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domingo, 3 de março de 2024

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

O despreparo de todas as partes na questão do conflito Venezuela-Guiana - G1, Paulo Roberto de Almeida

Uma reflexão sobre o conflito da atualidade na América do Sul.

Primeiro a notícia:

 O regime de Nicolás Maduro anunciou que 95% dos eleitores venezuelanos aprovaram em plebiscito a criação de um novo estado na região de Essequibo, território da Guiana rico em petróleo e reivindicado por Caracas desde 1841. O presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, disse que a diplomacia será sua “primeira linha de defesa” e que trabalha para garantir a integridade de suas fronteiras. Em Dubai, o presidente Lula disse esperar “bom senso” dos colegas da Venezuela e da Guiana. “O que a América do Sul não está precisando é de confusão. Não se pode ficar pensando em briga. Espero que o bom senso prevaleça, do lado da Venezuela e do lada Guiana”, disse. Embora não acredite num enfrentamento, o Brasil reforçou a presença militar na fronteira com os dois países. (g1)”

Agora meu comentário (PRA):

O Essequibo NUNCA pertenceu juridicamente à República da Venezuela independente. No período colonial foi vagamente associado à antiga Capitania da Venezuela. A ocupação holandesa e sua posterior cessão ao Reino Unido mudaram a geografia política e humana da área desde o século XVIII.

O colonialismo e o imperialismo europeus criaram novas realidades não só nas Américas, desde os “descobrimentos”, mas assim o fizeram também em todas as demais partes do munfo desde essa época. Criaram novas realidades humanas, sociais e políticas, assim como fizeram todis os antigos impérios, na Ásia, no Oriete Médio e na própria Europa, com o império romano, por exemplo.

Pretender erradicar as transformações ocorridas, por vezes por meio de grandes violências contra autóctones (muitas vezes também imigrantes ou conquistadores) representaria exercer ainda maior violência sobre essas novas realidades criadas em processos seculares de invasão e dominação.

Volto a dizer: a Venezuela independente desde o inicio do século XIX NUNCA exerceu dominio legal e reconhecido sobre o território do Essequibo. O Reino Unido usurpou território que não era seu? Certamente, mas o mesmo ocorreu antes com HOLANDESES e os próprios ESPANHOIS.

Pergunto: Até quando a ditadura venezuelana vai criar um problema para dla mesma, para os guianenses, para o Brasil (que detinha parte desse território) por questões mal resolvidas de sua própria história e de suas ambições atuais?

Paulo Roberto de Almeida 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Direito do Mercosul: capítulos Paulo Roberto de Almeida (2019)

Seleção dos meus capítulos a este livro: 

Direito do Mercosul. 2ª ed.; Brasília: Uniceub, 2019, 1247 p.; ISBN: 978-85-7267-009-8; e-book; link: https://repositorio.uniceub.br/jspui/handle/prefix/13134). 


Constando dos seguintes capítulos:  

1) "Apresentação" (com Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha), pp. 23-27, 

2) "O Mercosul no contexto da integração latino-americana" (atualizado em novembro de 2018), pp. 76-109; 

3) "O desenvolvimento do Mercosul: progressos e limitaç5es" (texto original, publicado na 1ª ed. da obra, em 2013), pp. 110-144; 

4) "Acordos extra- regionais do Mercosul" (texto original, publicado na 1ª ed. da obra, em 2013), pp. 411-434; 

5) "Perspectivas do Mercosul ao início de sua terceira década" (texto original, publicado na 1ª ed. da obra, em 2013), pp. 1211-1247.


 in: Ribeiro, Elisa de Sousa Ribeiro (coord.), Direito do Mercosul. 2ª ed.; Brasília: Uniceub, 2019, 1247 p.; ISBN: 978-85-7267-009-8; e-book; link: https://repositorio.uniceub.br/jspui/handle/prefix/13134). 

Capítulos próprios extraídos da obra original e tornados disponíveis na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44415804/Direito_do_Mercosul_2a_edicao_rev_ampla_Chapters_PRAlmeida) e em Research Gate (link: https://www.researchgate.net/publication/345153795_Direito_do_Mercosul_2a_ed_rev_chapters_Paulo_Roberto_de_Almeida_2019). 


domingo, 7 de julho de 2019

José Eduardo Faria: um Quixote do Direito - novo livro (entrevista Estadão)


Uma entrevista imperdível.


José Eduardo Faria: “A Constituição deu papel de colegislador aos juízes”

Livro de professor da USP e da FGV remonta à Constituição de 1988 e como seu excessivo recurso a princípios vagos explica as tensões jurídicas e políticas do Brasil da Lava Jato

Estado da Arte
Professor do Departamento de Teoria e Filosofia do Direito da USP e da Fundação Getúlio Vargas, José Eduardo Faria acaba de lançar o livro Corrupção, Justiça e Moralidade Pública (Editora Perspectiva). Reunindo artigos, ensaios e palestras do período 2016-2019 publicados sobretudo no jornal O Estado de S. Paulo, neste Estado da Arte e no site jurídico Jota, o livro cobre um período marcante e conturbado: aquele das intensificações da maior operação de combate à corrupção no Brasil, do segundo impeachment de nossa jovem democracia, da prisão de um ex-presidente da República e das cada vez mais radicais tensões políticas e institucionais. Nesta entrevista, Faria fala ao Estado da Arte sobre os principais temas desenvolvidos nos artigos do livro, das disputas entre garantistas e punitivistas no quadro atual à engenharia conceitual de nossa Constituição.

