dos pioneiros da doutrina positiva no conhecimento criterioso do prazer. O voluptuoso do belo, que retornava qual um pássaro aos rútilos tesouros de Veneza, hospedado no Hotel Gritti para melhor divisar as volutas barrocas da Salute... Em que fórmula cabe seu ensinamento?

Quem sabe em três lições. A primeira é um precioso traço antigo: a aliança de Humanismo e Ciência, tão longínqua desse rejeicionismo obscurantista em que se refugia o que hoje passa por “humanismo”. O Humanismo, senhores, esse filho excelso da razão ocidental, sofre, sob nossos olhos, uma estranha perversão. De Leonardo a Goethe, ele foi basicamente “inclusivo”: aberto ao progresso do saber e às revoluções científicas. Isso tanto era certo do Humanismo filosófico da Renascença quanto do Humanismo dos philosophes ao tempo do enciclopedismo; e também, muito significativamente, dos próprios fundadores da Ciência Moderna: Galileu foi um humanista. Só conosco é que se instala no Humanismo estabelecido o rancor contra a Ciência, a denúncia irracional e indiscriminada do progresso; só conosco é que humanistas passaram a repudiar, injustificadamente, a Cultura Moderna. A reagir, como diz Roberto Campos, ao processo histórico com acesso histérico.

Espíritos claros como Paulo Carneiro resistiram em toda a linha a essa patologia do Humanismo, buscando no evangelho de Comte uma relação incomparavelmente mais madura entre a Ciência e o humano. O próprio engajamento social – social e não sectário – dos positivistas era uma forma de praticar aquele “amoroso uso da sapiência” de que nos fala Dante e que Miguel Reale inscreveu no fecho da nossa mais densa obra filosófica, Experiência e Cultura. A Ciência não pode ser “humanizada”; porém não só pode, como deve ser humanizante: Paulo Carneiro foi um dos que melhor o compreenderam.

A segunda lição de Paulo Carneiro foi a cortesia – a civilidade e desprendimento que o levaram, entre tantos outros gestos de escol, a renunciar à sua candidatura acadêmica em favor do benemérito Anísio Teixeira. E a terceira, a suma tolerância – humana, intelectual, ideológica. Tolerância que era como que a contrapartida de sua ilimitada liberdade intelectual, fonte do seu destemor face aos “terrorismos” das vanguardas ideológicas, na Política, na Arte e na Filosofia. Juntas, essas três atitudes do espírito e da conduta trescalam o perfume mais inconfundível do ethos positivista: a soma de pietas e progresso, a vontade de humanização da humanidade emancipada. A obra, a vida de Paulo Carneiro ressumavam essa mensagem. Não sejamos surdos ao seu intenso, ao seu imenso significado.

   
Caros confrades,
   
desculpai não ter eu podido, como o Fundador desta Cadeira, pronunciar minha oração sem lê-la, fiado tão só na força da memória. Pudesse eu fazê-lo, e ela houvera sido sem dúvida mais concisa, senão mais sábia. Logo vos dareis por pagos do tédio, ao ouvir a palavra enfeitiçante de um grão-senhor do discurso – Josué Montello, amigo e companheiro de Paulo Carneiro e que tão magistralmente soube evocá-lo, na festa dos seus oitenta anos e na tristeza do seu desaparecimento.

De resto, ser recebido, na Casa de Machado de Assis, pelo líder da Literatura maranhense desperta em mim grata reminiscência: a lembrança de que foi pelas Letras do Maranhão que iniciei meu convívio com a musa morena – a Poesia do Brasil. Meu pai gostava de recitar ao filho menino os versos de Gonçalves Dias – e ao poeta do I Juca Pirama permaneço obstinadamente fiel, na galeria de minhas máximas admirações.

Ó guerreiros da Taba sagrada,
Ó guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó guerreiros, meus cantos ouvi.

Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.

O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!

Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte há de vir!

E pois que és meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoio nasceste,
Valente serás.
Sê duro guerreiro
Robusto, fragueiro,
Brasão dos Tamoios
Na guerra e na paz.

Porém se a fortuna,
Traindo teus passos,
Te arroja nos laços
Do imigo falaz,
Na última hora
Teus feitos memora,
Tranquilo nos gestos.
Impávido, audaz.

E cai como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.

As armas ensaia,
Penetra na vida;
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.

Já vedes, portanto, que minha entrada em Literatura se deu na fase oral; não exatamente naquela conceituada por Freud e, no entanto, pejada da mesma carga afetiva... Como poderia eu imaginar que, 35 anos mais tarde, me caberia o privilégio de proferir, desta tribuna, o merecido elogio de Paulo Carneiro, um sobrinho-bisneto de Ana Amélia, a Beatriz do mesmo Gonçalves Dias?... Bem vos dizia ao começar: paira sobre a vida desta Cadeira um círculo mágico de afinidades eletivas, banhadas de brasilidade.

