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quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Punhos de renda (Joaquim Nabuco e Oliveira Lima) - José Renato Nalini

 Punhos de renda

Por José Renato Nalini*

Blog do Fausto Macedo, 27/12/2023 | 05h00


https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/punhos-de-renda/?utm_medium=newsletter&utm_source=salesforce&utm_campaign=manchetes&utm_term=20231227&utm_content=blogs 

As escaramuças entre pessoas cultas podem revestir peculiaridades que disfarçam a rudeza, própria aos desprovidos de polidez. Por isso se diz que existe uma “ética de punhos de renda”, tão cruel quanto, mas sob aparência de civilidade.

Essas desinteligências podem surgir na carreira universitária, em estamentos como a Magistratura ou a diplomacia. Até na Igreja, o confronto entre posições antagônicas transparece. Existe acerba competição entre potenciais candidatos às mesmas cobiçadas vagas. É um silente, porém feroz duelo de egos.

Oliveira Lima e Joaquim Nabuco, ambos contemporâneos, ambos amigos, ambos diplomatas, se estranhavam. O primeiro censurava Nabuco por não libertar os cativos que sua família ainda possuía. Invocava o exemplo de sua mãe, que alforriara todos os escravos do serviço doméstico, à exceção de um só, que fora vendido meses antes por furtos cometidos. Mas chegou a conhecimento da mãe de Oliveira Lima que esse elemento servil estava a serviço de um senhor de engenho conhecido por sua desumanidade e que se gabava de, toda a vez que comprava um escravo, aplicar-lhe uma “novena”. Isto é, mandar surrá-lo diariamente durante nove dias, para que “aprendesse a conhecer o senhor”. Condoída, a senhora recomprou-o, a preço elevado pelo desalmado, e deu ordem para libertar o infeliz.

Já Nabuco era mais poeta do que abolicionista. Ambicionava honrarias e galanteios. Araújo Beltrão, cunhado de Oliveira Lima, suscitou homenagem a Nabuco no Parlamento Português e conseguiu concretizá-la. Algo a que Nabuco não agradeceu e fez questão de esquecer.

“Na sua presunção, Nabuco ia ao ponto de esquecer as considerações pelo amor próprio alheio”. Oliveira Lima o ajudou quando em Londres, ante nova invasão armada no território contestado com a Guiana Britânica. Nabuco estava a cuidar do arbitramento entre Brasil e Inglaterra. Nabuco mandou a Oliveira Lima um texto preparado por Graça Aranha, verdadeira “mixórdia digna de Malasarte, que corria o risco de ser restituída para ser posta em vernáculo, por estar recheada de termos tupis. Uma das frases dizia – textualmente: dans la maloca du tuxana”. Oliveira Lima deixou de lado a minuta e redigiu outra. Com surpresa viu que a “sua” nota, que elaborara a respeito, figurou nas memórias de Nabuco, sem referência à verdadeira autoria.

Em compensação, Graça Aranha fez jus a uma recompensa por seu trabalho. Nabuco o mandou representa-lo em Haia, no casamento da Rainha Guilhermina, “custeando suas despesas com o dinheiro destinado aos gastos de publicidade”, de que Oliveira Lima não fizera uso. A observação deste: “Os turibulários têm sempre sorte porque os homens, mesmo grandes, são muito sensíveis à lisonja”. Raros os homens públicos dotados de altivez ávida de impopularidade. “Rio Branco e Nabuco, pelo contrário, tinham a ânsia da popularidade, com uma diferença entretanto. Nabuco era um aristocrata, descendente pela mãe daquele fidalgo vianês Paes Barreto, tronco dos Morgados do Cabo, que, com o espírito de um São João de Deus, quis ir morrer entre os pobres no hospital que fundara em Olinda”. Já a Rio Branco, “não achou Afonso Arinos, no elogio do visconde pronunciado na Academia ao recolher a sucessão de Eduardo Prado, que o escolhera para patrono da sua cadeira, outro avô senão um capitão de navio da Bahia. Ora, navios da Bahia, de longo curso naquele tempo andavam pela certa ocupados no tráfico de escravos”.

Em desfavor de Nabuco, Oliveira Lima diz que, “depois de estar em contato com o povo, ia ensaboar as mãos e perfumar-se”. Algo ainda muito comum nos dias de hoje. Políticos que apertam as mãos do populacho e, mal adentram em seus carros e recorrem ao álcool purificador. Hoje ainda existe a escusa da Covid. Mas, mesmo antes disso, o “nojo de pobre”, a ojeriza ao povo não era uma característica incomum aos “mais iguais do que os outros” na bizarra Democracia Representativa tupiniquim.

Seja como for, Nabuco era um cavalheiro. A ponto de uma condessa, esposa de um embaixador alemão no Rio, ter dito a seu respeito, que era de se estranhar que só na Europa se encontrassem brasileiros distintos. Aqui, os que ela conheceu, não poderiam ser incluídos nessa categoria.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras

 

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Gilberto Amado nas páginas de Vicente Licinio Cardoso: permanência do pensamento

Neste livro, publicado originalmente em 1924 — aqui na edição de 1979, da CD e da Editora da UnB — figura um texto de Gilberto Amado, “As instituições políticas e o meio social no Brasil”, que começa com uma frase que deveria interessar nosso maior historiador da escravidão, Laurentino Gomes:

“Atentai, Senhores, aí está esboçada toda a história do Brasil no século XIX: Senhores e escravos.” (p. 45) Eu apenas corrigiria: não é só no século XIX, mas em toda a história do Brasil, da conquista portuguesa aos nossos dias. Gilberto Amado trata, em sua contribuição ao livro de Vicente Licínio Cardoso, não só do tráfico, como da escravidão, de uma forma geral, e também da ausência de escolas no imenso território brasileiro. 

