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domingo, 19 de abril de 2020

Dia 20 de abril, dia do Diplomata, nascimento do Barão do Rio Branco - Paulo Roberto de Almeida (1996)

Tendo em vista a pandemia do Codiv-19, em 2020, não será comemorado neste dia 20 de abril, data do nascimento de José Maria da Silva Paranhos Jr. – futuro Barão do Rio Branco e chanceler do Brasil (1902-1912) – o tradicional Dia do Diplomata, ocasião na qual são agraciados "brasileiros ilustres" com a Ordem do Rio Branco, e tem lugar a formatura da turma deste ano do Instituto Rio Branco, ou seja, os novos diplomatas.
Estou coletando minhas obras sobre o Barão, o que informarei em próxima postagem, e já posto meu primeiro trabalho especificamente sobre nosso patrono, redigida em 1996.
Paulo Roberto de Almeida


O legado do Barão:
Rio Branco e a moderna diplomacia brasileira

Paulo Roberto de Almeida *

O Barão do Rio Branco é, incontestavelmente, um dos founding Fathers da moderna diplomacia nacional, ou talvez mesmo a única personagem histórica brasileira capaz de verdadeiramente representar, no terreno da política externa, o que poderíamos chamar de — parafraseando a imagem que Euclides da Cunha empregou para caracterizar D. Pedro II em Contrastes e Confrontos — um “epítome vivo do Brasil”. Em sua donairosa figura talhada num estilo belle époque, ele condensa, presumivelmente, o que as tradições nacionais em política internacional produziram de melhor na longa história institucional do Itamaraty. Coincidentemente, sua permanência física no primeiro Palácio que leva esse nome no Rio de Janeiro — excetuando-se a curta gestão inicial do Chanceler Olinto de Magalhães (1899-1901), que no entanto nele não residiu — confunde-se com o próprio surgimento do Itamaraty enquanto cenário da diplomacia brasileira, que foi ali forjada ao longo de sete décadas de regime republicano.

O Homem e o Mito

Figura solitária no panteão quase deserto dos 174 anos de diplomacia nacional — onde sobressaem-se, é verdade, algumas outras fortes personalidades, vindas entretanto do mundo político, como Oswaldo Aranha, Raul Fernandes, João Neves da Fontoura, Afonso Arinos de Mello Franco ou San Tiago Dantas —, o Barão é, simultaneamente, uma figura emblemática e o marco fundador de uma política externa posta manifesta e exclusivamente a serviço dos interesses nacionais. Tendo primeiro construído, segundo suas próprias palavras, “o mapa do Brasil”, ele pôde dedicar-se depois à difícil tarefa de consolidar a união e a amizade dos povos sul-americanos. Pragmático, antes de mais nada, no sentido de não ater-se a princípios rígidos de atuação diplomática — privilegiando a arbitragem ou a negociação direta, segundo o que melhor conviesse no momento em causa —, mas profundo conhecedor do direito internacional e da história e geografia brasileiras, o Barão permanece praticamente solitário nessa condição de demiurgo de nossa política externa, descontando-se, eventualmente, as míticas figuras ancestrais, mas eminentemente simbólicas, de Alexandre de Gusmão e do “Patriarca da Independência”, Bonifácio de Andrada. 
A reverência para com ele, na Casa, é de praxe, como bem sabem os poucos iconoclastas localizados (e provavelmente isolados pelos demais colegas): não se fala do Barão como de um “simples” chanceler. Ele sempre foi bem mais do que isso: rara combinação de forjador da unidade territorial brasileira e de mentor de uma diplomacia imaginativa, afirmativa e supostamente clarividente — no estabelecimento da chamada “aliança não-escrita” com os Estados Unidos, por exemplo —, o “mito” do Barão há muito extrapolou o âmbito restrito do serviço exterior brasileiro e mesmo os limites geográficos do território nacional. 
Na verdade, o mito já existia antes que sua elegante figura — quase que diretamente saída, poder-se-ia dizer, de um dos romances de Eça de Queiróz —, ocupasse durante praticamente uma década inteira (e quatro presidências) o velho Palácio do Itamaraty do Rio de Janeiro: sua recepção triunfal no porto do Rio de Janeiro, chegando de um “exílio” de quase um quarto de século na Europa para ocupar o posto ministerial oferecido por Rodrigues Alves, atestou o quanto a pátria era reconhecida ao defensor vitorioso de nossas pendências lindeiras em casos de difícil comprovação de um direito “original” ao território contestado. Exemplos de sua incrível capacidade em reverter em benefício do País casos de difícil solução pelas vias “normais” de solução de controvérsias são encontrados no encaminhamento das delimitações de fronteiras com a Argentina — em relação ao qual um primeiro acordo desastradamente costurado por Quintino Bocaiúva não tinha conseguido passar pelo crivo do Congresso — e com a Bolívia, aqui envolvendo reconhecidamente cessão e compra de território estrangeiro: combinando habilmente o recurso ao uti possidetis — em áreas cuja comprovação de posse efetiva teria sido difícil a outrém que não o eminente conhecedor dos mais diminutos recônditos da ocupação colonial lusa e bandeirante — com doses variadas de argumentação diplomática e de firme persuasão, o Barão (“mero” Consul em Liverpool no primeiro caso) assegurou para o Brasil vitórias consagradoras em dois difíceis litígios. 