Meu intuito, porém, foi tão só dizer-vos da admiração fascinada que Paulo Carneiro, como tipo intelectual, provocou em mim. Nem sei em que dúbia medida isso poderá valer como juízo de uma outra geração. E foi sem dúvida a toda uma geração que vos abristes, ao radicalizar, com a escolha de meu nome, o processo de renovação cronológica que iniciastes quando aqui acolhestes a ficção de Sarney e a crítica de Eduardo Portella. Possa este vosso desejo, que ora passo a partilhar, trazer-nos, com o tempo, aqueles que, muito melhor do que eu, saberão casar aqui a novidade com a continuidade e o rejuvenescimento com a tradição.

Tenho, pois, toda a consciência do que há de unilateral em meu louvor de Paulo Carneiro. Mas, afinal, que seria das academias, se elas não nos proporcionassem as ocasiões por excelência para os encontros da mente ao longo do tempo? Fontenelle aborrecia a guerra, porque ela interrompe a conversação da humanidade. Venho a vós na certeza de que o diálogo, mesmo na eventual divergência, é a via régia do conhecer e da paixão que me anima: a paixão de compreender. O prêmio da vida acadêmica não é a discordância sem discórdia? Venho, como na epístola horaciana, “[...] inter silvas Academi querere verum”: procurar a verdade entre os bosques de Academus. Entretanto, bem sei, o escritor autêntico é sempre alguém que pode converter uma resposta num enigma (Karl Kraus). Não desdenhastes minhas primeiras respostas; aceitai agora meus projetos de enigma, que vos ofereço pelo que são: meras migalhas da perene, silenciosa conversa da humanidade consigo mesma.

 11/3/1983

(segue...)


sexta-feira, 10 de maio de 2019

O legado e a atualidade de Ruy Barbosa, 170 anos - palestra de Celso Lafer na ABL

Celso Lafer fez uma palestra sobre Ruy Barbosa na Academia Brasileira de Letras, no último dia 4 de abril, que transcrevo abaixo. Ele repassa as grandes contribuições imorredouras do "homem mais inteligente do Brasil" (segundo os baianos, e provavelmente verdade quanto à diversidade de seus interesses intelectuais), do qual registro uma reflexão (ao final) sobre o ler, o pensar, o refletir e expressar ideias. Transcrevo, pois também me serve como ensinamento: 

Concluo com uma das grandes lições de Ruy na Oração aos Moços: que ele seguiu na sua vida, obra e percurso: “os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas”.

Grande Ruy Barbosa, grande Celso Lafer!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de maio de 2019


