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quarta-feira, 11 de abril de 2018

A diplomacia brasileira e as clausulas democraticas - Eduardo Paes Saboia

A diplomacia brasileira e as cláusulas democráticas: totem e tabu

No dia 2 de dezembro último, a Venezuela foi oficialmente suspensa do Mercosul por não ter incorporado ao seu ordenamento jurídico interno a totalidade das normas exigidas pelo Protocolo de Adesão. A chanceler venezuelana, Delcy Rodriguez, desconsiderou a medida e criticou a “Lei da Selva de alguns funcionários que estariam destruindo o Mercosul”. No Brasil, a ex-presidente Dilma Rousseff lembrou que tampouco o Brasil teria incorporado algumas das normas que se estava a exigir da Venezuela.[1]
A polarização de opiniões em torno das cláusulas democráticas é um fenômeno recente. Nos anos 1990, parecia ser mais fácil alcançar um entendimento quanto à natureza de um regime democrático. Vinte anos depois o panorama tornou-se menos claro.
Comentamos aqui quatro episódios que ajudam a elucidar essa transformação e a apontamos possíveis caminhos para a diplomacia brasileira nessa temática.
Os mecanismos de proteção democrática ou cláusulas democráticas entraram em voga no Sistema Interamericano nos anos 1990. Seu surgimento foi duplamente impulsionado pela redemocratização na América Latina e o fim da Guerra Fria. Antes disso, a Organização dos Estados Americanos (OEA) já se havia referido à importância da democracia representativa. Nas décadas anteriores, no entanto, o apoio da OEA à democracia se enquadrava geralmente na lógica da rivalidade Leste-Oeste e dos interesses econômicos norte-americanos. Em nome da democracia, os Estados Unidos empreenderam a derrubada, em 1954, do presidente da Guatemala, Jacobo Arbénz, eleito democraticamente, e a invasão da República Dominicana por tropas norte-americanas, em 1965, ambas iniciativas com o beneplácito da OEA. Enquanto isso, a Organização fazia vista grossa para as ditaduras militares latino-americanas.
A posição brasileira em relação ao proselitismo democrático (com a notável exceção da decisão brasileira de participar da Força Interamericana de Paz na República Dominicana) resumia-se a uma palavra: desconfiança. Temia-se encorajar os ímpetos intervencionistas norte-americanos. Sobretudo na América Central. Nos anos 1990 esse sentimento arrefeceu, mas não totalmente.
A diplomacia brasileira participou construtivamente da elaboração dos mecanismos de proteção democrática no âmbito da OEA, mas sempre com a preocupação em não criar instrumentos rígidos ou excessivamente intrusivos. Para o Brasil, importava preservar a margem para a solução negociada de crises. A OEA produziu dois instrumentos principais de proteção à democracia: a) o Compromisso de Santiago com a Democracia Representativa e a Resolução 1080, ambos de 1991, que formam o primeiro regime de proteção coletiva da democracia; e a b) a Carta Democrática Americana (2001), atual marco normativo da OEA sobre o assunto.
O Mercosul não tardou a seguir o mesmo caminho da OEA. O bloco passou por duas etapas de elaboração normativa. A primeira compreende a Declaração Presidencial de Las Leñas (1992) e a Declaração Presidencial sobre Compromisso Democrático (1996), compromissos não-vinculantes de defesa da democracia. A segunda abrange o Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul (concluído em 1998, mas tendo entrado em vigor em 2002)[2].
As cláusulas democráticas foram colocadas à prova já em 1992, quando o presidente peruano Alberto Fujimori promoveu um autogolpe. Com base na resolução 1080, o secretário-geral da OEA, João Clemente Baena Soares e o chanceler uruguaio, Hector Gross Espiell, foram despachados a Lima para negociar o restabelecimento da ordem democrática. A intensa atividade diplomática surtiu efeito positivo, e o Peru comprometeu a realizar eleições para Assembleia Constituinte[3].
Nesse episódio, o Brasil engajou-se numa solução pragmática, evitando sanções ou exigência de retorno a status quo ante. A diplomacia brasileira trabalhou com a preocupação de “preservar a nossa adesão ao princípio da defesa da democracia representativa, sem perder de vista a importância e peculiaridades do relacionamento com o Peru. ” [4]
Outro teste para a democracia regional ocorreu no Paraguai. Era 1996, e Juan Carlos Wasmosy, primeiro presidente eleito após a redemocratização, via sua autoridade ameaçada pelo comandante do Exército, general Lino Oviedo. Na iminência de sofrer um golpe, Wasmosy recorreu ao Governo brasileiro, que lhe ofereceu apoio. Com a ajuda do embaixador do Brasil em Assunção, Márcio de Oliveira Dias, Wasmosy arquitetou um plano ardiloso para neutralizar Oviedo[5]. A atuação preventiva da diplomacia brasileira envolveu entre outras ações: pressões sobre Wasmosy para que não renunciasse; o convencimento de congressistas paraguaios a fim de não acolherem eventual; e a articulação de uma saída honrosa para Oviedo. A crise foi debelada em poucas horas, quando Oviedo se viu sem apoio para levar adiante suas pretensões de poder.
O respaldo do Mercosul a Wasmosy, por meio de comunicados oficiais, ocorreu em complemento à movimentação diplomática desencadeada pelo Brasil e outros protagonistas importantes em Assunção.
A ação tempestiva e eficaz do Brasil diante da primeira ameaça de ruptura democrática no Mercosul, projeto que, àquela altura, se tornara o carro chefe da política externa brasileira, inaugurou um padrão de conduta diplomática, que conjugava a negociação diplomática (de preferência preventivamente) e a invocação de cláusulas democráticas. Contudo, esse padrão não se repetiu em 2012.
Em 2012, o Paraguai voltou a atravessar grave crise política. O presidente paraguaio Fernando Lugo havia sido alvo de processo de impeachment relâmpago. A rapidez do procedimento surpreendeu a todos, embora o texto constitucional paraguaio admitisse essa possibilidade.
Não foi essa a opinião dos chanceleres do Mercosul, que –depois de visita às pressas a Assunção- concluíram ter havido ruptura da ordem democrática e razão suficiente para aplicar a suspensão prevista no Protocolo de Ushuaia. Como resultado, o Paraguai foi impedido de participar dos foros do Mercosul “até o restabelecimento da ordem democrática”, isto é, até a posse do presidente Horacio Cartes, que, eleito, assumiu em agosto de 2013.