Estado da Arte: Em um dos artigos do seu livro Corrupção, Justiça e Moralidade Pública, “O pessimismo como dever civil”, o senhor cita Norberto Bobbio como uma receita para períodos de crise institucional: “O pessimismo é um dever civil porque só um pessimismo radical da razão pode despertar aqueles que, de um lado ou de outro, mostram que ainda não se deram conta que o sono da razão gera monstros”. O senhor avalia que nós seguimos em uma crise institucional desde então? O que caracterizaria esse “pessimismo civil”?
José Eduardo Faria: O texto de Bobbio a que me refiro é um artigo publicado em um dos momentos mais críticos na política italiana, quando o corpo do primeiro-ministro Aldo Moro foi encontrado e quando se descobriu que a máfia financiava a Democracia Cristã, com todos os atos terroristas que marcaram os anos 1970. Naquele momento, a democracia do país estava sendo corroída por todo tipo de corrupção e radicalização. É quando começam a ressurgir discursos que, no fundo, eram proto-fascistas. De alguma forma, aquilo fez com que a velha geração, como era a do Bobbio, acabasse muito preocupada com o risco de um retrocesso como este que nós estamos vivendo no Brasil hoje. E ele termina aquele artigo (um texto brilhante que está em um livro chamado As ideologias de poder) com três metáforas – a do peixe na rede, a da mosca na garrafa e a do homem no labirinto.
Nós negamos virtudes ao eleitor, que não sabe escolher seus candidatos e se deixa seduzir por um populista. É mais ou menos como o peixe na rede – vota em qualquer um porque está fadado a se dar mal. Por mais que tente se libertar ele não consegue: vai morrer de uma forma absolutamente dramática. A imagem da mosca na garrafa fechada com uma rolha, com o oxigênio acabando, prestes a morrer sufocada e sem força para estourar aquela rolha, logo, precisa de um braço que a puxe ilustra o risco do chamado a um braço armado. Por fim, vem a velha ideia da experimentação, que é a do homem no labirinto. Se ele tiver o mínimo de capacidade reflexiva, acaba encontrando saída. Por erros e acertos, aprende quais são as saídas erradas e busca as certas. Bobbio diz que, quando nós temos um pessimismo de razão – e ele vai buscar esse pessimismo em Weber –, quando temos uma atividade interrogativa, quando conseguimos tirar do valor de face aquilo que os articuladores políticos realmente querem, conseguimos, então, encontrar algumas alternativas viáveis. Esse é o pessimismo civil saudável.
Sobre o quadro de crise institucional, diria que nós estamos mais surpresos com o Bolsonaro do que os mais céticos seriam capazes de imaginar. Primeiro, ele não tem uma pauta de governo. Segundo, é semialfabetizado. Terceiro, é absolutamente confuso, incapaz de raciocinar sistemicamente – é quase evidente que ele tem dificuldades cognitivas. E, além de ser uma pessoa embrutecida –  e, ao mesmo tempo, vulgar e ignorante –, ele é também uma figura extraordinariamente autoritária, que desconhece o funcionamento das instituições. A fala dele a respeito do Judiciário e do Legislativo é de alguém que não conhece as regras mais elementares do processo político. Não tem nenhum respeito pela Constituição, pela ordem jurídica, pelos partidos políticos. É uma figura que, ao meu ver, vai se tornando potencialmente perigosa.
Estado da Arte: As revelações do site The Intercept sobre o que parece ter sido um caso de orientação de Sérgio Moro (à época juiz da Lava Jato) à acusação, na figura do procurador Deltan Dallagnol, agrava o quadro de crise institucional?
José Eduardo Faria: Pode estar alimentando tensões políticas, mas não alimenta a crise institucional.
Estado da Arte: Antes de Bolsonaro, nas tensões do impeachment, e mesmo depois, o senhor já detectava essa crise?
José Eduardo Faria: A gente já vinha de uma crise institucional. Houve um certo esgotamento depois da eleição da Dilma, principalmente no segundo mandato, do presidencialismo de coalizão. O Congresso percebeu com uma certa clareza que o impeachment era mais fácil do que eles imaginavam. Quando, com a pressão das ruas, a Dilma caiu, eles perceberam que o impeachment era mais do que um instrumento para nivelar crises institucionais – poderia ser um instrumento para debelar presidentes que não tivessem sustentação no Congresso e não fizessem o que os “centrões” da vida queriam.