Ruy Barbosa, 170 anos: dimensões da atualidade do seu legado

CELSO LAFER
Palestra na Academia Brasileira de Letras, 4 de abril de 2019

-I-
Ruy Barbosa faleceu em 1923 e como Joaquim Nabuco, seu colega na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e confrade na Academia Brasileira de Letras, nasceu há 170 anos, em 1849. Foi um contemporâneo mais moço de Machado de Assis, a quem sucedeu na presidência da ABL, tendo proferido quando de seu falecimento, em nome de seus confrades, em 30 de setembro de 1908, o “Adeus a Machado de Assis”. Daí as convergências geracionais e de sensibilidade deste ciclo de conferências, que hoje se encerra.
Ruy teve em vida, pela sua atuação pública, uma presença indiscutível na cena nacional. Usufruiu na sociedade brasileira de seu tempo de um generalizado reconhecimento como um ícone intelectual, admirado orador e advogado, homem de notável cultura e excepcional conhecimento e domínio da língua portuguesa. Uma de suas mais relevantes dimensões é a de publicista e, como tal, é uma estrela de primeira grandeza, no que José Veríssimo qualificou de literatura de questões públicas em nosso país.
O culto a Ruy e a preservação de seus múltiplos legados se prolongou após o seu falecimento e a Casa de Ruy Barbosa, inaugurada pelo Presidente Washington Luís em 11 de agosto de 1930, vem se dedicando a manter viva a sua memória, cabendo destacar a publicação, com cuidados editoriais e prefácios de muita qualidade de destacados ruístas, das dezenas de volumes de suas obras completas, uma empreitada ainda não concluída explicitadora da amplitude dos seus interesses.
A esta ciclópica tarefa dedicou-se Américo Jacobina Lacombe que foi nosso confrade. Explica em seu À sombra de Ruy Barbosa que colocou em ordem e foi preparando para publicações o acervo de Ruy, do qual se considerava o “Guarda-mór” – uma responsabilidade que exerceu com zelo e qualidade durante décadas – na condição de Diretor da Casa de Ruy Barbosa.
A obra e a personalidade de Ruy são múltiplas na sua unidade. Comporta por isso muitos ângulos de abordagem no seu trato, que os seus estudiosos, no correr dos anos vêm analisando à luz das suas próprias preferências intelectuais. Exemplifico com trabalhos dos nossos confrades.
Foi com A vida de Ruy Barbosa que Luis Viana Filho iniciou o seu percurso de grande biógrafo, que foi a marca da sua identidade intelectual. João Neves da Fontoura, foi um notável orador que marcou a cena pública do nosso país; compreensivelmente escreveu Ruy Barbosa, Orador. Miguel Reale, meu antecessor na cadeira 14 esclareceu “A posição de Ruy Barbosa no mundo da filosofia” em consonância com o seu recorrente interesse pela história das ideias no Brasil. Elmano Cardim, foi jornalista e diretor do Jornal do Comércio e escreveu, como seria de se esperar, Ruy Barbosa, o jornalista da República. Nosso confrade Alberto Venâncio Filho, grande estudioso do pensamento jurídico brasileiro, dedicou-se à análise de Ruy Barbosa, como advogado e jurista.
O legado de Ruy Barbosa, como se vê, estimulou e inspirou muitas gerações. Qual é hoje a sua atualidade?
Há uma certa dificuldade no acesso à sua mensagem, pois o seu estilo de grande orquestrador das palavras não se amolda com facilidade aos que tem preferência pela palavra sintética. Esta dificuldade se magnificou na era digital, seja por parte dos que apreciam o sincopado não argumentativo do “twitter”, seja pelo instantâneo do metabolismo incessante das mídias sociais, que não abrem espaços para os nexos do enquadramento que caracterizou o modo de argumentar de Ruy.
Na defesa destes nexos afirmou em A Imprensa e o dever da verdade: “O discurso não entra a cair no vício de sobejo, senão quando excede a matéria do seu tema. Só principia a superabundância, onde se começa a descobrir a superfluidade.”
Há, porém, uma outra razão no plano das idéias que cabe mencionar, destacado por Bolivar Lamounier no seu livro-ensaio sobre Ruy, de 1999. Em síntese aponta Bolivar que a obra e o legado de Ruy enfrentaram depois da sua morte uma dupla desqualificação, que se aguçou com o clima político e intelectual abastecido pelos desdobramentos da Revolução de 1930. Uma proveio do pensamento autoritário da Direita, outra, do pensamento autoritário da Esquerda, ambas coadjuvadas pela ciência social acadêmica. Todas têm em comum a deslegitimação do Direito como instrumento de ação política que caracterizou Ruy, cujo pensamento foi tido como um expressão de um formalismo liberal e juridicista, desconhecedor das diferenças que separam o Brasil real do Brasil legal, o ser do dever-ser, a dinâmica das forças sociais e econômicas da infraestrutura que moldam a superestrutura.
Esta desqualificação deixou na sombra um dos grandes legados de Ruy que foi o de ter se dedicado no correr da sua vida e da sua atuação, como registra Bolivar “a formação da esfera pública e a criação institucional da democracia no Brasil”. É esta vertente e a sua atualidade que vou explorar neste texto, indicando igualmente sua coerência com a atuação internacional de Ruy que foi episódica, mas muito significativa.

-II-
Inicio com a Oração aos Moços – o discurso de paraninfo com que Ruy Barbosa brindou a turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, registrando que fazia parte do meu “léxico familiar”. A turma de 1920 foi a de Horácio Lafer que integrou a comitiva dos estudantes que foi ao Rio convidar Ruy para o paraninfado. Meu pai assistiu a formatura e guardou a lembrança do impacto que sentiu ao ouvir A oração aos Moços, que foi lida - porque Ruy, adoentado, não pode comparecer à cerimônia – pelo Prof. Reinaldo Porchat que veio a ser o primeiro reitor da USP. Soares de Melo que foi denodado artífice de Ruy como paraninfo da sua turma, relata em sua circunstanciada História da Oração aos Moços a qualidade da leitura que Porchat fez da mensagem de Ruy.
Aponto preliminarmente, também na condição de professor da Faculdade na qual Ruy estudou, que um grande marco da sua trajetória de orador, vincula-se à sua vida de estudante na Faculdade. Foi seu discurso de 8 de dezembro de 1868 – uma admirável “oraison funèbre” pronunciada na sessão cívica em São Paulo, em homenagem a José Bonifácio, o moço. José Bonifácio, que tinha sido seu professor e de Joaquim Nabuco na Faculdade de Direito de São Paulo, foi uma grande personalidade pública do Império, com o qual Ruy subsequentemente conviveu no parlamento e na vida política. Era de cariz radical, guiado pela “ideia a realizar” da participação popular das massas ativas da população – como mostrou nosso confrade Francisco de Assis Barbosa na introdução do seu Perfil Parlamentar publicado pela Câmara dos Deputados.
José Bonifácio, o moço, foi notável orador e admirável liderança da mocidade acadêmica da Faculdade de São Paulo no século XIX, como relatam Almeida Nogueira em Tradição e Reminiscências e Spencer Vampré nas Memórias para História da Academia de São Paulo. José Bonifácio foi um paradigma que influenciou Ruy ao lidar, como disse, com a sociedade do seu tempo ”pela eloquência na tribuna, pela mocidade na cátedra, pela controvérsia na imprensa, pela política no parlamento”.
Ruy dá o seu testemunho do magistério de José Bonifácio, dizendo que graças a ele como professor teve “pela primeira vez a revelação viva da grandeza da ciência que abraçávamos.” É um dado relevante de sensibilidade e memória, explicativa do porquê inicia a Oração aos Moços afirmando a importância que os seus “cinquenta anos de consagração ao Direito viesse a receber no templo do seu ensino em São Paulo, o selo de uma grande benção.”