O caso gerou muita polêmica. Primeiro, em razão da fragilidade jurídica da sanção: o rito constitucional do impeachment havia sido respeitado. Como bem sintetizou Doratioto, “Lugo foi constitucionalmente eleito e constitucionalmente deposto. Não só ele foi eleito, os deputados e os senadores também foram. ”[6] Outra crítica foi a não realização da etapa de consultas, prevista no Protocolo de Ushuaia[7].
Se o impeachment foi consumado no afogadilho, o mesmo se pode dizer da decisão de suspender o Paraguai. Não houve, como em 1996, espaço para ações preventivas ou sequer paliativas. Ao embarcar numa ação coletiva patrocinada pela Argentina e Venezuela, o Brasil abdicou de um formidável ativo de que dispunha, particularmente em função da usina de Itaipu: a importância sem paralelo do Brasil para o Paraguai.
O ingresso da Venezuela foi efetivado ato contínuo à suspensão Paraguai[8]. A medida foi amplamente interpretada como manobra para contornar o impasse em torno da ratificação do Protocolo de Adesão da Venezuela, que o Senado paraguaio se recusava em aprovar.
A suspensão do Paraguai marca inflexão na agenda política do Mercosul, sendo apontada como exemplo de decisão movida muito mais por afinidades partidárias entre o Partido dos Trabalhados e o Frente Guasú, base de apoio de Lugo, do que pela boa prática diplomática. O episódio deixou um saldo negativo para o Governo brasileiro, que se desgastou não apenas com o Governo paraguaio, mas também com o Congresso Nacional, que identificou ali uma prova da fragilidade da atuação do Executivo (particularmente do Itamaraty) no front diplomático. Parlamentares críticos ao Governo brasileiro aproveitaram a oportunidade para impulsionar um protagonismo diplomático do Congresso Nacional sem precedentes na tradição brasileira.
A repressão do Governo venezuelano diante das manifestações populares de fevereiro de 2014, inclusive a prisão de líderes oposicionistas, levou à intensificação do ativismo diplomático do Congresso brasileiro. Àquela altura a oposição venezuelana havia perdido toda interlocução com o Itamaraty[9].
Quando líderes como a ex-deputada Maria Corina Machado saíram em busca de apoio internacional à sua causa, o Congresso brasileiro aproveitou a oportunidade[10]. No Brasil, a bancada da oposição já identificava na política externa, sobretudo nas relações com a Venezuela e a Bolívia, uma fragilidade a ser explorada politicamente[11].
Na segunda metade de 2015, as preocupações em torno da crise na Venezuela convergiram em torno de um tema específico: a presença de observadores eleitorais nas eleições legislativas. A data das eleições havia sido marcada para 6 de dezembro, mas pairavam incertezas quanto às condições em que o pleito se daria. O Governo venezuelano recusava a observação eleitoral pela OEA, admitindo apenas a presença de observadores da Unasul. Ainda assim, o escopo da missão da Unasul permanecia indefinido diante de restrições impostas pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), órgão eleitoral venezuelano.
A Unasul dialogava com a Venezuela por meio de uma comissão de chanceleres, integrada por Brasil, Colômbia e Equador. O Itamaraty coordenava-se com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na negociação dos termos de referência para a observação eleitoral. O Tribunal defendia que os observadores eleitorais pudessem aferir não apenas os procedimentos de votação, mas também a existência de um ambiente institucional que garantisse participação em condições de igualdade. O TSE propunha, ademais, que a missão de observação eleitoral fosse chefiada pelo ex-ministro Nelson Jobim, cujas credenciais de independência e competência técnica eram amplamente reconhecidos no Brasil.
O nome do ex-ministro, contudo, foi vetado pelo Governo venezuelano, que optou pelo ex-chanceler argentino Jorge Taiana, visto como simpatizante do regime bolivariano. Inconformado com a evolução dos acontecimentos, o TSE tornou público seu descontentamento em nota em que informava que não mais participaria do processo de observação eleitoral.
O gesto do TSE, muito apreciado no Senado, desacreditava a observação eleitoral levada a cabo pela Unasul. O Governo brasileiro, entretanto, procurou minimizar o episódio e se conformou com a escolha de Taiana.
Em meio à crise, o Itamaraty equilibrou-se entre as pressões do Palácio do Planalto para manter-se fiel ao aliado político venezuelano e as críticas contundentes do Senado e do Tribunal Superior Eleitoral, que insinuavam que o Brasil estaria sendo complacente enquanto à exigência de padrões mínimos para a observação eleitoral. Embora as eleições legislativas tenham finalmente ocorrido, dando vitória avassaladora à oposição, a Assembleia Nacional continuou enfrentando dificuldades para fazer valer suas prerrogativas constitucionais.
Embora o cenário político no Brasil tenha mudado substancialmente, não será fácil recuperar a credibilidade do Brasil, acusado de se omitir diante do ocaso da democracia venezuelana. Um importante passo foi dado com a recente decisão de suspender a Venezuela do Mercosul.
Apesar dos percalços, a democracia é marca distintiva da integração latino-americana e do sistema interamericano. Desempenha função aglutinadora. É o nosso totem. Outros blocos terão sido mais exitosos em outras conquistas (igualmente importantes e até certo ponto dignas de emulação pela América Latina): a ASEAN, na inserção competitiva de suas economias no mercado mundial; a Europa, na integração monetária, apesar dos percalços da Zona do Euro.
O fato de o próprio conceito de democracia ter deixado de ser consensual[12] torna imperativo que se busque, pelo diálogo, resgatar uma visão comum sobre um dos pilares da integração. Mas diálogo apenas não resolve. Há linhas vermelhas que não podem ser cruzadas: cláusulas democráticas existem para impor penalidades àqueles que incorrem em flagrantes violações à prática democrática.
Sanções internacionais são recursos extremos, sim. Não cabem em situações dúbias, como a do impeachment do presidente Fernando Lugo. E devem ser combinadas com a ação diplomática, a exemplo do que fez o Brasil diante da ameaça de golpe do general Lino Oviedo. Feitas essas ressalvas, as cláusulas democráticas constituem legítimo instrumento para a diplomacia brasileira. Não são panaceia, mas tampouco tabu.

