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segunda-feira, 4 de março de 2024

Algum retrocesso em vista no sistema internacional? No próprio Brasil? - Paulo Roberto de Almeida

Algum retrocesso em vista no sistema internacional? No próprio Brasil?

Paulo Roberto de Almeida


Nosso sistema imunológico na área política, interna e externa, ainda não conseguiu criar uma vacina eficaz contra as ditaduras, sobretudo as eleitorais e/ou plebiscitárias. Existem algumas na região e várias ao redor do mundo, inclusive no BRICS+, o xodó do Grande Guia, apreciado por muitos. Fatalidade geopolítica ou escolha ideológica?

O quê, exatamente, o Brasil e o povo brasileiro ganham ao ver o seu atual governo apoiar ditaduras execráveis ao redor do mundo, especialmente duas grandes autocracias que pretendem criar uma “nova ordem global”, supostamente oposta, contrária e substitutiva à atual ordem econômica e política mundial, que deriva de Bretton Woods (1944) e de San Francisco (1945), uma ordem baseada em regimes democráticos, de economias de mercados livres e garantidores de direitos humanos?

Repito a pergunta: o que o Brasil ganha ao se opor à atual ordem “ocidental”, aparentemente tão desprezada pelos que nos governam? 

O que se espera com essa “nova ordem global”, que para ser implantada necessitaria o “afastamento” da ordem prevalecente atualmente? Pacífico, consensual, por livre escolha? Ou por imposição da força bruta? Pela força do Direito ou pelo direito da força?

Alguma rationale credível do ponto de vista dos interesses nacionais, dos valores e princípios de nossa Constituição, de nossa diplomacia, das regras e normas que presidem o Direito Internacional e a Carta da ONU?

O governo atual ainda não conseguiu chegar à conclusão de que a guerra de agressão da Rússia de Putin contra a Ucrânia vizinha constituiu uma violação flagrante da Carta da ONU e do Direito Internacional? O que falta para chegar a essa conclusão elementar? 

Seria preciso um “puxão de orelhas” de alguma instância da ONU, o Conselho de Direitos Humanos, por exemplo, ou, eventualmente, um ruling da Corte Internacional de Justiça?

Não bastaria uma simples adequação a certas simples normas éticas, ou a princípios elementares de moral pública?

Como confundir agressor ou agredido, como equiparar as duas partes em conflito, como se elas fossem equivalentes, no plano do Direito, ou da realidade empírica visível aos olhos de todos e cada um?

Confesso minha estupefação em face desses fatos, não apenas como diplomata, ou estudioso das relações exteriores do Brasil e da sua diplomacia, mas como simples cidadão bem informado e engajado nas causas democráticas e dos DH.

Confesso que não entendi certas coisas, e que não consigo suportar a desfaçatez, a mentira e a deformação da realidade. 

Confesso minha desconformidade e meu contrarianismo, fundamentados num ceticismo sadio sobre certas escolhas de autoridades e poderes públicos que me parecem contrárias ao nosso sentido de  Justiça, à nossa definição de democracia e de respeito aos DH. 

Por que admitir tais retrocessos no âmbito interno e no contexto internacional?

Por quê?

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 4/03/2024

domingo, 3 de março de 2024

Lições da Ásia para acelerar o crescimento econômico - O Estado de S. Paulo

Lições da Ásia para acelerar o crescimento econômico 

O Estado de S. Paulo, 3/03/2024

https://www.estadao.com.br/economia/as-licoes-da-asia-para-o-brasil-reduzir-a-miseria-em-5-graficos/




Nas últimas décadas, os países asiáticos alcançaram um resultado extraordinário na redução da pobreza extrema, com impacto profundo em todo o mundo. Como mostrou a série de reportagens Os caminhos da prosperidade, publicada pelo Estadão, a Ásia tirou mais de um bilhão de pessoas da miséria em apenas vinte anos, de acordo com o Banco Mundial.

A queda no número de pessoas vivendo em situação de pobreza extrema – que engloba quem tem renda per capita inferior a US$ 2,15 (R$ 10,75) por dia em valores de 2017, pela paridade do poder de compra (PPP) – foi a maior, no menor prazo, em todos os tempos. E o mais impressionante é que isso aconteceu num período em que o número de habitantes da região teve um aumento de 46,9%, de 3,2 bilhões para 4,7 bilhões.

Em 30 anos, a renda per capita ajustada pelo poder de compra deu um salto. Nos países da Ásia Meridional, ela se multiplicou por seis, de US$ 1.249, em média, em 1990, para US$ 7.824, em 2022, em valores correntes. Na Ásia Oriental e na região do Pacífico, a renda per capita cresceu quase sete vezes, de US$ 3.250 para US$ 22.422. Enquanto isso, no Brasil, o crescimento foi de 2,7 vezes, de US$ 6.440 para US$ 17.270 – menos até do que o aumento ocorrido na média mundial, de 3,7 vezes, no mesmo período.

Afinal, qual o segredo da Ásia para ter reduzido de forma notável a miséria num prazo tão curto? O que os países asiáticos fizeram de diferente para chegar lá? Que lições o Brasil – cuja taxa de pobreza extrema aumentou de 3,3% para 5,8% da população entre 2014 e 2021, conforme o Banco Mundial, atingindo 12,5 milhões de pessoas – pode tirar do sucesso alcançado pela região na diminuição da miséria?

Para responder a estas perguntas, o Estadão produziu cinco gráficos que permitem a visualização imediata de alguns dos fatores que levaram a Ásia – mais especificamente os países localizados na Ásia Meridional e Oriental e na chamada região do Pacífico, onde a evolução foi mais acentuada – a reduzir a pobreza extrema em quase 90% desde 1990.

Embora não exista, segundo os analistas, o que se poderia chamar de um “modelo asiático” para explicar a diminuição da miséria na Ásia nas últimas décadas, é possível apontar alguns caminhos trilhados por países da região – que, em maior ou menor grau, conforme o caso, levaram a este resultado fenomenal. Confira a seguir quais são eles e como o Brasil se coloca em relação a cada ponto.


1. Crescimento econômico acelerado

O economista Dani Rodrik, professor de Economia Política Internacional na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, não deixa margem para dúvidas ao falar sobre o impacto do crescimento na redução da miséria. “Nada funciona mais que o crescimento econômico para as sociedades melhorarem as condições de vida de seus integrantes, incluindo os mais desfavorecidos”, afirma Rodrik, no livro Uma economia, muitas receitas: globalização, instituições e crescimento econômico.

Considerando o que ele diz, os países asiáticos têm sido imbatíveis. Entre 1960 e 2020, a Ásia foi a região que teve o maior crescimento médio por ano do mundo, como mostra o gráfico acima – bem superior ao do Brasil, em especial nas últimas décadas, justamente o período em que os países asiáticos mais cresceram.

Enquanto os países da Ásia Meridional cresceram, em média, 5,6% ao ano entre 1960 e 2021, e os da Ásia Oriental e da Região do Pacífico, 4,9%, o Brasil teve um crescimento anual de 3,9%. Na média, o crescimento do País nos últimos 60 anos até foi superior ao de outras regiões do mundo, graças principalmente ao resultado obtido entre os anos 1960 e 1980. Mas, de 1981 a 2010, a economia perdeu tração e a média foi de apenas 2,1% ao ano. E, de 2011 a 2021, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) foi de apenas 0,7%, em média, ao ano.

Resumindo: sem turbinar o crescimento econômico, o Brasil dificilmente conseguirá reduzir a miséria e melhorar a qualidade de vida da população, em especial dos mais vulneráveis, como a Ásia conseguiu.


2. Liberdade econômica 

Nas últimas décadas, quando o crescimento ganhou velocidade na região, a maioria dos países asiáticos melhorou sua colocação no principal ranking global de liberdade econômica, produzido pela Heritage Foundation, dos Estados Unidos, favorecendo o desenvolvimento e a redução da miséria.

O Vietnã, por exemplo, que era um país fechado aos investimentos estrangeiros e adotava o sistema de planejamento centralizado até meados dos anos 1980, conforme a orientação do Partido Comunista, aderiu à economia de mercado.

Com isso, o Vietnã, que andava de lado ou até de marcha à ré até então, cresceu uma média de 6,7% ao ano de 1990 a 2022, conforme dados do Banco Mundial, e deu um salto em sua posição na lista dos países com maior liberdade econômica. Nos últimos dez anos, o Vietnã subiu 89 posições no ranking, saindo da 148ª colocação para a 59ª, entre 176 países. Só na lista de 2024, divulgada recentemente, o país subiu 13 posições em relação ao ano passado.