-III-
A Oração aos Moços pode ser considerada o testamento político de Ruy. Nela fez uma avaliação do seu meio século de trabalho na jurisprudência que se conjugou aos seus cinquenta anos de serviços à Nação. Observou que atuou sem os meios e manhas da política tradicional, mas que “em compensação tudo envidei por inculcar ao povo os costumes da liberdade e à república as leis do bom governo, que prosperam os Estados, moralizam a sociedade e honram as nações”.
Entre os serviços à nação cabe destacar a ativa participação, que compartilhou com Joaquim Nabuco, na campanha abolicionista. Ruy sublinhou que a questão da escravidão era a questão das questões, a que todas as outras se subordinavam pois “encarna em si o começo da solução de todas as demais”. Afirmou: “É no direito cientificamente real de nossa época e de nossa nacionalidade que nos firmamos contra a legalidade caduca do cativeiro”.
Rui participou com destemor e precisão jurídica do movimento abolicionista brasileiro; por isso é figura de relevo do recente livro de Angela Alonso Flores, votos e balas que desse movimento trata com originalidade, baseada em abrangente pesquisa.
As limitações do tempo só me permitem apontar que entre os serviços prestados à nação por Ruy estão: seus inovadores pareceres sobre ensino apresentados na Câmara dos Deputados do Império como relator da Comissão de Instrução Pública e que estão lastreadas na sua visão do papel regenerador da educação no desenvolvimento material e moral do nosso país e de nossa gente. Conjugam-se com sua subsequente preocupação em propiciar à economia da República, a melhoria das condições de vida e progresso do povo, indo além da sua base agrícola e abrindo espaço para o desenvolvimento da indústria, o que não ocorreu no Império por muitas razões, dentre elas a escravidão.
Ruy também em conferência de 1919 na sua segunda campanha presidencial foi atento à questão social. Reconheceu progressos em matéria de direitos humanos mas propugnou pela sua abrangência por meio de sua necessária extensão aos direitos sociais.
João Mangabeira, que foi seu discípulo e teve o prazer da sua intimidade, afirmou: “na questão social ninguém no Brasil viu tão cedo, tão largo e tão longe quanto Ruy na sua época”. Foi o único, dentre os líderes brasileiros, como realça Mangabeira em Ruy, o Estadista da República, que se declarou pela democracia social. Mangabeira foi uma destacada figura pública brasileira, de orientação socialista e cariz democrático. Daí o relevo de sua afirmação, reiterada por Hermes Lima, que foi nosso confrade e também como João Mangabeira figura pública de linhagem socialista. Desta matéria tratou em texto de 1983 de maneira circunstanciada e abrangente, como era do seu feitio, nosso saudoso confrade Evaristo de Moraes Filho, inspirado pela ação e pelo convívio do seu pai, Evaristo de Moraes, com Ruy.
Em Figuras do Direito, que recolhe dois admiráveis estudos sobre Ruy, San Tiago Dantas observou que transfundir na história a força operativa de um pensamento está fora do alcance da vontade individual. Ruy, no entanto, exprimiu na trajetória da sua vida e obra, com efetiva ressonância nacional, a trama dos problemas políticos da sociedade brasileira, não só do seu tempo, mas as dos nossos dias, com destaque para os desafios da consolidação e vigência das instituições democráticas.
Ruy tinha a capacidade de sacrifício e sempre soube perder, lembra Oswald de Andrade. Assim, nas palavras do grande modernista “como a semente do Evangelho que precisa morrer para frutificar, ele sempre soube morrer pelo dia seguinte do Brasil.” Por isso a árvore da liberdade está subjacente ao seu legado. É o que vou a seguir destacar.