Notas

  1. A ex-Presidente declarou ainda que: “não se pode esperar muito do governo ilegítimo que usurpou o meu mandato por meio de golpe parlamentar travestido de impeachment. A medida mostra a pequenez do governo do Brasil diante das exigências da América Latina”. Artigo do jornal “O Estado de São Paulo” intitulado Em nota, Dilma critica decisão de suspender a Venezuela. Publicado em 03/12/2016. Disponível em: http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,em-nota-dilma-critica-decisao-do-mercosul-de-suspender-a-venezuela,10000092346. Consultado em 03/12/2016. 
  2. Dois outros instrumentos que merecem referência: o Protocolo de Montevidéu sobre Compromisso com a Democracia (Ushuaia II), concluído em 2011, mas sem previsão de entrada em vigor; e o Protocolo Adicional sobre Compromisso com a Democracia, concluído em 2010 e em vigor desde 2014. Este último refere-se à União Sul-Americana de Nações (Unasul). 
  3. Em 2000, Fujimori candidatou-se a um terceiro mandato. O pleito foi considerado fraudulento pela missão de observadores da OEA. Ainda assim, o Brasil se opôs à imposição de sanções contra o Peru, tendo sido acusado de prolongar o apoio a Fujimori, quando a natureza autoritária de seu governo já havia ficado evidente para muitos países latino-americanos. 
  4. Trecho do telegrama confidencial (desclassificado) da Delegação Permanente junto à OEA no. 365, de 14/4/1992. Arquivos do Ministério das Relações Exteriores. 
  5. O episódio é descrito em detalhes pelo então embaixador do Brasil em Assunção. Vide DIAS, Márcio de Oliveira. Quando o Brasil ajudou a impedir o golpe de Oviedo. O GLOBO. Edição de 29/11/2015. Disponível em:http://oglobo.globo.com/mundo/artigo-quando-brasil-ajudou-impedir-golpe-de-oviedo-18166197. Consultado em: 02/12/2016. 
  6. FOLHA DE SÃO PAULO. O que houve no Paraguai foi ruptura política, não golpe. Entrevista com Francisco Doratioto. Edição de 01/07/2012. Disponível em: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2012/07/01/2//5797627. Consultado em 02/12/2016. 
  7. LAFER, Celso. Descaminhos do Mercosul: a suspensão da participação do Paraguai e a incorporação da Venezuela: uma avaliação crítica da posição brasileira. Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,descaminhos-do-mercosul-imp-,918638. Consultado em 02/12/2016. 
  8. Comunicado Conjunto dos Presidentes dos Estados Partes do Mercosul – 29/06/2012 http://www.mercosur.int/innovaportal/v/4488/2/innova.front/comunicados-conjuntos. Consultado em 02/12/2016. 
  9. A oposição não possuía sequer um canal de interlocução com a Embaixada do Brasil em Caracas, como é de praxe. Depoimento da ex-Deputada María Corina Machado ao autor em 17 de junho de 2016. 
  10. A deputada notabilizou-se por denunciar violações aos direitos humanos por parte do Governo Maduro em reunião do Conselho Permanente da OEA, tendo falado a partir do assento do Panamá, o que lhe valeu a sua cassação por “traição à pátria”. 
  11. A melhor prova de que as relações com a Venezuela iam mal foi o tratamento reservado aos oito senadores, que viajaram a Caracas em junho de 2015. A comitiva, que pretendia prestar solidariedade a líderes oposicionistas presos, foi achacada ao sair do aeroporto por manifestantes que aparentavam agir a mando do Governo venezuelano. 
  12. Exemplo de visão alternativa é o conceito de democracia participativa, que identifica na relação com movimentos sociais uma fonte de legitimidade política até maior do que a que deriva da representação política parlamentar. 

Sobre o autor

Eduardo Paes Saboia é diplomata de carreira (e_saboia@hotmail.com).

Como citar este artigo

Eduardo Saboia. "A diplomacia brasileira e as cláusulas democráticas: totem e tabu". Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais,. [Acessado em 11/04/2018]. Disponível em: <http://www.mundorama.net/?article=a-diplomacia-brasileira-e-as-clausulas-democraticas-totem-e-tabu-por-eduardo-paes-saboia>.

segunda-feira, 12 de março de 2018

Murilo Aragao: O lugar do Brasil no mundo (OESP, 6/03/2018)

O Brasil e o mundo

A hora é de fortalecer o Itamaraty, deixando claros os avanços que estão ocorrendo no País

