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quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Elogio da burguesia (com uma deixa para a aristocracia também) - Paulo Roberto de Almeida (2010)

Antigamente, os companheiros tinham muita raiva da burguesia. Agora acho que não mais; já se juntaram com ela. Mas quando eles atacavam a burguesia, e os burgueses, eu tive a ideia de escrever alguma coisa em defesa da burguesia, e da aristocracia também. 

Eis o que escrevi em 2010, no auge da dominação de Lula 2: 

2127. “Elogio da burguesia (com uma deixa para a aristocracia também)”, em vôo Lisboa-Roma, 26/03/2010; Firenze, 27.10.2010; Perugia, 28-29.10.2010; 8 p. Considerações sobre as elites culturais e a cultura popularesca. Via Política(10.04.2010). Reproduzido no site Dom Total (22.04.2010). Revisto e ampliado em Xian e Shanghai, 21-25.04.2010, 12 p. Publicado na Espaço Acadêmico (ano 10, n. 108, maio 2010, p. 51-60; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/10038; pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/10038/5591). Republicado na Espaço da Sophia (ano 4, n. 38, junho-julho 2010; ISSN: 1981-318X). Relação de Publicados n. 960.

Transcrevo aqui: 

Elogio da burguesia (com uma deixa para a aristocracia também)

 

Paulo Roberto de Almeida

 

ResumoA burguesia e a aristocracia não têm quem as defendam, na academia ou em outras esferas da vida cultural. Elas são objeto de todas as acusações e de todos os pecados, responsáveis por tudo de errado, iníquo e desigual que existe nas sociedades capitalistas contemporâneas (como se ainda houvesse sociedades socialistas dignas desse nome). Essas duas classes representantes das elites sociais parecem possuir todos os vícios e nenhuma virtude, sendo atribuídos a elas todos os supostos males do sistema capitalista. O ensaio faz a defesa das duas classes, em especial da burguesia, como classes progressistas e promotoras de padrões culturais mais elevados no cenário social. As sociedades "burguesas" podem não ser um primor de igualdade e de "justiça social", mas são, inegavelmente, sociedades de liberdade, de prosperidade e de maior justiça social do que as sociedades supostamente determinadas a superá-las e promover esses valores em patamares mais altos de realização. De fato, as experiências socialistas no mundo redundaram em violência, perdas sociais, patrimoniais e culturais, ausência completa de liberdades elementares, quando não diminuição dos padrões de vida e até da igualdade efetiva dos cidadãos.

Palavras-chave: Burguesia, aristocracia, padrões culturais

 

 

1. Sobre elogios e difamações de classe

Existem vários “elogios” na literatura universal, sendo os mais conhecidos o clássico de Erasmo sobre a loucura (Encomium moriae), um outro sobre a preguiça (de um discípulo de Marx, Paul Lafargue: Le Droit à la Paresse) e até mesmo um sobre a exploração (sim, este eu conheço bem, pois foi eu mesmo quem fiz; figura em meu livro Velhos e Novos Manifestos, de 1998). Estou também preparando um elogio da especulação (mas ainda não consegui terminar), posto que se trata de uma atividade essencial à boa saúde do sistema econômico (não apenas financeiro) e do próprio avanço da produtividade: sem ela, haveria muito pouco gosto pelo risco e raros empresários (venture capitalists) colocariam seu dinheiro em inovações.

Não me lembro, porém, de ter lido, alguma vez, em qualquer lugar, um elogio à burguesia e, menos ainda, à aristocracia. Não espero, por certo, encontrar nos meios acadêmicos alguma referência positiva a essas duas personagens coletivas, que são historicamente importantes; não existe a menor chance disso ocorrer nesse ambiente, pois ambas as classes são erradamente identificadas a elites reacionárias e, em consequência, execradas pelo pensamento esquerdista (supostamente marxista) que grassa anacronicamente em nossas faculdades de Humanidades (anacronicamente aqui, stricto sensu, posto que os acadêmicos em questão se enganam de século). A possibilidade de que uma delas (talvez a primeira, certamente jamais a segunda, em todo caso) possa ser vista ou considerada como “útil”, por algum papel positivo na história da humanidade, é próxima de zero, para não dizer abaixo disso.

E, no entanto, não preciso lembrar que um jovem discípulo de Hegel efetuou rasgados elogios à burguesia em um panfleto juvenil a quatro mãos, com seu amigo Engels: o Manifesto do Partido Comunista de 1848 (cuja versão adaptada para nossos tempos de globalização eu também coloquei no meu livro supracitado). Claro, o ódio à aristocracia era visível em muitas páginas, mas a burguesia era glorificada por vários feitos revolucionários do mais alto significado histórico, entre eles o de ter, supostamente, derrotado a primeira no curso de uma luta titânica, que levou inclusive à substituição do velho modo de produção “feudal” (vocês sabem: aquela coisa dos avanços materiais e o desenvolvimento orgânico das forças produtivas conduzindo inelutavelmente a mudanças nas relações de produção e, daí, a uma revolução completa na superestrutura política da sociedade e todo o blá-blá-blá conhecido). 

É verdade que depois disso, notadamente no Capital, Marx deixa de premiar a burguesia com os fartos elogios encontrados nas suas obras de juventude; ao contrário: ela passa a ser assacada com as piores vilanias e responsabilizada pelos mais graves crimes supostamente cometidos contra o bem-estar da humanidade, sendo até mesmo jogada no fosso da depravação universal, junto com a aristocracia e todas as demais classes dominantes, ou quaisquer outras que por acaso não se aliassem – se submetessem, seria o termo mais correto – à nova classe emergente, o glorioso proletariado industrial, na sua marcha ascensional para a conquista do poder. Apesar de também ter sido, na juventude, um marxista radical, e até mesmo um leninista, sempre achei que Marx cometeu uma tremenda injustiça em relação à burguesia revolucionária, uma classe ainda ascendente em seu tempo. Nem menciono seus ataques à equivocadamente desprezada classe aristocrática, que, antes da burguesia, tinha preservado as luzes da civilização em face da barbárie inculta que se impunha à Europa, no rastro das invasões de povos nômades (visigodos, ostrogodos e outros godos). Afinal de contas, foi a aristocracia, constituída na decadência do Império Romano do Ocidente, devidamente romanizada, cristianizada e um pouquinho alfabetizada, que conseguiu preservar alguns elementos instruídos, saídos diretamente da era clássica, num mundo feudal marcado pela anomia social e pela fragmentação política (a despeito de defasado metodologicamente, recomendo aos interessados na história a leitura do clássico de Edward Gibbon).

Também sempre achei que Marx, tão enfático ao condenar o despotismo asiático, falhou terrivelmente ao diminuir, de maneira genérica, os méritos humanistas de aristocratas e burgueses, os primeiros resistindo bravamente em face da ignorância tirânica dos velhos bárbaros, os segundos defendendo as liberdades democráticas nas cidades livres e desmantelando os regimes exclusivos das velhas corporações feudais. Quanto aos revolucionários presumidos dos últimos cem anos, não é preciso registrar os resultados regressistas dos assaltos obscurantistas dos novos bárbaros, as hostes de revolucionários profissionais de extração fascista ou bolchevique, que desmantelaram o que havia restado de ilustrado nas sociedades pré-fascistas ou pré-comunistas da velha Europa. Sim, porque o que assistimos na Europa, desde o início do século 20, não foi exatamente um “assalto ao céu” por parte de uma nova classe educada para promover o enriquecimento cultural da sociedade, e sim um rebaixamento cultural e intelectual efetivamente ocorrido durante a vigência dos totalitarismos nazi-fascistas e leninistas, responsáveis, ademais, por várias dezenas de milhões de mortos no auge de seus respectivos regimes (quem duvidar pode ler o livro de Anne Applebaum, sobre o Gulag, ou a descrição realista das horas mais sombrias da Europa, em Tony Judt). 