- IV-
O Direito representou para Ruy o caminho do seu empenho político. Este foi o de ser “o mais irreconciliável inimigo do governo do mundo pela violência, o mais fervoroso predicante do governo dos homens pelas leis”. (Discurso de 18 de maio de 1911 no Instituto dos Advogados) e um defensor do civilismo que norteou as suas duas campanhas presidenciais. O programa do civilismo, para Ruy, estava voltado para a observância das condições de justiça, e requer “o governo da lei contraposta ao governo do arbítrio”. (O Dever do Advogado, 1911).
Ruy viveu o direito, como aponta Miguel Reale, em função do agir e o seu excepcional domínio das doutrinas e das instituições jurídicas esteve a serviço da implantação das práticas democráticas republicanas em nosso país. Sustentou a defesa do positivo papel que os advogados podem exercer na vida pública de uma democracia. Para ele, “o trato usual do Direito, o hábito do seu estudo, a influência penetrante de sua assimilação, conduz a independência dos juristas “. (Discurso de 18 de maio de 1911 no Instituto dos Advogados).
A autonomia do jurista em relação ao poder é um traço marcante da personalidade de Ruy e do sentido apostolar do seu percurso. Neste sentido, no mundo do Direito brasileiro, Francisco Campos é, como aponta San Tiago Dantas, o seu oposto, por força de um realismo implacável e de um criticismo que relativiza todas as posições doutrinárias. Por isso, os seus grandes talentos de jurista estiveram à vontade para acomodar os impulsos autoritários do pragmatismo do poder. Disso são exemplos o seu decisivo papel na redação da Constituição de 1937 do Estado Novo e no Ato Institucional nº 1, inaugurador do regime implantado em 1964.
Na Oração aos Moços, Ruy engloba na missão do advogado, uma espécie de magistratura: o da justiça militante. Nisto inclui “não transfugir da legalidade para a violência”; “não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínios a estes contra aqueles”; não “quebrar da verdade ante o poder”; não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniqüidade ou imoralidade”; “não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas.”
Ruy em O Dever do Advogado, observa que a ordem legal se manifesta por duas exigências: a acusação e defesa. Esta independentemente do execrável do delito “não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira.” Cabe ao advogado ser “voz do Direito no meio da paixão pública, tão suscetível de se demasiar.” “Tem a missão sagrada, nesses casos, de não consentir que a indignação degenere em ferocidade e a expiação jurídica em extermínio cruel.” Por isso, “faz-se mister resistir à impaciência dos ânimos exacerbados, que não toleram a serenidade das formas jurídicas.
Ruy exerceu a Magistratura de Justiça Militante na sua análise do caso Dreyfus, um grande exemplo de quebra da “verdade ante o poder”. O caso Dreyfus também é um exemplo em que as circunstâncias políticas, nas quais a “paixão pública” se expressa por movimentos que obedecem “a verdadeiras alucinações coletivas”. Elas também ocorrem, como diz Ruy em O Dever do Advogado, mesmo em nações adiantadas e cultas.
O texto de Ruy é de 1895, e data do período de seu exílio na Inglaterra, a que se viu forçado pelo arbítrio da presidência de Floriano Peixoto. Foi publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro e passou subsequentemente a integrar Cartas da Inglaterra. Ruy o escreveu, como disse, por ter o caso nele vibrado “profundamente no coração a corda da justiça”. O texto de Ruy realça a importância para a convivência coletiva da legalidade ferida nas garantias processuais pelo sigilo do “huis clos”, como observou Baptista Pereira no prefácio à 2ª edição de Cartas da Inglaterra, que nele identifica uma “autópsia do militarismo”, válida também para o Brasil de Floriano Peixoto, que postergou na experiência de vida de Ruy, a vigência das garantias legais.
O texto de Ruy também corrobora a defesa que fez em 1920 sobre o dever da verdade - nos debates, nos atos, no governo, na tribuna, na imprensa – e da transparência do espaço público, pois, como afirmou, “o poder não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol”. “A política não é uma maçonaria, e sim uma liça.”. Daí a inaceitabilidade da falsificação e da mentira nas instituições (A Imprensa e o dever da verdade). Estas foram as que permearam o processo e a condenação de Dreyfus.
Ruy escreveu o seu texto no calor da hora e com base nas informações hauridas na imprensa inglesa. Foram suficientes, como o tempo demonstrou e a revisão do processo Dreyfus comprovou, para Ruy demonstrar, de maneira inequívoca, que Dreyfus fora vítima de uma flagrante denegação da justiça por total carência de devido processo legal, tendo realçado que a clandestinidade do processo o inquinava de suspeita. Entreviu que a verdadeira causa da condenação de Dreyfus foi o antissemitismo. Apontou que o processo correu no segredo de um tribunal militar e “era pleito sentenciado pela opinião pública”, registrando que esta, na França daquele momento, vivia “o espasmo do ódio insaciável” que agitava contra o acusado todas as classes da população.
Em 1919, na sua segunda campanha presidencial, Ruy, em conferência de 24 de maio referiu-se a seu texto em defesa de Dreyfus - como registra, o primeiro arrazoado jurídico escrito na discussão de sua causa – para dela extrair uma lição de civilismo, apontando que na França foi “crucificada a justiça na pessoa de um soldado pelas intrigas da política de fações”, destacando no contexto, a importância do direito, da justiça e da legalidade.