A Indonésia, que também liberalizou de forma considerável sua economia, ganhou 52 posições na lista no mesmo período, passando de 105ª colocada no ranking para 53ª. Embora ainda mantenha o protagonismo do Estado em certas atividades, o país teve um crescimento do PIB um pouco mais baixo que o do Vietnã, de 4,7% ao ano, em média, entre 1990 e 2022 – mas ainda ficou bem acima da media mundial, de 2,9%.

O Brasil, enquanto isso, continuou como um país majoritariamente não livre, ocupando uma posição vexatória na lista. De 2015 até 2024, o País caiu seis posições no ranking, do 118º lugar para o 124º, ficando bem abaixo do Vietnã, da Indonésia e de outros países emergentes de alto crescimento na Ásia, como Bangladesh e Cambodja. O crescimento médio do Brasil entre 1990 e 2022 foi de apenas 2,1% ao ano, três vezes menor que o do Vietnã e duas vezes menor que o da Indonésia.

A China é a exceção que confirma a regra. Mesmo tendo liberalizado sua economia no fim dos anos 1970 e crescido 9% ao ano, em média, desde 1990, um recorde mundial, a China ocupa apenas a 151º colocação no ranking dos países mais livres na economia, perdendo 12 posições de 2023 para 2024.

Apesar da liberdade existente no comércio internacional e na área monetária, além da relativa liberdade que há nos negócios e na área tributária, de acordo com o levantamento, a China é considerada como uma economia reprimida no direito de propriedade, na liberdade de investimento, na saúde fiscal e na efetividade da Justiça, entre outras áreas, o que acaba afetando sua avaliação final.

“A liderança do Partido Comunista da China detém o controle direto da atividade econômica”, diz o relatório de 2024 da pesquisa da Heritage Foundation. “O quadro regulatório permanece complexo e desigual. As regras arbitrárias e frequentemente revisadas para os negócios e a legislação trabalhista submetem o setor privado aos caprichos do governo comunista.”

Em geral, porém, a liberdade econômica tem uma relação direta com o crescimento e leva à redução da miséria e à melhoria da qualidade de vida da população. A tendência normalmente é de os países com a economia mais reprimida terem menor probabilidade de obter sucesso na redução da pobreza.

“As economias (asiáticas) começaram a crescer mais rápido quando deixaram de lado as políticas de intervenção do Estado e focaram no mercado, enquanto os governos continuaram a desempenhar um papel proativo”, afirma Takehiko Nakao, ex-presidente executivo e do Desenvolvimento da Ásia (ADB, na sigla em inglês), no prefácio do livro A viagem da Ásia para a prosperidade, publicado pela instituição em 2020.

Segundo Nakao, a política de substituição de importações, ancorada no protecionismo, na falta de concorrência e em taxas de câmbio sobrevalorizadas, que foi largamente adotada por países em desenvolvimento no pós-guerra – inclusive no Brasil, onde está sendo ressuscitada –, levou a “sérias ineficiências” e a crises na balança de pagamentos, especialmente na América Latina.


3. Abertura comercial e integração na economia global

Para crescer em progressão geométrica, gerando milhões de empregos e melhorando a renda dos mais pobres, os países asiáticos – muitos deles fechados ao exterior até três ou quatro décadas atrás – deram uma guinada radical e procuraram se integrar à economia global.

Apesar de alguns terem crescido em ritmo acelerado mesmo com a manutenção de certas restrições às importações, como Indonésia e Bangladesh, os que obtiveram os melhores resultados foram aqueles que abriram para valer o comércio exterior, como Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura e, numa segunda onda, a China, e mais recentemente o Vietnã.

Ao se abrirem para o mundo, promovendo uma redução substancial nas tarifas incidentes sobre as importações e multiplicando as exportações, especialmente de manufaturados e de serviços de alta tecnologia, eles alavancaram o crescimento econômico. A participação de muitos países asiáticos em acordos de livre comércio também deu uma grande contribuição para dinamizar as economias locais.

O Brasil, ao contrário, continua a ser um país relativamente fechado, cuja participação em acordos de livre comércio resume-se ao Mercosul – e, mesmo assim, com diversas restrições nas trocas entre os países do bloco. O acordo do Mercosul com a União Europeia, que estava bem encaminhado, acabou “fazendo água” porque o governo Lula queria, entre outras reivindicações, restringir a participação das empresas estrangeiras nas compras governamentais.

Em nome da proteção à indústria nacional, o Brasil ainda mantém elevadas tarifas sobre importações, encarecendo a modernização da produção, que permitiria ganhos de eficiência e produtividade, e restringindo a concorrência com os produtos importados, em prejuízo dos consumidores – sejam eles pessoas físicas ou jurídicas.

Na média, as importações dos países da Ásia Oriental e da Região do Pacífico representam hoje 28,8% do PIB, de acordo com o Banco Mundial. Na Ásia Meridional, as importações chegam a 25,9% do PIB. Em ambos os casos, ainda é um volume inferior à média global, de 30,5% do PIB, mas as duas regiões já estão quase chegando lá.

No Brasil, apesar de as importações terem crescido de 7% para 19,3% do PIB entre 2000 e 2022, continuam bem abaixo das médias asiáticas e internacional, dificultando o desenvolvimento do País e a redução da pobreza.

As exportações brasileiras até ganharam corpo nas últimas décadas e hoje estão mais ou menos no nível da Ásia Meridional, na faixa de 20% do PIB. No entanto, isso ocorreu principalmente em razão da explosão das vendas de commodities agrícolas e minerais ao exterior e não pela integração do País na cadeia global de suprimentos ou pela venda de produtos manufaturados e de maior valor agregado.

Agora, mesmo com o crescimento verificado nos últimos 20 anos, o volume de exportações do Brasil ainda está bem abaixo da média mundial e dos volumes negociados pela Ásia Oriental, o que mostra o enorme espaço ainda existente para o País ampliar sua fatia no comércio exterior e sua integração na economia mundial, com efeitos positivos no desenvolvimento e na diminuição da miséria.


4. Atração de investimentos estrangeiros 

Nos últimos 30 anos, o ingresso de investimentos estrangeiros contribuiu de forma decisiva para alavancar o crescimento econômico da Ásia, gerando emprego e renda, principalmente nos países que alcançaram a maior redução na pobreza. Embora demonizados como uma forma de “imperialismo” por partidos e militantes anticapitalistas, os investimentos estrangeiros se tornaram fundamentais para dinamizar a economia até em países comunistas como o Vietnã e a própria China.

Apesar de classificada como um país reprimido na atração de investimentos pela Heritage Foundation, a China conseguiu atrair um volume espetacular de dólares desde a liberalização da economia, nos anos 1970. Segundo os números da Unctad (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento), o estoque de investimentos estrangeiros no país passou de 5,24% do PIB em 1990 para 21,2% em 2022.

Em termos absolutos, o estoque aumentou de US$ 249 bilhões em valores correntes para US$ 3,8 trilhões, 15 vezes mais, e o fluxo continua forte. Só em 2022, ingressaram US$ 189,1 bilhões em aportes externos na China – 2,5 vezes mais do que no Brasil, mesmo com as empresas estrangeiras buscando novos pontos de produção nos últimos anos, para diversificar suas bases por um número maior de países.

A Ásia Meridional, que só mais recentemente mudou de atitude em relação ao capital estrangeiro, ainda tem um estoque relativamente baixo de investimentos externos, equivalente a 13,1% do PIB, enquanto no Sudeste Asiático como um todo o estoque chega a 99,3% do PIB, segundo a Unctad, e a 98,2% no mundo.

No Brasil, embora o estoque de investimentos estrangeiros, de 43,6% do PIB, seja bem maior do que o da Ásia Meridional, ainda representa mais ou menos a metade do volume do Sudeste Asiático e do estoque mundial. Além disso, o aumento do estoque de capital externo no País ficou em 107,6% desde 2000, bem abaixo dos 211,9% da Ásia Meridional, dos 158,8% da Ásia Oriental e dos 142,2% do Sudeste Asiático, de acordo com a Unctad – o que ajuda a explicar o crescimento mais acelerado dos países da Ásia, que criou condições para a redução da miséria na região.


5. Investimento em infraestrutura e máquinas

Além da liberalização da economia, da abertura comercial e do ingresso de capital estrangeiro em grande escala, os investimentos em infraestrutura, na construção civil e em máquinas e equipamentos puxaram o crescimento econômico asiático. O alto volume de investimentos na região também deu uma contribuição relevante para o aumento da produtividade, a modernização da produção e a melhora nas condições de vida da população, com avanços nos transportes, no acesso a energia e no saneamento básico, entre outras áreas.

Na Ásia Oriental e na Região do Pacífico, que inclui a China, onde os investimentos em obras de infraestrutura e na modernização da produção foram gigantescos nas últimas décadas, a taxa de investimento chegou a 35% do PIB em 2022, quase dez pontos acima da média mundial, de 26% do PIB. Na Ásia Meridional, a taxa alcançou 28% do PIB, também acima da média mundial.