Carisma e diplomacia

A figura patriarcal do “velho” Barão constitui, para a diplomacia brasileira, um excelente exemplo do que, na terminologia sociológica weberiana, chamaríamos de “liderança carismática”, ou seja, uma autoridade inconteste dotada de suas próprias fontes de legitimidade intrínseca, baseada na experiência e no saber. O Itamaraty como um todo, aliás, sempre foi afirmadamente weberiano, ainda que malgré-lui: tendo começado a funcionar sob uma sociedade manifestamente “patrimonialista”, a Casa adquiriu sua aura de prestígio sob a administração decididamente “carismática” do Barão. Neste século, ela soube acompanhar o processo de modernização do Estado, passando por diversos experimentos de racionalização burocrática — de inspiração “daspiana” ou autônoma — para afirmar sua crescente profissionalização, segundo o modelo da administração “racional-legal”, por intermédio do Instituto que leva o nome do patrono da Casa, criado em 1945. 
O Itamaraty passa e repassa, constantemente, toda a tipologia do mestre de Heidelberg, combinando carisma e poder, tradição e burocracia, segundo um modelo no qual a própria burocracia diplomática apresenta-se como carismática, em face das demais corporações do Estado: cultiva-se muito, dentro e fora da Casa, o mito da excelência. Por outro lado, ele tampouco deixa de ter uma espécie de iron cage: uma personalização extremamente rebuscada das relações de poder dificulta, em última instância, a rotinização do diplomata brasileiro, isto é, a institucionalização definitiva da carreira, esse obscuro objeto do desejo da maior parte dos diplomatas. 
Em todo caso, se alguma vez praticamos no Brasil o culto a uma personalidade política qualquer, essa palma reverte integralmente ao Senhor Barão, já que o candidato alternativo — ou melhor dito, “oficial” —, Getúlio Vargas, não pode razoavelmente ter sua preeminência histórica derivada “geneticamente” de algum entusiasmo espontâneo das “grandes massas”, sendo antes o resultado de um processo largamente conduzido a partir do alto, isto é, da própria máquina do Estado, com fins claramente orientados à popularização do estadista gaúcho. 
Em contraste com a personalidade exuberante do caudilho gaúcho, o Barão foi um “retraído” político e um homem de estudo, mais afeto aos gabinetes de leitura do que aos ministeriais: ele nunca buscou a promoção auto-dirigida ou outra causa que não a da defesa silenciosa e constante dos interesses do Brasil no exterior e no trato com nossos vizinhos imediatos. Longe dele a propaganda pessoal ou a busca de cargos políticos: seu próprio estilo de vida e necessidades familiares o teriam isolado em missões burocráticas do trabalho consular ou de representação diplomática, não fosse a lembrança benevolente dos amigos e a reputação adquirida nas negociações de fronteira a tirá-lo de postos relativamente periféricos no exterior para guindá-lo às honras de um ministério ele mesmo colocado no centro das atenções nacionais e regionais.
A despeito de sua proverbial oposição ao ingresso de mulheres e de um certo arbítrio na seleção (pessoal) dos candidatos à carrière — explicáveis porém em termos de Zeitgeist —, o Barão é parte indissociável do “inconsciente coletivo” dos diplomatas brasileiros, referência incontornável da história diplomática nacional, presença obrigatória nos estudos conduzidos em sua academia profissional — que aliás leva o seu nome e acaba de comemorar os 50 anos da formação de sua primeira turma de alunos —, uma espécie de “espírito-que-anda” nos salões e corredores do Itamaraty e paradigma incontestado da “boa” política externa, ainda que segundo os padrões clássicos, e talvez algo antiquados, da prática diplomática. Na historiografia diplomática brasileira existe claramente um a.B. e um d.B, antes e depois do Barão, mesmo se o culto à personalidade não chega às raias do sagrado. Em todo caso, nenhum “rito iniciático”, nenhuma “prova de passagem” ou teste de “idade adulta”, se pode fazer, na Casa de Rio Branco, sem algum tipo de referência, remissão, citação ou alusão ao velho Barão. Tanta unanimidade poderia fazer sorrir o incauto, um outsider pouco afeto a nossas idiossincrasias diplomáticas ou algum “estranho no ninho”, mas não causa maior espécie ou surpresa aos habitués do Itamaraty: afinal de contas, o Barão é o próprio Itamaraty e a imagem do Itamaraty só se construiu, neste século, a partir da figura e da gestão dessa personagem ímpar da transição monárquico-republicana do Brasil. No dizer de um diplomata argentino da primeira metade do século: Rio Branco “era el Brasil mismo”. Em suma, Barão só tem um em toda a história brasileira: é Rio Branco, ponto final.

Memória do Barão

Para comemorar os cento e cinquenta anos de seu nascimento, a Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, sob a presidência do Embaixador Baena Soares, ex-Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores e ex-Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos, organizou em 1995 uma primorosa exposição de fotografias, cujo sucesso se deveu muito ao entusiasmo da Chefe da Mapoteca do Itamaraty no Rio de Janeiro, Sra. Maria Marlene de Souza. Essa rica coleção fotográfica, exibida no Palácio Itamaraty de Brasília por ocasião das festividades do dia do diplomata (coincidentemente comemorado todo dia 20 de abril, natalício do Barão), serviu por sua vez de suporte iconográfico ao magnífico volume organizado pelo Embaixador João Hermes Pereira de Araujo (igualmente autor das legendas das fotos) em torno da vida de José Maria da Silva Paranhos: Barão do Rio Branco, Uma Biografia Fotográfica,1845-1995, com texto do Embaixador Rubens Ricupero.
O livro, carinhosamente preparado e editado pelos herdeiros espirituais e institucionais do Barão, corresponde inteiramente ao que dele se anuncia no título: combina com rara felicidade texto e imagem, para oferecer uma biografia ilustrada do assim chamado patrono da diplomacia brasileira. Os marcos cronológicos indicados são inteiramente preenchidos, pois que, à preciosa reconstituição do itinerário pessoal, intelectual e profissional do Barão, nos limites cronológicos de sua existência (1845-1912), segue-se uma reflexão sobre a influência de seu pensamento e ação nas décadas posteriores (o “destino do paradigma”), um capítulo comportando uma indagação pertinente, e contemporânea (“o que faria o Barão hoje?”), finalizando com uma avaliação global da grande personagem histórica (“contrastes e confrontos”). O autor da excelente biografia comentada que acompanha (ou melhor, que sustenta soberbamente) a sucessão de fotos e caricaturas coletadas especialmente para esta edição, o Embaixador Rubens Ricupero, tinha todas as qualificações intelectuais e profissionais para retraçar com maestria a vida e a obra da “esfinge Rio Branco”, segundo ele o “último grande representante da escola de estadistas do século XIX brasileiro”. 
As “afinidades eletivas” de Ricupero com a personalidade moral e intelectual do Barão o levam, aliás, um pouco mais além da mera reconstituição biográfica, já que foi ele próprio professor de história diplomática do Brasil e de relações internacionais contemporâneas, no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília. Reconhecidamente um dos melhores idealizadores e formuladores da política externa governamental — com forte ênfase na área americana — e um de seus pensadores mais abalizados, Ricupero completou, de uma certa maneira, a obra do Barão, ao contribuir, por meio de um arcabouço jurídico de notória complexidade (Tratados da Bacia do Prata e de Cooperação Amazônica, início do processo de integração Brasil-Argentina), com os processos de aprofundamento da cooperação e interdependência entre Estados que tinham seu relacionamento baseado, até então, no mero reconhecimento mútuo das fronteiras traçadas por Rio Branco. Não fosse o arriscado e talvez o inadequado da comparação, poderíamos chamá-lo de “George Kennan brasileiro”, no sentido de ser Ricupero um diplomata sobretudo conceitual, preocupado em não apenas enquadrar sua atuação profissional num determinado contexto filosófico e moral, mas também em dar-lhe uma perspectiva histórica de mais largo alcance, ao estilo da “longa duração” cara a Fernand Braudel (não por acaso, Ricupero é igualmente o presidente do Instituto de Economia Mundial, de São Paulo, que leva o nome do grande historiador francês). 
Ninguém melhor do que Ricupero poderia, portanto, apresentar de maneira inovadora os principais lances de uma vida a serviço do Brasil, assim como os elementos mais relevantes de um pensamento diplomático feito de rupturas e continuidades, de tradição e modernidade. Ele não se contenta, entretanto, em recolher episódios pessoais ou exemplos de desempenho profissional contidos nas conhecidas biografias dedicadas ao Barão — das quais as mais conhecidas são, sem dúvida, a de Alvaro Lins e a de Luiz Viana Filho —, ou os julgamentos por vezes peremptórios glanados em obras como as de Oliveira Lima, considerado uma espécie de “anti-Rio Branco”: segundo esse autor contemporâneo do Barão, “se a sua alma tinha refolhos, a sua inteligência era toda banhada em luz”. 
Ricupero oferece, antes de mais nada, uma reflexão pessoal sobre o papel do Barão no contexto histórico da diplomacia brasileira em sua época, marcada pela transição entre uma monarquia segura de si, num mundo ainda largamente dominado por realezas e sistemas dinásticos, e um regime republicano hesitante e incerto de sua legitimidade original, desejoso de inserir-se na supostamente “solidária” família americana e buscando exemplo e emulação na grande República da América do Norte. Nesse particular, Rio Branco, um “monarquista de formação e gostos europeus”, teria feito, segundo Ricupero, uma “opção preferencial pelos Estados Unidos”, visto como o grande aliado no relacionamento com as potências predominantes do sistema mundial no começo do século (não obstante o fato de um grande amigo de Rio Branco, Eduardo Prado, ter escrito um forte líbelo “anti-imperialista”, A Ilusão Americana). Razões econômicas, ademais de geopolíticas, certamente não faltaram para justificar a escolha do “novo paradigma” de nosso relacionamento externo: desde 1870 os Estados Unidos compravam mais da metade das exportações brasileiras de café e, na virada do século, 60% da nossa borracha.