Por isso mesmo, não é possível aceitar acadêmicos que reincidem no velho exercício esquizofrênico de condenar não se sabe bem qual “barbárie capitalista”, ao mesmo tempo em que defendem, de forma vergonhosa, alguns dos piores regimes remanescentes do stalinismo totalitário. Creio que o verbo “aceitar” não seria, aliás, aceitável num contexto acadêmico: a expressão objetivamente correta é que não é mais admissível, atualmente, que qualquer pessoa minimamente informada e supostamente alfabetizada – ou seja, habilitada a ler a imprensa – possa defender um sistema que condena pessoas à fome, ou à greve de fome, por carências generalizadas no sistema produtivo e por falta total das liberdades mais elementares. Acadêmicos que assim procedem não merecem o título, pois só podem ser energúmenos completos e acabados, e sequer podem ser considerados como medianamente equilibrados; deixemo-los apodrecer na lata de lixo das faculdades de Humanidades (que, a despeito de suas muitas limitações, não merecem essa ofensa adicional, por certo).

 

2. Uma bibliografia rarefeita, jamais positiva

Pois bem, alguém me corrija se estou errado, mas acredito que não existem elogios diretos e declarados à burguesia e menos ainda à aristocracia, fora de livros de história que tentam recriar o velho mundo burguês, em grande medida identificado com a era vitoriana, como, por exemplo, na série de cinco livros de Peter Gay, enfeixados sob o título geral de “experiência burguesa” (1: The Education of the Senses; 2: The Tender Passion; 3: The Cultivation of Hatred; 4: The Naked Heart; 5: Pleasure Wars; ao que eu saiba, nenhum deles traduzido e publicado no Brasil). Existe também o livro do economista (aliás, da economista, posto que ele mudou de sexo) Deirdre McCloskey, The Bourgeois Virtues, mas não se trata exatamente de um elogio à burguesia enquanto classe “universal” – no sentido hegeliano da palavra – mas de uma discussão essencialmente de história econômica e de história intelectual da formação da moderna sociedade capitalista na passagem do mercantilismo para o sistema fabril. De certa forma não deixa de ser um elogio à burguesia, mas vista apenas pelo seu lado empreendedor e inovador, e não exatamente como portadora de valores humanistas que aqui se procura destacar. Trata-se, basicamente, de uma defesa da economia de mercado, tal como encarnada na burguesia enquanto agente econômico, não de um elogio filosófico à burguesia, genericamente.

Uma pesquisa sumária na literatura brasileira, publicada no Brasil, não registrou nenhum trabalho que pudesse ser aproximado, de perto ou de longe, com uma visão positiva da burguesia. Os mais amplamente utilizados em nossos meios universitários são o enviesado História da Riqueza do Homem, do marxista americano Leo Huberman, e o inacreditável Veias Abertas da América Latina, do perfeito idiota Eduardo Galeano, um jornalista mal informado que é recomendado por professores igualmente idiotas por não reconhecerem sua total má qualidade histórica. Não é preciso dizer que ambos exibem, a propósito da burguesia, uma visão tão risivelmente simplista que seria empobrecedor para este texto sequer pretender criticá-los.

Qual seria, então, a natureza da dificuldade que tem a “classe” acadêmica em ver na burguesia uma força basicamente progressista, inclusiva, aberta aos talentos e aos méritos de todo e qualquer cidadão empreendedor? São muitas as causas, algumas propriamente sociais, outras ideológicas, outras, enfim, puramente psicológicas, se a distinção pode ser feita entre essas diversas categorias que, na verdade, tendem a se confundir. Em primeiro lugar, se trata, provavelmente, de preconceito de classe, posto que a maior parte de nossos acadêmicos não tem sua origem social nessa classe, que classicamente constitui uma minoria em termos numéricos (sendo bem mais ampla, numericamente, e nela os acadêmicos, a categoria que, na terminologia marxista ou assemelhada, se chama pequena burguesia). Em virtude, então, de certo complexo de inferioridade, compreensível no plano psicológico (outro fator selecionado), nossos acadêmicos exibem uma rejeição apenas em parte natural à classe em questão.

A mais forte razão, contudo, parece ser de natureza ideológica, ainda que ela se confunda com ignorância, pura e simples: a incompreensão profunda que a maior parte dos acadêmicos demonstra em relação ao funcionamento de uma economia de mercado, ampliada pela convivência quase exclusiva com “explicações” históricas baseadas essencialmente numa interpretação “marxista” da história. Coloquei “marxista” deliberadamente entre aspas posto que o velho barbudo, ao lado de seu preconceito também arraigado contra a burguesia de seu tempo, havia pelo menos estudado o surgimento e a formação da economia capitalista e manifestava certa compreensão quanto ao papel “progressista” desempenhado pela burguesia industrial na construção da moderna economia de mercado (que ele tentou analisar, sem o conseguir realmente, na sua obra mais famosa). O “certa compreensão” deveria ir também entre aspas, posto que Marx coloca no centro de sua “explicação” da sociedade capitalista a tal “extração de mais-valia”, que todo universitário pretensamente marxista interpreta como sendo o nec plus ultra das explicações possíveis quanto ao funcionamento da economia capitalista (quando isso nada mais constitui senão um arremedo de microeconomia mal formulada e mal apresentada).[1]

 

3. O charme discreto da burguesia (e o mais distante da aristocracia)

Deixemos, contudo, nossos acadêmicos entregues a seus preconceitos habituais, aparentemente insanáveis, e vejamos o que pode haver de louvável nas classes burguesas e aristocráticas de outras eras (ou mesmo atualmente). Elas constituem, obviamente, duas elites refinadas e distinguidas no quadro das sociedades divididas em classes – com toda a ambiguidade que esse fenômeno pode comportar – e, como tais, são chamadas a exercer papéis de relevo nos sistemas econômicos, nos regimes políticos e na produção e na disseminação de conhecimentos e de cultura que essas sociedades normalmente exibem. Marxistas acreditam que todas as sociedades até aqui existentes são sociedades divididas em classes, o que de certa forma é verdade, mas não com essa característica avassaladora, quase absoluta, que eles emprestam ao conceito. Classes são, ademais de uma realidade tangível – embora fluída, sob certos aspectos –, uma convenção prática, que em alguns casos se presta a uma operação de mistificação sociológica (posto que elas estão longe de exibir o determinismo fatal que os marxistas costumam emprestar a essa realidade e a esse conceito). Indivíduos transcendem suas situações de classe e se movimentam no continuum social e no leque de possibilidades que é inerente a toda sociedade humana, mesmo as mais aparentemente rígidas e estratificadas.

Constituindo elites, no sentido mais elementar da palavra, é obvio que tanto a aristocracia quanto a burguesia reúnem, em torno de si, todos os elementos mais refinados, em termos de luxo, cultura e manifestações artísticas, que classes dotadas de poder e riqueza são capazes de amealhar, para si e para os que lhe são próximos. O que mais se poderia esperar de formações sociais e de categorias históricas que, além de terem reunido os atributos geralmente esperados de estratos dominantes (força e capacidade de mando), sempre souberam atrair o que de melhor a civilização humana produziu no campo da inovação e da engenhosidade humanas?

Pode-se até entender o despeito de tantos acadêmicos – que são geralmente da pequena burguesia – contra a burguesia e a aristocracia: afinal de contas, eles foram educados no desprezo das classes dominantes, bem como no empenho em derrubá-las, para substituí-las, se possível, pela classe ascendente, o proletariado. O que não se pode entender, contudo, é a estupidez de recusar determinadas qualidades de educação, de refinamento, de gosto pelo luxo e por determinados prazeres da vida mundana, apenas porque tais qualidades ou desfrutes sejam próprios, por vezes exclusivos, das classes privilegiadas da sociedade, no caso a alta burguesia e a hoje quase inexistente aristocracia. É compreensível que pequenos burgueses acadêmicos viajem de classe econômica ou se hospedem em albergues econômicos, mas acredito que eles não recusariam uma primeira classe de avião ou um hotel cinco estrelas se o prazer lhes fosse oferecido graciosamente (por alguma fundação imperialista, talvez).

Imagino que eles não tenham nenhuma dificuldade em admitir que o que de melhor foi produzido pela civilização do luxo sirva de desfrute para os representantes das classes dominantes – inclusive alguns do “andar de baixo” que momentaneamente ascendem a essa condição – ainda que proclamem o objetivo de repartir o refinamento com os excluídos de sempre. Parece lhes ser mais difícil aceitar que certas distinções possam continuar sendo exclusivas dos muito ricos, posto que o princípio filosófico que rege sua militância política é o igualitarismo obrigatório (mesmo se poucos, hoje, acreditem realmente nesse conto de fadas). Pode-se conceder-lhes a ilusão de que o objetivo da sociedade igualitária seja realizado no futuro, mas ainda assim permanece a deformação básica que os faz denegrir, em suas aulas de história ou de sociologia, tudo o que as classes aristocráticas ou burguesas do passado produziram de refinado nas sociedades que precederam a moderna civilização de massas do presente. Talvez um passeio pelo mundo possa corrigir essa visão míope sobre as sociedades elitistas.