No Brasil, onde os economistas costumam dizer que seria preciso uma taxa de investimento de pelo menos 25% do PIB ao ano para o País melhorar sua infraestrutura e modernizar sua produção, com ganhos de produtividade e eficiência, a taxa não passou de 19% em 2022 – e, ainda assim, foi a maior desde 2014. Em 2023, no primeiro ano do governo Lula 3, o volume de investimentos voltou a cair, para 16,5% do PIB. Isso explica, em boa medida, o baixo crescimento do Brasil nos últimos anos.

Em alguns países asiáticos, como a China, a Indonésia e Bangladesh, o Estado ainda responde por boa parte dos investimentos em infraestrutura. Tal estratégia contribui para gerar emprego e renda e turbinar o crescimento econômico, mas quase sempre leva a uma deterioração significativa nas contas públicas e acaba tendo impacto negativo na economia mais adiante.

E é este o caminho que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer seguir mais uma vez no Brasil, com o lançamento de uma nova versão PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), adotado em gestões anteriores do PT, fortemente ancorado em investimentos de empresas estatais, financiamentos subsidiados de bancos públicos e em obras realizadas diretamente pelo governo federal.

Não dá para minimizar, porém, o papel dos investimentos privados nos resultados alcançados pela Ásia. A maioria dos estudos sobre o desenvolvimento econômico e a redução da miséria (na região) se concentra nas políticas macroeconômicas”, afirma o pesquisador Scott Paul Hipsher, na publicação O papel do setor privado na redução da pobreza na Ásia. “Mas eles dependem tanto das decisões microeconômicas tomadas pelas empresas privadas quanto das decisões macroeconômicas tomadas pelos governos.”

No Brasil, os dados mostram o quanto o protagonismo do setor privado é relevante para alavancar os investimentos, apesar de o debate sobre o tema se concentrar nos aportes governamentais. Em 2022, o crescimento na taxa de investimento se deu exatamente quando as operações do governo federal atingiram um dos menores níveis em todos os tempos, de 0,78% do PIB, incluindo os aportes das estatais, em razão do espaço reduzido existente no Orçamento e da necessidade de manter as contas públicas sob controle.

Considerando só os investimentos diretos do governo, a taxa foi de apenas 0,26%, patamar semelhante ao de 2021, o menor em 17 anos. Mas, graças ao aumento dos investimentos privados, estimulados pela manutenção das regras do jogo no mundo dos negócios e a redução das alíquotas de importação e dos impostos, que agora estão sendo revertidas, a taxa chegou aos 19% mencionados acima, voltando ao nível de oito anos antes.


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Atitudes de Lula em questões internacionais prejudicam Brasil na política externa - R7, Portal Correio

Atitudes de Lula em questões internacionais prejudicam Brasil na política externa, dizem especialistas

Presidente brasileiro se tornou 'persona non grata' para Israel após comparar ações de defesa israelense ao nazismo

Os gestos e as atitudes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva têm prejudicado o Brasil na área da política externa, avaliam especialistas consultados pelo R7. Os exemplos citados são as declarações sobre as ações de defesa de Israel, que o considerou “persona non grata”, do conflito entre Rússia e Ucrânia e a tentativa de relativizar o regime ditatorial de Nicolás Maduro na Venezuela. As informações são do R7, parceiro nacional do Portal Correio.

Desde o início do conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas, Lula tem buscado o papel de conciliador, visando um cessar-fogo permanente na região. A mesma atitude tem sido tomada em relação à guerra da Rússia na Ucrânia. Nas principais ocasiões, o petista enviou o assessor especial para assuntos internacionais, Celso Amorim, para se reunir com membros de ambos os governos na tentativa de se buscar uma solução.

Lula registrou diversas dificuldades para colocar em prática seu plano de o Brasil ser protagonista e pacificador nas questões internacionais voltadas para a área da segurança. O líder brasileiro criticou os Estados Unidos, por supostamente alimentar a guerra na Ucrânia, e recebeu uma repreenda da Casa Branca, que afirmou que o Brasil estava “papagueando” o discurso adotado pela Rússia para negar que tem culpa.

O episódio mais recente e polêmico ocorreu nessa segunda-feira (19), quando Israel classificou Lula como “persona non grata” no país até que haja uma retratação sobre as declarações feitas pelo presidente brasileiro.

No fim de semana, o petista comparou as ações de defesa israelense no conflito contra o grupo terrorista Hamas ao nazismo. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza, com o povo palestino, não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler decidiu matar os judeus”, afirmou o petista na ocasião.

Depois do mal-estar causado pela fala do presidente, o governo israelense tornou Lula “persona non grata” no país. O embaixador brasileiro em Tel Aviv, Frederico Meyer, foi chamado por Lula para consultas e embarca para o Brasil nesta terça (19). 

“Cada vez que o presidente Lula viaja ao exterior, traz estragos e prejuízos em termos de política externa. E são episódios tristes para os brasileiros, que compõem tradicionalmente um povo pacífico, aberto e amigo com as demais nações. No caso de Israel, os gestos parecem fechar as portas aos israelenses e desrespeitam os judeus que em solo brasileiro estão. É uma tremenda ofensa”, avalia a professora de direito da Universidade de São Paulo (USP) Maristela Basso.

“Por outro lado, acirra também a polarização no país, uma vez que, aqueles que seguem o pensamento ideológico-partidário de Lula, se sentem autorizados à revanche antissemita. É extremamente prejudicial nas relações internacional e interna, porque serve de combustível para a eventual prática de crime”, acrescenta.

Para a professora de direito da USP, os gestos de Lula fazem com se que perca completamente o espaço de conciliador que o Brasil buscava ocupar entre países que estão em disputa, como Israel e Palestina e Rússia e Ucrânia.

“Perdeu a credibilidade. Essas manifestações são incompatíveis com o posto de líder, de conciliador. Qualquer pretensão que se tinha, de ser o protagonista, de ocupar espaço de liderança, acabou”, argumenta.

Outro episódio citado pelos especialistas trata-se do regime ditatorial de Nicolás Maduro na Venezuela. No ano passado, Lula disse que o ditador merece mais respeito, apesar de o governo dele ser conhecido por episódios de violação de direitos humanos, censura à imprensa e prisão a opositores. O petista evitou dizer se o país vizinho é uma democracia, mas destacou que a situação política do país não pode sofrer interferência de outras nações.

Para o diplomata e diretor de Relações Internacionais do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, Paulo Roberto de Almeida, as declarações do presidente podem prejudicar a política externa brasileira.

“A declaração de Lula é absolutamente equivocada nos planos histórico, diplomático e político. Não há equiparação possível ao Holocausto, que foi organizado por um Estado contra uma determinada população. Foi um massacre. Não há precedentes na história”, avalia.

“Temos duas questões que caracterizam o [mandato] Lula 3, que deveria ser mais maduro pelas experiências dos mandatos anteriores. O que a gente repara é que tem havido tensões internas e externas que derivam das posturas típicas do PT. No campo econômico, o intervencionismo que vimos em casos como a Vale e a Petrobras. No campo da política externa, o que se nota são posições mais próximas do partido [PT] que as da diplomacia brasileira,” explicou.

“Quando Lula cita o Holocausto, isso ultrapassa a linha do aceitável por ser um fato único na história da humanidade. O Holocausto é algo inimaginável até em relação a outros genocídios, por ter sido um projeto estatal do hitlerismo de eliminar todos os judeus. Isso é algo inédito na humanidade. Essa palavra ‘Holocausto’ o Lula pronunciou por ignorância histórica e causou um choque no povo judeu.”

O advogado especialista em direito internacional Bernardo Pablo Sukiennik argumenta que a classificação do brasileiro como ‘persona non grata’, como reação israelense, amplifica a crise gerada pelo petista.

“Isso quer dizer que essa pessoa, no caso o Lula, não é mais bem-vinda em Israel. Não há previsão de visita ao Estado, mas com essa nomenclatura estão deixando claro que, enquanto o governo for liderado por Isaac Herzog e Benjamin Netanyahu, ele não é bem-vindo lá”.

O diplomata Almeida avalia a reação israelense como grave, pois não há precedentes na histórica republicana brasileira deste tipo de movimento e, dessa forma, mostra a gravidade da situação.

“Após a ‘persona non grata’, a retaliação pode atingir acordos e tratados de cooperação entre os dois países. Não creio que chegue a muito, até porque perderiam muito comercialmente, mas pode ser que seja feita uma espécie de corretivo ao Brasil. Além de sinalizar aos demais líderes mundiais de que não vão aceitar manifestações com esse tipo de conteúdo.”