Gilberto Amado se perguntava, ao final, se “diante do estado social do Brasil, é lícito acreditar que qualquer mudança nas instituições possa influir decisivamente para a felicidade do país? É de crer que qualquer modificação nos textos da Constituição [de 1891] tenha efeito sobre um meio nas condições em que se acha o nosso?” (p. 58)

Ele termina por um julgamento que, 98 anos depois, ainda parece válido para os nossos tempos;

“A ação política não pode deixar de exercer-se senão através de homens bem intencionados que possam suprir pela própria energia construtiva, atividade e patriotismo — no sentido do desinteresse pessoal e da capacidade de resistência às agitações improfícuas — as insuficiências de uma população ainda incapaz de exercer os seus direitos políticos e cumprir, como responsável pelos próprios destinos, os deveres cívicos que lhe incumbem.” (p. 59)

Cem anos depois desse diagnóstico desanimador, parece que ele se mantém intacto na perenidade de suas constatações. Triste constatar isso!

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 26/05/2022

sábado, 24 de julho de 2021

Emiliano Mundrucu: como um Brasileiro Negro desafiou a segregação nos EUA, 190 anos atrás - Mariana Schreiber (BBC News Brasil)

 

The black immigrant who challenged US segregation - nearly 190 years ago

Mariana Schreiber
BBC News Brasil, in Brasília, 
24/07/2021

Artistic illustration of the Mundrucu family on the boat
In 1832, the Mundrucu family refused to be barred from an area exclusively for white people on the steamboat Telegraph

It was a cold, rainy day in November 1832 when Brazilian immigrant Emiliano Mundrucu boarded a steamboat - the Telegraph - with his wife Harriet and their one-year-old daughter Emiliana.

They were taking a business trip from the Massachusetts coast to Nantucket Island, in the northeast of the United States.

During the crossing, Harriett, who wasn't feeling well, tried to seek shelter with her daughter in an area of the ship exclusively for women, but their path was blocked. The reason? They were black, and only white women were allowed in the ladies' cabin, comfortable accommodation with private berths.

At that time, slavery was no longer allowed in northern states (it persisted until the Civil War in the US south), but segregationist practices separating whites from "coloured" people were growing. 

However, the Mundrucu family did not accept their exclusion and the episode led to a pioneering lawsuit against racial segregation in the United States - proceedings that were big news at the time, but were later forgotten and have only recently been rediscovered by historians.

The case went to court after Harriett insisted on entering the ladies' cabin with her child, while the captain of the boat, Edward Barker, argued with Mundrucu - a Brazilian revolutionary who fled to Boston after being sentenced to death for his role in an attempt to create a republic in northeastern Brazil in 1824.

"Your wife a'n't a lady. She is a n---er," Barker told Mundrucu.

1833 New York newspaper report announces Mundrucu's victory in the first court case
This 1833 report announces Mundrucu's victory in the first court case

The impasse was momentarily interrupted because a storm forced the boat to return to the coast. The next day, however, the couple once again tried to ensure Harriett and Emiliana travelled safely, instead of using the inferior cabin, where there were no berths and men and women had to sleep on mattresses on the wet floor.

Mundrucu argued that he had paid the most expensive fare for the trip, but the captain ordered the family to get off the vessel. The Brazilian declared that he would sue, promising to "go and get a writ out immediately".

This was the start of the lawsuit filed by Emiliano Mundrucu against Captain Edward Barker for breach of contract, in a case that received coverage on the front page of newspapers across the US, and which even made waves in Europe.

The little-known story is detailed in an article published in December by South African historian Lloyd Belton in the academic journal Slavery & Abolition. 

Belton studied Mundrucu's life for his master's degree at Columbia University in New York and is currently continuing his research studying for a PhD at the University of Leeds.

He says this lawsuit is the oldest known legal action against racial segregation in the United States. Before the discovery of this case, historians thought similar lawsuits had only begun a decade later.

"It is incredible that a black Brazilian immigrant was the first person in US history to challenge segregation in a courtroom." 

"And it is even more incredible that no-one knows who he is. In the 1830s in Boston, people knew who he was. In Brazil, in the 1830s, people knew who he was," Belton told BBC News Brasil.

An 1856 engraving showing a black man being expelled from a railway carriage
image copyrightLibrary of Congress
image captionSegregation policies were common in northern states before the Civil War - in this 1856 engraving a black man is expelled from a railway carriage

Also a researcher of the life of Emiliano Mundrucu, American historian Caitlin Fitz, a professor at Northwestern University, says that it was not just the Mundrucu lawsuit which was pioneering, so were the couple's actions on the boat. 

The well-known episode in which ex-slave Frederick Douglass, one of the most important black activists in American history, entered a whites-only wagon on a train in Massachusetts (he was forcibly removed) occurred in 1841, almost a decade later.

"It's not just the first known lawsuit against segregated transportation, it's also just a really bold radical step to put your body on the line, on board a ship," she points out.

A well-connected revolutionary in Boston

But how did a Brazilian and his African-American wife become pioneers in the struggle against segregation in the US? 

For the historians, the answer can be found in Mundrucu's unusual life story - he was a soldier and revolutionary who had spent time in Haiti and Gran Colombia (modern-day Venezuela) before settling in Boston, where he forged important links with abolitionist leaders.

For Belton, the fact that Mundrucu came from a country where he had more rights than free African Americans in the US, such as the right to vote or join the army, fuelled his indignation against the segregation that his family suffered.

In addition, his past as an international revolutionary was important in opening the doors in Boston to a network of important contacts, such as the abolitionist community and Freemasons.

Prominent lawyers represented him against Barker: renowned abolitionist David Lee Child and Massachusetts Senator Daniel Webster.

According to Prof Fitz, Mundrucu's case proved useful to anti-segregation activists because it reinforced their argument that racial oppression in the US was worse than anywhere else, although this statement was "very debatable", she finds. Brazil was the last country in the Americas to abolish slavery, in 1888. 

Prof Fitz believes Mundrucu's connections in Boston and the way the clash unfolded on board the Telegraph indicate that the action may have been premeditated.

"We sometimes assume that these acts of resistance were spontaneous, that Emiliano and Harriet just got angry. Maybe they were angry, but they were also strategic political thinkers who were thinking very carefully about the best way to bring about change," she says. 

Emiliano was the one who filed the lawsuit against the captain, but Prof Fitz highlights Harriet's role in the story.