Atualidade de Rio Branco

O que cativa particularmente no texto de Ricupero, e o que nos interessa especialmente reter aqui, não é tanto o itinerário pessoal de uma vida nômade a serviço do Estado brasileiro, os lances gloriosos na confirmação (ou na própria construção) de nossas fronteiras ou, ainda, o pensamento político de um monarquista conservador típico do século XIX, mas, sobretudo, o significado de sua diplomacia original (mas ainda eivada de características oitocentistas) para os problemas de nossa época e para os desafios do momento. Deixando de lado, por dificuldades práticas e óbvios óbices políticos, a “antecipação [talvez utópica] do futuro” consubstanciada no projeto de Pacto A.B.C., esquema de não-agressão, entendimento e cooperação entre os três maiores países sul-americanos que deveria complementar, na visão do Barão, a “aliança não-escrita” com os Estados Unidos, Paranhos já vislumbrava para o País um importante papel mundial. Em artigo ao Jornal do Comércio ele dizia: 

“Desinteressando-se das rivalidades estéreis dos países sul-americanos, entretendo com esses Estados uma cordial simpatia, o Brasil entrou resolutamente na esfera das grandes amizades internacionais, a que tem direito pela aspiração de sua cultura, pelo prestígio de sua grandeza territorial e pela força de sua população”.

Muito embora território e população não sejam, hoje em dia, critérios exclusivos de afirmação internacional, a visão do mundo do Barão tem muito a ver com o encaminhamento dos principais desafios enfrentados hoje pelo Brasil. Ele tinha consciência do limitado poder de projeção externa do País e por isso mesmo, ainda que recusando o militarismo, era um “partidário ativo”, como coloca Ricupero, “da modernização das forças armadas, tendo seu nome ficado ligado ao programa de renovação da frota”. Não proclamava, contudo, a necessidade de “armamentos formidáveis” ou a “aquisição de máquinas de guerra colossais”: tratava-se, tão simplesmente, de cuidarmos “seriamente de organizar a defesa nacional, seguindo o exemplo de alguns países vizinhos”. Ele descartava as pretensões à preeminência de alguns países latino-americanos — usando palavras como “loucura das hegemonias” ou “delírio das grandezas” — e voltava a afirmar sua convicção íntima: 

“Estou persuadido de que o Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar acima de tudo na força do Direito e, como hoje, pela sua cordura, desinteresse e amor da justiça, a conquistar a consideração e o afeto de todos os povos vizinhos em cuja vida interna se absterá de intervir”.

Sua intenção de conquistar para o Brasil, com a retórica e a força da argumentação de Rui Barbosa, uma cadeira permanente na Corte Internacional de Justiça — então em discussão na segunda conferência da Paz da Haia, em 1907 — logo chocou-se com a proposta “oligárquica” que defendiam as grandes potências imperiais, inclusive os Estados Unidos. O episódio, humilhante para o País na visão de Rio Branco, não é destituído de ensinamentos, como lembra Ricupero, para o debate atual em torno da reforma da Carta da ONU e da eventual assunção do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança. Sem qualquer consulta prévia ou consideração diplomática, Estados Unidos, Grã-Bretanha e Alemanha relegaram o Brasil a uma terceira categoria (membros não-permanentes), ainda inferior a países europeus menos populosos. 
O Barão, tentando de diversas maneiras salvar o prestígio e a honra do Brasil, sugeriu várias fórmulas alternativas (indicação de um juiz por cada país membro, para seleção ulterior em função dos casos, como num painel do GATT; designação de representantes permanentes para cada um dos três maiores países sul-americanos, Argentina, Brasil e Chile, e um quarto, rotativo entre os demais; constituição de um tribunal com 21 membros, sendo 15 permanentes para os países com mais de dez milhões de habitantes), sem lograr contudo nenhum avanço; pior: essas mudanças de posição “nos estavam fazendo perder terreno junto aos latino-americanos e aos países europeus menores”. 
Atendendo então à tese igualitária, desde o princípio defendida por Rui, Paranhos assume uma posição de rejeição a compromissos que implicassem a existência de nações de terceira, quarta ou quinta ordem: 

“Agora que não mais podemos ocultar a nossa divergência [com as potências européias e com os Estados Unidos], cumpre-nos tomar francamente a defesa do nosso direito e do das demais nações americanas. Estamos certos de que Vossência [Rui] o há de fazer..., atraindo para o nosso país a simpatia dos povos fracos e o respeito dos fortes”. 