“Não necessariamente envolve romper acordos, porque não seria do interesse do governo nem de empresas israelenses que exportam ao Brasil, principalmente, na área de segurança, mas mostra um descontentamento para a manutenção, pelo menos temporária, de cooperação”, acrescenta Almeida.

Parlamentares evangélicos repudiaram as palavras de Lula

As Frentes Parlamentares Evangélicas (FPE) do Congresso Nacional e do Senado Federal
repudiaram as palavras de Lula. Em nota, os parlamentares disseram que comparar os ataques de Israel ao Hamas com o nazismo, que vitimou seis milhões de judeus, é provocar um conflito ideológico desnecessário.

“Com a ressalva do respeito às pessoas que inocentemente morrem, Israel, ao contrário de Hitler, está exercendo o seu direito de sobreviver diante de um grupo com o objetivo de eliminar os judeus”, diz o documento.

Para a FPE, “não é justo exigir que uma nação se mantenha passiva diante de um ataque covarde que estupra e mata jovens, idosos e crianças das formas mais horríveis e continua com a política de se esconder atrás de reféns (civis inocentes)”.

Ainda de acordo com a nota, as verbalizações do presidente “não representam o pensamento da maioria dos brasileiros e comprometem a política internacional de forma desnecessária”.

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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Brasil teve de pagar por sua independência; como Portugal usou o dinheiro? - Rodrigo Tavares (FSP)

Um professor catedrático convidado numa universidade portuguesa consultou-me sobre a dívida externa do Brasil na interação com Portugal na época da independência; eu disse tudo o que sabia naquele momento, sem consultar meus escritos a esse respeito. PRA

 

PORTUGAL  UNIÃO EUROPEIA



Brasil teve de pagar por sua independência; como Portugal usou o dinheiro?

Rompimento foi oficializado em 1825, mas verdadeira independência só veio décadas depois

Rodrigo Tavares

Folha de S. Paulo, 7.fev.2024 às 17h00

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/rodrigo-tavares/2024/02/brasil-teve-de-pagar-por-sua-independencia-como-portugal-usou-o-dinheiro.shtml

 

Após 1822, Portugal lutou de todas as formas possíveis, durante alguns anos, contra a independência do Brasil. Mas o que fizeram os portugueses quando, por pressão inglesa, finalmente aceitaram a perda da colônia e firmaram o Tratado de Paz, Amizade e Aliança, em 1825? Celebraram com júbilo. Um aviso do governo (versão original disponível aqui) convocou a corte para uma "grande galla", deram-se férias aos tribunais e iluminou-se toda a cidade de Lisboa ("luminarias geraes").

Ata que convocou a corte portuguesa para a 'grande galla' – Reprodução colunas e blogs

 

O Brasil teve de pagar por sua independência. O valor total foi 2 milhões de libras esterlinas, o que incluiu a amortização de um empréstimo de 1,3 milhão de libras contraído por Portugal, em 1823, junto a bancos ingleses da família Rothschild, precisamente para custear a guerra que travou contra o Brasil para anular a sua independência. A dívida era portuguesa, mas o Tesouro brasileiro foi obrigado a assumi-la. Além disso, como constava no tratado, dom João 6°, rei de Portugal, manteve, inusitadamente, o título de imperador do Brasil. Por isso os portugueses celebraram.

Ao nascer, o Brasil foi amamentado com dívidas. Mesmo antes do tratado, contraiu empréstimos, em 1822 e 1824, destinados à "aquisição de vasos de guerra" e ao pagamento de passivos do período colonial, apresentando como garantia as rendas da Província do Rio de Janeiro.

Para construir uma memória do Brasil independente, a narrativa oficial enfatizou o corte político, o grito patriótico do novo líder, o brio de uma nova nação. Porém, o Brasil manteve o cordão umbilical financeiro com Portugal por muitos anos.

Além de assumir a dívida de Portugal com bancos ingleses, a reparação a Portugal envolveu vários outros parâmetros, como uma indenização de 250 mil libras a dom João 6° pela perda das suas propriedades particulares existentes no Brasil; a compensação pelos bens confiscados ou destruídos de outros portugueses que voltaram a Portugal (e para esse efeito foi criada em 1827 uma comissão mista que acolheria as reclamações dos súditos de governo a governo); as despesas com o transporte de tropas durante a guerra de independência; o pagamento de uma frota de navios de guerra que ficaram no Brasil (7 naus, 9 fragatas, 12 corvetas, 16 brigues, 8 escunas, 4 charruas e 5 navios-correios).

Quadro 'Independência ou Morte', de Pedro Américo, no Museu do Ipiranga - Eduardo Knapp/Folhapress

Nesse pacote incluiu-se também os recursos autorizados pelo governo brasileiro para custear a guerra movida por dom Pedro 1° a seu irmão dom Miguel, após ter abdicado em 1831 do trono brasileiro. Incestuosamente, foi o Brasil que teve de pagar para que o seu antigo imperador fosse rei no país contra o qual tinha lutada pela independência.

Quando dom João 6° voltou a Portugal, em 1821, a maior parte da moeda de ouro e de prata existente foi levada no barco, ficando o Tesouro Público "sem real em seus cofres" (expressão do então ministro da Fazenda, Martim Francisco Ribeiro de Andrada). A dívida com Portugal após a independência só agravou ainda mais uma situação que já era espinhosa. Ao todo, foram contraídos 15 empréstimos entre 1824 e 1888, alguns com deságios de 35%, usados tanto para satisfazer os déficits dos ministérios da Fazenda, da Marinha e da Guerra quanto para pagar a dívida lusa. A relação do Tesouro brasileiro com a família Rothschild manteve-se intacta até às primeiras décadas do século 20em 1855, tornaram-se os agentes exclusivos do Estado brasileiro.

O pagamento da dívida total não foi nem imediato nem fácil. Tiveram de ser adotadas três convenções: a "convenção direta e especial" de 1825 (o instrumento de ratificação original está disponível nos arquivos nacionais de Portugal), uma convenção sobre a liquidação final de contas em 1840 (cujo documento de ratificação é visível aqui) e, finalmente, uma "convenção para o ajuste de contas pendentes" em 1842 (consultável aqui).

Em 1828, o Brasil deu o primeiro calote ao pagamento da dívida. Pela convenção de 1825, a dívida teria que ser paga em quatro parcelas. Não aconteceu. As negociações relativas à amortização tornaram-se cada vez mais complexas, estendendo-se pelo menos até 1860, quando "caíram no esquecimento" causado pelo desgaste.

Quatro acadêmicos portugueses e brasileiros consultados pela coluna, especialistas em dívida pública dos dois países no século 19, indicaram que não é claro quanto tempo o Brasil demorou a pagar a dívida original a Portugal (e à família Rothschild). Pela convenção de 1842, teria que ser amortizada até 1853. Porém, como declarou Marcelo de Paiva Abreu, professor-titular na PUC-Rio, "tipicamente o Brasil em meados do século 19 tomava novos empréstimos para saldar os velhos empréstimos quando venciam os prazos iniciais." Torna-se assim difícil determinar quando é que a dívida a Portugal foi quitada.

Além disso, não há evidências de que Portugal tenha adiantado quantias devidas pelo Brasil e, posteriormente, recebido reembolso, como nota Nuno Valério, professor catedrático da Universidade de Lisboa e um dos maiores especialistas em história econômica portuguesa.

Paulo Roberto de Almeida reforça que, para sabermos se o Tesouro brasileiro pagou a indenização a dom João 6° pela perda das suas propriedades no Brasil, teríamos que examinar os relatórios do Ministério da Fazenda e, se existirem, os registros do Tesouro nos anos subsequentes a 1825, "uma tarefa monstruosa e quase impossível de ser feita." Almeida é autor do livro Formação da Diplomacia Econômica do Brasil: as Relações Econômicas Internacionais no Império (Brasília: Funag, 2017).

O mal de uns é o bem de outros. O pagamento da dívida brasileira foi essencial para que Portugal pudesse reorganizar as suas finanças. A primeira metade do século havia sido dramática. As guerras com a França revolucionária e imperial (1793-1795, 1801 e 1807-1814) pilharam o país. A guerra civil entre absolutistas e liberais, que assolou Portugal entre 1832 e 1834, afundou-o ainda mais. Foi àquela altura que houve as primeiras suspensões de pagamentos dos encargos com a sua dívida pública, em 1837 e em 1846. Durante o reinado de dona Maria 2ª (1834-1853), Portugal teve 27 ministros da Fazenda.

É dessas cinzas que ascende em Portugal um dos seus mais importantes políticos daquele século: António Fontes Pereira de Melo (1819-1887). Foi ministro das Obras Públicas e presidente do Conselho de Ministros, uma espécie de primeiro-ministro da altura. Hoje dá o nome a uma das principais avenidas de Lisboa.