“O Brasil não perde a oportunidade de perder uma boa oportunidade.” A irônica frase do falecido embaixador Roberto Campos não exclui de sua abrangência a política externa brasileira. É de justiça reconhecer, entretanto, que, ao longo do governo do presidente Michel Temer (PMDB), algumas oportunidades foram aproveitadas e permitiram progressos evidentes. 
A política externa do governo anterior, como é bem sabido, contrariou as melhores tradições do Itamaraty sem trazer nenhuma vantagem para o Brasil. Tal crítica não pode ser feita à política externa estabelecida pelo governo Lula (PT), que, apesar de aspectos contraditórios, elevou o perfil brasileiro no cenário internacional. 
O processo de impeachment de Dilma Rousseff encontrou o Brasil enfraquecido na cena global, não apenas pelos equívocos de sua política externa – como o inexplicável alinhamento com a Venezuela e a Argentina de Cristina Kirchner, além da complacência nostálgica com Cuba –, como também pelo retumbante fracasso de sua política econômica, que resultou na pior recessão da História do País. Durante o impeachment, o governo petista tentou de todas as formas desqualificar o processo, parecendo não ver que nenhum passo estava sendo dado à margem do texto constitucional. Não conseguiu impedir a saída da presidente, mas causou dano à imagem do Brasil no exterior, o que foi, no mínimo, impatriótico. 
Houve sérias tentativas de pôr a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), o Parlamento do Mercosul (Parlasul), o próprio Mercosul e a Organização dos Estados Americanos (OEA), entre outros organismos internacionais, contra o impeachment. Até hoje Cuba, de forma inacreditável, não reconhece o governo Temer como legítimo. O saldo final da gestão Dilma foi a dramática perda de prestígio internacional do Brasil e a imposição de preconceitos à gestão Temer, que, finalmente, têm diminuído de forma paulatina pela adoção de uma nova política externa. 
A nomeação do senador José Serra como ministro das Relações Exteriores e, posteriormente, de Aloysio Nunes Ferreira (ambos do PSDB), ainda no cargo, fizeram o Itamaraty retomar seu veio tradicional de universalismo, pragmatismo e defesa do interesse nacional, além de um saudável distanciamento da Venezuela e de Cuba. Assim, pouco a pouco o Brasil recupera sua estatura internacional entre os países do Brics e encaminha, no âmbito do Mercosul, boas negociações com a União Europeia, superando amplamente as questões de reconhecimento. O volume crescente de investimentos estrangeiros no Brasil mostra a volta da confiança no País e atesta a solidez da política econômica adotada. 
Mesmo assim, no ranking de soft power da revista Monocle ocupamos o 25.º lugar, a pior colocação do Brasil desde que a medição começou a ser feita. Não só por não termos aproveitado o potencial da Olimpíada, em 2016, mas também pelo impeachment e pela dramática situação do Rio de Janeiro, principal cartão-postal do País. E, sobretudo, por não sabermos comunicar-nos com o mundo exterior. 
Evidentemente, não podemos tapar o sol com a peneira e esconder nossas graves deficiências. Mas por falta de visão estratégica, e pelo não emprego de táticas que rentabilizem a potencialidade do Brasil, terminamos apequenando a capacidade de influência positiva de nossa imagem em nível internacional. Bem como não utilizando todo o nosso potencial para atrair investimentos privados. 
Uma abordagem estratégica da política externa poderia, sem dúvida, ampliar a imagem das boas iniciativas do governo, com repercussões internas e externas, consolidando o legado reformista do atual governo e expondo ao mundo a potencialidade do País. Recentemente, artigos do presidente Michel Temer tiveram boa repercussão no exterior. É o tipo de iniciativa que deve ser ampliado. 
Em conversas em Nova York, onde fui dar aulas na Universidade Columbia, ouvi manifestações de investidores e especialistas de que o Brasil é subestimado e subavaliado. Sobretudo porque as notícias refletem mais o lado perverso de nossa realidade do que os avanços. Na melhor tradição de que bad news are good news. 
Alguns interlocutores se revelaram surpresos com a agenda de reformas em curso e o agressivo programa de concessões. Bem como com o avanço das práticas de compliance no País e a atuação independente do Poder Judiciário. Como se não soubessem o que se passa por aqui. 
Entre as maiores economias do mundo, o Brasil é um dos únicos países a não ter instrumentos de comunicação – como, por exemplo, canais de TV por assinatura – em inglês sobre o País, entre outras iniciativas. A verdade é que, embora sejamos um país de dimensões continentais, continuamos a ser um enigma para a maior parte do mundo. 
Não somos um paraíso para investidores e temos sérios problemas de segurança pública, mas somos melhores do que parecemos e, lamentavelmente, não sabemos contar a nossa história de modo adequado. E se não contarmos a nossa história, alguém o fará. Quase nunca de forma favorável. 
Por fim, devemos retomar a tradição de assumir posição com ênfase em questões de direitos humanos, que nos trouxe reputação positiva nas esferas diplomáticas internacionais. O Brasil reduziu sua exposição nesse tema por causa de alianças e entendimentos com países que não primam pelo respeito aos direitos humanos. Por sermos complacentes, perdemos credibilidade. E credibilidade em política externa é algo precioso.  
Em Davos, na Suíça, onde realizou uma bem-sucedida visita, após um período de quatro em que o Brasil ali não se fez representar no mais alto nível, o presidente Temer sustentou que o Brasil está de volta. A hora é de fortalecer o Itamaraty, que detém um legado diplomático consistente e testado para pavimentar essa volta, deixando claros ao mundo os avanços que estão ocorrendo no País. 

*ADVOGADO, CONSULTOR, CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR, É DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNB

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Politica externa brasileira recente - Paulo Roberto de Almeida

Política externa brasileira recente: algumas questões tópicas

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: comentários a questões de acadêmico; finalidade: ensaio sobre diplomacia]


Introdução
Encontram-se, abaixo, meus comentários e argumentos em resposta a questões tópicas, ou gerais, apresentadas por acadêmico estrangeiro engajado num ensaio de ciência política sobre a política externa e a diplomacia brasileira desde o início do presente século, quando o Brasil parecia emergir como grande ator internacional, mas teve sua presença internacional e status diminuídos, a partir da recessão e da crise do impeachment, o que refletiu-se na sua imagem e na sua atuação nessas dimensões.
Não pretendo, e esta não é a intenção, que meus argumentos e opiniões, pessoais e subjetivos como eles podem ser, sejam utilizados para compor uma atualização final desse trabalho, cuja discussão central atinha-se ao período pré-2014, pois entendo que eles serão apenas utilizados como subsídios para uma avaliação ex post da análise já feita no trabalho original. Minha visão é puramente pessoal, e não corresponde, como deve ficar claro, à opinião média de um diplomata sobre a política externa do país.

Questões:


PRA: Caberia, em primeiro lugar, estabelecer duas premissas fundamentais para uma correta caracterização da problemática acima, por um lado no contexto do país, por outro lado quanto à dimensão temporal implícita à questão. O Brasil, na condição de país participante da política internacional, enquanto ator regional ou mundial, enquanto membro de diferentes instituições e arranjos da comunidade internacional, no plano multilateral ou em suas relações bilaterais, esse país referido de maneira genérica não existe enquanto entidade uniforme, homogênea, contínua e constante no contexto dessas várias dimensões de sua política externa. O que existe é uma política externa específica e própria de um governo determinado, o que, num sistema presidencialista como é o seu, significa a política externa de um determinado presidente, animada pelas forças atuantes nesse determinado governo, com base numa hegemonia política do partido ou da coalizão de partidos dominantes no mandato presidencial em questão. Por isso não creio ser correto afirmar-se que o Brasil tinha tal e tal política externa até 2014, e passou a ter esta outra política externa a partir desse ano, o que já entra na discussão do segundo aspecto levantado como premissa: o suposto corte temporal em 2014.
A caracterização correta deve ser, em função da história política brasileira entre janeiro de 2003 e maio de 2016, a política externa dos governos do PT, não do Brasil, nesse período, e a política externa desenvolvida desde então. Qualquer observador político dotado de um conhecimento mínimo das características essenciais da política externa brasileira saberia fazer tal distinção, e é a partir dela que podemos responder à questão colocada, a da “inserção e projeção internacional e da visibilidade do envolvimento do Brasil no cenário internacional desde 2014”. Meu comentário, então, passa a ser o seguinte.
Existe uma nítida diferenciação entre a política externa daquilo que eu chamo de “lulopetismo diplomático”, ou seja, a diplomacia e a política externa do Brasil tal como conduzidas pelos governos petistas entre 2003 e 2016, e a política externa do Brasil até 2002 e a partir de meados de 2016 até a presente data, ainda numa fase de transição política a ser marcada pelas eleições presidenciais e gerais de outubro de 2018. Como eu já elaborei diferente análises sobre o “lulopetismo diplomático”, remeto a trabalhos anteriores já publicados ou divulgados sobre essa anomalia política, para depois concentrar-me nas diferenças a partir de 2016.
Eis aqui uma pequena relação de análises feitas ainda em 2016 cobrindo aquele período anterior:
2985. “Política externa e política econômica no Brasil pós-PT”, Brasília, 29 maio 2016, 6 p. Comentários tópicos em um artigo para Mundorama (7/06/2016; link: http://www.mundorama.net/2016/06/07/politica-externa-e-politica-economica-no-brasil-pos-pt-por-paulo-roberto-de-almeida/). Divulgado no blog Diplomatizzando em 8/06/2 (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/06/politica-externa-e-politica-economica.html).