A partir desse momento, o jogo parlamentar sai da policy – de um jogo de alternativas de políticas públicas – e entra na politics – num jogo de mudanças legais e constitucionais que, por sua vez, levam para a polity – matriz institucional da democracia brasileira. Em português, a gente usa a palavra política para descrever o que o inglês descreve em três dimensões: policy, politics polity. A polity é o framing. Se você mexer na polity, isso pode desestruturar as instituições, e a democracia vai por água abaixo. O jogo natural é quando há um debate de policies nas eleições parlamentares. Politics é quando há uma eleição presidencial com alternativas de poder, mas sem alternativas nas instituições. O impeachment chapou tudo. Na realidade, ele erodiu a discussão sobre as policies. Não há mais essa discussão, que no passado girava em torno de mais mercado e menos mercado, mais privatização, menos privatização, por exemplo. Mexeu na estrutura da politics com a desestruturação do sistema partidário e, se depender de Bolsonaro, vai mexer na polity e vai desestruturar o que resta das instituições. Um dos filhos dele já falou que para fechar o supremo basta um cabo e um soldado. O próprio presidente já falou na solução de jogar mais cinco ou seis ministros do Supremo para ter maioria (que foi o que Costa e Silva impôs ao Castelo Branco em 1967). Claramente, esse é um discurso disruptivo das instituições. Isso abre caminho para que outros grupos apareçam também radicalizados, o que indica uma fragilização do sistema. O Brasil tem uma estrutura sedimentada maior do que a gente imagina, mas essas coisas me preocupam. A noção de policy nesse momento está perdida no governo Bolsonaro. Não acho que dele venha nada de inteligente. O governo não tem pauta, não tem agenda, não tem projeto – tem um discurso ideológico, vive do confronto.
Estado da Arte: O conjunto de artigos reunidos em seu livro, nesse período que vai de 2016 a 2019, tem foco nas tensões entre “famílias” interpretativas do Direito – “garantistas” “punitivistas” seria um modo de apresentar a questão. No entanto, a ênfase toda agora parece recair sobre a política.
José Eduardo Faria: Tudo tem levado as análises para a política. Agora, isso não quer dizer que, por trás dessas discussões políticas e institucionais, não esteja o Supremo dando a última palavra. Vai ficando evidente que o Supremo vai ser a âncora de salvação da polity no Brasil. Volto a insistir: policy, politics polity. Quem vai segurar um “framing” vai ser o Supremo.
Estado da Arte: Há uma tese defendida por muitos analistas e cientistas políticos segundo a qual a Lava Jato é indiretamente responsável por Bolsonaro ter sido eleito presidente. O senhor endossa a tese?
José Eduardo Faria: Eu acho que essa ideia de que existe o “Partido do Ministério Público” ou o “Partido da Justiça” não se sustenta. O que você tem na realidade é um jogo corporativo pesado. É um jogo cultural também bastante interessante nas instituições de Direito. Há 20 anos, o MPF estava tão politizado quanto está hoje. Não sei se você se recorda que havia dois procuradores – Guilherme Schelb e Luis Francisco de Sousa – que tumultuaram o governo Fernando Henrique do começo ao fim do segundo mandato, a ponto de conseguirem liminares com juízes federais de comarcas do interior do Amazonas, do interior do Nordeste, obrigando a Advocacia-Geral da União a mandar advogados da União com jatinhos da FAB para tentar às pressas cassar aquelas liminares.
Pode haver uma mudança de perfil, mas a tática continua. Isso sempre aconteceu no Ministério Público. O MP sempre teve, na sua função de acusar, protagonistas que se valeram dessa prerrogativa para se lançarem como justiceiros, moralistas e para transformar a carreira de promotor em caminho para a política. O Hélio Bicudo fez isso, o Fleury fez isso. O Pedro Taques, que foi governador do Mato Grosso, era procurador da República e mandou prender o Jader Barbalho. Há uma certa tradição de procuradores que vão para a política. O cargo dá projeção, coloca você na mídia. Sérgio Moro, que chegou a ser juiz auxiliar da [ministra] Rosa Weber no Supremo, enfrentou oposição na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que lhe exigiu que ministrasse aulas no meio da semana, coisa que não poderia fazer. Aquilo vinha de briga política e corporativa interna. Ao obrigar Sérgio Moro a voltar para Curitiba, esse pessoal não percebeu que tinha dado a ele, sem que o próprio Moro percebesse, aliás, um super poder, que foi a 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, transformando-o, no longo prazo, ou num presidenciável, ou num futuro ministro do Supremo, ou, no mínimo, nessa figura que ele é agora.
Estado da Arte: Mas a tensão jurídica provocada pela Lava Jato foi intensa. Falamos disso na entrevista publicada no Estado da Arte em fevereiro de 2018 e que encerra Corrupção, Justiça e Moralidade Pública. Como o senhor vê isso agora?
José Eduardo Faria: Sim. Eu lancei dois olhares a esse fenômeno: o da filosofia e o da sociologia do Direito, que consiste em analisar esses julgamentos da Lava Jato a partir da hermenêutica jurídica, do conflito de famílias interpretativas do Direito e de distintas gerações. A partir dessa perspectiva, percebe-se claramente que, a despeito da vasta gama de doutrinas sobre o tema, tem-se, de uma lado, a linha positivista ou normativista, que privilegia o critério lógico-formal – que não se preocupa com a política, com a economia, com a história, com a antropologia, apenas com a amarração lógico-formal do sistema jurídico numa pirâmide normativa que começa na Constituição e vai descendo até chegar ao contrato –; e, de outro, tem-se o realismo jurídico que, nos séculos 19 e 20, foi aberto por um juiz americano brilhante chamado Oliver Wendell Holmes Jr. e que, até hoje, pauta grandes juristas americanos e ingleses, para os quais não existe interpretação literal do Direito, sendo necessário sempre buscar o sentido da norma, o que o legislador queria, se essa norma já tem uma certa duração, como é que ela sobreviveu, e que tipo de ajuste nós podemos fazer hermeneuticamente dessa norma, que veio do passado, sendo aplicada a um caso concreto cujos valores nada têm a ver como contexto original de emergência daquela norma.