Assim, a despeito de uma tentativa inicial de colaboração e de entendimento com os Estados Unidos, lembra Ricupero que o “choque com a posição americana tornou-se frontal e o Brasil assumiu a liderança dos países latino-americanos e de países menores europeus na luta pela igualdade”. O Barão teve de constatar os limites da política de cooperação, a primazia da diplomacia do poder e a própria “opção preferencial” dos norte-americanos pelas grandes potências européias.

Integração hemisférica e questão social no Brasil

Na vertente econômica, de outra parte, o Brasil da virada do século era mais favorável do que os demais países latino-americanos ao projeto americano de estabelecimento de uma união aduaneira do Alasca à Terra do Fogo, a que se opunha veementemente, por sua vez, a Argentina, muito mais vinculada aos interesses comerciais e financeiros britânicos. Atualmente (e não apenas no terreno econômico), parece ter ocorrido, no dizer de Ricupero, uma “inversão de papéis”, segundo a imagem coerográfica do changez de place: a Argentina apressou-se, por exemplo, em saudar a “Iniciativa para as Américas” de George Bush e em manifestar-se candidata a ingressar no NAFTA de Bill Clinton, enquanto o Brasil mantinha a natural reserva diplomática de um global trader.
É bem verdade que a dependência da exportação primária e a questão crucial do acesso ao mercado norte-americano para nosso principal produto da pauta comercial ditavam em grande medida, um século atrás, o interesse brasileiro nesse tipo de aproximação, situação bem diferente da relativa diversificação geográfica e de oferta exportadora de hoje em dia. Armado de um pragmatismo exemplar, o Barão não hesitaria em subscrever, nesse como em outros casos, uma diplomacia adaptável às circunstâncias de cada momento, unicamente comprometida com o interesse nacional, que ele soube encarnar como poucos no decorrer da história nacional. 
Seu biógrafo e “inimigo cordial”, Oliveira Lima, sublinha que, em Rio Branco, “o interesse pessoal se confundia com o público, assim como sua personalidade mergulhava toda na nacionalidade”. Longe da pátria, na Europa, o Barão — consoante seu lema Ubique Patriae Memor, “em todo lugar lembrar-se da Pátria” — continuava ocupando-se continuamente da terra natal, lendo e anotando livros e mais livros de e sobre nossa história. Jovem pesquisador de história do Brasil, ele tinha sido eleito para o Instituto Histórico e Geográfico em 1867, aos 22 anos, nele permanecendo como sócio ativo até seu falecimento.
Seu Esquisse de l’Histoire du Brésil, destinado a integrar o volume Le Brésil en 1889, preparado para a Exposição Universal de Paris, revela muito dessas leituras cuidadosas das obras de viajantes e observadores estrangeiros, assim como das dos cronistas portugueses da era colonial. Consciente de uma das principais deficiências sociais brasileiras de então, ele dedica largas passagens desse livro ao problema da escravidão e sua abolição, consumada praticamente no momento em que o terminava de escrever. Da mesma forma como o dramático problema social brasileiro do final do século XX, o parágrafo final dessa obra de cem anos atrás soa curiosamente atual:

“Nos últimos quarenta anos, ... o Brasil fez grandes esforços... para difundir a instrução, melhorar o nível do ensino, para desenvolver a agricultura, a indústria e o comércio, tirando partido das riquezas naturais... Os resultados obtidos ... são já consideráveis. Em nenhuma parte do continente americano, salvo nos Estados Unidos e no Canadá, a marcha do progresso tem sido mais firme e mais rápida”. 

A perspectiva promissora traçada pelo Barão do Rio Branco para o Brasil monárquico de então demorou (e ainda demora) um certo tempo para ser cumprida, em grande medida devido precisamente à abolição tardia do regime da escravidão e sua preservação de fato, ainda que em forma disfarçada, nas relações sociais de produção de regiões inteiras de seu vasto hinterland, quando não no coração mesmo de zonas urbanas. A permanência de um certo ancien Régime nas estruturas sociais de dominação e de apropriação do Brasil tem algo a ver, aliás, com a visão conservadora da cidadania ostentada mesmo por personalidades de refinada educação européia como o Barão. Ainda que ele não tenha sido um positivista e muito menos um jacobino republicano, ele certamente concordaria com o princípio inspirador do regime então inaugurado: o progresso, sem dúvida, mas a ordem antes de mais nada.
Em que pese esse conservadorismo social, em matéria de política externa o Barão foi propriamente um revolucionário: sua visão funcional e pragmática do relacionamento internacional do País e seu legado inovador na prática da política externa constituem, evidentemente, meios seguros para converter a diplomacia profissional e especializada de nossos dias num instrumento eficaz de desenvolvimento econômico e social do Brasil. Para isso, e finalizando com um conceito utilizado por Ricupero, precisamos ter, como o Barão, um “grande desígnio de política exterior”, suscetível de converter-se em novo paradigma de nossa diplomacia. Agora, como nos tempos do Barão, o critério básico matem-se o mesmo: a inserção soberana do País na ordem econômica e política internacional. Quase cem anos depois de concebido por seu mentor intelectual, o modelo fornecido por Rio Branco permanece vigorosamente atual.

Nota: Os livros citados, José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco:Uma Biografia Fotográfica,1845-1995 (Brasília: FUNAG, 1995) e Esboço da História do Brasil (Brasília: FUNAG, 1992), podem ser adquiridos junto à Fundação Alexandre de Gusmão no Itamaraty de Brasília: Telefone: (061) 211-6033/34; Fax: 322-2931.
  
[Brasília, 26/04/1996; revisão: 02/05/1996]
[Relação de Trabalhos n. 526]

526. “O legado do Barão: Rio Branco e a moderna diplomacia brasileira”, Brasília, 26 abril 1996, 7 p.; revisão: 02/05/96, 11 p. Apresentação e comentários ao livro José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco: Uma Biografia Fotográfica,1845-1995, Texto de Rubens Ricupero; organização, iconografia e legendas de João Hermes Pereira de Araujo (Brasília: FUNAG, 1995, 132 p.). Enviado para a revista Política Externa: não considerado; publicado na Revista Brasileira de Política Internacional  (vol. 39, n° 2, julho-dezembro 1996, p. 125-135). Relação de Publicados n° 198.


* Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas.


terça-feira, 16 de junho de 2015

Dom Pedro II, Imperador do Brasil - Benjamin Mosse (na verdade Rio Branco) - livro Funag

FUNAG lança Dom Pedro II, Imperador do Brasil

Embora existam várias biografias de Dom Pedro II, apenas uma foi revista e reescrita pelo barão do Rio Branco. Esse fato distingue o trabalho e o torna único em vários aspectos, inclusive ao permitir ao verdadeiro autor expressar seu pensamento a respeito do Segundo Reinado sem precisar identificar-se, o que poderá ter sido providencial para o futuro chanceler, cujas vitórias diplomáticas acabariam concorrendo para legitimar a República.
No exame dos registros e manifestações de tantos memorialistas e historiadores, e no imaginário coletivo, observa-se hoje a consolidação de um juízo favorável a D. Pedro II, como um homem ético, erudito, pesquisador, imbuído de sentido de missão, cujo comportamento austero marcou seus quase cinquenta anos à frente do Império. Durante esse período, concorreu para a consolidação do Estado, a preservação de sua integridade territorial, a formação do povo e a construção de uma identidade nacional. Contribuiu, enfim, para o apogeu da monarquia e vivenciou, de forma surpreendente, o seu colapso.
 

A FUNAG lançou o livro “Dom Pedro II, Imperador do Brasil”, de Benjamin Mossé (revisto e reescrito pelo Barão do Rio Branco). Trata-se de um ensaio biográfico sobre o monarca brasileiro, centrado na análise política dos quase cinquenta anos de seu Reinado. Benjamin Mossé, grande rabino de Avignon, era intelectual e escritor francês conhecido na Europa no século XIX.

O livro foi originalmente lançado em francês, em agosto de 1889. A reedição, ora publicada pela Fundação Alexandre de Gusmão, tomou por base a primeira versão em português, datada de 1890.

A importância da obra está sobretudo no fato de ter sido reescrita pelo barão do Rio Branco, considerado por seus biógrafos, o verdadeiro autor. Esse fato distingue o trabalho e o torna único em vários aspectos, inclusive ao permitir ao verdadeiro autor expressar seu pensamento a respeito do Segundo Reinado sem precisar identificar-se. A iniciativa é um tributo ao patrono da diplomacia brasileira e também ao biografado, Dom Pedro II.

Em julho, a FUNAG realizará a cerimônia de lançamento do livro no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro.

O livro já está disponível no portal da FUNAG para download gratuito e pode ser adquirido na loja virtual ou no estande promocional da Fundação, situado no Anexo II do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Barao do Rio Branco: 100 anos de Memoria - Livro da Funag

A Funag publicou, nos últimos dias de 2012, o livro que resultou do seminário realizado no Rio de Janeiro em maio, reunindo especialistas no personagem e na época. Eu colaborei com um texto sobre a economia do Brasil nos tempos do Barão, como abaixo, texto disponibilizado em meu site, no link indicado.

A economia do Brasil nos tempos do Barão do Rio Branco
Paulo Roberto de Almeida
Ensaio preparado para seminário internacional em homenagem ao Barão do Rio Branco, no centenário de sua morte (Rio de Janeiro, 8-10 maio de 2012)
Publicado: In: GOMES PEREIRA, Manoel (Org.): Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Brasília: Funag, 2012, 748 p.; ISBN: 978-85-7631-413-4; p. 523-563.

O livro todo pode ser baixado no seguinte link: 
http://funag.gov.br/biblioteca/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=609&Itemid=41
Minha colaboração, na formatação pessoal, figura neste link:  
link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/2372EconomiaBrBaraoPublished.pd


Barão do Rio Branco - 100 anos de memória
Título: Barão do Rio Branco - 100 anos de memória
Autor: Org.Manoel Gomes Pereira
Editor: Funag
Assunto: 1.José Maria da Silva Paranhos Junior 2. Centenário de Falecimento
Ano de edição: 2012 
Número de páginas: 748
ISBN: 9788576314134
Ementa: Uma das iniciativas mais importantes no quadro da celebração do primeiro centenário da morte do Barão do Rio Branco foi a organização e a realização do seminário “Barão do Rio Branco: 100 anos de memória”,cujos anais são objeto do presente volume. Durante três dias – de 8 a 10 de maio de 2012-, os palestrantes e cerca de 400 estudiosos e membros do público passaram em revista o pensamento e a obra do grande estadista.

Barao, barao, onde andas o' barao? O que fazem em teu nome? - Clodoaldo Bueno (RBPI 2/2012)

Na RBPI 2/2012 - O Barão do Rio Branco no Itamaraty (1902 - 1912)

Clodoaldo Bueno

Este ano, em que se rememora o falecimento do barão do Rio Branco, é oportuno revisitar o legado do patrono da diplomacia brasileira, até porque seu país movimenta-se no contexto regional de forma diversa de sua tradição, embora a América do Sul de hoje possua alguns traços conjunturais formalmente semelhantes àqueles da primeira década do século XX.
Rio Branco pensou e agiu como um geopolítico, mas guiado pelo senso de observação, instinto e faro político. Leu o contexto internacional apegado à concretitude dos fatos e despreocupado em traduzir para seus atos de política externa idéias então em circulação no Ocidente, como o Destino Manifesto, a superioridade de raça ou a importância da guerra como elemento de coesão nacional. Realista, tinha consciência dos limites da influência do Brasil na América do Sul. Apesar de gozar de prestígio e respeito dentro e fora do país, lastreados num histórico de sucessos e bom senso diplomático, nunca alardeou desejo de ver seu país exercendo liderança nessa área nem levou a efeito uma política externa agressiva e arrogante escudada em ideais de projeção nacional.

Ao assumir a pasta, acumulara uma experiência de mais de duas décadas fora do país. Vivera sobretudo em Paris, Londres e Liverpool, de onde conhecera de perto o núcleo do capitalismo industrial na sua etapa imperialista e acompanhara as atividades das grandes empresas, que não raro atuavam com cobertura diplomática dos governos de seus países de origem. Na questão do Acre, a primeira que enfrentou imediatamente após a assunção da chancelaria, agiu como alguém que conhecia a linguagem e maneira de atuar dos financistas e especuladores internacionais.
Os anos de 1902 a 1918 correspondem ao auge da Primeira República brasileira, até porque nele se destaca o brilho da larga gestão de Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores. Em termos econômicos, o Brasil expandiu sua economia agroexportadora, cuja especialização no café foi levada aos seus limites extremos. O alinhamento Washington-Rio de Janeiro, uma das marcas da gestão Rio Branco, em boa parte foi adequação aos vínculos comerciais já solidamente estabelecidos entre os dois países. Os Estados Unidos, com a livre entrada concedida ao café proveniente do Brasil, somada às dimensões de seu mercado consumidor, dispunham de um eficaz meio de pressão para forçar a obtenção de vantagens aduaneiras. Para o Brasil, a livre entrada concedida ao café tinha um custo, nomeadamente o desestímulo à industrialização em razão da entrada maciça de produtos manufaturados favorecida pelo rebaixamento de direitos de alfândega concedido às mercadorias norte-americanas.