2983. “O renascimento da política externa”, Brasília, 25 maio 2016, 14 p. Artigo publicado na revista Interesse Nacional (ano 9, n. 34, julho-setembro de 2016, link: http://interessenacional.com/index.php/edicoes-revista/o-renascimento-dapolitica-externa/). Reproduzido no blog Diplomatizzando (3/08/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/08/o-renascimento-da-politica-externa.html).

2982. “Do lulopetismo diplomático a uma política externa profissional”, Brasília, 22 maio 2016, 7 p. Mundorama (23/05/2016, link: http://www.mundorama.net/2016/05/23/do-lulopetismo-diplomatico-a-uma-politica-externa-profissional-por-paulo-roberto-de-almeida/); reproduzido no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/do-lulopetismo-diplomatico-uma-politica.html).

2977. “O Itamaraty e a diplomacia profissional brasileira em tempos não convencionais”, Brasília, 15 maio 2016, 10 p. Entrevista concedida ao blog Jornal Arcadas, sobre aspectos da carreira e do funcionamento do Itamaraty na fase recente. Publicado, sob o título de “Entrevista: a crise e o anarco-diplomata”, no blog Jornal Arcadas (15/05/2016); reproduzido no Diplomatizando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/um-anarco-diplomata-fala-sobre.html).

2969. “Epitáfio do lulopetismo diplomático”, Brasília, 2 maio 2016, 3 p. O Estado de S. Paulo (17/05/2016; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,epitafio-do-lulopetismo-diplomatico,10000051687), reproduzido no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/epitafio-do-lulopetismo-diplomatico.html).

No período posterior à queda do lulopetismo, uma vez iniciado e completado o processo de impeachment, continuei a elaborar alguns textos que justamente faziam o balanço do lulopetismo diplomático, dentre os quais posso destacar os seguintes:

2988. “Política externa brasileira, 2: o que faria o Barão hoje, se vivo fosse?”, Brasília, 1 junho 2016, 7 p. Blog Diplomatizzando (17/02/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2018/02/politica-externa-brasileira-o-que-faria.html).

2999. “Auge e declínio do lulopetismo diplomático: um depoimento pessoal”, Brasília, 22 junho 2016, 18 p.; revisto: 26/06/2016: 19 p. Blog Diplomatizzando (1/07/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/07/ufa-um-depoimento-meu-sobre-o.html).

3032. “O lulopetismo diplomático: um experimento exótico no Itamaraty”, Porto Alegre, 4 setembro 2016, 5 p. Blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/09/o-lulopetismo-diplomatico-um.html).

3061. “O Itamaraty e a nova política externa brasileira”, Brasília, 19 novembro 2016, 18 p. Blog Diplomatizzando (15/08/2017; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/08/o-itamaraty-e-nova-politica-externa.html).


3116. “Crimes econômicos do lulopetismo na frente externa”, Brasília, 12 maio 2017, 7 p. Resenha do livro de Fabio Zanini, Euforia e fracasso do Brasil grande: política externa e multinacionais brasileiras na era Lula (São Paulo: Contexto, 2017, 224 p.; ISBN: 978-85-7244-988-5). Blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/05/crimes-economicos-do-lulopetismo-na.html).

3121. Quinze anos de política externa: ensaios sobre a diplomacia brasileira, 2002-2017; Brasília: Edição do Autor, 2017, 366 p. Blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/05/quinze-anos-de-politica-externa-ensaios.html).

3126. “Uma visão crítica da política externa brasileira: a da SAE-SG/PR”, Brasília, 17 junho 2017, 22 p. Mundorama: Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais (2/12/2017; ISSN: 2175-2052; acessado em 03/12/2017; link: http://www.mundorama.net/?p=24308).

3197. “Depois da diplomacia companheira: o que vem pela frente?”, Brasília, 26 novembro 2017, 3 p. Gazeta do Povo (28/11/2017, link: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/depois-da-diplomacia-companheira-o-que-vem-pela-frente-di5ffopc0ywu56cc29s8s5hsr). Blog Diplomatizzando (28/11/2017; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/11/depois-da-diplomacia-companheira-o-que.html).

3221. “A diplomacia na construção da nação: qual o seu papel?, Brasília, 28 dezembro 2017, 10 p. Mundorama (9/01/2018; link: http://www.mundorama.net/?p=24351).