Em 1985 Ruy fez verter para o francês o seu texto, que foi publicado no Rio de Janeiro. O texto chegou às mãos de Dreyfus depois de sua liberação, mas antes de sua plena reabilitação pela Corte de Cassação, em 1906. Dreyfus, no seu livro Souvenirs et Correspondences registra que leu o texto de Ruy em 1900 identificando “no autor um discernimento notável e uma grande liberdade de espírito.”
O caso Dreyfus foi um caso rumoroso, de alcance internacional, cuja relevância Ruy anteviu desde o primeiro momento. Dividiu e mobilizou a opinião pública da França da 3ª República com repercussão na Europa. Hannah Arendt sublinha o seu alcance histórico para o século XX, considerando-o uma cristalização antecipatória, explicativa das origens do que veio a ser o totalitarismo.
Na defesa de Dreyfus alinharam-se no tempo as correntes liberais e democráticas. Neste sentido cabe lembrar que a posição de Ruy, que estava em sintonia com essa corrente, repercutiu favoravelmente na diplomacia aberta, caracterizadora da Conferência de Haia de 1907, que deu espaço ao papel da imprensa na cobertura de suas atividades. O influente jornalista William Stead que escreveu sobre o Brasil em Haia apontou que Ruy como chefe da delegação brasileira não só se impôs no âmbito multilateral, pelo seu conhecimento e combatividade em relação aos demais delegados. Sua pioneira defesa de Dreyfus, atestada pelo próprio Dreyfus, à ele deu “um cunho de distinção”, que conferiu à Ruy prestígio perante a opinião pública esclarecida que acompanhou de perto a Conferência.
Haia foi o primeiro grande ensaio da diplomacia multilateral no século XX e o momento inaugural da presença brasileira nos grandes foros internacionais.
Nela, Ruy atuou com informações sobre a cena internacional que lhe foram previamente dadas por Joaquim Nabuco e em estreita coordenação com o Chanceler Rio Branco. Foi bem sucedido porque tinha todas as qualidades para a diplomacia parlamentar do multilateralismo: o pleno domínio dos assuntos, a vocação de infatigável trabalhador e a capacidade de exprimir-se, inclusive de improviso e com perfeição, em francês - a língua oficial da Conferência – a que se conjugou a combatividade, que sempre o caracterizou, como advogado, político e parlamentar.
Ruy em Haia contestou a igualdade baseada na força e sustentou, no âmbito do Direito Internacional Público, a igualdade dos Estados. A posição do Brasil, pela sua voz, representou uma primeira formulação brasileira da tese da democratização do sistema internacional e, nesta linha, uma contestação ao exclusivismo, até então preponderante, do papel da gestão da vida internacional atribuída às grandes potências. Assim, da mesma maneira que em nosso país a sua prática de homem público e de publicista esteve voltada para a construção de um espaço público democrático, e neste contexto, o Direito foi o meio para o seu perseverante fazer político , assim também em Haia, na sua prática diplomática, voltou-se coerentemente para os males das imperfeições do sistema internacional, indicando o papel do Direito na democratização do espaço internacional.
A autonomia do jurista em relação ao poder, que caracterizou a maneira de ser de Ruy, também marcou a sua atuação na Haia. Nela encontrou o tom certo para afirmar a posição independente do Brasil, cuja especificidade era distinta, como observou, dos que imperavam na “majestade de sua grandeza” e dos que se encolhiam “no receio da sua pequenez”.
Ruy manteve a posição independente do Brasil em relação aos EUA quando este, como potência em ascensão, se alinhou com as demais Grandes potências. Relevante, neste sentido, a propósito das relações do Brasil com os EUA, o que Ruy, mais adiante, disse na sua Conferência, A Imprensa e o dever da verdade: “Não quero, nem quererá nenhum de vós, que o Brasil viesse a ser o símio, o servo ou a sombra dos Estado Unidos. Não acho que devemos nos entregar de olhos fechados à sua política internacional, se bem haja entre ela e a nossa, interesses comuns bastante graves e legítimos, para nos ligarem na mais inalterável amizade, e nos juntarem intimamente em uma colaboração leal na política do mundo. Tal é o meu sentir de ontem, e amanhã.”
 Na sua avaliação dos resultados de Haia, Ruy em discurso de 31 de outubro de 1907 fez uma observação que antecipou o tema “soft power”, que é de grande relevância para o mundo interdependente em que estamos envolvidos: ”Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca em nossos dias os povos subsistem de sua reputação no exterior”.
O tempo não me permite explorar o alcance de uma subsequente ação diplomática de Ruy que foi a Embaixada em Buenos Aires, de 1916. Nela representou o Brasil no centenário da independência da República Argentina. Os documentos desta missão foram reunidos no volume XLIII, 1916, Tomo 1 das Obras Completas de Ruy, publicados em 1981 pela Casa de Ruy Barbosa, precedida de um notável prefácio de Evaristo de Moraes Filho.
Em Buenos Aires, Ruy destacou em mais de uma oportunidade a relevância do potencial de cooperação entre o Brasil e a Argentina em uma vasta construção na ordem política, na ordem econômica e na ordem jurídica. É assim um dos importantes patronos da parceria argentino-brasileira que veio a ser, com grande atualidade, um dos temas fortes da agenda diplomática de nosso país.
Ruy também proferiu uma importante Conferência na Faculdade de Direito de Buenos Aires sobre os conceitos modernos do Direito Internacional, também conhecido como o dever dos neutros, nela analisado à luz da violência que caracterizou a 1ª guerra mundial. A Conferência de Ruy teve larga, repercussão, inclusive na França. Desta substanciosa conferência permito-me destacar como Ruy, com presciência observou que dada a “interdependência em que até as nações mais remotas vivem umas das outras, a guerra não pode isolar-se nos estados entre os quais se abre o conflito”. Sua comoção, estragos e misérias repercutem sobre a fortuna dos povos mais distantes. Neste sentido, Ruy antecipou o tema da indivisibilidade da paz que posteriormente veio a ser consagrada, depois do término da 1ª guerra mundial, pelo Pacto de Sociedade das Nações. (Art. II).