 

4. Visitando as obras da aristocracia e da burguesia (não apenas nos museus)

Não há como recusar: tudo o que se pode visitar de notável, de rico e de culturalmente enriquecedor, atualmente, numa Europa largamente dedicada ao turismo de massa, foi obviamente construído como habitação exclusiva para nobres e burgueses – castelos, palácios, mansões – ou como lugares de culto abertos a todo o povo: igrejas e catedrais, eventualmente, também, como residências monacais, como abadias e mosteiros (estes bem mais rústicos, porém). Tudo isso foi praticamente convertido, pela burguesia (que os conservou também), em museus e monumentos nacionais, grandiosidades abertas à visitação pública, ao custo de muito dinheiro público e privado (já que custa caro manter essas imponentes construções, algumas na origem da decadência econômica da aristocracia). 

A menos que nossos pequenos burgueses acadêmicos prefiram visitar, turisticamente, tugúrios camponeses e cortiços operários, em países pobres, ou então participar, voluntariamente, do corte de cana em Cuba, nas épocas de safra, supõe-se que eles também apreciariam conhecer o que de melhor a civilização ocidental criou em vários séculos de dominação das classes aristocráticas e burguesas. Acredito que, no fundo, em lugar de cortar cana em Cuba, eles prefiram, de longe, o desfrute desse tipo de requinte, mesmo com a prevenção ideológica e o desprezo ritual que eles parecem devotar às “classes exploradoras” (mas isso apenas para fazer o jogo dos companheiros). Afinal de contas, não se pode culpá-los por desejar exibir solidariedade – mesmo falsa ou forçada – com as “classes trabalhadoras”, ao mesmo tempo em que gozam, secretamente, de alguns prazeres burgueses – até mesmo aristocráticos – sem contudo revelar o “pecado” aos companheiros de militância. A carne é fraca, sabemos disso, mas eu estou aqui justamente para incitá-los ao desfrute.

Voltemos, contudo, ao que pode motivar um “elogio à burguesia” num texto provocador como este. Deve-se, em primeiro lugar, agradecer à burguesia o fato de ter preservado tão bem o legado das antigas classes dominantes, em face de tantas batalhas, revoluções, guerras civis e outras turbulências políticas: castelos, armaduras, afrescos, tapetes, quadros, objetos que de outra forma poderiam ter sido perdidos ao longo dos séculos. Barões “ladrões” – enriquecidos por monopólios diversos, golpes financeiros, roubalheiras abertas ou encobertas, assaltos muito pouco discretos aos cofres públicos – fizeram mais do que simplesmente preservar: compraram e mandaram “embrulhar”, para entrega nos Estados Unidos, castelos inteiros, igrejas aos lotes, obras de arte de todo tipo e qualquer quantidade de manifestações do espírito e do intelecto, que eles arrematavam, aos borbotões e a preço vil, numa Europa devastada por guerras e genocídios escabrosos. 

Bastava mandar reconstruir ou montar em Nova York, na Filadélfia, no Tennessee, wherever, castelos inteiros, com tijolos e pedras numeradas, para uma reapresentação “perfeita”, onde o magnata desejasse, como se estivessem nos vales e colinas européias; ou então, réplicas melhores do que os originais, fakes inovadores, moldes milimetricamente calculados, gessos mais realistas do que os mármores e granitos e, zutvoilà: no interior do Kansas ou no Colorado, surge um templo grego, um castelo medieval, uma catedral gótica ainda melhor que na paisagem de origem (já que com ar condicionado, com máquinas de refrigerantes e banheiros limpos). Como é que nossos acadêmicos pequenos burgueses não podem achar geniais essas trouvailles da civilização burguesa, essas maravilhas do capitalismo, seja na preservação dos raros vestígios do passado, seja na reprodução perfeita dos originais praticamente destruídos ou inacessíveis? Como não apoiar essas demonstrações de prestígio da civilização burguesa? Aliás, ampla e democraticamente disseminadas.

Num capítulo mais especificamente acadêmico, como não elogiar esses mecenas saídos de uma modesta condição de origem para os pináculos da riqueza capitalista, que dotam suas universidades de formação com milhões de dólares, em troca, simplesmente, de um mármore no hall de salas de concerto, gravado para a eternidade com o seus nomes? Como não admirar a multiplicação dessas oportunidades de também reproduzir o mesmo modelo de benfeitoria social através de bolsas concedidas a estudantes de condição modesta, que podem assim aceder às melhores universidades do país, que de outra forma estariam fora de suas possibilidades de estudo? Todas essas orquestras sinfônicas juvenis, espaços de preservação ambiental, museus com coleções magníficas, bibliotecas inteiras doadas a instituições de estudo e pesquisas, tudo isso é obra da burguesia, bem mais do que um Estado por vezes muito lento a se movimentar e bem mais pobre do que se pode imaginar (aliás, por definição, posto que todo o dinheiro “do” Estado vem do trabalho de burgueses e trabalhadores, se por acaso nossos pequenos burgueses acadêmicos não sabem disso). Universidades americanas devem muito a seus mecenas burgueses.

Em face de todas essas contribuições ao enriquecimento intelectual das sociedades, parece risível o fato de nossas “elites” acadêmicas insistirem em recusar a “cultura burguesa”, promovendo, em seu lugar, manifestações de “cultura popular” que aparecem como artificialmente popularescas em sua demagogia simplória. No lugar de Bethoven, hip-hop; no lugar de Villa-Lobos, funk ou um batuque qualquer; em troca de Machado de Assis, sabe-se lá que cantor de rap ou “poeta popular”. Nunca o grotesco popular ocupou um lugar tão grande em nosso cenário cultural; jamais os acadêmicos foram tão omissos na defesa da produção intelectual de qualidade: tudo em nome do “combate à sociedade burguesa” ou à “cultura da elite”, é verdade. Não deixa de ser patético e, no limite, deplorável.

 

5. A burguesia trabalha, mesmo nos lugares mais inóspitos...

Pode ser, contudo, que esse cenário de opção intelectual pelo popularesco, em lugar da cultura refinada, esteja mudando. Com a queda do muro de Berlim e a implosão de quase todos os socialismos – dois bastiões miseráveis ainda padecem sob ditaduras totalitárias – os marxistas mais atilados (supõe-se que existam) passaram a reconsiderar a cronologia da implantação do socialismo. Aliás, segundo o próprio Marx, o socialismo só emergiria a partir do capitalismo maduro, ao cabo de sua gradual evolução a formas mais acabadas de produção mercantil e quando as relações de produção estivessem quase plenamente “socializadas”, a ponto de entrarem em “contradição” com o desenvolvimento incipiente das forças produtivas, constrangidas pela natureza privada da apropriação da mais-valia (enfim, o blá-blá-blá conhecido). 

Se isso é verdade – e é presumível que sim, dado que o próprio Marx assim escreveu – então os marxistas mais espertos deveriam estar ajudando a burguesia em sua missão histórica de desenvolver ao máximo o modo capitalista de produção, até o limite de suas possibilidades materiais (sim, aquela coisa necessária, historicamente determinada). Kautsky e outros reformistas moderados da era do ouro do marxismo clássico – como Edward Bernstein, por exemplo – tinham essa concepção do processo, mas foram atropelados pela impulsividade revolucionária de Lênin (e devidamente classificados como renegados do marxismo. Lênin era, talvez um gênio em matéria de organização política – ainda que com grandes doses de autoritarismo e de centralismo antidemocrático – mas era também um completo bárbaro em matéria de economia, ou pretendia fazê-la dobrar-se aos ditames da sua política. Não considerando aqui a arquitetura totalitária do Estado soviético que ele implantou tão logo chegou ao poder, com laivos de terror robespierrista, foi Lênin quem pressionou para uma rápida transição a um sistema econômico socialista – ou melhor, completamente estatizado – quando nem a sociedade, nem a nova administração soviética, e nem mesmo o partido bolchevique, estavam preparados para esse salto. 