Embora o Chanceler não tenha inaugurado a inflexão da política externa brasileira em direção aos Estados Unidos, deu a ela um sentido utilitário, além de ter consolidado e aprofundado tendências. Rio Branco não temia o expansionismo dos Estados Unidos e era compreensivo com a ação deles na América Central, uma vez que subscrevia os termos do corolário Roosevelt, o que facilitava aos dois países a aproximação, que, segundo ele, funcionaria como elemento neutralizador de eventuais ingerências nas questões internacionais do Brasil. A amizade norte-americana, apesar do aparente paradoxo, provocava alargamento virtual nas margens dos movimentos brasileiros. Dir-se-ia que Rio Branco perseguia uma política de hands off nessa área. A aproximação, como ele a concebia, não implicava ver seu país na posição de caudatário, até porque não estava vinculada a compromissos. Por outro lado, não se traduziu em apoio norte-americano ao Brasil em suas pendências internacionais, aliás nunca solicitado por Rio Branco. Independente de estratégia, a aproximação levada a efeito por Rio Branco (entusiasticamente coadjuvado por Joaquim Nabuco, embaixador do Brasil em Washington), foi unilateral, isto é, sem a equivalência do governo de Washington. O próprio Chanceler, perto do final de sua gestão, desencantou-se com a diplomacia norte-americana. De qualquer forma, a aproximação entre os dois países não pode ser vista como um objetivo em si mesmo, nem primordial; o mais importante acabou sendo sua visibilidade, embora não planejada. Rio Branco movimentou-a como uma peça, cujo alcance só pode ser aquilatado ao se considerar o jogo inteiro, cuja meta primeira foi a solução das questões de fronteira ainda pendentes. A grande obra de Rio Branco como ministro foi concluir a tarefa na qual se envolvera antes de assumir a chancelaria, dando sequência à obra iniciada no período colonial e continuada pelos diplomatas do Império, de fixação dos limites do território nacional mediante o fechamento definitivo de suas fronteiras por meio de arbitramentos com a Argentina (questão das Missões, 1895) e França (questão do Amapá, 1900), na condição de advogado do Brasil, e de tratados, quando chanceler, com a Bolívia (questão do Acre, 1903), Equador (1904), Holanda (Guiana, 1906), Colômbia (1907), Peru (1909) e Uruguai (1909). O sucesso nos movimentos impostos pela defesa da soberania e naqueles motivados ou conectados à política de prestígio, deu nova presença ao Brasil no cenário internacional, no qual podia se apresentar como uma nação territorialmente satisfeita, rearmada no oceano com o que tinha de mais moderno no mundo, com os compromissos financeiros em dia, sediando a 3ª Conferência Internacional Americana, marcando presença na 2ª Conferência de Paz em Haia, sem problemas de fronteira e desobrigado de compromissos internacionais. Segundo o próprio Rio Branco seu país elevava-se a outro patamar no concerto internacional, desinteressando-se das estéreis questões entre as nações sul-americanas para atuar em um círculo mais elevado, o das grandes amizades internacionais.
  • Clodoaldo Bueno é Professor Titutlar da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

sábado, 22 de setembro de 2012

Estrategias de política externa: a grande estrategia do Barao e as pequenas - P. R. Almeida


O Barão do Rio Branco e as estratégias do Brasil: a grande e as pequenas

Paulo Roberto de Almeida
revista Sapientia (ano 1, n. 2, setembro 2012, p. 23-25; link: http://www.cursosapientia.com.br/revista/ed2/).
Relação de Originais n. 2407; Relação de Publicados n. 1073.

Se, por um desses acasos históricos, o Barão do Rio Branco, falecido exatamente cem anos atrás, retornasse eventualmente entre nós, quais seriam suas grandes preocupações diplomáticas? Esgotada a tarefa de remodelar a geografia dos limites territoriais, por meio de negociações de fronteiras com todos os nossos vizinhos, o Barão talvez se preocupasse com temas mais permanentes, ou mais estruturais, sobretudo numa fase – como foi a sua – de transição nas relações internacionais. De fato, cem anos atrás, o mundo assistia aos primeiros passos da transposição hegemônica das velhas potências europeias para o novo poder emergente, os Estados Unidos da América, país com o qual o Barão do Rio Branco tentou estabelecer uma estratégia de coexistência de zonas de influência: os EUA ao norte, o Brasil ao sul. Obviamente, o Barão tinha consciência dos meios limitados do Brasil do início do século XX, mas ele se perguntaria, de igual modo, o que o Brasil precisaria fazer, atualmente, para ocupar seu espaço no chamado concerto das nações.
Talvez ele começasse pela pergunta clássica dos estadistas: o Brasil possui uma estratégia, grande ou pequena? Talvez, embora nem sempre se perceba. Os militares talvez tenham pensado em alguma, e ela sempre envolve grandes meios, para defender as grandes causas: a soberania, a integridade territorial, a preservação da paz e da segurança no território nacional e no seu entorno imediato. Enfim, todas aquelas coisas que motivam os militares. Os diplomatas, também, talvez tenham escrito algo em torno disso, e ela sempre envolve o desenvolvimento nacional num ambiente de paz e cooperação com os vizinhos e parceiros da sociedade internacional, no pleno respeito dos compromissos internacionais e da defesa dos princípios e valores constitucionais, que por acaso se coadunam com a Carta da ONU. Mas eles também acham que está na hora de “democratizar” o sistema internacional, que ainda preserva traços do imediato pós-Segunda Guerra, ampliando o Conselho de Segurança da ONU, reformando as principais organizações econômicas multilaterais e ampliando as possibilidades de participação dos países em desenvolvimento nas instâncias decisórias mundiais; enfim, todo aquele discurso que vocês conhecem bem.
Tudo isso é sabido, e repassado a cada vez, nas conferências nacionais de estudos estratégicos, em grandes encontros diplomáticos, nos discursos protocolares dos líderes nacionais. Até parece que possuímos de fato uma grande estratégia, embora nem sempre isso seja percebido por todos os atores que dela participam, consciente ou inconscientemente. Aparentemente, ela seria feita dos seguintes elementos: manutenção de um ambiente de paz e cooperação no continente sul-americano e seu ambiente adjacente, num quadro de desenvolvimento econômico e social com oportunidades equivalentes para todos os vizinhos, visando a construção de um grande espaço econômico integrado, de coordenação e cooperação política, num ambiente democrático, engajado coletivamente na defesa dos direitos humanos e na promoção da prosperidade conjunta dos povos que ocupam esse espaço.