Foi ele que encabeçou o "fontismo", um período marcado pelo início de um grande programa de obras públicas sustentado no liberalismo econômico. Para investir em infraestrutura, Portugal teve, primeiro, de sanear as contas públicas, beneficiando-se, para isso, do pagamento ao longo dos anos da dívida brasileira. O pagamento, por parte do Brasil, do empréstimo de 1823 aos credores privados ingleses melhorou a credibilidade de Portugal nos mercados. Conseguiu, assim, reestruturar a sua dívida externa e continuar a financiar-se internacionalmente.

Com isso, construíram-se as primeiras ferrovias (a primeira é de 1856), alargou-se a malha viária (de 200 km existentes em 1850 para 10 mil km em 1890), os portos foram modernizados e toda a costa portuguesa foi robustecida com uma rede de faróis. Construíram-se escolas públicas por todo o país.

Além disso, os telégrafos surgiram em 1850 e o telefone, em 1882. O país apresentou taxas de crescimento relevantes, com um rendimento per capita equivalente a 77% da média europeia. Até que perdeu a mão, ficou demasiado alavancado e entrou em colapso financeiro no final do século. Faltou ainda fazer muita coisa. A sociedade manteve-se sobretudo rural e o analfabetismo rondava os 79% em 1890.

Essa rede de infraestrutura ainda está ativa. Uma das linhas de trem construídas durante o "fontismo", que une Lisboa a Sintra, é ainda hoje usada diariamente por 200 mil passageiros, incluindo milhares de brasileiros.

Uma das escolas construídas por Fontes Pereira de Melo foi o Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, que mais tarde deu origem ao Instituto Superior Técnico (IST) e ao Instituto Superior de Economia e Gestão (Iseg), ambos da Universidade de Lisboa, onde atualmente estudam dezenas de milhares de brasileiros.

Seria um exagero inferir que os brasileiros residentes em Portugal se beneficiam do pagamento pelo Brasil da dívida a Portugal. A história não é assim tão justa e a economia não é circular. Mas é, sim, possível concluir que a dívida brasileira prejudicou a nova nação e promoveu o desenvolvimento econômico da velha. O Brasil só se tornou verdadeiramente independente de Portugal muitas décadas depois da independência no papel.

Esse papel foi o Tratado de Paz, Amizade e Aliança firmado pelos representantes dos dois países em 29 de agosto de 1825. Dom Pedro 1° ratificou-o no dia seguinte, mas o manteve secreto até setembro. Enquanto em Portugal o tratado foi celebrado com júbilo público, no Brasil tentou-se esconder o documento para não causar nenhuma decepção.

Para uma descrição detalhada das negociações financeiras entre Portugal e o Brasil no século 19, recomendo: Teixeira Soares (1972), "O Reconhecimento do Império do Brasil", Revista de Ciência Política, Vol. 6 (3), p. 43-64; e Daniel Valle Ribeiro (1978), "A Mediação Inglesa no Reconhecimento da Independência do Brasil", Estudos Ibero-Americanos IV.

 

 


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

O país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos - Sergio Florencio (Interesse Nacional)

 O país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos.

 

Sergio Florencio, Interesse Nacional, 29/01/2024

 

O ciclo virtuoso da transição civilizada

Nos últimos trinta anos o Brasil tem sido o país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos. No início do século XXI soubemos aproveitar uma grande oportunidade. Vivemos o virtuoso reformismo econômico e social assegurado pela “transição civilizada” FHC-Lula. O tripé macroeconômico de FHC ( lei de responsabilidade fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante) assegurou estabilidade e modernização da economia, seguidas pelo aprofundamento de políticas sociais exitosas do primeiro mandato de Lula ( Bolsa Família). 


O desvirtuamento do bom caminho 

Esse ciclo virtuoso começou a se desvirtuar no meio do segundo mandato de Lula e se rompeu definitivamente com Dilma. Foi a primeira grande oportunidade perdida dos últimos trinta anos.  Mantega estendeu, para muito além do razoável, a política contracíclica, destinada a enfrentar, a curto prazo, a crise econômica internacional de 2008. O consequente descontrole das contas públicas e a turbulenta relação com o Congresso terminaram por cobrar seu preço político (impeachment) e econômico (violenta  queda de 7% do PIB no biênio 2015-2016). 

As energias desperdiçadas e os erros esquecidos. A Petrobrás endividada.

Além das oportunidades perdidas, o Brasil das últimas três décadas foi também o país das energias desperdiçadas e  dos erros esquecidos. O setor de petróleo e gás é revelador dessa trajetória. Em 1979, ano da Revolução Iraniana e do segundo choque do petróleo, o Brasil produzia apenas 15% da demanda doméstica de petróleo. Mas importantes investimentos no setor ao longo das décadas de 80 e 90 fizeram com que em 2006 o país alcançasse a autossuficiência em petróleo. Para isso, contribuíram de forma significativa as reformas realizadas no governo FHC: o fim do monopólio da Petrobrás; a abertura do setor; e a internacionalização da empresa, com o lançamento de ações na bolsa de valores de Nova York.  

Essa modernização ocorreu tendo como marco regulatório o modelo exploratório de concessão. Entretanto, em 2006, com o anúncio da descoberta das reservas extraordinárias do pré-sal, o governo Lula iniciou a transição para o modelo de partilha. No regime de concessão, a empresa concessionária é dona de todo o petróleo que produz, enquanto na partilha o dono é o Estado. 

O primeiro problema da mudança do modelo foi a inércia. Entre o anúncio da descoberta do pré-sal e o primeiro leilão, no campo de Libra, em 2013, se passaram longos sete anos, com elevado prejuízo para o país. Além disso, no novo marco regulatório, a Petrobrás assumiu a condição de única operadora do pré-sal, o que desestimulou a participação de empresas estrangeiras nos leilões e obrigou a Petrobrás a explorar campos com menor rentabilidade. 

 Dois outros fatores contribuíram para agravar os vultosos prejuízos da Petrobrás: o congelamento de preços dos combustíveis, destinado a conter a inflação; e os desastrosos projetos de construção da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – COMPERJ.  

As perdas resultantes da política de congelamento dos preços da gasolina agigantaram a dívida da Petrobrás, que atingiu seu pico de R$ 507 bilhões no terceiro trimestre de 2015. A título comparativo, a empresa registrou oficialmente perdas resultantes de corrupção no valor de R$6,19 bilhões, no período 2004-2012.

O COMPERJ, apesar de gastos elevados, praticamente nada avançou e o desperdício com a refinaria Abreu e Lima foi exponencial. Sua construção foi orçada em US$ 2,3 bilhões em 2005. Quatro anos depois esse valor se elevou para US$ 13 bilhões, e em 2015 o custo se aproximava de US$ 20 bilhões, quando as obras foram interrompidas, tendo sido concluída apenas metade da refinaria. 

Os projetos fracassados da refinaria de Abreu e Lima e do COMPERJ deverão ser retomados no atual governo, numa demonstração de que, além das oportunidades perdidas, o Brasil é também o país dos erros esquecidos.

 

O anunciado governo da união e da reconstrução perde seu rumo

 Com a vitória da extrema direita bolsonarista em 2018, o país despertou da ilusão generalizada de ter instituições sólidas e de ser uma democracia consolidada. Ao contrário, essa estava ameaçada como em 1964, mas  com uma engenharia de desconstrução política distinta. Dispensava os tanques na rua, os militares no primeiro plano e, por meio da falência dos órgãos vitais das instituições, planejava a morte da  democracia. Mas Bolsonaro não foi reeleito, a democracia se salvou, e a vitória de Lula se dava de forma distinta dos pleitos anteriores.  Repetia o apoio tradicional das regiões mais pobres (Nordeste e Norte), mas resultava  da combinação de dois ingredientes inéditos: o anti- bolsonarismo resultante da polarização/calcificação política; e o apoio de variadas correntes liberais democratas, temerosas da morte da democracia. 

Esses dois ingredientes na vitória de Lula criavam a  oportunidade de uma união nacional, destinada a superar a divisão entre  a extrema direita bolsonarista e a esquerda lulista.  Essa união nacional resultaria da aproximação entre a esquerda intervencionista e o centro liberal democrata. Esse cenário, obviamente difícil, parecia interessar não só ao centro – órfão político com o virtual desaparecimento do PSDB- mas também à esquerda, que precisava ampliar seus apoios, uma vez que a vitória eleitoral de Lula sobre Bolsonaro  foi inferior a 2%. 