É verdade que ele logo enfrentou os problemas daí decorrentes, e teve de fazer um passo atrás (na NEP), sem jamais, contudo, renunciar a seus objetivos de lograr uma completa engenharia social na imensa nação atrasada que era, então, a Rússia. Apenas aprendizes de feiticeiro se engajam em projetos de tal magnitude, envolvendo uma administração complexa dos fluxos e mecanismos da economia, sem a devida preparação e sem instituições adequadas. Não é preciso relembrar aqui o imenso desastre humano que representou a construção do socialismo na Rússia, um experimento que pode ser equiparado a uma espécie de escravismo industrial. Poucas sociedades no mundo, desse porte pelo menos, passaram por experiência semelhante de engenharia social, o grande exemplo sendo, obviamente, representado pela China, que aliás assistiu a novos episódios de privação, fome e canibalismo, produzidos pela mão do homem, coisas que já tinham ocorrido na deskulakização dos anos 1930. 

Alguns espíritos mais realistas – como Ludwig Von Mises, entre outros – alertaram, no devido tempo, que esse grande laboratório a céu aberto e em tempo real não tinha condições de dar certo: seria impossível o funcionamento normal de um sistema econômico na ausência de sinalizadores mínimos, dados pelos preços de mercado. E, de fato, foi o que ocorreu: o socialismo sempre foi uma loucura econômica compulsória, não um ensaio voluntário de transformação de todo um sistema produtivo. Deu no que deu, portanto, e, tanto a Rússia, quanto a China, os dois grandes moedores de carne humana do século 20, só voltaram a uma relativa “normalidade” quando resolveram abraçar de volta mecanismos de mercado e instituições tipicamente capitalistas de administração econômica da sociedade.

Com esse retorno da História, nos dois países – a China mais cedo, e com suas peculiaridades de ter mantido um Estado comunista à frente de práticas e valores absolutamente capitalistas – a burguesia veio junto, não como um favor dos novos donos do poder em cada um deles, mas por absoluta necessidade do funcionamento do novo sistema. Na China, aliás, os próprios quadros do partido se apressaram em adotar métodos “burgueses”, quando não se converteram eles mesmos nos membros mais aplicados da nova classe. O PCC passou a admitir, anos depois de ter instituído o seu “capitalismo com peculiaridades chinesas”, burgueses como membros do partido, acolhendo-os com tal entusiasmo que se poderia pensar que os empresários se destinavam a constituir a burguesia oficial do partido, o que de certa forma é totalmente correto: parte da nomenklatura se transformou na nova classe burguesa. 

Nas três curtas décadas – um segundo, apenas, na história milenar da China – que a transição ao capitalismo vem sendo operada no país, ela operou “milagres” em termos de modernização produtiva e de mudanças sociais. As transformações são tão visíveis que dispensam qualquer exposição mais elaborada. A Rússia, contudo, é um caso talvez diferente, na medida em que sua transição conduziu a um tipo de capitalismo mafioso, raramente visto na história desse sistema, no qual uma nova burguesia predadora e predatória – construída a partir dos escombros do PCUS – surge no lugar das velhas elites oligárquicas, ostentando desta vez abertamente seu comportamento de novos milionários que exibem seu consumo conspícuo nos lugares mais requintados do capitalismo contemporâneo. Mônaco que o diga...

Talvez essas duas novas burguesias ainda sejam rústicas e “selvagens”, se as compararmos com suas equivalentes históricas do Ocidente: nelas estão os banqueiros italianos do Renascimento, com suas tradições de luxo, ostentação e refinamento, e os atuais mecenas americanos, que doam alegremente milhões de dólares de suas fortunas pessoais para causas nobres. Mas elas também terminarão, como as outras, cumprindo sua missão histórica de preservação, restauração e construção de sítios de memória coletiva: castelos, palácios, mansões patrícias, museus especializados, áreas de preservação ambiental, etc. Ou então, elas contribuirão financeiramente com obras beneméritas controladas por seus respectivos Estados em seus locais de origem: universidades, edifícios públicos, até assistência social, como bolsas para estudantes pobres (pois quase todo burguês tem a compulsão de ser, ou de parecer, magnânimo). 

Em qualquer hipótese, algo permanece nessas sociedades a partir do “poder burguês”, pois que nem tudo é acumulação privada e exibicionismo íntimo; a burguesia também adora, como qualquer outra elite, exibir-se publicamente, e com isso ela acaba acumulando obras de arte e outras riquezas exclusivas que, em algum momento, se converterão em patrimônio coletivo, direta ou indiretamente. Os companheiros que se apressaram em “socializar” o patrimônio da aristocracia e da burguesia – como na Europa oriental, por exemplo – acabaram, na verdade, vendendo de volta palácios deteriorados e propriedades destruídas a seus proprietários originais ou seus descendentes, que agora estão investindo milhões para recolocá-los em seu estado original, o que representou em atraso monumental do turismo nesses países. 

 

6. Burgueses de todos os países, uni-vos... 

Concluindo o meu panegírico à burguesia – certamente provocador, como era a intenção, mas dotado de argumentos que podem ser discutidos – gostaria de oferecer uma última avaliação metodológica sobre o quê caberia atribuir como responsabilidades históricas a cada categoria social presente na trama das sociedades. Por certo que meu exercício encomiástico deve ter chocado algumas almas cândidas da ignorantsia acadêmica, mas foi justamente com esse objetivo que empreendi este ensaio. Mas, o que vem agora deverá chocar muito mais.

Observando-se objetivamente o século que se passou – um dos mais mortíferos na história da humanidade – e mesmo descontando os episódios de guerras globais – com suas responsabilidades talvez compartilhadas, mas com um manancial de mortes provocadas, hecatombes sociais, genocídios e limpezas étnicas que pendem seguramente para o lado dos totalitarismos coletivistas – o balanço que cabe fazer da luta mortal que se desenvolveu entre os dois grandes sistemas ideológicos de nossa era maniqueísta poderia ser traçado da seguinte forma. Os companheiros – mais os comunistas do que os fascistas – que se aventuraram na construção do homem novo e na eliminação da exploração capitalista, deixaram atrás de si, junto com a burguesia reprimida, uma terra arrasada em termos de patrimônio material e de valores humanos: gulags, ampla censura, palácios deteriorados, repressão ao pensamento e, sobretudo, diminuição geral do nível de vida. A história registra objetivamente esses fatos, e apenas os cegos deliberados, os míopes ideológicos e os acadêmicos de má fé não se dispõem a reconhecer esses fatos e episódios em sua simplicidade brutal. 

Em contrapartida, as sociedades e países que mantiveram estruturas sociais herdadas do passado – o que pode incluir revoluções violentas, igualmente – e que empreenderam processos progressivos de reformas sociais moderadas – em oposição aos grandes projetos de transformação radical da sociedade – souberam preservar, junto com as antigas classes dominantes, grande parte do patrimônio histórico coletivo de outras épocas. Certamente que essas sociedades apresentavam no passado, e algumas continuam a fazê-lo no presente, grandes desigualdades sociais e estamentos elitistas, características que estão justamente representadas em todos aqueles lugares simbólicos que constituem, atualmente, nossos lugares preferidos de visitas turísticas (hoje em dia um fenômeno de massa): castelos, palácios, museus, sem mencionar as melhores universidades do mundo, tradicionalmente elitistas, antes de sua abertura a todos os talentos, processo bem mais recente em todos os países. 

Esse é o mundo da burguesia e da aristocracia – esta bem mais restrita numericamente – tão execrado por acadêmicos ingênuos ou deliberadamente ignorantes, cujas paixões políticas sobrepõem-se àquele mínimo de racionalidade que se espera de pessoas de cultura universitária. Acredito que esse tipo de equívoco pode ser sanado com uma simples abertura de espírito e a retirada das viseiras ideológicas. 

De minha parte, não tenho nenhuma hesitação em terminar elevando uma saudação de “viva a burguesia!”, com a certeza de ter convertido à objetividade histórica pelo menos alguns poucos alunos desses acadêmicos equivocados. Vale!