O que seria uma grande estratégia para o Brasil?
Muito bem, mas esses são objetivos genéricos, até meritórios e desejáveis, que precisam ser implementados de alguma forma, ou seja, promovidos por meio de iniciativas e medidas ativas, o que envolve inclusive a remoção dos obstáculos que se opõem à consecução desses grandes objetivos. É aqui que entra, de verdade, a grande estratégia, quando se tem de adequar os meios aos objetivos, não simplesmente na definição de metas genéricas. A estratégia é que permite se dizer como, e sob quais condições, o povo do país e suas lideranças vão mobilizar os recursos disponíveis, as ferramentas adequadas e os fatores contingentes – dos quais, os mais importantes são os agentes humanos – por meio dos quais será possível alcançar os grandes objetivos e afastar as ameaças que se lhes antepõem. Uma verdadeira estratégia diz o que deve ser feito, na parte ativa, e também, de maneira não simplesmente reativa, como devemos agir para que forças contrárias não dificultem o atingimento das metas nacionais.
Nesse sentido, se o grande objetivo brasileiro – que integra nesta concepção sua “grande estratégia” – é a consolidação de um espaço econômico democrático e de cooperação econômica no continente, devemos reconhecer que avançamos muito pouco nos últimos anos. A despeito da retórica governamental, não se pode dizer, atualmente, que a integração e a democracia progrediram tremendamente na última década. Ao contrário, olhando objetivamente, esses dois componentes até recuaram em várias partes, e não se sabe bem o que o Brasil fez para promovê-los ativamente. O presidente anterior foi visto abraçado com vários ditadores ou candidatos a tal, esqueceu-se de defender a liberdade de expressão, os valores democráticos e os direitos humanos onde eles foram, e continuam sendo, mais ameaçados, quando não vêm sendo extirpados ou já desapareceram por completo. A integração que realmente conta, a econômica e comercial, cedeu espaço a uma ilusória integração política e social que até pode ter rendido muitas viagens de burocratas e políticos, mas não parece ter ampliado mercados e consolidado a abertura econômica recíproca.

À falta de uma grande estratégia, o Brasil possui pequenas estratégias?
Desse ponto de vista, o Brasil parece ter falhado em sua grande estratégia, se é verdade que ele realmente possui uma. Se não possui, está na hora de pensar em elaborar a sua. Passada a retórica grandiloquente – contra-produtiva, aliás – da liderança e da união exclusiva e excludente, contra supostas ameaças imperiais, pode-se passar a trabalhar realisticamente na implementação da grande estratégia delineada sumariamente linhas acima. A julgar pela experiência recente, não parece que sequer começamos a retificar os equívocos mais eloquentes do passado imediato, quando apoiamos ditadores e adotamos uma concepção muito peculiar dos direitos humanos e dos valores democráticos. O que diria o Barão, a esse respeito?
Talvez ele devesse começar examinando as pequenas estratégias desenvolvidas nos últimos anos. Na verdade, o Barão seria naturalmente levado a elaborar uma grande estratégia, obviamente diversa daquela de sua época, e adaptada aos requisitos do presente. Negligenciando o fato de que ele, quando vivo, já era quase um santo protetor da diplomacia brasileira, uma personalidade incontrastável, incontestável, o “dono” da política internacional do Brasil, além e acima de qualquer presidente, pode-se imaginar que ele atuaria segundo as instruções do presidente de turno, mas com certa latitude de ação, em vista de sua reconhecida competência para certos temas.
Vamos imaginar, contudo, que ele apenas atuaria como um chanceler qualquer, em face dos mesmos desafios ou agendas, que se colocariam a um chanceler de nossos dias, nas circunstâncias atuais do Brasil, país que deixou de ser simplesmente em desenvolvimento, e um instável crônico na América Latina, para se tornar um “emergente”, um país dotado de pretensões a ter uma influência regional e global. É com base, exatamente, nessas premissas, que podemos, em primeiro lugar, criticar as diversas estratégias que o Brasil seguiu nos últimos tempos, e às quais poderíamos chamar de pequenas.