"We don't know much about Harriet. She was an educated coloured woman born in Boston. We can infer that she was quite adventurous, because she married a Brazilian Catholic revolutionary who was still learning English. She was also incredibly brave and committed to fighting for racial equality, since she tried repeatedly to enter the ladies' cabin, putting her body on the line," she notes.

The impact of the lawsuit

1832 engraving of the boat The Telegraph
image copyrightEwen Collection
image captionThe boat in question, the Telegraph, can be seen in this 1832 engraving

The central argument of the case was "breach of contract", since Mundrucu had bought the most expensive ticket, but the Brazilian's lawyers "also wanted to expose the inhumanity of segregationist practices," writes Belton. 

"No lady on God's earth, no educated white person, would have been subject to such treatment. The Mundrucus' colour was their only distinction," said Webster, according to the lawsuit records.

Barker's lawyers countered by saying that segregation on steamboats was common practice on the North American coast, an argument reinforced with testimony from captains from New York and Rhode Island.

The jury found Barker guilty of breach of contract and awarded Mundrucu $125 in damages in October 1833. But the captain managed to overturn the decision in January 1834 in the Massachusetts Supreme Judicial Court, which found there was no evidence that Barker had explicitly agreed that the family would travel in the best cabins. 

After that, Belton notes, the Telegraph wrote racial segregation into its ticket policy, so that black people could only buy the cheapest tickets, to travel in the common cabin, while white people could only buy the most expensive ones. But this did not end the protests.

"One of the other broader impacts was that Mundrucu's defiance in 1833 directly inspired other black activists. There was another very famous African-American activist, David Ruggles, who did the exact same thing as Mundrucu on the same boat a few years later, in 1841," he notes.

According to Prof Fitz, the case led to a fundamental shift for campaigners.

"The lawsuit ends up being an important moment in the development of activists' legal tactics. It broadens their horizons and sort of opens the way for these more expansive legal arguments that attack the very legal basis of segregation itself," she says.

Views and customs of Rio de Janeiro - Sir Henry Chamberlain's watercolour shows the racial hierarchy of Brazilian society
image copyrightBrazilian National Library/1822
image caption
A watercolour painting showing the racial hierarchy of 19th Century Brazilian society

Mundrucu gave up on taking the case to the US Supreme Court when he was pardoned by the Brazilian government for his participation in the failed uprising and he was able to resume his military career in Brazil in 1835.

In 1841, however, he returned to Boston, when he was prevented from taking up a military command post in the northeastern city of Recife, which Mundrucu also attributed to racial prejudice in a newspaper article in 1837.

Mundrucu had many influential opponents in this area because he had allegedly led a failed attack on the white population of Recife in 1824, inspired by the Haitian Revolution - the rebellion of slaves and free blacks that made Haiti independent from France in 1791.

A leader in Boston's cosmopolitan abolitionist community

Painting in honor of Mundrucu made in 2020 by the artist Moisés Patrício for the book Black Encyclopedia
image copyrightMoisés Patrício/Companhia das Letras
A painting in honour of Mundrucu made in 2020 by the artist Moisés Patrício for the book Black Encyclopedia

In the final two decades of his life in Boston, the Brazilian continued campaigning against slavery and for civil rights.

Mundrucu died in 1863 after President Abraham Lincoln had signed the Emancipation Act, which freed slaves from the southern US states.

According to Belton, Mundrucu celebrated this announcement alongside Frederick Douglass, at a meeting of the Union Progressive Association, a predominantly black abolitionist group of which Mundrucu was vice-president.

"By 1863, Mundrucu and his wife were well-respected by their fellow Bostonians, black and white. Both were honoured in their respective obituaries, in which they were remembered as generous, public-spirited and unusually well-travelled," the historian writes. 

"Mundrucu's story shows us just how connected the Americas were at that time. Brazil was connected to Venezuela, Venezuela to Haiti, Haiti to the USA. These black activists were very mobile. They could travel, they could speak various languages," he notes.

"And he was not the only one. There were other black immigrants from South America, the Caribbean, who were in Boston, New York, or Philadelphia, and they were involved in these activist communities which were very cosmopolitan." 

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quarta-feira, 23 de junho de 2021

Laurentino Gomes: 2o. volume da trilogia sobre a escravidão

NO 2º VOLUME DE 'ESCRAVIDÃO', LAURENTINO GOMES ANALISA O BRASIL DO SÉC. 18!

Ubiratan Brasil
O Estado de S. Paulo, 19/06/2021

 
No início do século 18, o Brasil era um país que praticamente só olhava para o mar - as principais cidades, como Salvador e Rio de Janeiro, eram litorâneas e a principal atividade econômica, cultivo da cana-de-açúcar, não invadia tanto o território. Mas foi nesse período que tudo mudou: com a descoberta das primeiras jazidas de ouro e diamante em regiões onde hoje são os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, houve um avanço populacional para o interior do País, fomentado principalmente pelo aumento da quantidade de escravos negros.

"Estima-se que, no século 18, cerca de 600 mil escravos se envolveram na mineração de ouro e diamantes, o que representaria cerca de 20% do total de cativos africanos trazidos para o Brasil neste período", observa o jornalista e escritor Laurentino Gomes, que lança agora o segundo volume da trilogia Escravidão, uma detalhada pesquisa sobre a história da escravatura negra - o primeiro saiu em 2019 e o último está previsto para o próximo ano.

Os escravos foram essenciais na construção da máquina de extração, pois muitos chegavam com mais conhecimentos sobre mineração que seus proprietários. Mas a febre do ouro promoveu uma corrida desordenada, com centenas de pessoas abandonando suas cidades, inclusive religiosos e portugueses, a ponto de o rei de Portugal limitar o êxodo por decreto. No livro, Laurentino conta que a falta de um mínimo de estrutura dos locais de mineração para receber tantas pessoas resultou em ondas de miséria e fome, além de uma violência desenfreada - execuções eram comuns em qualquer lugar ou horário.