 


[1] Remeto, para mais amplas explicações, a estes dois artigos meus: O fetiche do Capital e Falácias acadêmicas, 8: os mitos da utopia marxista, publicados na revista Espaço Acadêmico, respectivamente no n. 83 (abril de 2008) e no n. 96 (maio de 2009), disponíveis nos links http://www.espacoacademico.com.br/083/83pra.htm e http://www.espacoacademico.com.br/096/96esp_pra.htm.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

A política externa do governo Lula - Paulo Roberto de Almeida (2002)

Antes mesmo do início do governo Lula, em dezembro de 2002, eu já fazia uma análise de sua possível (ou provável) política externa, com base nas informações disponíveis sobre as posturas internacionais do PT, o que talvez não tenha agradado a alguns de seus próceres, ou aos responsáveis por essa política no Itamaraty.
O fato é que, ao iniciar o governo Lula, tendo sido meu nome cogitado para dirigir o mestrado em diplomacia promovido pelo Instituto Rio Branco, ele foi recusado, ou vetado (para dizer mais claramente), pelos dirigentes dessa diplomacia, tanto apparatchiks do partido quanto os profissionais do Itamaraty a serviço do PT.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de janeiro de 2019

Revista Espaço Acadêmico, n. 19, dezembro de 2002, v. 2, n. 19 (2002)

Paulo Roberto de Almeida
link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35920
pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35920/751375139054

A política externa do novo governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva: retrospecto histórico e avaliação programática

Paulo Roberto de Almeida

Resumo

A primeira constatação que se pode fazer a propósito da provável política externa do futuro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva é a de que se tratará de uma diplomacia evolutiva, tanto em seus contornos conceituais como em seu modus operandi. No dia seguinte à sua eleição consagradora no segundo turno das eleições presidenciais, e não conhecido ainda o nome que integrará seu futuro governo na qualidade de chanceler – que poderia ser tanto um representante da diplomacia profissional, como um “civil” com conhecimento da área –, pode-se dizer que o PT percorreu um longo caminho de construção tentativa de um pensamento em política externa, desde o programa de cunho socializante do partido criado mais de duas décadas atrás, até o programa da campanha presidencial de 2002 e, mais importante, o primeiro pronunciamento oficial do presidente eleito, em 28 de outubro de 2002.

Palavras-chave


diplomacia brasileira; posições; PT; ideologia diplomática;

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Direitos autorais 2002 Revista Espaço Acadêmico

Ficha de registro desse trabalho: 

977. “A Política Externa do novo Governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva: retrospecto histórico e avaliação programática”, Washington, 28 outubro 2002, 14 pp. Síntese das posições de política externa do PT e do candidato Lula nas disputas eleitorais de 1989, 1994, 1998 e 2002. Publicado como nota na Revista Brasileira de Política Internacional (ano 45, n. 2, julho-dezembro 2002, pp 229-239; disponível em Scielo, link: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292002000200011&lng=en&nrm=iso&tlng=pt). Publicado na revista eletrônica Espaço Acadêmico (Maringá: ano II, n. 19, dezembro 2002; links: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35920; pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35920/751375139054). Relação de Publicados n. 380 e 381. 


A Política Externa do novo Governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva: retrospecto histórico e avaliação programática

Paulo Roberto de Almeida *
Publicado como nota na Revista Brasileira de Política Internacional (ano 45, n. 2, julho-dezembro 2002, pp 229-239; disponível em Scielo, link: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292002000200011&lng=en&nrm=iso&tlng=pt). Publicado na revista eletrônica Espaço Acadêmico (Maringá: ano II, n. 19, dezembro 2002; links: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35920; pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35920/751375139054). Relação de Publicados n. 379 e 380.