Mas esse cenário virtuoso de união nacional foi jogado fora. Mais uma vez, o Brasil se revelou o país das oportunidades perdidas. Logo após a eleição, Lula anunciou seu projeto de união e reconstrução do país, mas seguiu caminhos distantes de tal propósito. Em lugar de se aproximar do centro – decisivo na sua apertada vitória sobre Bolsonaro - Lula preferiu privilegiar o PT raiz. A retórica e a prática do novo governo o distanciaram do centro, com base na premissa de que a polarização beneficiaria o PT, porque repetiria o confronto lulismo  versus bolsonarismo(mesmo com Bolsonaro inelegível). Nessa ótica equivocada, qualquer gesto em direção ao centro deveria ser evitado, pois era visto como jogo de soma zero – o ganho para o centro equivaleria a perda  da esquerda. 

 

A política externa virtuosa de Lula I e II em contraste com os excessos de Lula III

A política externa é outro exemplo de oportunidades perdidas. A atuação internacional de Bolsonaro foi uma desastrosa sucessão de graves equívocos que aproximaram o país da condição de pária no mundo. O propósito declarado era desconstruir princípios e paradigmas que orientaram a diplomacia brasileira. Nesse contexto caótico, a eleição de Lula provocou profundo alívio e grandes esperanças no mundo.  Lula assumiu sob signo “O Brasil está de volta”. Apesar desse ambiente de calorosa receptividade, justificado pelo capital de credibilidade internacional construído ao longo dos dois mandatos anteriores de Lula, a política externa do atual governo vem contrastando com o padrão histórico de defesa profissional dos interesses nacionais.  

O Brasil é uma potência regional com interesses globais. Temos condições de influenciar os rumos de nossa região, mas não dispomos de capacidade militar, de poder político, nem de peso econômico capaz de mudar os grandes acontecimentos globais. Avaliar com realismo o lugar do Brasil no mundo é condição necessária para uma política externa destinada à defesa do interesse nacional e não à busca de protagonismo internacional. 

O atual governo está falhando nesse processo. As declarações de Lula sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia apoiaram, de forma irrefletida e contrária ao direito internacional, a agressão russa ao território ucraniano. Com hesitação, tentamos corrigir esse erro, sempre com a aspiração de influir num conflito que vai muito além de nossas forças. Repetiu o Presidente esse erro de avaliação na guerra Hamas-Israel, ao buscar repatriar os brasileiros na Faixa de Gaza recorrendo ao Presidente Raizi do Irã, em óbvio erro tático. 

A barbárie do Hamas ao invadir kibutzes em território israelenses, executar com requintes de crueldade 1200 cidadãos mereceu ampla condenação internacional. A barbárie israelense, mais devastadora ainda, com a tragédia humanitária do saldo de mais de 20 mil palestinos, cerca de 1% da população da Faixa de Gaza, e 70% da infraestrutura, merece condenação mais veemente ainda. A diplomacia brasileira, na presidência do CSNU agiu de forma equilibrada e coerente com princípios e paradigmas de nossa política externa. Entretanto, uma vez mais, a retórica presidencial, ao atribuir aos bárbaros crimes de guerra israelenses a controvertida classificação de genocídio, desvirtua nossa tradição diplomática. 

Na nossa região, onde temos um histórico de equilíbrio construtivo no convívio com mais de dez vizinhos, o saldo do atual governo é muito negativo, por apoiar de forma recorrente os regimes autoritários de Maduro e Daniel Ortega, e ao criticar, com arrogância, Daniel Boric, o representante de uma esquerda moderna na região. 

No plano global, nosso alinhamento quase automático a posturas e aspirações da China no âmbito do BRICS ampliado, composto em sua maioria por regimes antidemocráticos, nos distancia dos países que defendem  a democracia liberal. Nossa postura reflete um antiamericanismo pouco compatível com os interesses nacionais. 

Em síntese, os últimos trinta anos de nossa história revelam, na economia, na política e nas relações internacionais, o padrão de uma nação com enormes potencialidades. Mas, ao mesmo tempo, o país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos. 

 

Sergio Abreu e Lima Florencio

Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 2024. 


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

O que aguarda o Brasil em 2024? - Paulo Roberto de Almeida (revista Crusoé)

 Artigo mais recente publicado: 

1543. “O que aguarda o Brasil em 2024?”, revista Crusoé (n. 297, 12/01/2024, link: https://crusoe.com.br/edicoes/297/o-que-aguarda-o-brasil-em-2024/). Relação de Originais n. 4531. 

Alguns trechos: 

O que aguarda o Brasil em 2024?

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Prognósticos para o novo ano.

1543. “O que aguarda o Brasil em 2024?”, revista Crusoé (n. 297, 12/01/2024, link: https://crusoe.com.br/edicoes/297/o-que-aguarda-o-brasil-em-2024/). Relação de Originais n. 4531. 

  

Os prognósticos eram quase todos promissores ao início de 2023, quando Lula iniciou seu terceiro mandato. Logo em seguida ocorreu o 8 de janeiro, a tentativa golpista dos adeptos do ex-presidente fugido, o que chocou o Brasil e o mundo, inclusive vários dirigentes estrangeiros que tinham vindo para a posse. Os economistas, por sua vez, faziam estimativas sombrias para o crescimento econômico, menos de 1% do PIB, com inflação e juros ainda nas alturas. A maioria conservadora do Congresso, do seu lado, se encarregou de reduzir as expectativas do governo quanto às grandes mudanças propostas pelo presidente eleito. A grande revelação foi o ministro da Fazenda, que conseguiu arrancar, a trancos e barrancos, algumas das medidas econômicas mais relevantes para o futuro do Brasil. 

(...)

Alguns dos principais desafios do terceiro mandato de Lula se situam no âmbito da política externa, uma vez que o Brasil estará, em 2004, no comando do G20, com propostas até bem-vindas no campo social e ambiental, mas também com a ilusória pretensão de uma grande reforma na estrutura da governança global, o que parece impossível, dado o aumento das tensões mundiais já identificadas a uma nova “Guerra Fria”. Nesse terreno, as opções de Lula se chocam com o seu tratamento leniente dos grandes violadores da paz e da segurança internacionais, por acaso proponentes de uma “ordem global não ocidental”, pela qual o presidente já manifestou diversas vezes sua predileção. Mais adiante virá a organização da conferência sobre aquecimento global na própria Amazônia, onde estarão em curso os novos projetos da Petrobras de exploração dos recursos eventualmente detectados in e off shore. No intervalo, continuarão as discussões com os parceiros do Mercosul e da União Europeia em torno dos projetos de reforma do bloco – no qual o Brasil estará relativamente isolado, em face de governos bem mais liberais – e da possibilidade de concluir um acordo que se arrasta penosamente em face dos protecionistas dos dois lados há mais de duas décadas. 

Surpresas certamente advirão no decorrer de 2024, tanto no plano interno, quando no cenário externo, para as quais o presidente e seu governo precisam estar preparados, pois sucessos e insucessos de alternarão ao longo dos próximos meses. Ainda não se tem um documento de governo claramente definido em função dos seus grandes objetivos, inclusive porque, tanto na arena da política doméstica quanto no teatro da política externa, o Executivo não dispõe de comandos suficientes para controlar a marcha e o conteúdo de suas propostas e reações aos desafios que inevitavelmente surgirão. O personalismo no ambiente interno e a diplomacia excessivamente presidencial no cenário internacional podem não ser as alavancas adequadas para uma governança efetiva em face da complexidade dos problemas que marcam o Brasil e o mundo na presente conjuntura histórica de transformação geopolítica. 

Os paradoxos de uma globalização fragmentada – crescimento, crise e concentração ao mesmo tempo – afetaram o funcionamento do multilateralismo contemporâneo e os grandes Estados (com a possível exceção da União Europeia) apresentam visível tendência a atuar unilateralmente, inclusive porque suas políticas internas também se encontram divididas em grupos ou lideranças mais radicais que disputam o poder. A atmosfera política e econômica do mundo é mais de névoa e de sombras do que de céu claro e caminhos desimpedidos. Lula terá algumas difíceis escolhas a fazer, num e noutro ambiente, daí a importância de se cercar de boas assessorias: econômicas, políticas e diplomáticas.

 

Paulo Roberto de Almeida

 

Brasília, 4531, 26 dezembro 2023, 3 p.

Publicado na revista Crusoé (n. 297; 12/01/2024; link: https://crusoe.com.br/edicoes/297/o-que-aguarda-o-brasil-em-2024/). Relação de Publicados n. 1543.

 


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

A nossa extrema-direita – e as deles - Demétrio Magnoli (Interesse Nacional)

Uma única correção a este artigo de Demetrio Magnoli: o artigo de Ernesto Araujo, Trump e o Ocidente”. Cadernos de Política Exterior, v. 3, n. 6, IPRI/FUNAG, Brasília, é de 2017, não de 2018. Eu era editor dos Cadernos nessa época, mas retirei o meu nome do expediente, não por causa da bizarrice, mas de outra questão.