No Judiciário, percebe-se essa divisão do ponto de vista geracional, com juízes mais jovens e juízes mais velhos, em linhas gerais, assumindo cada uma dessas posições hermenêuticas. Os juízes mais velhos têm uma formação franco-românica no campo do Direito civil e do Direito privado, e uma formação germano-românica no campo do Direito penal. Os juízes mais jovens, além de partilharem, em muitos casos, de formação anglo-saxã em algum nível, já integrados ao mundo da globalização (sobretudo financeira), são juízes que vieram depois da Constituição de 1988, e sobretudo, perceberam uma coisa que os juízes mais velhos não perceberam, e que eu vou tentar explicar. A tarefa de legislar uma sociedade requer um mínimo de unidade jurídica para garantir a diversidade social, e para isso, é preciso se valer de um código feito de um corpo geral de normas abstratas e impessoais para dar conta de sociedades pouco diferenciadas. O conceito de complexidade para nós, na sociologia e na filosofia do Direito, diz respeito à ideia de uma sociedade que vai se tornando mais diferenciada funcionalmente em sistemas especializados, e cada sistema especializado tende a se subdividir em sistemas ainda mais especializados. O problema é que lá atrás, em 1988, ninguém percebeu que a sociedade brasileira já era uma sociedade diferenciada funcionalmente em sistemas especializados. Qual é o problema que vai surgir? É que, para as sociedades funcionalmente diferenciadas, você não consegue mais trabalhar com a ideia de código. Os códigos perderam sua referência normativa, tornando-se inviáveis. Foi exatamente nesse momento que, não só o Brasil, mas países como a Espanha e Portugal, quando saíram de uma ditadura, começaram a perceber a importância dos princípios.
Estado da Arte: E como operam esses princípios?
José Eduardo Faria: O princípio é uma norma que tem o texto aberto, que se vale de conceitos indeterminados. Enquanto a norma tem uma textura fechada que se vale de conceitos muito objetivos, os princípios se valem de conceitos polissêmicos. O legislador constitucional trabalha quase sempre a partir de uma atitude prudencial que é identificar aquilo que é tradição, aquilo que é rotina, aquilo que é comportamento sedimentado, aquilo que gera expectativas comuns de justiça. Ou seja, ele trabalha com aquilo que funciona, e transforma esse material, através de um processo de observação, em regra. Como aquilo que ele transformou em uma regra já funciona, a sociedade continua reproduzindo aquele comportamento acriticamente, daí a noção de eficácia de um texto constitucional.
O problema surge quando você tem de regular um comportamento inédito – e não há uma maioria política clara que apoie democraticamente uma alternativa, já que os próprios atores políticos estão confusos com aquilo. É nesse momento que você é obrigado a recorrer a uma estratégia tópica para tentar, através de um discurso e de conceitos deliberadamente ambíguos, ir conquistando o apoio da sociedade. O princípio da boa fé no Direito; o princípio da função social no contrato; o princípio da função social da propriedade; o princípio da dignidade do homem livre na Constituição; o princípio do homem livre no trabalho; o princípio do Direito da subsistência: todos esses conceitos são indeterminados, e o legislador se vale deles a partir de uma estratégia política de passar a mensagem “olha, eu não vou oferecer uma resposta permanente, mas eu prometo que nessa linha oferecerei em breve uma resposta”. Os princípios permitem uma aparência de que determinadas matérias constitucionais foram tratadas. Como eles são polissêmicos, cada segmento que defendia uma posição X, Y, Z ou W se achou representada naquele princípio, e o princípio deu uma espécie de fecho de abóbada consensual, o que permitiu que a Constituição chegasse ao seu final. A estratégia dos constituintes era fechar questão temporariamente por meio de princípios, uma vez que a tensão política era grande. Depois, com a primeira eleição democrática (1989), viria uma maioria que poderia substituir os princípios por regras, até completar o quadro constitucional – foi essa a estratégia deles. Mas isso não aconteceu.
Ocorre que os princípios têm eficácia desde que sejam usados em caráter absolutamente excepcional, e nossos constituintes usaram e abusaram da figura jurídica dos princípios. Com isso, a Constituição ficou particularmente sensível a interpretações. Em um país que adota um sistema de controle difuso, um juiz de primeira instância – dependendo de sua formação, da sensibilidade política vinda de um centro acadêmico – vai perceber, com o tempo, que os princípios são tão vagos que ele pode deixar de lado a regra e dar um sentido àquele princípio em um caso concreto.