A primeira constatação que se pode fazer a propósito da provável política externa do futuro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva é a de que se tratará de uma diplomacia evolutiva, tanto em seus contornos conceituais como em seu modus operandi. No dia seguinte à sua eleição consagradora no segundo turno das eleições presidenciais, e não conhecido ainda o nome que integrará seu futuro governo na qualidade de chanceler – que poderia ser tanto um representante da diplomacia profissional, como um “civil” com conhecimento da área –, pode-se dizer que o PT percorreu um longo caminho de construção tentativa de um pensamento em política externa, desde o programa de cunho socializante do partido criado mais de duas décadas atrás, até o programa da campanha presidencial de 2002 e, mais importante, o primeiro pronunciamento oficial do presidente eleito, em 28 de outubro de 2002.
Com efeito, o programa fundacional do PT previa uma “política internacional de solidariedade entre os povos oprimidos e de respeito mútuo entre as nações que aprofunde a cooperação e sirva à paz mundial. O PT apresenta com clareza sua solidariedade aos movimentos de libertação nacional...” Não constava, do primeiro programa, menção explícita à “política externa”, mas, o “plano de ação” contemplava os seguintes pontos em seu item “VI- Independência Nacional: contra a dominação imperialista; política externa independente; combate a espoliação pelo capital internacional; respeito à autodeterminação dos povos e solidariedade aos povos oprimidos”. [1] Como se vê, uma plataforma típica dos partidos esquerdistas da América Latina no período clássico da Guerra Fria e dos “movimentos de libertação nacional”.
Desde então, o partido e seus dirigentes evoluíram sensivelmente, mas o itinerário não deixou de ser algo errático, ou pelo menos hesitante (ou relutante) na adesão a princípios consagrados da política externa brasileira, como poderia ser observado mediante um exame perfunctório dos principais temas de relações internacionais do Brasil selecionados como plataforma de campanha nas eleições presidenciais de 1989 até hoje. Vejamos rapidamente algumas dessas posições.
Em 1989, a principal característica do candidato Lula era sua identificação com a luta dos oprimidos da América Latina. O candidato do PT apresentou um amplo e abrangente programa de governo e, segundo se depreendia das resoluções políticas adotadas pelo Partido em seu IV Encontro Nacional (junho de 1989), pretendia propor uma “política externa independente e soberana, sem alinhamentos automáticos, pautada pelos princípios de autodeterminação dos povos, não-ingerência nos assuntos internos de outros países e pelo estabelecimento de relações com governos e nações em busca da cooperação à base de plena igualdade de direitos e benefícios mútuos”.
Mesmo se esses princípios não diferiam muito da política externa efetivamente seguida pelo Brasil, ainda assim uma vitória do candidato-trabalhador, representaria uma reavaliação radical das posturas brasileiras na área, já que a “Frente Brasil Popular” prometia adotar uma “política antiimperialista, prestando solidariedade irrestrita às lutas em defesa da autodeterminação e da soberania nacional, e a todos os movimentos em favor da luta dos trabalhadores pela democracia, pelo progresso social e pelo socialismo”. Um hipotético Governo da Frente defenderia a “luta dos povos oprimidos da América Latina” e Lula chegou mesmo a propor a “decretação de uma moratória unilateral para ‘solucionar’ a questão da dívida externa”. [2] Aliás, na proposta que o PSB – um dos membros da Frente – apresentou de um “programa mínimo” das esquerdas para as eleições presidenciais de 1989, se defendia a “imediata suspensão de qualquer pagamento relacionado com a dívida externa”, a constituição de um “entendimento entre os diversos países devedores com vistas a fortalecer o não-pagamento” e o estabelecimento de “relações fraternas com todos os partidos que tenham como objetivo a construção da democracia e do socialismo com o objetivo de unir esforços na preparação de uma alternativa à crise do modo de produção capitalista”.
Em 1994, o candidato do PT lançou-se em campanha à frente de todos os demais, tendo preparado-se, aliás, para disputar novamente a presidência praticamente desde o final das eleições de 1989. Alguns meses depois dessas eleições, o líder do PT tinha com efeito anunciado, em coalizão com alguns outros partidos de esquerda, a formação de um “governo paralelo”, seguramente um dos poucos exemplos de shadow cabinet ao sul do Equador. Infelizmente, a experiência não chegou realmente a frutificar, pelo menos no que se refere à atividade de um “ministro paralelo” das relações exteriores. Não se teve notícia de que o chanceler “paralelo” – designado na pessoa do filósofo e professor Carlos Nelson Coutinho – tivesse avançado um programa, ou sequer elementos, de uma “política externa alternativa”, com propostas concretas para o relacionamento internacional do Brasil.
Em todo caso, a partir desse período, Lula passou a viajar bastante pelo Brasil e ao exterior e patrocinou em São Paulo um “foro” de partidos de esquerda da América Latina, que depois consolidou-se como reunião periódica de formações “progressistas” da região e contrárias às supostas ou reais políticas “neoliberais” de estabilização econômica no continente. A despeito de uma condenação genérica do chamado “consenso de Washington”, o candidato do PT também desenvolveu um maior conhecimento a respeito das opções na frente externa, tendo chegado a posições definidas, embora nem todas explícitas, em relação aos grandes problemas internacionais enfrentados pelo Brasil.
O PT foi também o que primeiro definiu um programa de Governo para as eleições de 1994, com propostas bem articuladas, mas por vezes contraditórias, que refletiam um intenso debate interno entre as diversas correntes do partido. Alguns grupos representativos de “minorias” (negros, ecologistas, homossexuais e outros grupos de “excluídos” ou “marginalizados”) lograram incluir suas reivindicações específicas nesse programa. Com base no programa do Partido e em texto assinado pelo próprio candidato, quais foram, em todo caso, os principais elementos da agenda do PT em relação à política externa nacional e às relações internacionais nesse ano do Plano Real (definido pelo PT como um “estelionato eleitoral”)?
O problema básico da política externa brasileira, tal como detectado no programa, foi designado como sendo a ausência, “há mais de quinze anos, de um projeto nacional de desenvolvimento”, opinião reafirmada pelo candidato em artigo publicado no Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros. [3] Lula reconhecia, também em acordo com o programa, que “durante os governos militares, mais particularmente no período do general Geisel, existia um projeto nacional, politicamente autoritário e socialmente excludente” que, a despeito das críticas que seu partido pode fazer, “abriu brechas para que o Brasil reorientasse sua política externa”. Em 1994, segundo o programa, persistia “inercialmente a política externa daquele período, adequada empiricamente às novas realidades...”. Mas, em face do quadro de mudanças, o “Governo Democrático e Popular deveria desenvolver uma política externa que buscará simultaneamente uma inserção soberana do Brasil na mundo e a alteração das relações de força internacionais contribuindo para a construção de ordem mundial justa e democrática”. [4]
O programa de então destacava como áreas prioritárias da “nova política externa” a América Latina e o Mercosul, referindo-se aqui, de forma equivocada, ao “Merconorte”. Ele não deixava tampouco de dar ênfase às “relações de cooperação econômica e nos domínios científico e tecnológico, com uma correspondente agenda política”, na esfera Sul-Sul, com países como a China, Índia, Rússia e África do Sul e com os países de língua portuguesa. Algumas iniciativas internacionais eram listadas, como, por exemplo, a “rediscussão dos problemas das dívidas externas dos países periféricos”, propostas sobre a fome e a miséria no mundo ou ainda a convocação de uma conferência internacional – “de porte semelhante à ECO-92” – para discutir a situação do trabalho no mundo e medidas efetivas contra o desemprego. O programa também prometia recuperar o Ministério das Relações Exteriores, “cuja estrutura foi sucateada nos últimos anos”.
Em seu artigo assinado, depois de listar algumas das transformações por que passou o mundo no período recente, o candidato Lula indicava alguns elementos para a formulação da “nova política externa para o Brasil”. “Em primeiro lugar, o Brasil só poderá ter uma política externa consistente se tiver um claro projeto nacional de desenvolvimento, com o correspondente fortalecimento da democracia, o que significa universalização da cidadania, do respeito aos direitos humanos, reforma e democratização do Estado”. Esse projeto nacional de desenvolvimento compreende um “modelo de crescimento que favoreça a criação de um gigantesco mercado de bens de consumo de massas que permita redefinir globalmente a economia, dando-lhe, inclusive, novas condições de inserção e de cooperatividade internacionais”. “Em segundo lugar, o Brasil não pode sofrer passivamente a atual (des)ordem mundial. Ele tem de atuar no sentido de buscar uma nova ordem política e econômica internacional justa e democrática”.
Considerando que a política externa é, antes de mais nada, uma questão de política interna, o candidato reafirmava seus pressupostos de atuação: “A política externa não vem depois da definição de um projeto nacional. Ela faz parte deste projeto nacional”. Parafraseando Clausewitz, o candidato do PT, portanto, também poderia hipoteticamente dizer: “A política externa é a continuação da política interna por outros meios”.
Em 1998, já em sua terceira candidatura, desta vez por uma coligação ¾ a “União do Povo Muda Brasil”, com PT/PDT/PCdoB/PSB/PCB ¾ Lula esforçou-se por colocá-la sob o signo da continuidade e da inovação, este último aspecto apresentando-se, desde o início da campanha, sob a forma de uma aliança política privilegiada com seu concorrente trabalhista das experiências anteriores, o líder do PDT Leonel Brizola. Este antigo líder da história política brasileira chegou a causar constrangimentos para o então relativamente moderado candidato “dos trabalhadores”, ao defender uma postura intransigente em relação ao capital estrangeiro e às privatizações de empresas públicas, chegando mesmo a declarar que não só esse processo seria interrompido mas que algumas das leiloadas seriam suscetíveis de reversão ao domínio estatal num eventual governo da coligação.