A corrida do ouro provocou ainda uma decisiva mudança de perfil do País. "O século 18 mostra como a escravidão foi importante na construção da identidade brasileira", observa Laurentino. "Até então, era uma nação pouco populosa e concentrada no litoral, mas, com a mineração, centenas de milhares de pessoas se mudaram para o interior, consolidando as fronteiras que hoje conhecemos. E, com a vinda de escravos, a população brasileira se multiplicou em apenas 100 anos, período marcado pela construção dessa grande África brasileira."

A transformação com a chegada dos escravos foi decisiva não apenas na força de trabalho, mas também em hábitos religiosos, culinários, culturais e sociais. "Houve ainda a formação de quilombos, uma reestruturação da família urbana com presença de cativos nas residências e, nas artes, um bom exemplo são os mestres do barroco, quase todos negros."

Tal movimentação resultou ainda em efeitos surpreendentes, como a aceitação da presença de escravos negros na sociedade brasileira como um fato normal. "A escravidão se tornou banal, corriqueira no Brasil daquela época", observa Laurentino. "Até mesmo negros alforriados eram donos de escravos." Ele aponta, como um bom exemplo, João de Oliveira, africano que se transformou em um grande traficante de cativos depois de acumular o dinheiro suficiente para comprar a própria liberdade. Ou seja, tornou-se traficante para deixar de ser escravo.

O crescimento dos processos de alforria, aliás, foi também marca desse fenômeno - cerca de 1% dos escravos brasileiros obtinha a própria liberdade anualmente, o que resultou em uma significativa população negra livre no País, maior do que em qualquer outro território escravista da América.

Em meio às suas inúmeras pesquisas, Laurentino identificou o que pode ter sido a primeira descoberta de ouro, ainda no final do século 17. Segundo ele, um desconhecido descendente de escravos encontrou o que se identificou como "ouro finíssimo" em Minas Gerais, vendendo a descoberta por um preço abaixo da sua importância. "O único registro deste homem, que era negro ou mestiço, está no livro Cultura e Opulência do Brasil Pelas Suas Drogas e Minas, do padre jesuíta André João Antonil, do começo do século 18", comenta o jornalista, reforçando a tese de como a memória negra e africana no País ocupa cada vez mais uma posição secundária.

Isso permite, aliás, que Laurentino mostre como ficaram ultrapassadas duas visões a respeito do comportamento do escravo no Brasil - a do cativo passivo e apático, divulgada pelo sociólogo Gilberto Freyre, e a do negro em permanente estado de rebelião, tese defendida por teóricos marxistas já no século 20.

"Novos estudos têm levado a um entendimento mais complexo e diversificado do sistema escravista, marcado por nuances até pouco tempo atrás ignoradas ou subestimadas, nas quais os cativos se envolviam em processos contínuos e sutis de negociação e barganha, sempre testando os limites do sistema escravista em busca de ampliar seus espaços e oportunidades", escreve ele. "Os escravos lutavam por coisas concretas como o direito de constituir e manter famílias, cultivar suas próprias hortas e pomares e vender seus produtos nas feiras livres, dançar ao som do batuque nas horas de folga e praticar seus cultos religiosos, muitos deles de matriz africana."

Novamente, surge, como exemplo de uma figura fascinante, Francisca da Silva de Oliveira, conhecida como Chica da Silva, escrava que, depois de alforriada, atingiu posição de destaque na sociedade mineira, especialmente por manter uma união consensual com um rico contratador de diamantes. Apesar da imagem de mulher voluptuosa e dominadora divulgada pelo cinema e TV, ela, na verdade, foi comprada por diversos senhores desde a tenra idade para servir de objeto sexual. "Ela teve 14 filhos, o primeiro ainda na adolescência, o que a fez perder rapidamente os encantos da juventude, pois não há sensualidade que resista", comenta Laurentino. Segundo ele, mesmo nascida cativa, Chica, depois de conseguir sua alforria, foi proprietária de mais de cem escravos - e nunca se empenhou em libertá-los.

Outro personagem de destaque do segundo volume de Escravidão é Elias Antônio Lopes, conhecido como Elias, o Turco. Um dos maiores traficantes de africanos escravizados da época, ele cedeu sua majestosa casa para a moradia de D. João VI, quando a comitiva portuguesa se mudou para o Brasil em 1808, fugindo de Napoleão Bonaparte. "Ele doou a casa - que depois abrigou o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, destruído por um incêndio em setembro de 2018 - em troca de benfeitorias, como títulos de honrarias", comenta Laurentino. "Isso sinaliza o foco do terceiro volume da série, que é a oficialização do toma lá dá cá, e Elias será a ponte para o novo livro."

Iniciada em 2019, a trilogia surge em um momento marcado por manifestações antirracistas, como a deflagrada pela morte de George Floyd, no ano passado. Mesmo assim, no País, há muito ainda o que se fazer. "A escravidão é uma chaga do Brasil do século 21", comenta. "Criamos mitos de democracia racial, quando ainda persiste a ideologia do negro inferior que justificou a escravidão, as redes sociais são inundadas por linguagem preconceituosa. No Brasil de hoje, o racismo é explícito mas também silencioso."

Apresentação na Amazon: 

Do autor dos best-sellers 18081822 e 1889

O tão esperado segundo volume da trilogia Escravidão, de Laurentino Gomes

Entre 1700 e 1800, cerca de dois milhões de homens e mulheres foram arrancados de suas raízes africanas, embarcados à força nos porões dos navios negreiros e transportados para o Brasil. Muitos seriam vendidos em leilões públicos antes de seguir para as senzalas onde, sob a ameaça do chicote, trabalhariam pelo resto de suas vidas. No final do século XVIII, a América Portuguesa tinha a maior concentração de pessoas de origem africana em todo o continente americano.

No segundo volume de Escravidão - Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil, Laurentino Gomes concentra-se no século XVIII. O período representou o auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no país e pela disseminação, em outras regiões da América, do cultivo de cana-de-açúcar, arroz, tabaco, algodão e outras lavouras marcadas pelo uso intensivo de mão de obra cativa.

Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor da nossa identidade nacional quanto a escravidão. Conhecê-lo ajuda a explicar o que fomos no passado, o que somos hoje e também o que seremos daqui para a frente. Em um texto impactante que inclui imagens e gráficos, Laurentino Gomes lança o segundo volume de sua obra, resultado de 6 anos de pesquisas, que incluíram viagens por 12 países e 3 continentes.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Quando o Tio Sam escravagista do Sul queria continuar o regime escravo na América do Sul - H-Diplo

 H-Diplo Article Review 992

28 October 2020

Michael A. Verney.  “‘The Universal Yankee Nation’:  Proslavery Exploration in South America, 1850–1860.”  Diplomatic History 44:2 (April 2020):  337–364.  DOI:  https://doi.org/10.1093/dh/dhz067.

https://hdiplo.org/to/AR992
Editor:  Diane Labrosse | Commissioning Editor:  Dayna Barnes | Production Editor: George Fujii

Review by David Parker, University of Georgia
 

Michael A. Verney’s article is an exciting contribution to a growing wave of scholarship that gives new focus to the international and hemispheric dimensions of the antebellum United States, the sectional crisis, and the origins of the American Civil War.  Analyzing U.S. Navy expeditions to the Amazon River and Rio de la Plata in the 1850s, Verney argues that U.S. proslavery foreign policy reached as far South as Argentina, and that flirtation with imperial expansion into South America was a serious, substantive federal government policy enjoying popular support, rather than “a passing fancy for proslavery elites” (338). 

Though proslavery and white supremacist sentiment enjoyed currency throughout the Americas in the 1850s, Verney argues that U.S. policymakers did not envision their hemispheric proslavery efforts as international collaborations among equals.  Whatever their professed intentions of friendly, collaborative development,  U.S. policymakers and Naval commanders saw both South American expeditions in nakedly imperial terms as hopes for U.S. slavery’s further continental expansion appeared increasingly threatened after the Mexican-American war. 

Verney draws on the official, public claims of U.S. politicians and diplomats and contrasts them with the private correspondences of those same figures to reveal the diplomatic sleight-of-hand and genuine intrigue at play for figures like U.S. Navy Lieutenant Matthew Fontaine Maury, a pioneer in the field of Oceanography and the chief architect of the U.S. Navy’s plan to prepare the Amazon region for annexation. This analysis of both the Amazon and Rio de la Plata expeditions amply supports Verney’s second core argument, “that naval imperialists sought to disguise their intentions in ways that would appeal to their South American hosts” (339). 

Intellectual history plays a key role in this work, as Verney skillfully teases out the varied forms that white supremacist ideology took throughout the Americas, and how the racist visions of the future that were promoted by elites in the U.S., Brazil, Paraguay, Argentina, and Bolivia overlapped, contradicted each other, and tensely coexisted. Brazilian elites, for example, believed that “whitening”—the literal lightening of the national population through encouraging European immigration and intermarriage—was a key to national development, which made U.S. dreams of white U.S. citizens settling and developing the Amazon River Basin at least superficially appealing (345). But the U.S. vision of a “whitened” and “settled” Amazonia carried with it a contempt for the imagined indolence of Latin American creole elites, and a thinly-veiled confidence that superior Anglo-Saxon specimens emigrating from the U.S. would not just accelerate national development, but pave the way for annexation (348-349). 

In both visions of whitening and development, the perceived necessity of black enslaved workers was a contradiction that provoked little anxiety or comment from elite thinkers.  Quotations pulled from Maury’s record of the Amazon expedition provide a fascinating glimpse into the mind of a slaveholding man of science.  Unsurprising is Maury’s conviction that only enslaved African workers, under white domination, were physically capable of performing heavy agricultural labor in the tropical region.  More unexpected is Maury’s belief that jerky made from local manatees could provide a cheap, abundant food source for enslaved workers (349). 

Boosters of the U.S. Navy’s 1853 expedition to the Rio de la Plata, commanded by Lieutenant Thomas Jefferson Page, couched its proslavery goals in the language of science, commerce, and mutually beneficial national development, just as Maury had in his Amazon expedition. Verney points to the intriguing fact that this expedition, perhaps because its leaders more successfully masked their intentions, enjoyed the support of many ostensibly anti-slavery Northerners, particularly merchants (354).  Verney leaves open the question of why anti-slavery businessmen threw their support behind a proslavery expedition, though he gestures broadly at some possibilities, including Northern industry’s inextricability from American slavery.  The article’s source base—largely official U.S. government documents and private correspondences of U.S. policymakers and government agents[1]—is ill suited to answering this question, but scholars interested in the extensive economic relations connecting the Northern and Southern United States should take note and consider probing this topic further. 

A solid base of secondary literature supports Verney’s efforts to outline the “powerful international trends'' that shaped U.S. aspirations and their reception in Latin America (364).[2]  There is little reason to doubt Verney’s contention that Latin American elites sought close relations with the U.S. while remaining largely skeptical of their northern neighbor’s intentions. And Verney amply supports his claim that U.S. arrogance and the expansionist precedent of its aggressive war of conquest against Mexico doomed the dream of a U.S.-led South American empire of slavery.  Page’s outrageous imperiousness and aggression in the Rio de la Plata expedition –and the certainty that this alienated potential Paraguayan collaborators – is clear from his own writings.  A thorough analysis of Latin American elites’ investment in national development and their skepticism of the U.S. as a partner, however, will require a different primary source base, one that uses documents produced by Latin American elites in order  to even more thoroughly incorporate those powerful international trends into this story. Verney’s article makes for an excellent foundation for these future studies.

Like other recent works on the U.S. Sectional Crisis, Verney’s article argues that antebellum Northern and Southern interests were intertwined and that slaveholders had a near-stranglehold on the levers of power in the U.S. federal government before 1860.  It builds on the work of scholars like Matthew Karp, who explored the proslavery focus of antebellum U.S. foreign policy and the global ambitions of slaveholders, and Daniel Rood, who analyzed the intellectual networks and forward-looking technological innovations of slaveholders in a “Greater Caribbean” stretching from Virginia to Brazil.[3]  And like these and other recent works, it resurrects the question of how and why the American Civil War occurred.[4]  An intriguing possibility raised here is that Latin American resistance to U.S. expansionism closed off another safety-valve for U.S. slaveholder anxieties. Verney thus points the way towards valuable new studies of diplomacy in the Americas, and asks us to reconsider how Latin American elites and policymakers understood and shaped their relationship to the United States.