Feitos os esclarecimentos sobre o que eu penso a respeito do “lulopetismo diplomático”, entre 2003 e 2016, e agregados alguns trabalhos posteriores, venho à resposta de como vejo a “inserção e projeção internacional e da visibilidade do envolvimento do Brasil no cenário internacional”, não desde 2014, mas a partir de 2016. Existe uma clara diminuição da atuação internacional do Brasil desde então, por força da ruptura política ocorrida com o impeachment, feito entre maio e agosto desse último ano, mas também é claro que essa redução do ativismo diplomático já vinha sendo observado desde o terceiro e o início do quarto governo lulopetista, dadas as características desastrosas da substituta do presidente Lula a partir de 2011, notadamente a partir da crise econômica, e política que já se manifestava claramente a partir de 2014 (ano da reeleição de Dilma Rousseff) e que só se agudizou a partir da clara falta de legitimidade de seu mandato político e da grande crise econômica que se exacerbou a partir de então (mas cujas raízes já vinham desde antes, praticamente desde o período final do segundo mandato lulopetista).
A presidente – e isso ficou claro desde seu primeiro mandato – não era apenas inepta, incompetente e errática em suas ações e decisões, como ela também rebaixava a política externa, não tinha nenhuma empatia pela diplomacia profissional, que ela desprezava profundamente, a ponto de humilhá-la seguidamente com suas ações intempestivas e prejudiciais à diplomacia do país. Essa diminuição, portanto, existe, precede ao impeachment, mas se manifestou de forma mais clara desde então, inclusive devido à campanha nacional e internacional viciosa e viciada, mentirosa e mistificadora, conduzida pelos lulopetistas, com certo sucesso desde então, parte da qual está diretamente vinculada à ação do ex-chanceler sob os dois governos de Lula, convertido em ativo membro da tropa de choque de defesa do ex-presidente, criminoso condenado e chefe daquilo que já foi chamado de “organização criminosa”. Tais ações e campanha de propaganda, repercutidas e expandidas com certa eficácia pelos aliados políticos e pelas correias de transmissão identificados com as políticas de esquerda desses grupos teve, portanto, algum resultado em retirar legitimidade internacional ao governo de transição conduzido pelo vice-presidente (presidente pleno a partir de agosto de 2016) Michel Temer, a ponto de o Brasil ter sido “contornado” por diversos líderes políticos de parceiros tradicionais e por representantes diplomáticos desses países, a começar pelos antigos aliados dos governos lulopetistas.
O segundo componente dessa diminuição relativa foi a crise econômica que se desenvolveu com enorme impacto sobre o crescimento e o nível de emprego do país, a maior recessão econômica de toda a história do Brasil: -3,8% do PIB em 2015, -3,6% em 2016, algo em torno de 0,5% em 2017, e mais de 13% de desemprego em relação à população economicamente ativa (mais de 14 milhões de desempregados, o que já representa uma subestimação com respeito aos números reais, bem maiores se levados em conta efeitos das políticas distributivas, tipo “Bolsa Família”, ou o subemprego tradicional no Brasil). Nunca o Brasil tinha conhecido um déficit orçamentário em torno de 10% do PIB, e um descalabro em suas contas públicas da dimensão conhecido nos últimos anos, como resultado das políticas econômicas (macro e setoriais) equivocadas conduzidas a partir de 2011 (com raízes anteriores, como a expansão desequilibrada das despesas públicas e a extensão do intervencionismo estatal desde sempre). Esse dado também afetou a capacidade de projeção internacional do Brasil, dado o enorme esforço de ajuste fiscal e de início de um processo de ajustes tópicos e de reformas estruturais que passaram a ser conduzidos desde então, processos ainda não concluídos de forma exitosa até o presente momento (primeiro trimestre de 2018).
Tanto a tremenda crise econômica, ainda não completamente superada, como a relativa fragilidade do quadro político atual, bem como a campanha mentirosa e viciosa conduzida pelos lulopetista nos planos interno e externo durante os últimos dois anos afetaram, portanto, a política externa e a atuação diplomática do Brasil, o que explica o menor ativismo em relação ao período 2003-2010, que de toda forma foi exacerbado, devido à megalomania conjunta do presidente e de seu chanceler, muito mais baseada em retórica vazia e ativismo superficial do que em fundamentos sólidos de uma política externa que sempre exibiu, em circunstâncias normais, sua solidez doutrinal e adesão ao direito internacional, princípios abalados durante a vigência do lulopetismo político.

2) Como avalia a evolução da política externa e diplomacia presidencial desde 2014?

PRA: Essa evolução deve ser claramente redimensionada em função das fases políticas já definidas acima, quais seja, a dominação lulopetista sobre o Estado e o governo entre 2003 e maio de 2016, e, a partir de então, uma coalizão de forças políticas centristas, em parte integradas pelas mesmas forças que já integravam os governos petistas na fase anterior, com a adição de parte da oposição de direita ou centrista que tinham ficado alijadas do poder anteriormente. A diferenciação fundamental, crucial, essencial a ser feita – e que já está clara nos trabalhos pessoais listados mais acima – é a dominação do lulopetismo, em suas diferentes variantes, sobre a política externa e sobre a diplomacia exercida por apparatchiks do PT sobre essa política externa, e, a partir de 2016, um retorno a padrões mais tradicionais da diplomacia brasileira, tais como vistos e conhecidos até 2003 e novamente reativados desde 2016. A diplomacia profissional brasileira tem métodos de atuação, conceitos fortemente embasados, plena capacitação de seus quadros totalmente adequados para o exercício de uma política externa ativa, embora dependa, como parece claro, de uma liderança presidencial engajada em ações e iniciativas próprias ou suscitadas pela agenda internacional, regional ou multilateral.
Em função do quadro político vigente no Brasil desde a crise do impeachment – de relativa desunião do país, embora sustentado artificialmente e com muita má-fé por parte das forças políticas alijadas do poder – e levando em conta o quadro de pré-campanha eleitoral em vista das eleições de outubro de 2018, parece evidente que a política externa e a diplomacia brasileira atuarão de modo menos ativo na fase atual, embora com pleno controle dos mecanismos e da capacidade de representação com base em seu corpo profissional do setor. Tal situação provavelmente persistirá até o início de 2019, quando um novo governo tomará posse, embora se possa prever continuidade relativa na atuação da diplomacia profissional brasileira, com base no funcionamento adequado do Itamaraty e de seu serviço exterior tradicionalmente.

3) Como avalia o mandado de tropas para a República Centro Africana? Como se integra nas posições do Brasil nas discussões internacionais sobre paz e segurança e participa da visibilidade do Brasil nesses debates e no cenário internacional?