O próprio candidato à presidência defendeu uma redução das importações por via de medidas governamentais, embora de caráter tarifário, o que garantiria a transparência da política comercial de um Governo do PT e seus aliados partidários. As “Diretrizes do Programa de Governo” da coalizão popular acusavam o Governo FHC de ter praticado uma abertura “irresponsável” da economia e de ter desnacionalizado a “nossa indústria e nossa agricultura, provocando desemprego e exclusão social”. A ênfase na perda de soberania econômica do País era aliás o ponto forte da campanha de Lula na área internacional, elemento combinado a uma política externa de tipo voluntarístico que se propunha mudar a forma de inserção do Brasil no mundo a partir da manifestação da vontade política, aqui ignorando aparentemente as linhas de força nas instituições internacionais e nas relações com os demais países, parceiros ou “adversários” na atual ordem econômica mundial.
O Ponto 12 dessas diretrizes, “Presença soberana no mundo”, defendia, de forma conseqüente, uma “política externa, fundada nos princípios da autodeterminação”, que faria — segundo o texto, “expressará nosso desejo” de ver — o Brasil atuar “com decisão visando alterar as relações desiguais e injustas que se estabeleceram internacionalmente”. Ainda nessa mesmo linha, um eventual Governo liderado pelo PT lutaria “por mudanças profundas nos organismos políticos e econômicos mundiais, sobretudo a ONU, o FMI e a OMC”. Com efeito, documento liberado quando do agravamento da crise financeira, em princípios de setembro de 1998, avançava a proposta de “participar da construção de novas instituições financeiras internacionais”, uma vez que “as atualmente existentes — FMI, OMC, BIRD — são incapazes de enfrentar a crise”. De forma ainda mais explícita, a coalizão de Lula pretendia combater o Acordo Multilateral de Investimentos em fase de negociação na OCDE, considerado como “atentatório à soberania nacional”.
De maneira mais positiva, o programa enfatizava a intenção de fortalecer as relações do Brasil com os outros países do Sul, “em especial com os da América Latina, da África meridional e aos de expressão portuguesa”. O processo de integração subregional, finalmente, era visto muito positivamente, mas ficava claro o desejo de efetuar uma “ampliação e reforma do Mercosul que reforce sua capacidade de implementar políticas ativas comuns de desenvolvimento e de solução dos graves problemas sociais da região”. Depreendia-se, contudo, das declarações de diversos membros da coalizão que o Mercosul era considerado como uma espécie de “bastião antiimperialista”, em contraposição ao projetos norte-americanos de diluir esse esquema num vasto empreendimento livre-cambista do Alasca à Terra do Fogo. De forma geral, a ALCA se apresentava como um anátema na política externa de um Governo liderado pelo PT, perdendo apenas em importância na escala de inimigos ideológicos para o neoliberalismo e a globalização selvagem promovida pelas grandes empresas multinacionais.
Já em 2002, o cenário mudou substancialmente, com a expressão inédita de um novo realismo diplomático, a começar pela política de alianças buscada pelo candidato Lula, desta vez não unicamente à esquerda, mas envolvendo em especial o Partido Liberal, que forneceu seu candidato a vice. Ainda que partindo na frente de todos os demais candidatos, tanto em termos de candidatura oficiosa como no que se refere aos índices de aceitação eleitoral, o candidato do PT e o próprio partido foram desta vez extremamente cautelosos na formulação das bases da campanha política, a começar pelas alianças contraídas com vistas a viabilizar um apoio “centrista” ao candidato. Lula foi também bastante cauteloso na exposição de sua idéias, ainda que algumas delas, ainda no início da campanha, tenham sido exploradas por seus adversários (como por exemplo o apoio às políticas subvencionistas da agricultura européia ou a proposta de que o Brasil deveria deixar de exportar alimentos até que todos os brasileiros pudessem se alimentar de maneira conveniente). Nessa fase, ele ainda repetia alguns dos velhos bordões do passado (contra o FMI e a Alca, por exemplo), que depois foram sendo corrigidos ou alterados moderadamente para acomodar as novas realidades e a coalizão de forças com grupos nacionais moderados que se pensava constituir de forma inédita.
Em matéria de política externa, mais especificamente, a intenção – aliás partilhada com os demais candidatos e, de certa forma, implementada pelo governo FHC – era a de ampliar as relações do Brasil com outros grandes países em desenvolvimento, sendo invariavelmente citados a China, a Índia e a Rússia. No plano econômico, o compromisso – também expresso pelos demais candidatos – era o de diminuir o grau de dependência financeira externa do Brasil, mobilizando para tal uma política de promoção comercial ativa, com novos instrumentos para esse efeito (possivelmente uma secretaria ou ministério de comércio exterior). Segundo a “Carta ao Povo Brasileiro”, divulgada por Lula em 22 de junho, o povo brasileiro quer “trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas”. De maneira ainda mais enfática, nesse documento, Lula afirmou claramente que a “premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do País”.
Depois de algumas ameaças iniciais de se retirar das negociações da Alca (que seria “mais um projeto de anexação [aos EUA] do que de integração”), Lula passou a não mais rejeitar os pressupostos do livre-comércio, exigindo apenas que ele fosse pelo menos equilibrado, e não distorcido em favor do parceiro mais poderoso, o que constituiu notável evolução em relação a afirmações de poucas semanas antes. O principal assessor econômico do candidato, deputado Aloízio Mercadante foi bastante cauteloso na qualificação das eventuais vantagens da Alca: “Esta não deve ser vista como uma questão ideológica ou de posicionamento pró ou contra os Estados Unidos, mas sim como um instrumento que pode ou não servir aos interesses estratégicos brasileiros” (Valor Econômico, 15.07.02). Os contatos mantidos pela cúpula do PT com industriais, banqueiros e investidores estrangeiros  tendiam todos a confirmar esse novo realismo diplomático, e sobretudo econômico, do candidato.
De fato, os principais dirigentes do PT começaram, em plena campanha, a se afastar cautelosamente das propostas tendentes a realizar um plebiscito nacional sobre a Alca (organizado pela CUT, pelo MST e pela CNBB), uma vez que ele teria resultados mais do que previsíveis, todos negativos para a continuidade dessas negociações. De modo ambíguo, porém, o assessor Mercadante parecia acreditar na possibilidade de um acordo bilateral com os EUA, sem explicar como e em que condições ele poderia ser mais favorável do que o processo hemisférico: “é importante que, independentemente da Alca, o Brasil e os Estados Unidos iniciem um processo de negociação bilateral direcionado para a ampliação do seu intercâmbio comercial e a distribuição mais justa de seus benefícios”. O PT parecia assim ter iniciado, ainda que de maneira hesitante, o caminho em direção ao reformismo moderado.
O programa divulgado pelo candidato em 23 de julho de 2002 era bastante ambicioso quanto aos objetivos de “sua” política externa, uma vez que prometia convertê-la num dos esteios do processo de desenvolvimento nacional: “A política externa será um meio fundamental para que o governo implante um projeto de desenvolvimento nacional alternativo, procurando superar a vulnerabilidade do País diante da instabilidade dos mercados financeiros globais. Nos marcos de um comércio internacional que também vem sofrendo restrições em face do crescente protecionismo, a política externa será indispensável para garantir a presença soberana do Brasil no mundo.” Parece ter ocorrido aqui, ao contrário das ocasiões anteriores, uma espécie de sobrevalorização da política externa, ou em todo caso, uma esperança exagerada em suas virtudes transformadoras.
Com efeito, o candidato Lula pretendia, nada mais nada menos que reorganizar o mundo e o continente sul-americano a partir de suas propostas diplomáticas, o que denota ou excesso de otimismo ou desconhecimento quanto aos limites impostos pela realidade internacional a esses grandes projetos mudancistas no cenário externo, sobretudo vindos de um país dotado de recursos externos limitados como o Brasil. “Uma nova política externa deverá igualmente contribuir para reduzir tensões internacionais e buscar um mundo com mais equilíbrio econômico, social e político, com respeito às diferenças culturais, étnicas e religiosas. A formação de um governo comprometido com os interesses da grande maioria da sociedade, capaz de promover um projeto de desenvolvimento nacional, terá forte impacto mundial, sobretudo em nosso Continente. Levando em conta essa realidade, o Brasil deverá propor um pacto regional de integração, especialmente na América do Sul. Na busca desse entendimento, também estaremos abertos a um relacionamento especial com todos os países da América Latina.
Em contraposição ao candidato governista, supostamente herdeiro da política de integração do presidente FHC mas de fato cético quanto a suas vantagens para o Brasil, o candidato Lula era o mais entusiástico promotor do Mercosul, mas ainda aqui com pouco realismo em relação às chances de uma moeda comum no curto prazo ou a implantação de instituições mais avançadas: “É necessário revigorar o Mercosul, transformando-o em uma zona de convergência de políticas industriais, agrícolas, comerciais, científicas e tecnológicas, educacionais e culturais. Reconstruído, o Mercosul estará apto para enfrentar desafios macroeconômicos, como os de uma política monetária comum. Também terá melhores condições para enfrentar os desafios do mundo globalizado. Para tanto, é fundamental que o bloco construa instituições políticas e jurídicas e desenvolva uma política externa comum.
Persistia, igualmente, no programa, a atitude de princípio contrária à Alca e um certo equívoco quanto aos objetivos de uma zona de livre-comércio, pois que se via nesse processo a necessidade do estabelecimento de políticas compensatórias, quando são raros os exemplos de acordos de simples liberalização de comércio que contemplem tais tipos de medidas corretivas: “Essa política em relação aos países vizinhos é fundamental para fazer frente ao tema da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). O governo brasileiro não poderá assinar o acordo da ALCA se persistirem as medidas protecionistas extra-alfandegárias, impostas há muitos anos pelos Estados Unidos. (…)  A política de livre comércio, inviabilizada pelo governo norte-americano com todas essas decisões, é sempre problemática quando envolve países que têm Produto Interno Bruto muito diferentes e desníveis imensos de produtividade industrial, como ocorre hoje nas relações dos Estados Unidos com os demais países da América Latina, inclusive o Brasil. A persistirem essas condições a ALCA não será um acordo de livre comércio, mas um processo de anexação econômica do Continente, com gravíssimas conseqüências para a estrutura produtiva de nossos países, especialmente para o Brasil, que tem uma economia mais complexa. Processos de integração regional exigem mecanismos de compensação que permitam às economias menos estruturadas poder tirar proveito do livre comércio, e não sucumbir com sua adoção. As negociações da ALCA não serão conduzidas em um clima de debate ideológico, mas levarão em conta essencialmente o interesse nacional do Brasil.