 

David Parker is a Ph.D. student at the University of Georgia.  His research interests include the history of adolescence and sexuality in the antebellum South, and the immigration of former Confederates and their families to California after the Civil War’s conclusion.


Notes

 

[1] As in William Lewis Herndon and Lardner Gibbon, Exploration of the Valley of the AmazonMade Under Direction of the Navy Department, 2 vols. (Washington D.C.: Robert Armstrong, 1853-1854), and Matthew Fontaine Maury to William Lewis Herndon, April 20, 1850, reprinted in Donald Marquand Dozer, “Matthew Fontaine Maury’s Letter of Instruction to William Lewis Herndon,” The Hispanic American Historical Review 28:2 (1948): 212-228.

[2] Such as Jeffrey Lesser, Immigration, Ethnicity, and National Identity in Brazil, 1808 to the Present (New York: Cambridge University Press, 2013).

[3] Matthew Karp, This Vast Southern Empire: Slaveholders at the Helm of American Foreign Policy (Cambridge: Harvard University Press, 2018); Daniel Rood, The Reinvention of Atlantic Slavery: Technology, Labor, Race, and Capitalism in the Greater Caribbean (New York: Oxford University Press, 2017).

[4] Such as Thavolia Glymph, The Women’s Fight: the Civil War’s Battles for Home, Freedom, and Nation (Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020), and Walter Johnson, River of Dark Dreams Slavery and Empire in the Cotton Kingdom (Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2017).

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Império brasileiro tentou importar chineses para substituir os escravos

Existem dois livros dos contatos entre o Brasil e a China imperial, no século XIX, publicados pelo mesmo diplomata, Henrique Carlos Ribeiro Lisboa, um dos quais foi objeto de uma mini-resenha que fiz para registrar esse trabalho pioneiro sobre a China. Em 1944,  o jovem diplomata José Osvaldo de Meira Penna vai publicar um livro sobre a China, a partir de sua estada no consulado em Xamgai.
   
Henrique Carlos Ribeiro Lisboa:    
A China e os chins: recordações de viagem
       (Rio de Janeiro: Fundação Alexandre de Gusmão/CHDD, 2016, 334 p.; ISBN: 978-85-7631-593-3) Em 2012, os Cadernos do CHDD já tinham publicado os relatos dos diplomatas brasileiros que foram à China na famosa missão do governo imperial de 1880, que tinha por objetivo firmar um Tratado de Amizade, Comércio e Navegação com o Império do Meio. Um dos integrantes dessa missão foi Henrique Lisboa, que produziu, em 1888 (com a primeira publicação em Montevidéu), este relato visando informar sobre o que era a China, mas também com a intenção, segundo ele, de “concorrer (...) para a resolução do árduo problema que, há alguns anos, conserva em crise a sociedade brasileira: ‘a transformação do trabalho’.” Ou seja, buscava-se substituir os escravos africanos por trabalhadores chineses, num processo de “imigração livre”, o que não era todavia aceito pelos mandarins das relações exteriores da China. Oportunidade perdida!
Paulo Roberto de Almeida

No fim do Império, Brasil tentou substituir escravo negro por ‘semiescravo’ chinês