A primeira estratégia pequena do Brasil, na verdade mesquinha, seria a de ter exibido, durante os oito anos da doutrina do “nunca antes neste país”, uma orientação de política externa não exatamente nacional, mas mais propriamente partidária, para não dizer sectária. Quando o Barão foi convidado para ser chanceler, cargo que ele ensaiou recusar, seja por motivos de saúde, de dinheiro ou qualquer outro, a primeira coisa que ele adiantou era a de que não vinha servir a qualquer partido, a qualquer causa política, mas ao Brasil, em benefício da nação e de seu prestígio na região e no mundo.
Cem anos depois, parece que tivemos não apenas uma diplomacia estreitamente partidária, mas até um chanceler que, talvez insatisfeito por ser “apenas” diplomata, resolveu se inscrever num partido, ou melhor, no partido do poder, o que aparentemente nunca lhe foi exigido como chanceler ou como funcionário de Estado. Mas, como defensor de um governo partidário, ele resolveu se filiar a esse partido. Como todo militante desse partido, como naquelas agrupações religiosas que exigem o dízimo, tem de contribuir com sua cota de boa vontade financeira, o mesmo chanceler escolheu ser conselheiro de algumas coisas, para arredondar o salário, já que o Brasil é hoje um país caro (talvez em função de algumas políticas de pequena estratégia que o mesmo partido aplica). O Barão, provavelmente, desprezaria gestos como esse.
A segunda estratégia pequena que o Barão lamentaria, se hoje contemplasse a diplomacia dos oito anos do “nunca antes”, seria justamente essa tal de “diplomacia Sul-Sul”. O Barão nunca compreenderia, e nunca admitiria, como se consegue ser tão reducionista, tão simplista, tão estreito geograficamente nas escolhas de relacionamento internacional, ele que sempre se bateu para equilibrar as relações do Brasil entre a velha Europa, os EUA emergentes, e a América do Sul, todos tão presentes em nossas relações imediatas. A despeito dessa “aliança não escrita” com os EUA, de que falam alguns acadêmicos, o Barão, na verdade, nunca se deixou prender, ou enredar, numa relação exclusiva, ou privilegiada, com qualquer sócio maior, mas procurava sempre manter equidistância dos grandes centros de poder, das velhas potências coloniais – mas ainda agressivamente imperialistas – e da nova potência que despontava no hemisfério – e já agressivamente imperialista, precisamente. Menos ainda ele compreenderia que o Brasil só tivesse olhos para o seu entorno imediato – claro, porque a África não “existia”, dominada que era pela Europa, e que a Ásia também se debatia na colonização direta e indireta das mesmas potências – e descurasse por completo das relações com aqueles que eram nossos principais mercados e fornecedores de capitais. Ele sorriria com certa complacência antes essas propostas de “nova geografia comercial internacional”, sabedor que, em matéria de comércio, toda e qualquer geografia é boa, desde que se consiga realizar todos os intercâmbios, nos dois sentidos, que interessariam ao Brasil.
Justamente, mesmo se ele tivesse de administrar uma “estratégia Sul-Sul” para o Brasil – fatalidade lamentável que ele certamente se escusaria por completo de iniciar – ele jamais se permitiria ser complacente, leniente, inconsequente ou descuidado em relação aos direitos do Brasil. Ele jamais permitiria, por exemplo, que tripudiassem injustamente sobre nossas exportações – como infelizmente ocorre muito frequentemente com certo vizinho arrogante – ou que, ao arrepio de tratados bilaterais e de contratos internacionais, outros vizinhos inconsequentes invadissem nossas propriedades legítimas para esbulhar-nos de nossos direitos, rasgando unilateralmente compromissos que tinham sido solenemente contraídos anteriormente. Por muito menos ele fez deslocar tropas para proteger nacionais ameaçados de maus tratos; ainda que não fosse o caso de fazê-lo em todas as circunstâncias, o Barão certamente teria sido bem mais vigoroso na reação a certos atos de expropriação ilegal.
Por exemplo: ainda que confrontado a uma declaração inevitável de expropriação de bens nacionais, ele JAMAIS assinaria uma nota na qual se reconhecia o direito soberano de outro país de, sem a cortesia de sequer um alerta preliminar, expropriar sem negociações ou consulta prévia propriedades nacionais, em total desrespeito às normas do direito internacional e à letra de tratados que constituíam obrigações para as duas partes. Ele certamente consideraria certas atitudes registradas nesses tempos caóticos de diplomacia confusa não só como marcas de uma pequena estratégia, mas como uma demonstração cabal de uma estratégia vergonhosa.
A mais forte razão, o Barão se guardaria escrupulosamente, e faria com que o seu presidente também observasse esse tipo de recato, de jamais interferir nos assuntos políticos internos de outros países, seja demonstrando apoios eleitorais indevidos, seja adiantando preferências ideológicas ou ainda rompendo normas e costumes de direito internacional e de relações diplomáticas. A melhor forma de manter boas relações com quaisquer vizinhos – mesmo os mais turbulentos – e com todo e qualquer país da comunidade internacional é manter reserva total quanto aos assuntos internos desses outros países, mesmo quando se possa, em privado, manter preferência por um outro personagem da vida política que possa ter influência nas relações com o Brasil. Expressar publicamente interesse nesse tipo de assunto é a mais pequena estratégia que o Barão poderia conceber, e isso ele deixou registrado em vários escritos públicos.
Finalmente, o Barão tampouco consentiria em dividir o processo de tomada de decisão em múltiplas cabeças, em fracionar o comando da diplomacia em diversos centros independentes de formulação e de execução de uma política nacional, como deve ser a política internacional de um país. Consciente, provavelmente, de que a política externa é uma espécie de política interna por outros meios, e sabedor de que a diplomacia, como a arte da guerra, exige unidade de formulação, de decisão e de implementação das ações requeridas, ele obstaria por completo a qualquer fragmentação da atuação diplomática do Brasil em unidades separadas de atuação. Já ao assumir a chefia do Ministério, e confrontando-se com a provecta figura de Cabo Frio, ele apressou-se em inaugurar um busto em homenagem a essa magnífica figura do Império, como forma de afastá-lo dos assuntos correntes, encaminhando-o a uma merecida aposentadoria que ainda tardou a acontecer. Independentemente desses dissabores, ele jamais consentiria, por exemplo, que dirigentes partidários, representantes de interesses especiais, neófitos palacianos ou quaisquer outros aprendizes de diplomatas lhe viessem sugerir esta ou aquela política em matérias que fossem de sua competência exclusiva. Como “general” da diplomacia, ele sabia que comando não se divide: ou se assume, ou se assiste a confusão predominar em temas que têm a ver com a segurança nacional.

Enfim, falamos das “pequenas estratégias” que o Barão não teria, e não poderia ter, para as relações internacionais do Brasil, cem anos depois de sua morte, se por acaso voltasse ao nosso convívio. Mas faltou falar, positivamente, de uma grande estratégia que o Barão do Rio Branco poderia exibir na atualidade.
E por que uma estratégia teria de ser “grande”? Não existe nenhum motivo especial para isso: trata-se apenas de um adjetivo, talvez exagerado, que visa, de certo modo, enfatizar o aspecto crucial para o país na determinação de suas políticas mais essenciais; neste caso, grande pode ser considerado como algo diferente de setorial (como poderia ser apenas defesa ou desenvolvimento). Grandes países, com grande interface ou exposição internacional, ou, ainda, países capazes de grande projeção internacional, costumam ter grandes estratégias. Talvez seja o caso do Brasil.
O Brasil é um ator relevante malgré lui, ou seja, possui massa e presença de dimensões relevantes, embora não consiga determinar o curso dos eventos e dos processos no subcontinente, mesmo mobilizando as armas de sua política – a diplomacia – ou “ameaçando” (o que, aliás, seria difícil de concretizar) recorrer à política das armas – para a qual lhe faltariam os requisitos de base, justamente. Mesmo no terreno das proposições de política, não se pode dizer que o Brasil tenha constituído um manancial de iniciativas significativas, capazes de alterar, de maneira sensível, o peso e o papel da região no contexto mundial.
Quais são, numa análise realista, os componentes dessa grande estratégia? A resposta a esta questão implica necessariamente identificar os principais desafios colocados ao Brasil na realização dos supremos interesses nacionais. Quais são estes últimos, portanto? Em plena transparência de propósitos, não parece restar dúvidas de que o objetivo supremo da nação – ademais daquelas questões básicas de soberania, que já consideramos não prioritárias – é o atingimento de uma etapa superior no seu processo de desenvolvimento, de maneira a garantir bem estar e vida digna a todos os brasileiros, como condição da plena integração do país ao sistema internacional num status de potência capaz e plenamente dotada dos meios de ação para atuar positivamente nesses sistema, em conformidade com os propósitos da Carta das Nações Unidas e dos demais instrumentos da cooperação internacional.
Mas isso discutiremos numa próxima ocasião.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de Julho de 2012; revisão: 14/09/2012