Paulo Roberto de Almeida


A nossa extrema-direita – e as deles

Demetrio Magnoli

Interesse Nacional, janeiro de 2024

 

 Demétrio Magnoli é sociólogo, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, colunista dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, comentarista internacional na GloboNews.

 

 

O triunfo eleitoral de Donald Trump, em 2016, ativou os alarmes: as democracias ocidentais enfrentavam o desafio da ascensão do populismo de direita. Na Europa, partidos populistas de direita obtiveram, em 2018, perto de 15% dos votos totais, contra menos de 5% em 1998 – e alguns deles tinham forte presença nos gabinetes de governo. Por isso, naquele ano, a vitória do extremista Jair Bolsonaro parecia significar a inserção do Brasil numa tendência mais geral.

Sem surpresa, fixou-se uma narrativa predominante que inscreve a extrema-direita bolsonarista no panorama internacional do avanço da direita populista. O argumento deve ser divido em duas teses distintas: 1) o bolsonarismo articula-se politicamente com correntes internacionais da extrema-direita; 2) as raízes ideológicas do bolsonarismo são similares às das principais correntes internacionais da extrema-direita.

A primeira tese é factualmente comprovável – mas tende a superestimar a relevância dessas articulações. A segunda tese é basicamente equivocada: o bolsonarismo não é mera expressão nacional das ideias que movem o populismo de direita nos EUA ou na Europa.

 Deus e Pátria

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A invocação da fé religiosa pontilhou os discursos oficiais do governo Bolsonaro, do presidente à ministra dos Direitos Humanos, passando por Ernesto Araújo, seu primeiro ministro das Relações Exteriores. Paralelamente, o governo insistiu nos ícones da nacionalidade. Como esquecer a frustrada iniciativa do ministro da Educação de solicitar às escolas vídeos de professores e alunos entoando o hino nacional, durante o hasteamento do auriverde pendão da esperança? Ou a conclamação do porta-voz presidencial, general Otávio Rêgo Barros, para “toda a sociedade prostrar-se diante da bandeira ao menos uma vez por semana”?

É um equívoco transferir a ladainha carola e “nacionalisteira” para o arquivo morto dos anacronismos. Há um sentido mais profundo no recurso exaustivo a tais referências: nos EUA, primeiro, e no Brasil, depois, o populismo de direita encontrou uma refutação eficaz do multiculturalismo.

Há décadas, as elites políticas liberais e de esquerda substituíram o discurso universalista (cidadãos) pelo discurso multiculturalista (minorias). A diferença converteu-se em valor supremo, enquanto dissolvia-se a aspiração à igualdade (de direitos, de oportunidades). A nação deu lugar a uma miríade de grupos singulares (negros, mulheres, gays). A ideia de direitos universais (educação, saúde, previdência, transportes) deu lugar à chamada discriminação positiva (leis e regras específicas, cotas de gênero ou de “raça”). Deus e a pátria fazem seu caminho no espaço aberto por essa abdicação histórica.

A estratégia manipula poderosos signos de igualdade. O “Brasil acima de tudo” cumpre dupla função. Na sua face oculta, tenta identificar a pátria ao governo, um expediente autoritário clássico. Mas, na sua face pública, veicula uma mensagem inclusiva: todos – ricos e pobres, homens e mulheres, “brancos” e “negros” – pertencem igualmente à comunidade nacional. O nacionalismo da direita populista carrega as sementes da xenofobia (diante do imigrante) e da intolerância política (diante das oposições). Ao mesmo tempo, oferece um abrangente manto comum – e, com ele, a promessa de resgate dos fracos e humilhados.

As religiões monoteístas deitaram raízes pois ofereciam uma base pétrea de legitimidade aos governantes (um Deus no céu, um imperador na Terra) e, simultaneamente, a esperança de justiça aos desamparados (todos são filhos do mesmo Deus). O “Deus acima de todos” também desempenha dois papeis. Numa ponta, corrói a laicidade estatal e propicia o acesso das igrejas à mesa do poder. Na outra, apela ao sentido popular de igualdade: nenhuma ovelha do rebanho será deixada para trás.

Deus, a bandeira e o hino são chaves narrativas compartilhas por Trump, nos EUA, Vladimir Putin, na Rússia, Recep Erdogan, na Turquia, Viktor Orbán, na Hungria, e a coalizão Meloni/Salvini, na Itália. Nesse plano mais genérico, Bolsonaro participa do movimento geral da direita populista.

Num artigo de ressonâncias místicas, publicado em novembro de 2018, Ernesto Araújo encontrou no “Deus de Trump” o motor da história.[1] O “pan-nacionalismo”, a identidade cristã, Spengler e a xenofobia unem-se como escudos contra o “cosmopolitismo” e o “liberalismo”. Três meses depois, Eduardo Bolsonaro tornou-se o “representante na América Latina” do movimento de partidos populistas de direita articulado por Steve Bannon. Era o ensaio de uma “Internacional dos nacionalistas”, uma contradição em termos fadada ao insucesso.

A geringoça andou um pouco. Na visita presidencial aos EUA, em março de 2019, a comitiva brasileira ofereceu um jantar que teve Bannon como convidado especial. Depois, em abril, Eduardo Bolsonaro fez um giro europeu de encontros com líderes da direita nacionalista, iniciado por uma visita ao então co-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini. Mas o Movimento de Bannon logo desandou, esbarrando nas divergências entre os líderes da direita europeus e na resistência de vários deles a se submeterem ao ideólogo americano.

Sob o patrocínio de Trump e de Orbán, no lugar da “Internacional dos nacionalistas”, nasceu uma “Internacional cristã”: a International Religious Freedom (Belief Alliance).[2] Sob o manto da liberdade de crença, a aliança reuniu, além das lideranças políticas cristãs que a conceberam, correntes religiosas conservadoras hindus, muçulmanas e judaicas. Araújo participou de sua estruturação, em 2020.[3] Entretanto, suas atividades só deslancharam após a demissão do ministro, no início do ano seguinte. A articulação contou com a entusiasmada adesão do Brasil – mas basicamente a cargo de Damares Alves, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, com discreta participação do Itamaraty.[4]

O “Deus de Trump” produziu escassos frutos, do ponto de vista dos alinhamentos geopolíticos internacionais. A política externa bolsonarista, enunciada aos brados por Araújo, praticamente limitou-se a visitas, encontros e conferências sectárias, além de frequentes votos antiliberais em fóruns internacionais. Muita fumaça, pouco fogo.

 Ideia fora de lugar

O bolsonarismo foi descrito como expressão brasileira da onda nacionalista e populista que varre o Ocidente. No fundo, porém, o bolsonarismo é uma exceção.

A poesia épica do populismo de direita nasce na gramática do medo. Nos EUA e na Europa, a angústia, a insegurança diante do futuro alimentou a onda populista em curso, que ainda não dá sinais consistentes de retrocesso. Nesse sentido genérico, o Brasil acompanhou a tendência internacional. Bolsonaro foi catapultado ao Planalto por eleitores temerosos, inseguros, indignados. Mas, por aqui, os eleitores não foram seduzidos pela narrativa ideológica do bolsonarismo. O voto negativo, não a adesão política, definiu o triunfo de um líder carente de bases sociais sólidas. Aí reside nossa excepcionalidade.

O grande tropeço da globalização, iniciado em 2008, deflagrou a ascensão do populismo nacionalista. Trump venceu no Colégio Eleitoral apoiando-se na baixa classe média branca submetida à corrosão da indústria tradicional. A crise do euro, seguida por longos programas de austeridade econômica, inflou o balão dos partidos da nova direita europeia. Dos megafones de Trump, Salvini, Le Pen, Farage, Orbán e tantos outros emanaram as conclamações antiliberais do nativismo, da xenofobia e do protecionismo.

No Brasil, Bolsonaro também emergiu do caos: a depressão econômica armada pelas estratégias fiscais do lulo-dilmismo. A campanha bolsonarista apertou as teclas sensíveis da corrupção e da criminalidade, mas o triunfo eleitoral derivou do colapso catastrófico do sistema político. Lá fora, uma corrente histórica profunda impulsiona a nova direita nacionalista. Aqui, um cruzamento de circunstâncias fortuitas colocou um político obscuro na cadeira presidencial.

A extrema-direita brasileira é uma ideia fora de lugar: a imitação sem disfarce de um discurso elaborado nos EUA ao longo de mais de dois séculos. Lá, a noção de liberdade foi moldada em oposição aos conceitos de democracia e igualdade perante a lei. A “liberdade dos estados” funcionou como oposição à existência de uma Constituição nacional, depois como alicerce do sistema escravista e, finalmente, como moldura das leis de segregação racial. Hoje, reciclada, a reivindicação fundamenta as legislações destinadas a restringir o acesso às urnas em estados controlados pelos republicanos.