No fim do Império, Brasil tentou substituir escravo negro por ‘semiescravo’ chinês
Documentos históricos do Senado expõem discursos racistas e xenófobos de políticos (Foto: Amon Carter Museum of American Art)
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Neste ano, dois marcos das relações entre o Brasil e a China fazem aniversário. O rompimento dos laços diplomáticas completa 70 anos — em 1949, a revolução comunista liderada por Mao Tse-tung levou o presidente Eurico Gaspar Dutra a cortar a ligação com o país asiático. O reatamento, por sua vez, completa 45 anos — em 1974, o presidente Ernesto Geisel passou por cima das divergências ideológicas e restabeleceu os contatos oficiais com Pequim.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que as relações entre os dois países remontam à época de dom Pedro II. Em 1880, o governo imperial enviou diplomatas ao outro lado do mundo para assinar um tratado bilateral por meio do qual o Brasil esperava substituir os escravos negros por “semiescravos” chineses.
Nesse momento, a escravidão dá claros sinais de que está com os dias contados. Desde 1850, a Lei Eusébio de Queirós proíbe o tráfico de africanos. Desde 1871, a Lei do Ventre Livre garante a liberdade aos bebês nascidos de escravas. Nesse contexto de mudança, os fazendeiros do Império, temendo que o encolhimento da mão de obra leve a lavoura de café ao colapso, pensam nos “chins” como solução.
— O trabalhador chim, além de ter força muscular, é sóbrio, laborioso, paciente, cuidadoso e inteligente mesmo — argumenta no Senado, em 1879, o primeiro-ministro Cansanção de Sinimbu. — Por sua frugalidade e hábitos de poupança, é o trabalhador que pode exigir menor salário. Assim, deixa maior soma de lucros àquele que o tem a seu serviço. É essa precisamente uma das razões por que devemos desejá-lo para o nosso país.
O primeiro-ministro tenta convencer os senadores a aprovar a liberação das verbas necessárias para o envio de uma missão diplomática à China para negociar o tratado. A escassez de braços na lavoura preocupa o governo porque o café para a exportação é a maior fonte de renda do Brasil.
A viagem que os diplomatas teriam que fazer seria bem longa, a bordo de um navio de guerra da Marinha, o que demandaria dos cofres imperiais 120 contos de réis. Não é pouco dinheiro. O valor é igual aos orçamentos somados da Biblioteca Pública, do Observatório Astronômico, do Liceu de Artes e Ofícios, da Imperial Academia de Medicina e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para todo o ano de 1879.
Os chineses, como avisa Sinimbu, seriam assalariados. Na prática, contudo, o que os fazendeiros brasileiros desejam é reproduzir a experiência de países como Estados Unidos, Cuba e Peru, que vêm explorando os chineses de uma forma tal — com pagamentos irrisórios, jornadas extenuantes, ambientes insalubres e castigos físicos — que os trabalhadores ficam na tênue fronteira entre a liberdade e a escravidão.
Levas de trabalhadores abandonam o império chinês, entre outras razões, por causa da superpopulação (370 milhões de habitantes, contra 10 milhões no Brasil), da escassez de alimentos e da crise decorrente da derrota nas Guerras do Ópio.
No Brasil, nem todos recebem bem a ideia da imigração chinesa. Parte da sociedade sente temor e repulsa diante da possibilidade de encontrar homens de olhos puxados, cabelos trançados a partir da nuca e roupas exóticas transitando pela fazendas e cidades do Império.
Reverberando o pensamento desse grupo, há senadores e deputados que se manifestam contra a celebração do tratado com a China. O Arquivo do Senado preserva os discursos proferidos a esse respeito no Parlamento. Muitos deles são abertamente racistas e xenófobos.
— Senhores, não sei que fatalidade persegue este Império, digno de melhor sorte: ou há ter africanos, ou há de ter chins? — critica o senador Dantas (AL). — Li numa memória acerca da colonização chim que diz ser essa uma raça porca que muda de roupa só duas vezes ao ano. Pois, quando as nossas leis estabelecem prêmios àqueles que trouxerem para o Império boas raças de animais, tratam de mandar buscar rabichos e caricaturas de humanidade?
— Depois de tantos anos de independência e de estarmos mais ilustrados a respeito da marcha dos negócios do mundo, havemos agora de voltar atrás e introduzir nova raça, cheia de vícios, de físico amesquinhado, de moral abatido, que não tem nada de comum aqui e não tem em vista formar uma pátria e um futuro? Havemos de introduzir semelhante raça somente para termos daqui a alguns anos um pouco mais de café? — questiona o senador Junqueira (BA).
— Venham muitos chins, para morrerem aos centos, aos milhares — ironiza o senador Escragnolle Taunay (SC). — Deles, ficará apenas o trabalho explorado pelos espertalhões. É um trabalho que se funda na miséria de quem o pratica e no abuso de quem o desfruta. Que erro colossal! Que cegueira!
Para Taunay, é difícil que os fazendeiros consigam se adaptar aos asiáticos:
— Acostumado à convivência branda e amistosa dos antigos escravos brasileiros, fazendeiro nenhum será capaz de suportar o contato dos chins. Seus vícios se exacerbam com o uso detestável e enervante do ópio. Só o cheiro que os chins exalam bastará para afugentar o fazendeiro mais recalcitrante.
Nessa época, estão em voga no mundo ideias racistas disfarçadas de teorias científicas. Segundo o racismo pseudocientífico, os brancos formam a raça superior e os negros, a raça inferior. No meio deles, como raça intermediária, surgem os amarelos ou orientais. Entre os teóricos da hierarquização das raças, estão Arthur de Gobineau, Ernest Renan e Gustave Le Bon. Gobineau, diplomata francês que serviu no Rio de Janeiro, concluiu que o Brasil era um país atrasado por causa da miscigenação entre brancos e negros.
— A ciência da biologia ensina que, nesses cruzamentos de raças tão diferentes, o elemento inferior vicia e faz degenerar o superior — diz o senador Visconde do Rio Branco (MT), alertando os colegas para o “perigo amarelo”.
De acordo com o historiador Rogério Dezem, professor do Departamento de História e Cultura Brasileira da Universidade de Osaka, no Japão, o preconceito dos brasileiros tinha origem nos Estados Unidos, onde os trabalhadores chineses haviam chegado décadas antes e eram odiados — mas não por questões de raça, e sim de mercado de trabalho:
— Na construção de ferrovias nos Estados Unidos, por exemplo, sempre que os imigrantes europeus faziam greve exigindo melhores salários e condições de trabalho, os patrões recorriam aos chineses, que aceitavam pagamentos mais baixos para dar continuidade ao serviço interrompido. Era uma espécie de concorrência desleal. Os chineses, então, começaram a ser odiados, e surgiu a história de que eram sub-raça, degenerados, perigosos. O governo americano, diante das pressões, chegou a proibir a entrada de novas levas de imigrantes chineses. Esse mesmo ódio acabou chegando ao Brasil, principalmente por meio da imprensa, e aqui eles logo passaram a ser vistos como sujos, ladrões de galinha, viciados em ópio. Foi uma visão deturpada que se instalou no inconsciente coletivo dos brasileiros.