Ruy extraiu da sua avaliação sobre a guerra um papel diverso do que teve a neutralidade no passado, como examina circunstanciadamente na sua Conferência. Nas suas palavras: “A imparcialidade na justiça e solidariedade no Direito, a comunhão na manutência das leis escritas pela comunhão, eis aí: a nova neutralidade, que se deriva positivamente das Conferências da Haia, não flui menos imperativamente das condições sociais do mundo moderno.”
Haia e Buenos Aires resultam do empenho de Ruy em arguir no plano externo os méritos da domesticação pelo Direito da força e dos benefícios da juridicidade nas relações internacionais. A posição de Ruy está em consonância com dispositivos que regem as relações internacionais do Brasil, contempladas no art. 4º da Constituição Federal, entre eles a defesa da paz e a solução pacífica de controvérsias. O empenho de Ruy internacionalista guarda total coerência com a sua dedicação no plano interno em submeter a razão de Estado à razão do Direito.
São muito significativas as iniciativas e contribuições de Ruy na construção institucional do país e que perduram, com os ajustes do tempo até os dias de hoje. Ruy foi desde o tempo do Império um defensor do federalismo. Entendia que o sistema federativo era o único adaptável ao Brasil. Avaliou que a autonomia federativa dos Estados, republicanizava o país mais depressa e mais seriamente do que se imaginava, substituindo a inércia das antigas províncias. Daí a importância do seu papel na modelagem jurídica do federalismo brasileiro desde o governo provisório até a feição que assumiu na Constituição de 1891.
A criação e o papel do Supremo Tribunal Federal tiveram em Ruy o seu grande patrono. Destacou, a propósito do STF no seu discurso de posse de 19 de novembro de 1914 como presidente do Instituto dos Advogados “o direito-dever de guardar a Constituição contra os atos usurpatórios do governo e do Congresso.” Guiou-se pelo seu tema recorrente de “sujeitar à legalidade os governos, implantar a responsabilidade no serviço à nação” e opor-se “à razão de estado” como a “negação virtual de todas as constituições”.
Na Oração aos Moços aponta que “entre as leis ordinárias e a lei das leis, é a justiça quem decide, fulminando aquelas, quando com esta colidirem”. Também recomendou como paraninfo aos alunos da turma de 1920 que iriam ser magistrados “não perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito”; não cortejar a popularidade; não transigir com as conveniências; não ter negócio em secretarias; não deliberar por conselheiros ou assessores.
Cabe igualmente lembrar que Ruy, como advogado, respaldado na Corte pelo Ministro Pedro Lessa – antigo professor de Filosofia do Direito no Largo de São Francisco e membro da ABL – teve um grande papel na construção do alargamento da doutrina brasileira do “habeas corpus” como garantia constitucional, que inspirou mais adiante o instituto do mandado de segurança.
Ruy promoveu desde o governo provisório (Decreto nº 119-A, de 7/01 de 1890) a separação da Igreja e do Estado e a laicidade do Estado, consagrada na Constituição de 1891 e nas constituições subsequentes. Implantou-se deste modo uma nítida distinção entre, de um lado, instituições, motivações e autoridades religiosas e, de outro, instituições estatais e autoridades políticas, de tal forma que não haja predomínio de religião sobre a política. A laicidade não se circunscreve ao reconhecimento da liberdade de consciência, religião e culto, assinaladora do pluralismo da sociedade e um dos grandes ingredientes da tutela dos direitos humanos. Significa que o Estado se dessolidariza e se afasta de toda e qualquer religião, em função de um muro de separação entre Estado e Igreja, na linha da primeira emenda da Constituição norte-americana. Esta matriz norte-americana da laicidade, que influenciou a visão de Ruy, parte do pressuposto que a laicidade é uma característica de organização do Estado. Não implica na laicidade da sociedade civil, que é uma esfera autônoma para o exercício, sem interferência estatal, da liberdade religiosa e de consciência. Trata-se, na lição de Michael Walzer, de uma expressão da sabedoria liberal da arte da separação. Politicamente representa uma maneira de responder, no plano jurídico, aos ímpetos intransitivos da intolerância. Daí a vedação de relação de dependência ou aliança do Estado com qualquer culto ou igreja, como se lê no § 7º do artigo 72 da Constituição de 1891, que está alinhado com o artigo 19-1 da nossa atual Constituição. Por isso, num Estado laico como Ruy institucionalizou no Brasil, as normas religiosas das diversas confissões são conselhos e orientações dirigidas aos fiéis e não comandos para toda a sociedade.
Esta contribuição de Ruy para a consolidação e vigência do espaço público e das instituições democráticas em nosso país é da maior atualidade. Contém o muito presente risco do indevido transbordamento da religião para o espaço público. Tutela a finalidade pública da laicidade que é a de criar para todos os cidadãos, não obstante sua diversidade e conflitos político-ideológicos, uma plataforma comum na qual possam encontrar-se enquanto integrantes de uma comunidade política democrática.
Concluo com uma das grandes lições de Ruy na Oração aos Moços: que ele seguiu na sua vida, obra e percurso: “os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas”.
  