PRA: Existe uma clara demanda externa, notadamente da França, e de outros membros do Conselho de Segurança, para o envio de forças brasileiras de interposição, com base em resoluções dos órgãos multilaterais e determinação das principais potências presentes naquele cenário, que identificam um interesse das Forças Armadas brasileiras nesse tipo de ação, que atende interesses próprios de capacitação operacional e outros objetivos internos a esse corpo profissional. O cenário é contudo diferente daquele que presidiu ao envio de forças brasileiras no quadro da Minustah, ao Haiti, a partir justamente do ativismo exacerbado do primeiro governo Lula em prol de sua projeção internacional, mirando, provavelmente, uma mal calculada ambição de vir a integrar o Conselho de Segurança da ONU, se e quando fosse efetivada a reforma da sua Carta e a ampliação do CSNU. Não há mais ilusões a esse respeito, por parte da diplomacia brasileira, quanto a essa perspectiva – amplamente ilusória, já naquele momento –, daí um ceticismo maior por parte da diplomacia profissional quanto ao interesse ou vantagens advindos dessa participação ainda hipotética. Se ela se efetivar talvez não o seja no corrente ano de 2018, dado o contexto político geral do Brasil, pois uma decisão desse tipo teria de passar pelo crivo do Congresso e por uma adequação de recursos orçamentários, o que possivelmente remeta a decisão ao ano d e 2019.
Se ocorrer definição positiva, pode representar um passo adiante na capacitação das FFAA brasileiras em missões de paz da ONU – mas sempre de interposição, ou seja, de peace keeping, antes que de imposição da paz, ou de peace making –, o que contribuirá para reforçar o papel internacional que o país aspira ter no plano mundial. Mas também é preciso ficar claro que se trata de uma operação que transcende, talvez, o cenário ideal para um país como o Brasil, situada numa região e num contexto político nos quais e com os quais o Brasil possuí vínculos tênues, mesmo ínfimos, se algum. Ou seja, não seria um cenário de atuação escolhido voluntariamente pelo Brasil, ou por sua diplomacia, embora possa ter atrativos, mas puramente operacionais, do ponto de vista de suas FFAA. A perspectiva pode ser positiva, tanto no plano prático das FFAA, quanto na esfera diplomática, mas uma avaliação ponderada terá de ser conduzida com base num exame mais circunstanciado desse possível envolvimento.
No momento atual, e isso precisa ficar claro, não existe um “mandado”, e sim uma demanda externa, que terá de ser cuidadosamente avaliada pelos dois ministérios em esforço de coordenação conjunta – Defesa e Relações Exteriores – e pelo presidente da República. Os imponderáveis são aqueles conjunturalmente oferecidos pelo atual momento de transição política, já referido, e requeridos por uma análise política a ser feita pelas duas instituições em condições concretas do debate mantido pelo Brasil com as potências interessadas e as instâncias da ONU envolvidas nesse processo.

4) Como avalia as políticas comerciais do atual governo: teve efetivamente um movimento de distanciamento da OMC? Qual é a efetividade das iniciativas para fechar acordos bilaterais?

PRA: Não apenas as políticas comerciais, mas todas as demais políticas setoriais do governo anterior, inclusive determinadas orientações da política macroeconômica, foram deformadas por escolhas e preferências claramente equivocadas dos governos lulopetistas, sobretudo a partir do seu terceiro mandato presidencial, políticas que levaram o Brasil à maior recessão de sua história econômica. Tais políticas envolveram igualmente desrespeito a regras multilaterais já aceitas pelo Brasil no quadro de rodadas e negociações comerciais multilaterais adotadas no âmbito da OMC, como foi o caso do “Inovar Auto”, condenado – como já estava claro desde o seu início – pelo mecanismo de solução de controvérsias da OMC, acionado por parceiros comerciais que se sentiram lesados por práticas discriminatórias adotadas pelo governo petista naquele âmbito.
O atual governo de transição efetua um reequilíbrio dessas políticas, que devem ajustar-se aos compromissos e obrigações multilaterais assumidos pelo Brasil, num quadro de relativa fragilidade competitiva do Brasil, cujas indústrias já são penalizadas por distorções internas – sobretudo tributárias – que redundaram numa perda de espaço nos mercados internacionais e numa desindustrialização precoce. O Brasil, sob os governos do lulopetismo, recuou nitidamente em diversos critérios classificatórios de entidades internacionais: ambiente de negócios (Doing Business, do Banco Mundial), competitividade (relatórios anuais do World Economic Forum) e, sobretudo, liberdades econômicas (Fraser Institute), para posições vergonhosas em face da relativa importância de sua economia (ainda entre as dez primeiras no plano do PIB total), mas em classificações mais negativas do ponto de vista do comércio internacional, da inovação e da produtividade. Essa situação exigirá um grande esforço do governo atual e de governos futuros em favor de profundas reformas estruturais e de ajustes internos em prol de uma nova inserção econômica internacional, claramente diminuída em função não apenas da crise como das políticas equivocadas, intervencionistas e também protecionistas e introvertidas.
Os mesmos equívocos foram cometidos no âmbito regional e na esfera das negociações de possíveis acordos de abertura econômica e de liberalização comercial, praticamente inexistentes durante toda a era lulopetista, que deformou o funcionamento do Mercosul e desviou a orientação universalista do comércio internacional do Brasil, em favor de uma orientação “Sul-Sul” de caráter propriamente delirante, pois que não seguida por nenhum parceiro tradicional (no âmbito regional) ou “estratégico” (no Brics, por exemplo) do país, quaisquer que sejam eles. O Mercosul perdeu suas características essencialmente comercialistas para se transformar num palanque de retórica política, utilizado inclusive para objetivos partidários e sectários – como os episódios da suspensão do Paraguai e da aceitação política, equivocada e ilegal, da Venezuela como membro pleno – e perdeu espaço no relacionamento comercial externo do Brasil. O Brasil possui acordos comerciais no âmbito da Aladi, que devem ampliar bastante o acesso aos seus mercados pelos países da região (América do Sul), mas ainda precisa fechar acordo com o México e muitos outros países, uma vez que os acordos feitos na vigência do lulopetismo foram poucos e com impacto medíocre no leque de mercados com relações preferenciais do Brasil e do Mercosul. Mas ainda resta que a dimensão tarifária já é pouco relevante no quadro dos atuais acordos comerciais sendo negociados bilateralmente ou plurilateralmente na presente fase da economia mundial, sendo que na dimensão regulatória e nos demais aspectos – investimentos, serviços, propriedade intelectual e outros – o envolvimento brasileiro é bastante reduzido.

5) O que significa, o que revela o Brasil estar ausente do CSNU até 2022?

PRA: Pode parecer uma diminuição relativa da presença brasileira em termos de projeção externa e oportunidade de participar de debates relevantes nesse plano, mas eu pessoalmente não considero tal afastamento absolutamente prejudicial ao Brasil ou à sua diplomacia. O Brasil poderá participar, se desejar ou puder, de certas operações negociadas no âmbito do CSNU mesmo sem dele participar, bastando manifestar sua intensão nesse sentido. Existe um critério de rotatividade regional, nem sempre seguido, o que pode ser contornado por certo ativismo diplomático, mas não creio que o Brasil resultará diminuído diplomaticamente ao seguir essa rotatividade de modo explícito.

6) Como avalia a decisão de retomar as discussões para o acordo entre a UE e o Mercosul? Quais serão os benefícios? Qual é a probabilidade de fechar acordo?