Com isso, os promotores e os juízes têm um poder de fogo que não tinham no passado. Descobriram aquilo que os velhos juízes e procuradores de justiça não descobriram, e que os parlamentares demoraram para perceber – que aquela divisão tripartite (Judiciário, Legislativo e Executivo) foi para o espaço. Na medida em que a Constituição de 1988 jogou muitos princípios, deu um papel de colegislador para os juízes de primeira instância. Foi assim que o juiz Fausto De Sanctis mandou prender o Daniel Dantas, por exemplo. Duas ou três horas depois de ele ser solto pelo Gilmar Mendes, o De Sanctis mandou prendê-lo novamente. O Gilmar o desafiou, dizendo que não tinha base legal. E o De Sanctis deu entrevista para todos os jornais, com um sorriso de orelha a orelha, falando que o princípio da moralidade pública o autorizava a fazer aquilo.
Quase dez anos depois, o Moro também vai fazer isso. Condenou o Lula com base nos princípios, enquanto os advogados dele – da velha guarda – ficaram trabalhando no discurso do garantismo. O que eu quero dizer é que a magistratura, num processo jovem, de erro e acerto, percebeu que a figura da tripartição dos poderes foi para o espaço com o uso quase abusivo dos princípios. Não vou dizer abusivo porque é um termo negativo, mas a partir de uma estratégia de sobrevivência que os constituintes de 1988 tiveram.
Portanto, não existe um partido do Ministério Público, não existe um partido da Justiça.
Estado da Arte: É uma falha grave de nossa Constituição, então?
José Eduardo Faria: No livro, eu não estou julgando se a Constituição é boa ou má. Estou tentando mostrar como a engenharia constitucional, durante a Constituinte, da perspectiva mais tradicional dos constituintes, não funcionou. Quando perceberam que a coisa ia fugir do controle deles, eles apelaram para a criatividade – e a criatividade acabou tendo como externalidade a ampliação do número de princípios. Com base nessa ampliação, os juízes e os promotores mais jovens – com uma certa vivência de centros acadêmicos, movimentos sociais, etc. – perceberam claramente aquela brecha para poder tomar decisões.
Estado da Arte: É isso que está na base da concepção de atuação da Lava Jato?
José Eduardo Faria: Essa geração mais jovem percebeu uma mudança no Direito penal, oriunda de estratégia adotada inicialmente na Europa para combater lavagem de dinheiro associada às máfias, ao tráfico e ao terrorismo. Isso levou à criação, na década de 1980, de um grupo na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) chamado GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional contra a Lavagem de Dinheiro), que desenvolveria uma minuta com elementos de um Direito penal econômico que seria, depois, “importada” pelos países da organização. No caso do Brasil, país observador, o governo FHC internalizou esse Direito penal econômico em troca de acesso à tecnologia e linhas de crédito favorecidas. Esse Direito penal econômico foi inteiramente formulado a partir do Direito anglo-saxônico, marcado pelo realismo que comentei há pouco. Isso explica, em parte, o choque de gerações e de famílias do Direito sobre o qual falávamos acima: essas novas gerações de promotores e juízes, incluindo o próprio Sérgio Moro, fizeram algum tipo de especialização ou de pós-graduação em universidades americanas ou inglesas. Todos eles acabaram percebendo, de um lado, a flexibilidade dos princípios no desenho constitucional e, de outro, a flexibilidade de usar procedimentos anglo-saxônicos. A reação a isso é o discurso do “garantismo”. Repare que isso não é novo: as gerações mais velhas, mais próximas do “garantismo” e do formalismo do Direito germano-românico, já haviam saído derrotadas durante o julgamento do Mensalão, muito antes de Sérgio Moro, Dallagnol e outros personagens da Lava Jato despontarem no cenário.
Estado da Arte: No entanto, parece ser consenso que as revelações do site The Intercept acerca das articulações entre o Procurador Deltan Dallagnol e o então juiz Sergio Moro na Lava Jato constituem uma falta moral, e talvez, legal, indo muito além de uma questão de formação diferente. O senhor interpreta a situação nesses termos?
José Eduardo Faria: Sim, o balanço das revelações das conversas do ex-juiz Sérgio Moro e do procurador-chefe da força-tarefa do Ministério Público Federal em Curitiba deve pesar mais pelo lado moral ou ético do que pelo lado jurídico. Neste caso, como a interceptação das conversas foi absolutamente ilegal, dificilmente as conversas serão aceitas pelos tribunais como fundamento ou prova para que ambos venham a ser condenados. Além disso, como as conversas parecem ter sido editadas e o que foi divulgado está descontextualizado, haveria a necessidade de contraprovas. Mas como obtê-las? É praticamente impossível fazer uma perícia sem elas. Claro, haverá discussões nos tribunais superiores, principalmente no Supremo Tribunal Federal, onde muitos ministros não encaram Moro com bons olhos e não gostariam de tê-lo como colega de toga, por ser apenas um simples juiz de primeiro grau. Mas não vejo como poderão puni-lo. Do ponto de vista moral, contudo, a imagem, ficou maculada perante quem tem instrução suficiente para entender que se deixou levar por uma ética maquiavélica, no sentido de que os fins – no caso, a defesa da moralidade pública, por um lado, e o afastamento do ex-presidente Lula da vida política, por outro – justificam os meios. Ele pode ser visto como herói pelas massas. Mas quem tem um mínimo de descortino sabe que ele não se comportou bem.