sábado, 13 de abril de 2019

Simon Schwartzman sobre o ensino secundario - Academia Brasileira de Letras

Cientista político Simon Schwartzman fala na ABL sobre o tema ‘Perspectivas do novo ensino médio brasileiro’

O cientista político Simon Schwartzman faz na Academia Brasileira de Letras, a segunda palestra do ciclo de conferências “A educação no Brasil de hoje”, sob coordenação do Acadêmico e professor Arnaldo Niskier. O evento está programado para o dia 18 de abril, às 17h30min, no Teatro R. Magalhães Jr. (Avenida Presidente Wilson, 203, Castelo, Rio de Janeiro). Entrada franca.
Serão fornecidos certificados de frequência.
A Acadêmica Ana Maria Machado é a Coordenadora-Geral dos ciclos de conferências de 2019.

Acadêmico Arnaldo Niskier convida para o ciclo "A educação no Brasil de hoje"
O ciclo terá mais uma palestra, dia 25 de abril, também uma quinta-feira, no mesmo local e horário, intitulada Os desafios da educação a distância, com Celso Niskier.
Schwartzman adiantou, sobre seu tema que, em setembro de 2017, foi sancionada a nova lei que reformula o ensino médio brasileiro, com a previsão de que ela deveria começar a ser implementada em 2021. Essa lei teve por objetivo lidar com o grave problema dos altos níveis de evasão e a falta de qualificação profissional para os milhões de jovens que todos anos buscam o ensino médio, mas não continuam estudando no nível superior. Ao invés de um currículo único, a nova legislação permite que os estudantes escolham um entre vários “itinerários formativos”, entre eles o de formação vocacional de nível médio que até então era tratada como formação complementar.
“Às vésperas de sua implementação, existem muitas dúvidas e incertezas sobre como esta lei será implementada. Essas incertezas têm como pano de fundo a grande quantidade de jovens que chegam ao ensino médio com graves deficiências de formação em áreas fundamentais como o uso da língua e o manejo de operações matemáticas simples. Nessa apresentação, pretendo discutir alguns dos dilemas centrais que devem ser enfrentados nesta transição, que se referem à maneira pela qual os diferentes públicos que chegam ao ensino médio devem ser atendidos, a divisão e posterior relacionamento entre a parte geral e as partes diferenciadas do novo currículo, a questão da transição entre o ensino convencional, organizado por disciplinas, e a atual proposta de organizar a educação em termos de habilidades e competências, e a questão de como lidar com o ensino técnico, ou vocacional, no contexto do novo ensino médio”, afirmou o palestrante.
O CONFERENCISTA
Simon Schwartzman estudou sociologia e ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais, tem um mestrado em sociologia pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO, Chile), e é doutor em ciências políticas pela Universidade da California, Berkeley. Nos últimos anos, tem trabalhado em temas de educação, ciência e tecnologia e políticas sociais. Foi professor da Universidade Federal de Minas Gerais, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e da Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas.
Na Universidade de São Paulo, foi professor de Ciência Política e diretor científico do Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior entre 1990 e 1994, e Presidente do IBGE entre 1994 e 1998. Foi professor visitante nas Universidades de Columbia, Stanford, California/Berkeley e Harvard, nos Estados Unidos. É membro da Academia Brasileira de Ciências, Grão Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico e Comendador da Ordem Nacional do Mérito Educativo. Seu livro mais recente é Situação e Caminhos do Ensino Médio e Técnico no Brasil, São Paulo, Fundação Santillana 2016.
Schwartzman é autor de, entre outros, Education in South America. London: Bloomsbury, 2015; Higher Education in the BRICS Countries - Investigating the Pact between Higher Education and Society (com Romulo Pinheiro e Pundy Pilay), Springer, 2015; Brasil: A Nova Agenda Social (com Edmar Bacha). Rio de Janeiro, LTC, 2011; Políticas Educacionais e Coesão Social – Uma Agenda latino-americana (com Cristian Cox), Rio de Janeiro, Elsevier; São Paulo: iFHC, 2009; University and Development in Latin America. Successful Experiences of Research Centers. Global Perspectives on Higher Education volume 14. Rotterdam: Sense Publishers, 2008; Os Desafios da Educação no Brasil (com Colin Brock), Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2005; Pobreza, exclusão social e modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo. São Paulo, Augurium Editora, 2004; As causas da pobreza, Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2004; A Escola vista por dentro, com João Batista Araújo e Oliveira, Belo Horizonte, Alfa Educativa, 2002; Bases do Autoritarismo Brasileiro, Editora Unicamp, 5ª edição, 2015; Um Espaço para a Ciência: Formação da Comunidade Científica no Brasil, 4ª edição, Editora da Unicamp, 2015e The New Production of Knowledge (com Michael Gibbons, Martin Trow, Peter Scott, Helga Nowotny e Camille Limoges, Sage,1994.
11/04/2019