PRA: Trata-se de processo antigo, que remonta aos anos 1990, quando ainda existia a perspectiva de um acordo hemisférico de libre comércio, um projeto dos EUA do início daquela década, que despertou os ânimos da UE no sentido de não ser prejudicada pela disposição latino-americana de entrar em acordos preferencias com a grande potência hemisférica no horizonte de 2005. Apenas por isso tiveram início negociações concretas entre a UE e o Mercosul, que no entanto nunca contaram com efetiva disposição liberalizadora por parte dos parceiros integrantes dos dois blocos. Como as novas lideranças de esquerda na América Latina – Lula no Brasil, Chávez na Venezuela, Kirchner na Argentina – decidiram implodir o projeto americano da Alca, o processo inter-regional UE-Mercosul padeceu os atrasos que se conhecem. Persistem obstáculos setoriais importantes – agrícolas, do lado europeu, industrial e de serviços, do lado do Mercosul – ainda que existam, a partir de novas lideranças políticas no Brasil e na Argentina, nítida boa disposição para fechar esse acordo. Não sou muito otimista quanto a isso, e ainda que ele venha a ser fechado, concluído e aprovado, sua implementação será provavelmente bastante longa (dez anos ou mais), para uma abertura efetiva de setores atualmente protegidos. Mesmo quando, e se, ele seja concluído, o acordo terá um impacto global marginal para o comércio da UE, um pouco mais para o Mercosul, embora possa ser setorialmente, e de um ponto de vista microeconômico, importante para alguns setores e empresas envolvidas no comércio.

7) Teve efetivamente um redirecionamento das relações para o eixo norte? Se for o caso, como se traduz de forma concreta? Qual é a relevância dos BRICS para o governo atual? Como avalia a decisão de entrar na OCDE? Quais são as implicações simbólicas?

PRA: Essa distinção Norte-Sul já não faz mais nenhum sentido para o governo atual, embora fizesse parte para os governos lulopetistas anteriores e para boa parte da academia, que vivem de símbolos, por mais inúteis que eles sejam no plano prático. Os governos lulopetistas se orgulhavam de praticar uma diplomacia Sul-Sul e de ter uma orientação geral de sua diplomacia para um hipotético, e inexistente, “Sul global”, uma fantasmagoria que só pode frequentar a cabeça de amadores, de sectários e de espíritos desconectados das realidades da economia mundial. O Brasil sempre teve uma política externa universalista, apenas deformada durante o lulopetismo diplomático por essa miopia fundamental dos companheiros e seus aliados acadêmicos, sem qualquer sentido para a boa condução da diplomacia brasileira, muito embora esta sempre tenha tido uma orientação política voltada para países em desenvolvimento, como caracterizada nessa divisão – que eu considero em grande medida artificial – típica da ONU entre os grupos regionais e o pertencimento clássico do Brasil ao G77.
O BRICS, uma construção também artificial favorecida pelo lulopetismo por razões claramente políticas, permanece no espectro da movimentação diplomática brasileira, um pouco por inércia diplomática, um pouco pelo avanço em determinadas áreas – como o New Developement Bank, por exemplo – mas encontra-se, segundo a minha percepção, numa fase de reavaliação, em vista da diminuição das expectativas exageradamente otimistas da década anterior e da clara assimetria estrutural que é dada pela enorme dimensão econômica e política da China nesse grupo.
A decisão de demandar ingresso pleno na OCDE já está atrasada vinte ou trinta anos, no plano objetivo do potencial econômico e político internacional do Brasil, mas é claro que o lulopetismo diplomático, e político, sempre teve objeções de princípio ao que ele considerava, de modo totalmente equivocado, como sempre, um “clube de países ricos”, o que a OCDE claramente não é mais desde o fim do socialismo e a adesão de diversos outros países em desenvolvimento, a começar, mais recentemente, pelo Chile no âmbito regional. Considero esse ingresso, se efetivado, como um passo importante para a “normalização” do Brasil no que respeita suas principais políticas macroeconômicas e setoriais, podendo reforçar e consolidar um padrão de qualidade nessas políticas que ele deveria já ter alcançado desde o início do Mercosul e do plano de estabilização macroeconômica de 1994-94, sob sua nova moeda, mas que se frustraram devido à deformação lulopetista do Mercosul, e a própria fragmentação do processo de integração regional e das políticas econômicas nacionais.
A dimensão simbólica desse possível ingresso é, para mim, muito menor do que o atribuído no plano jornalístico pelos observadores, e desimportante para todos os efeitos práticos. O mais importante é o efeito que ele possa ter, como já afirmado, no plano da qualidade das políticas econômicas e demais políticas públicas setoriais, no plano interno, mas também como alavanca, necessária e importante, para reforçar um necessário processo de reinserção internacional do Brasil. Espero, apenas, que o Brasil, por força de todo o seu passado protecionista, intervencionista, dirigista, nacionalista, não venha a assumir, nesse ingresso, uma postura defensiva, que delongue, tolha ou torne imperfeito esse processo de abertura econômica do Brasil ao mundo, que é hoje o país mais fechado de todo o G-20 financeiro, no que se refere ao coeficiente comercial.
Alguns veem esse ingresso como complementar ao BRICS; eu, pessoalmente, vejo isso como totalmente contrário ao BRICS, um grupo ainda muito distante do conceito que considero necessário ao Brasil: democracia de mercado com pleno respeito aos direitos humanos e adesão a padrões elevados de governança responsável.

8) O que foi decidido sobre o fechamento de embaixadas e a retirada do Brasil de algumas instituições internacionais? O que revela?

PRA: Ocorreu, nos governos lulopetistas, um pouco por demagogia e por uma visão completamente equivocada do impulso lulopetista para reforçar a candidatura a uma cadeira permanente no CSNU, um sobre-dimensionamento da presença brasileira no exterior, com a abertura de missões diplomáticas em muitos países (praticamente em toda a América Latina, e em muitos países africanos), em claro descompasso com nossas possibilidades orçamentárias e de pessoal. A decisão de retraimento é sempre difícil, por envolver custos materiais e diplomáticos, e suponho que a retirada será muito gradual. A retirada de algumas instituições internacionais, por sua vez, também é muito limitada, e tem sido determinada mais por razões orçamentárias – ou seja, praticamente imposta pela área orçamentária do governo – do que por considerações diplomáticas. Não creio que revela nenhuma grande sinalização política especial, apenas um readequação das possibilidades do Brasil no cenário internacional, que foi excessivamente ampliada nos anos eufóricos, quase delirantes, do lulopetismo.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de fevereiro de 2018