Estado da Arte: Nesse caso, não foi “realismo” jurídico defensável…
José Eduardo Faria: Foi maquiavelismo mesmo, não realismo. Não há como se justificar colaboração íntima entre juízo e acusação.
Estado da Arte:Frequentemente se apresenta a Lava Jato, assim como, em geral, as interpretações mais amplas de “princípios” e esse “realismo” jurídico, de modo favorável, pois seriam uma armas para travar o “bom combate”: combater a corrupção, por exemplo. Mas, valendo-se de uma abordagem de “princípios” excessivamente amplos, juízes de tribunais eleitorais podem alegar que o princípio da isonomia na disputa eleitoral está sendo ferido por faixas e cartazes de estudantes e justificar uma invasão policial na Universidade, como vimos ocorrer no pleito de 2018. Não é perigoso para a democracia arriscar esse jogo?
José Eduardo Faria: É evidente que, dos dois lados da alternativa nessa disputa de “famílias” jurídicas, você tem riscos. O lado do “garantismo”, para os advogados criminalistas tradicionais, era uma forma ir levantando questão de ordem ao longo do processo sabendo que, no fundo você não discutiria o mérito, garantindo a prescrição do processo lá na frente. Como nos mostra a sociologia americana do Direito, quanto mais rico é o réu, podendo se valer de advogados caros, maior certamente será a impunidade. Do outro lado você tem esse risco que você está mencionando, já visível na Lava Jato.
Estado da Arte: Deixando de lado a Lava Jato, esses desvios, muitos dos quais acabaram ganhando a alcunha de “ativismo judicial”, tema que o senhor também explora nos artigos do livro, parecem invadir perigosamente o domínio dos valores morais acerca dos quais o Estado, sob a figura do poder jurídico, ao menos, deveria ser neutro, reservando ao legislativo a tarefa de, por meios democráticos, expressar o desejo das maiorias. O Supremo não tem se excedido?
José Eduardo Faria: Essas discussões têm de ser pensadas como um processo de erro e acerto. Você tem uma série de questões que são questões que envolvem a mudança da arquitetura do Direito – não é tirar um tijolo daqui, não é uma questão de reforma, mas é uma questão de quebra de paradigma. E, nessa situação de quebra de paradigma, é absolutamente evidente que nós estamos olhando para a polity, e não mais para um conflito de partido aqui ou ali. E nessa polity a gente começa a perceber que o problema vai passar necessariamente pelas mãos do Supremo. Você tem toda razão, o Supremo começa também a poder utilizar a interpretação de princípios para legislar. Agora, se de um lado existe uma pressão da sociedade por certas pautas, de outro existe uma figura jurídica que é a inconstitucionalidade por omissão: se um movimento social alegar que tal Direito é um Direito previsto pela legislação, mas ele não é regulamentado, você pode pedir para que o Supremo regularmente, ou dê um prazo para regulamentar, e, enquanto não houver a regulamentação, prevalece esse entendimento. O Supremo está cumprindo o papel dele – não sei se está cumprindo bem. O problema não é que ele não esteja cumprindo o seu papel, é saber se ele está cumprindo bem ou não. Em alguns momentos ele é muito conservador, em outros momentos ele é menos conservador, em alguns momentos ele também se omite, em outros momentos ele também não se omite.
Estado da Arte: No artigo “A Adjudicação em Tempo de Incertezas”, lemos que “A história registra não só protagonismos judiciais desastrosos, mas também experiências exitosas, como a promovida pela Suprema Corte americana sob a presidência de Earl Warren. Trata-se do julgamento de Brown x Board of Education.” É um caso exemplar de que, por vezes, sem uma disputa política que poderia ser interpretada como “ativismo judicial”, não há avanços civilizatórios que hoje consideramos elementares.
José Eduardo Faria: Guardadas as devidas proporções, é o que o Supremo fez na questão da homofobia no Brasil. Em alguns momentos ele tem de ser contra-majoritário, em alguns momentos ele tem de fazer defesa de determinados interesses que podem representar conquistas civilizatórias, como no caso que você citou. Toda a ideia do livro foi tentar colocar a discussão do ponto de vista técnico, sempre chamando a atenção de políticos, da imprensa, da opinião pública, para o fato de que você tem questões institucionais por trás de muitas disputas que parecem ser políticas, e que, portanto, não é como se o Supremo estivesse fazendo política partidária. Não se pode tratar o Supremo exclusivamente a partir dos seus atores atuais. Há momentos em que o Supremo, com outra composição, foi decisivo para garantir estabilidade.