Um certo idealismo mudancista se insinua igualmente no programa, ao pretender um eventual governo do PT conduzir uma “aproximação com países de importância regional, como África do Sul, Índia, China e Rússia”, com o objetivo de “construir sólidas relações bilaterais e articular esforços a fim de democratizar as relações internacionais e os organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Banco Mundial”. Por outro lado, a antiga desconfiança em relação ao capital estrangeiro cedeu lugar a uma postura mais equilibrada, uma vez que se afirmou no programa de 2002 que o Brasil “não deve prescindir das empresas, da tecnologia e do capital estrangeiro”, alertando então que os “países que hoje tratam de desenvolver seus mercados internos, como a Índia e a China, não o fazem de costas para o mundo, dispensando capitais e mercados externos”. Mas, se advertia também que as “nações que deram prioridade ao mercado externo, como o Japão e a Coréia, também não descuidaram de desenvolver suas potencialidades internas, a qualidade de vida de seu povo e as formas mais elementares de pequenos negócios agrícolas, comerciais, industriais e de serviços.
O excessivo viés em favor do mercado interno foi corrigido no programa, que tende por outro lado a esquecer a ênfase atribuída pelo governo FHC ao crescimento das exportações: “Sem crescimento dificilmente estaremos imunes à espiral viciosa do desemprego crescente, do desarranjo fiscal, de déficits externos e da incapacidade de honrar os compromissos internos e internacionais. O primeiro passo para crescer é reduzir a atual fragilidade externa. (…) Para combater essa fragilidade, nosso governo vai montar um sistema combinado de crédito e de políticas industriais e tributárias. O objetivo é viabilizar o incremento das exportações, a substituição competitiva de importações e a melhoria da infra-estrutura. Isso deve ser feito tanto por causa da fragilidade das contas externas como porque o Brasil precisa conquistar uma participação mais significativa no comércio mundial, o que o atual governo menosprezou por um longo período”.
Em suma, o candidato do PT realizou um notável percurso em direção de uma postura mais realista no campo da política externa, assim como no terreno mais geral das políticas econômicas, notadamente no que se refere ao relacionamento com o capital estrangeiro e com as instituições financeiras internacionais. Cabe registro, em todo caso, a seu acolhimento, não totalmente desfavorável, em relação ao acordo anunciado pelo governo de mais um pacote de sustentação financeira por parte do FMI, desta vez pela soma inédita de 30 bilhões de dólares. A nota divulgada pela campanha de Lula na ocasião foi bastante cautelosa no que se refere ao cumprimento das obrigações externas, ainda que registrando negativamente o encargo passado ao governo futuro de manter um superávit primário na faixa de pelo menos 3,75% do PIB até 2004. Ao encontrar-se com o presidente FHC, a pedido deste, para tratar da questão do acordo com o FMI, em 19 de agosto, o candidato do PT reiterava seu entendimento de que as dificuldades decorriam do “esgotamento do atual modelo econômico”, confirmando também, com franqueza, seu compromisso afirmado na “Carta ao Povo Brasileiro”: o de que, “se vencermos as eleições começaremos a mudar a política econômica desde o primeiro dia”.
Não obstante, Lula oferecia uma série de sugestões para, no seu entendimento, “ajudar o País a sair da crise”, muitas delas medidas de administração financeira, de política comercial e de reativação da economia. O PT e seu candidato das três disputas anteriores se esforçavam, dessa forma, em provar aos interlocutores sociais – eleitores brasileiros – e aos observadores externos – capitalistas estrangeiros e analistas de Wall Street – que o partido e seus aliados estavam plenamente habilitados a assumir as responsabilidades governamentais e a representar os interesses externos do País com maior dose de realismo econômico e diplomático do que tinha sido o caso nas experiências precedentes.
Essa evolução moderada foi confirmada, finalmente, no primeiro pronunciamento do presidente eleito, em 28 de outubro de 2002. Nesse texto, consciente da gravidade da crise econômica e dos focos de tensão externa remanescente, Lula advertiu: “O Brasil fará a sua parte para superar a crise, mas é essencial que além do apoio de organismos multilaterais, como o FMI, o BID e o BIRD, se restabeleçam as linhas de financiamento para as empresas e para o comércio internacional. Igualmente relevante é avançar nas negociações comerciais internacionais, nas quais os países ricos efetivamente retirem as barreiras protecionistas e os subsídios que penalizam as nossas exportações, principalmente na agricultura.” A segunda frase, particularmente, poderia, sem qualquer mudança, ter sido pronunciada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, por seu chanceler ou por seu ministro da economia.
Também, diferentemente da “ameaça” de cessar as exportações de alimentos até que todos os brasileiros pudessem se alimentar de maneira conveniente, Lula traçou um retrato convincente das possibilidades nessa área: “Nos últimos três anos, com o fim da âncora cambial, aumentamos em mais de 20 milhões de toneladas a nossa safra agrícola. Temos imenso potencial nesse setor para desencadear um amplo programa de combate à fome e exportarmos alimentos que continuam encontrando no protecionismo injusto das grandes potências econômicas um obstáculo que não pouparemos esforços para remover.” Igualmente, não há nada aqui que não poderia receber o endosso – e de fato já integra o discurso – da administração atuante até o final de 2002.
De modo geral, a “nova diplomacia” não parece afastar-se muito da “velha”, com talvez uma afirmação mais enfática dos “interesses nacionais” e da defesa da soberania: “É uma boa hora para reafirmar um compromisso de defesa corajosa de nossa soberania regional. E o faremos buscando construir uma cultura de paz entre as nações, aprofundando a integração econômica e comercial entre os países, resgatando e ampliando o Mercosul como instrumento de integração nacional e implementando uma negociação soberana frente à proposta da ALCA. Vamos fomentar os acordos comerciais bilaterais e lutar para que uma nova ordem econômica internacional diminua as injustiças, a distância crescente entre países ricos e pobres, bem como a instabilidade financeira internacional que tantos prejuízos tem imposto aos países em desenvolvimento Nosso governo será um guardião da Amazônia e da sua biodiversidade. Nosso programa de desenvolvimento, em especial para essa região, será marcada pela responsabilidade ambiental.” Em outros termos, abandonou-se a tese da Alca “anexacionista” em favor de uma negociação séria dos interesses brasileiros nesses acordos de liberalização comercial.
A defesa do multilateralismo não destoa, em praticamente ponto nenhum, das conhecidas posições defendidas tradicionalmente pela diplomacia brasileira: “Queremos impulsionar todas as formas de integração da América Latina que fortaleçam a nossa identidade histórica, social e cultural. Particularmente relevante é buscar parcerias que permitam um combate implacável ao narcotráfico que alicia uma parte da juventude e alimenta o crime organizado. Nosso governo respeitará e procurará fortalecer os organismos internacionais, em particular a ONU e os acordos internacionais relevantes, como o protocolo de Quioto, e o Tribunal Penal Internacional, bem como os acordos de não proliferação de armas nucleares e químicas. Estimularemos a idéia de uma globalização solidária e humanista, na qual os povos dos países pobres possam reverter essa estrutura internacional injusta e excludente.”
Em suma, atendidas algumas ênfases conceituais e a defesa afirmada da soberania nacional, a política externa do governo que inicia seu termo em janeiro de 2003 não destoará, substancialmente, da diplomacia conduzida de maneira bastante profissional pelo Itamaraty no período recente, conformando aliás uma concordância de princípio com a tradicional “diplomacia do desenvolvimento” impulsionada pelo Brasil desde largos anos. No plano operacional, parece inevitável o aumento do diálogo do Itamaraty com o Congresso e outras forças organizadas da sociedade civil, como os sindicatos, as organizações não-governamentais e representantes do mundo acadêmico. Trata-se, em todo caso, de uma saudável inovação para uma instituição cujo moto organizador parece consubstanciar-se na frase “renovar-se na continuidade”. Com talvez alguma surpresas verbais, naturais em momentos de mudança paradigmática como a que vive o Brasil, tanto a inovação como a continuidade parecem garantidas no futuro governo sob a hegemonia do novo centro político brasileiro. As gerações mais jovens do Itamaraty certamente receberam com bastante satisfação a confirmação da mudança política no cenário eleitoral e parecem animadas com as perspectivas de mudança – talvez até geracional – que podem operar-se na Casa de Rio Branco. A confirmar-se a “continuidade da renovação”, o Itamaraty tem todas as condições de emergir, nos próximos quatro anos, com uma nova legitimidade no plano societal interno, ao ser implementada a nova diretriz de colocar, de maneira mais afirmada, a política externa a serviço de um projeto nacional de desenvolvimento econômico e social.

* Paulo Roberto de Almeida é doutor em ciências sociais e autor do livro Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (2001).


[1] Partido dos Trabalhadores, Programa, Manifesto, Estatuto (Brasília: Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, 1984), Programa, pp. 9-13 e Plano de Ação, pp. 14-15.
[2] Cf. GPRI - Grupo de Pesquisas em Relações Internacionais, A Política Externa nas Plataformas dos Candidatos a Presidente do Brasil em 1989. Brasília, Universidade de Brasília, texto processado, dezembro de 1989, sob responsabilidade de alunos de graduação em Relações Internacionais (Antonio Carlos Moraes Lessa et alii), pp. 55-56.
[3] Cf. Boletim ADB. Brasília, ano II, n° 11, março de 1994, pp. 8-9; Lula respondia à pergunta: “A partir da hipótese de ser eleito Presidente da República, qual é a sua visão do que será o Brasil e sua inserção no mundo em dez anos?”.
[4] Cf. Partido dos Trabalhadores, Programa de Governo. Cadernos de Teoria e Debate, março de 1994, pp. 29 e 30; ênfase agregada.