No Brasil, uma semana antes do 7 de setembro de 2021, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) publicou o manifesto do bolsonarismo.[5] A Fiesp e a Febraban haviam ensaiado discurso da democracia, curiosamente definida como “harmonia entre os Poderes”. Em contraponto, a Fiemg intitulou sua declaração com a senha de combate da extrema-direita: Manifesto pela Liberdade.

Um centro de comando único, uma espécie de Comitê Central, esculpiu os discursos do bolsonarismo. Assim como o texto da Fiemg, as bandeiras dos atos bolsonaristas daquele 7 de setembro sofreram uma padronização, organizando-se em torno da senha principal. Tudo – os ataques ao STF, as injúrias contra governadores e parlamentares, a contestação das urnas eletrônicas – foi recoberto por uma mão de tinta fresca que exibia a palavra liberdade.

“Assistimos a uma sequência de posicionamentos do Poder Judiciário que acabam por tangenciar, de forma perigosa, o cerceamento à liberdade de expressão no país”, escreveram os industriais mineiros para condenar o inquérito das fake news – e, de passagem, oferecer um apoio implícito ao pedido de impeachment do juiz Alexandre de Moraes. Liberdade, desdobrada em “liberdade de expressão” e “liberdades individuais”, era esta a mensagem.

A senha emergiu, igualmente, em textos assinados pelo ministro da Defesa, Braga Netto, um expoente da agitação bolsonarista entre os militares. Na nota de repúdio às declarações do senador Omar Aziz (7 de julho), o general proclamou que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.[6] Duas semanas depois, em nota de desmentido de ameaças de golpe (22 de julho), expressou o compromisso das Forças Armadas com “a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”.[7]

A Constituição atribui às Forças Armadas as missões de “defesa da Pátria”, “garantia dos poderes constitucionais” e, por iniciativa de um deles, proteção “da lei e da ordem”. A “liberdade do povo brasileiro” era uma invenção (in)constitucional de Braga Netto –  ou melhor, dos mestres ideológicos que o controlavam. Mas, aqui, o que importa é registrar a consistência do discurso bolsonarista.

Liberdade – não democracia. A opção tem significado e implicações. O conteúdo da liberdade depende do ponto de vista do sujeito do discurso. Democracia, porém, tem conteúdo objetivo: o sistema de governo baseado na vontade da maioria filtrada por leis e instituições que limitam o poder dos governantes, asseguram os interesses permanentes da sociedade e protegem os direitos da minoria. Fora da democracia, liberdade é privilégio de uma minoria que tem poder. Os arautos bolsonaristas da “liberdade” são os saudosistas da ditadura militar que acalentaram o sonho de um golpe contra as liberdades democráticas.

 Aliança profana

Paulo Guedes, o superministro da Economia,  definiu o governo Bolsonaro como uma aliança entre conservadores e liberais.[8] Era, claro, um álibi destinado a justificar sua própria adesão ao presidente extremista – mas também um duplo equívoco conceitual. A extrema-direita bolsonarista não é conservadora, mas reacionária: defende uma ruptura com a democracia e um retrocesso à “idade de ouro” da ditadura militar. Já o liberalismo econômico do governo resumia-se a uma fantasia destinada a recobrir políticas fiscais populistas que desmoralizaram o teto de gastos e tentativas de subordinar a Petrobras às necessidades reeleitorais do presidente.

A “santa aliança” de Guedes deflagrou um debate público sobre as relações entre liberalismo e democracia. “É natural que a Fiesp assine um manifesto em defesa da democracia, já que não existe liberalismo, economia de mercado ou propriedade privada, valores tão caros à entidade e ao setor industrial, sem que exista segurança jurídica, cujo pilar essencial é a democracia e o Estado de Direito”, declarou Josué Gomes da Silva, presidente da entidade empresarial paulista no início da campanha eleitoral de 2022.[9]

O manifesto cumpria um papel positivo, mas a justificativa continha uma imprecisão conceitual: o liberalismo não precisa, necessariamente, da democracia.

O liberalismo tomou de assalto o Ocidente no século XIX, antes do advento das democracias contemporâneas. Os princípios liberais clássicos – os direitos individuais, as liberdades civis e políticas, o secularismo, o livre mercado – estabeleceram-se em regimes políticos aristocráticos ou oligárquicos. A democracia chegou depois.

Democracia supõe o direito universal de voto, algo que só se difundiu ao longo do século XX. Os sistemas pioneiros de governo liberais baseavam-se no consentimento de uma minoria que gozava do privilégio de plenos direitos políticos. Durante um longo período, massas de pobres eram excluídas do voto por muralhas ligadas à propriedade ou à renda e as mulheres simplesmente não tinham direito de voto.

O rótulo democracia liberal indica uma ruptura. O liberalismo sofreu uma revolução interna para adaptar-se ao advento da democracia de massas. Nesse passo, tornou-se menos “puro” na esfera econômica, pois teve que admitir as intervenções estatais destinadas a combater a pobreza extrema e as mais clamorosas desigualdades sociais.

Nem todos curvaram-se aos novos tempos. Uma corrente de economistas liberais, aferrada ao dogma da absoluta liberdade de mercado, enxergou na democracia liberal um malévolo disfarce do socialismo. Dessa crença nasceu uma atração por regimes autoritários dispostos a conduzir programas de radical liberalização econômica.

No ponto de partida, o pensamento liberal enxergava as liberdades políticas e econômicas como partes indissociáveis de uma mesma doutrina. Milton Friedman, pai-fundador da Escola de Chicago, desafiou essa tradição ao operar como conselheiro do ditador chileno Augusto Pinochet e do regime totalitário chinês. A liberdade, imaginava Friedman, floresce na esfera econômica, alastrando-se mais tarde pela esfera política.

A dissociação teórica entre as duas esferas propiciou um álibi político à corrente de liberais que enxergam a democracia como valor secundário ou mesmo como obstáculo à promoção irrestrita da liberdade de mercado. A adesão de significativa parcela do empresariado brasileiro à candidatura de Bolsonaro em 2018 encontra aí uma base ideológica.

Guedes falou em “democracia responsável”, conectando-se a uma extensa tradição autoritária de adjetivação da democracia.[10] Nesse passo, reuniu-se com personagens como Oliveira Salazar (“democracia orgânica”), Erdogan (“democracia conservadora”) e Putin (“democracia soberana”). Os falsos liberais brasileiros, sempre dispostos a conciliar com o populismo econômico, aliaram-se aos reacionários saudosistas da ditadura militar. A aliança profana entre Bolsonaro e Guedes ilumina a singularidade brasileira: nos EUA e na Europa, a direita nacionalista e a extrema-direita abominam o liberalismo.

A atual direita republicana nos EUA, ainda liderada por Trump, deita raízes no nativismo, na xenofobia e no isolacionismo. Contudo, no plano econômico, prega o protecionismo comercial e aponta a globalização (às vezes, nas formas da China e do México) como responsável pelas agruras que afligem o “americano esquecido”.

Os partidos da direita populista europeia que ascenderam recentemente deitam raízes em correntes profundas das histórias nacionais. A Reunião Nacional francesa deriva tanto da nostalgia do regime colaboracionista de Vichy quanto do neocolonialismo poujadista. O Vox, na Espanha, nutre-se da memória do franquismo. O Irmãos da Itália, de Giorgia Meloni, engaja-se na atualização do mussolinismo. Todos eles, porém, encontram-se no pátio da “democracia iliberal” pregada por Orbán.

Aliança entre liberais de araque e reacionários saudistas. A extrema-direita bolsonarista é, em parte, uma imitação. Mas, no fundo, é uma colcha de retalhos incongruentes e um fenômeno singular.   n


[1]. “Trump e o Ocidente”. Cadernos de Política Exterior, v. 3, n. 6, IPRI/FUNAG, Brasília, 2018.

[2]. https://bit.ly/3xMH3Hk

[3].  https://bit.ly/3ZdmdMZ

[4]. https://bit.ly/3ZcVbFD

[5].  Manifesto pela Liberdade, FIEMG. https://bit.ly/3KEK3NI

[6].  Nota Oficial – Ministério da Defesa, 7/7/2021. https://bit.ly/3Z2TQRW

[7]. Nota Oficial – Ministério da Defesa, 22/7/2021. https://bit.ly/3ZnzYci

[8]. O Estado de S. Paulo, 22/2/2022. https://bit.ly/3SroO3T

[9]Folha de S. Paulo, 4/8/2022. https://bit.ly/3ZmKJeU

[10]Valor, 26/11/2019. http://glo.bo/41ugLaH