sábado, 17 de março de 2018

Dez livros fundamentais em Direito e Filosofia Política - Irene Nohara

Não são os "dez mais" que eu próprio escolheria, mas vários dos que aí figuram também poderia estar entre os meus preferidos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de março de 2018

10 livros fundamentais sobre Direito Público

É necessário pensar o nosso tempo a partir de abordagens sociológicas, daí a preferência por obras mais reflexivas


Crédito: Pixabay
  • Irene Patrícia Nohara

Existem 10 sugestões de obras que contribuem para a estruturação de uma visão de mundo mais problematizante e que auxiliam na reflexão dos publicistas. Como autora de um livro de Fundamentos de Direito Público, procurei selecionar 10 obras que são imprescindíveis à formação de um publicista, tendo em vista que nelas se encontram:
  • os valores republicanos ou a falta deles;
  • o conjunto de ideias que contribuíram para a formação do Estado Moderno e, consequentemente, do Direito Público;
  • o imorredouro contraste entre visões de mundo em esquerda e direita;
  • a compreensão do Direito enquanto fenômeno associado à organização estatal, visão que teve seu ápice no positivismo jurídico;
  • a estruturação, posterior, de um Estado Democrático de Direito, no combate ao totalitarismo;
  • semiologia do poder, isto é, o estímulo reflexão sobre a intenção manipuladora do discurso técnico-científico que se volta ao domínio social; e
  • as novas problemáticas surgidas com a sociedade pós-moderna.
Como estamos em tempos de tecnologias disruptivas, de mudanças valorativas, de ausência de consenso sobre os valores estruturantes do espaço público e, portanto, de crise, surge com força no direito público a necessidade de se pensar o nosso tempo a partir de abordagens sociológicas, daí porque a preferência por obras mais reflexivas.
Na obra Coronelismo, Enxada e Voto se consegue identificar como se estruturou o espaço público no Brasil, por uma cooptação privada, à medida que o voto foi relativamente universalizado a partir da República Velha. Os coronéis acabaram fazendo um acordo com os candidatos a governadores, sendo esta “troca de favores” permeada por três dimensões: (1) mandonismo; (2) filhotismo; e (3) desorganização de serviços públicos, dada inexistência de autonomia aos municípios.
Com a obra se consegue entender algumas distorções políticas que têm origem nessa dinâmica de relacionamentos escusos entre público e privado no Brasil. Ressalte-se que Victor Nunes Leal quis enfatizar que o crescimento do espaço público com a República demandou uma nova estruturação do privado com o público, mas que a situação do Brasil agrário contribuiu para o acirramento do coronelismo. O publicista precisa conhecer para saber quais problemas existem na origem da conformação do espaço público no Brasil, algo que emerge da discussão da integridade no relacionamento entre público e privado.
É uma obra sintética, mas completa. O professor Dalmo de Abreu Dallari é um dos maiores estudiosos do federalismo no Brasil. Nessa obra ele analisa as principais características do federalismo a partir da exposição da sua estruturação por agregação nos Estados Unidos da América. Imprescindível ao publicista brasileiro saber dessas características e posteriormente comparar a conformação do federalismo nos Estados Unidos em relação à formação federativa por segregação no Brasil.
Para quem não teve na graduação, é imprescindível conhecer essa coletânea sobre autores de escol, estudiosos dos clássicos da política, organizada por Francisco C. Weffort. Os textos são muito agradáveis de ler e são estruturados numa crescente de informações do pensamento que conformou o Estado Moderno. Ainda tem a vantagem de serem seguidos, na maioria, de trechos originais expressivos das obras clássicas abordadas. Uma joia a ser trabalhada para reflexão dos temas imorredouros sobre: a natureza humana, a estruturação e os papéis do Estado e as relações de poder.
Paulo Bonavides é um dos maiores juristas que o Brasil produziu. Suas teorias são estudadas tanto no Brasil, como em universidades da Alemanha e da América Latina, sendo conhecido como constitucionalista plural, inovador, crítico e defensor inarredável de uma proposta de Estado Social. Nesta obra o autor retrata, com texto complexo e cheio de construções poéticas, mas de acentuado rigor amparado na ciência política, os movimentos revolucionários que estruturaram novos papeis ao Estado.
Trata-se de obra de agradável densidade teórica e com pitadas de genialidade próprias de Paulo Bonavides, que burila frases tão impactantes como aquela de que: no período Liberal o Estado foi visto como “o fantasma que atemorizou o indivíduo”, sendo que posteriormente se verificou ter sido injusto concentrar no espectro estatal toda potencialidade de opressão humana.
 