Em 1878, o governo brasileiro organiza o Congresso Agrícola, no Rio de Janeiro, para discutir os rumos da cafeicultura diante do iminente fim da escravidão. O sonho dos fazendeiros é substituir os escravos negros por trabalhadores originários da Europa. As equivocadas teorias racistas levam à crença de que, para o bem do país, é necessário “embranquecer” a população brasileira.
— Formar uma raça que seja varonil e tenha grande desenvolvimento e expansão é hoje uma questão que está ocupando os estadistas em toda parte do mundo. Devemos, pois, garantir o futuro do país por meio do trabalho de raças inteligentes, robustas e cristãs — afirma, no Senado, o senador Junqueira.
Até mesmo o deputado Joaquim Nabuco (PE), expoente da luta pela abolição da escravidão negra, usa a tribuna da Câmara para apontar os inúmeros “defeitos” que fazem dos chineses uma raça inconveniente para o Brasil. Nabuco diz temer a “mongolização” do país e uma “segunda edição da escravatura, pior que a primeira”.
A lavoura não poderia passar a ser cultivada por camponeses brasileiros, em vez de se recorrer a imigrantes europeus ou chineses? Segundo Kamila Czepula, historiadora e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), os cafeicultores descartaram a mão de obra nacional logo de cara:
— A respeito dos brasileiros brancos, corria a ideia de que eram preguiçosos, pouco propensos ao trabalho. Também se dizia que cobrariam valores altos demais para o trabalho na lavoura. Os negros livres, os mestiços e os índios também estavam fora de cogitação porque eram sinônimo de atraso e de inferioridade racial. Os imigrantes europeus eram tidos como os tipos ideais. Além de serem brancos e católicos, considerava-se que eles já estavam preparados para o trabalho assalariado.
Italianos, espanhóis e portugueses, contudo, não se animam a se mudar para o Brasil. Eles temem o calor sufocante dos trópicos e o chicote dos feitores das fazendas. Além disso, desejam possuir terra própria, o que a estrutura fundiária do Império não permite. Assim, preferem migrar para os Estados Unidos e a Argentina.
Diante da dificuldade de trazer braços da Europa, o Congresso Agrícola traça um plano B: espalhar “semiescravos” chineses pelas plantações de café. A ideia é que sejam utilizados provisoriamente, até os europeus mudarem de ideia e começarem a vir para o Brasil.
Um dos primeiros parlamentares a defender a contratação dos chineses para substituir os escravos de origem africana, ainda na década de 1850, é o senador Visconde de Albuquerque (PE). Ele discursa:
— Se queremos nos desembaraçar dos escravos, por que havemos de rejeitar homens industriosos que não têm o orgulho europeu, que podem facilitar esse salto entre a escravidão e a liberdade? Senhores, já estive na China e conheço bem os chins. Dizem que são porcos, e eu não conheço povo mais asseado. Eles poderão estar com as suas vestes sujas, mas o seu corpo é lavado e esfregado todos os dias.
Até mesmo os defensores da imigração asiática acabam recorrendo a argumentos pouco lisonjeiros para os chineses. O senador Visconde de Albuquerque prossegue:
— Dizem que os chins vêm amesquinhar a nossa raça, mas não estão aí os nossos índios? Qual de nós não gosta muito de ter um desses índios para o seu serviço? E isso piora a nossa raça? Vejam que tememos raça chim e não tememos a raça preta! Os chins não nos vêm perturbar a ordem doméstica. Pelo contrário, são muito humildes, servem muito, trabalham. São até excelentes cozinheiros. Não são revolucionários, não têm pretensões. Acho que é uma boa importação.
O senador Cândido Mendes de Almeida (MA) acrescenta:
— São sóbrios, infatigáveis e econômicos. Sendo materialistas, só visam o lucro. Além de materialistas, são educados sob o regime autoritário o mais severo que lhes impõe desde o nascer. É com esse espírito de ordem que trabalham.
Em discurso no Senado, o primeiro-ministro Cansanção de Sinimbu procura tranquilizar o Império garantindo que não há risco de “abastardamento das raças” do Brasil porque os chineses não ficarão para sempre aqui:
— Ainda que venha grande número de trabalhadores asiáticos, é manifesto que eles nutrem sempre a intenção de voltar para o seu país. Eles levam tão longe o amor ao solo da pátria, que nos contratos que costumam celebrar até estipulam que os seus cadáveres serão remetidos para a terra natal. Isso prova que não é de prever que queiram fixar-se definitivamente entre nós.
Após muitas discussões, o Senado e a Câmara aprovam em 1879 a liberação dos 120 contos de réis para que a missão diplomática vá à China. Em 1880, pela primeira vez, um navio brasileiro chega ao outro lado do mundo e, meses depois, retorna ao Rio de Janeiro e completa a volta no planeta.
Na cidade de Tientsin (hoje Tianjin), nos arredores de Pequim, os diplomatas brasileiros negociam com o vice-rei Li Hung Chang. Quando ouve que o Brasil tem apenas 58 anos como nação independente, ele demonstra assombro e conta que seu império existe há 4 mil anos.
O grande empecilho para a migração de chineses para o Brasil é uma lei local que os proíbe de deixar o seu país sem o consentimento do imperador. Como quem não quer nada, os diplomatas brasileiros incluem na minuta de tratado um genérico artigo que dá aos “chins” o direito de viajarem livremente para o Brasil. Durante as negociações, os enviados de dom Pedro II nunca vão revelar suas verdadeiras intenções. Eles juram que buscam apenas a amizade do império asiático.
Traumatizado pelo histórico de violências sofridas pelos súditos chineses nas Américas, o vice-rei reluta em assinar o acordo com o Brasil, mas acaba cedendo. Após vários meses de negociação, a versão final do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação é finalmente assinada em 1881, garantindo o livre trânsito de cidadãos entre os dois impérios. É uma vitória da diplomacia brasileira. Um consulado se instala em Xangai.
No início de 1882, dom Pedro II profere a fala do trono (discurso que abre os trabalhos do Senado e da Câmara) sem fazer nenhuma menção ao tratado com a China. Os fazendeiros entendem a mensagem: o governo não gastará mais nenhum centavo; se quiserem os “chins”, que os busquem com seu próprio dinheiro.
Um comerciante chinês chega a desembarcar no Rio de Janeiro para tratar do transporte dos trabalhadores, mas vai embora sem fechar nenhum negócio. A maledicência contra os orientais acabou deixando muitos fazendeiros com um pé atrás. Além disso, a própria China não tem interesse em mandar gente para o Brasil. Logo em seguida, começa a imigração italiana. A solução chinesa é, assim, abandonada sem que os trabalhadores de fato venham para o Brasil.
Em 1884, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Soares Brandão, vai ao Senado para informar a quantas anda a execução do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação assinado três anos antes. Não há muito a dizer. Constrangido, ele afirma:
— Pela primeira vez, um navio de guerra brasileiro penetrou nos mares da China e do Japão, mostrando nossa gloriosa bandeira aos governos e povos daquelas regiões.
Um senador quer saber o que tem feito o recém-nomeado cônsul em Xangai. O ministro responde:
— Mas que serviço prestar na China? Quero crer que no futuro possam haver relações que venham demonstrar que não são de todo destituídos de vantagem e conveniência os serviços de um cônsul na China.
Ele nem imagina que, mais de um século depois, a China se transformará numa potência econômica mundial e será o maior investidor estrangeiro no Brasil.