Apesar de estar em voga o pós-positivismo, ainda assim é imprescindível conhecer o positivismo para que não haja distorções sobre os pontos de possível superação teórica. Mesmo Friedrich Müller, ao propor uma teoria estruturante, ainda assim nos revela que: os objetivos do positivismo de cientificizar na medida do possível a ciência jurídica e de elaborar uma dogmática racional não merecem ser esquecidos em benefício de exigências menores no tocante à racionalidade e à honestidade em questões de método. Não se trata de fim em si a superação do positivismo!
Assim, ainda é encantador ao publicista se debruçar sobre o esforço metódico de Kelsen, que outrora foi injustamente taxado de antidemocrático, por afastar a função dos valores da abordagem da Teoria Pura, mas que, nesses tempos de moralismos irracionais, valoração seletiva diante das relações de poder, e, portanto, de retomada das perseguições ideológicas em diversas instâncias, nos revela o quão a despolitização propugnada, ao menos da seara da ciência jurídica, seria algo não distante de uma proposta democrática, dada vocação igualitária ao menos quanto à aplicação de critérios objetivos amparados nas possibilidades derivadas dos textos normativos dentro de uma estrutura escalonada do ordenamento jurídico.
Por conseguinte, conhecer a Teoria Pura jamais implica em rezar a cartilha do positivismo normativista, mas é honesto reconhecer o quanto Kelsen conseguiu fazer algo genial, porque atemporal, que contribuiu historicamente para legitimar a atuação jurídica dos Tribunais Constitucionais europeus. Um clássico para a reflexão do Direito, que, para ele, era um só: tanto público como privado, sendo ambos emanados do Estado.
Nessa obra, Celso Lafer, a partir de categorias básicas do Direito, dialoga com o pensamento de Hannah Arendt, enfatizando a necessidade de reconstrução dos direitos humanos. Trata-se de obra de grande atualidade, sobretudo num contexto de retração dos Estados de Bem-Estar Social, da situação de permanente conflito geopolítico no Oriente Médio, que faz aflorar os movimentos migratórios e a emergência das intolerâncias na Europa Ocidental, diante não apenas do terrorismo, mas também da competição por oportunidades que vão se escasseando em um cenário de crise e de desemprego estrutural.
Ressalta-se a diferença dos valores que permeiam o universo privado, com a questão da intimidade e da vida privada, focando a necessidade de proteção das idiossincrasias humanas, em relação ao domínio público, sendo que ainda nos dias atuais a realização dos direitos se dá numa possibilidade de inclusão sob a tutela de um Estado Nacional. É obra de grande valia para os publicistas.
Ainda que se diga que a dicotomia deva ser superada, Norberto Bobbio nos explica, de sua forma tradicionalmente clara e didática, que há uma distinção estrutural na visão de mundo entre a direita e a esquerda. Ele separa as orientações gradualistas das revolucionárias, sendo que estas últimas possuem em comum o desprezo à democracia, tida como medíocre. Logo, existem tendências ao totalitarismo nas perspectivas mais extremistas seja de direita ou de esquerda.
Em contraposição, no âmbito gradualista, que se baseia no crescimento a partir de um embrião, ou seja, de uma ordem preestabelecida, há as seguintes tendências: enquanto a esquerda enxerga a desigualdade como ordenação hierárquica injusta, pois entende que todos devam ser tratados igualmente, sendo que muitos não tiveram as mesmas oportunidades, dado que sua proposta é libertar os semelhantes dos privilégios sociais; a direta, por sua vez, enxerga a proposta igualitária do prisma de um nivelamento, tendendo a ter uma postura de darwinismo social — que vençam os melhores, sendo, ainda, ancorada, como regra geral, na defesa do passado, da tradição e da herança.
A obra é útil para desmistificar alguns pensamentos correntes como, por exemplo, aquele que associa religiosidade à direta e ateísmo à esquerda. Segundo Bobbio, tanto pode haver uma direita laica, isto é, não religiosa, como frequentemente existem alas progressistas das igrejas, que estimulam o governo a promover reformas em benefício da inclusão social.
Luis Alberto Warat reúne como poucos conhecimentos de Filosofia, psicanálise, teoria do Direito e teoria da linguagem. É importante que o publicista tome contato com a dimensão política do signo, isto é, dos falsos significados de representações e mascaramentos das relações de poder.
O livro contribui para a tomada de consciência sobre a semiologia do poder, sendo importante para interpretar intenções manipuladoras subjacentes aos discursos. A significação é tida como instrumento de controle social, estratégia normalizadora e disciplinar, fórmula produtora de consenso sobre o monopólio de coerção.
É uma obra rica, densa e que gera muitos insights para aqueles que gostam da abordagem do Direito do prisma da linguagem, mas que, curiosamente, apesar do título, não se restringe a abordar o Direito exclusivamente sob um viés linguístico, mas procura trazer as dimensões materiais de poder para dentro da produção do discurso na área jurídica. Leitura que exige certa maturidade e preparo do publicista em teoria da linguagem para que seja melhor degustada!
Sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, foi extremamente fértil na produção científica. Com uma linguagem acessível explica como a contemporaneidade ou a modernidade líquida se apresenta descolada de referenciais (sólidos) anteriores.
É a época da insegurança, sendo a família, a classe, a nacionalidade e a ideologia submetidas a um processo de desengajamento coletivo, em prol do consumismo, do hedonismo, das artificialidades daqueles que desertaram de defender um projeto coletivo no espaço público.
Apesar de pessimista, Bauman ainda nos alerta da necessidade de defender o evanescente espaço público da colonização comandada pelas angústias próprias da iniciativa privada. É um clássico que, uma vez que se toma contato, jamais abandona o pensamento…


Ulrich Beck, sociólogo alemão, trabalha a modernidade reflexiva a partir da lógica do risco, que permeia as relações sociais no momento atual. Trata-se de um contexto de incerteza, pois tendo em vista a dissolução da crença no progresso por meio da ciência e tecnologia, e do potencial também destrutivo das atividades da indústria química, da microeletrônica, da tecnologia nuclear e das manipulações genéticas, há situações que ameaçam as categorias até hoje usadas para o pensamento e a ação.
Num contexto de transnacionalização dos riscos civilizacionais, em que os riscos se apresentam como invisíveis, dependendo de uma interlocução pautada em pesquisa científica, Beck entende que as empresas acabam se engajando no debate dos riscos.
Inclusive, o mundo do risco faz com que haja sub-políticas, pois um sinistro pode ser fatal à sobrevivência das empresas, que doravante se submetem às exigências de legitimação próprias do espaço público, produzindo “contra-discursos” no intuito de forjar o conhecimento e disseminar versões interessadas com o objetivo de evitar consequências financeiras de riscos potencialmente produzidos por suas atividades.
É uma obra de leitura mais complexa, mas que é imprescindível para discussão de temas atuais do Direito Público, como: regulação, consenso, saúde pública, estado da arte na ciência e tecnologia e captura pelo setor regulado.
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