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segunda-feira, 22 de abril de 2024

STF: Como Chegamos Até Aqui? - Livro de Duda Teixeira, resenha por Diogo Schelp (Estadão)

 Análise

Novo livro sobre o STF expõe riscos do poder crescente e caráter elitista da Corte

STF: Como Chegamos Até Aqui?, de Duda Teixeira, conta a história de como o tribunal passou a ocupar espaço político no País; leia análise do livro feita pelo colunista do Estadão 

 

Por Diogo Schelp 

O Estado de S. Paulo, 22/04/2024 


Um estrangeiro desavisado que chegar ao Brasil hoje e se dispuser a observar o debate público ficará surpreso ao perceber que a figura mais falada da arena política — e a mais temida — é um juiz da corte máxima do País. Pensará, também, que a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) é um problema apenas para quem adora espalhar fake news nas redes sociais, torceu para que as Forças Armadas dessem um golpe entre novembro de 2022 e janeiro de 2023 ou se atiraria de um precipício caso o ex-presidente Jair Bolsonaro ordenasse.

Ao se fiar apenas no retrato do momento, as percepções desse estrangeiro estariam completamente equivocadas. As polêmicas que envolvem o STF e especificamente o ministro Alexandre de Moraes não afetam apenas a direita bolsonarista e nem vão se encerrar quando o bilionário Elon Musk resolver procurar outros alvos para suas postagens.

O pior é que uma boa parcela dos brasileiros sofre do mesmo equívoco do tal estrangeiro fictício, presa que está no retrato do momento da disputa entre parlamentares de oposição e STF ou dos xingamentos de bolsonaristas a ministros da corte nas redes sociais. É preciso olhar para o passado recente e entender como chegamos até aqui. Ao fazê-lo, descobrimos que o poder individual e coletivo dos onze integrantes do STF cresce gradualmente há anos, em perfeita desarmonia com o Legislativo e o Executivo, e que isso, a depender das circunstâncias, afeta todo o espectro político — além de contribuir para perpetuar um dos aspectos da desigualdade social no País, o do acesso à Justiça.

Eis o que demonstra, com muito didatismo, o livro STF: Como Chegamos Até Aqui? (Avis Rara; 128 páginas; R$ 39,90), do jornalista Duda Teixeira, que chega esta semana às livrarias. Não se trata de uma obra com histórias de bastidores da nossa Corte Suprema, mas de um livro-reportagem que recorre a documentos históricos e a entrevistas com juízes, desembargadores, advogados e acadêmicos, entre historiadores e antropólogos, para entender o que levou à hipertrofia do tribunal constitucional, como isso impacta na política e na vida nacional e o que ainda pode ser feito a respeito.

O STF nasceu em 1890, inspirado na Suprema Corte americana, para guardar e aplicar a Constituição, intervindo apenas “em espécie e por provocação de parte”. Ou seja, nada dessa história de abrir investigações, iniciar processos, proibir a circulação de informações ou mandar prender gente por conta própria como vemos atualmente. No que se refere às regras para que os Três Poderes pudessem impor freios uns aos outros de forma equilibrada, as coisas por aqui não saíram tão bem quanto nos Estados Unidos. No período em que os americanos tiveram uma constituição, os brasileiros tiveram sete.

Ao longo da história da nossa República, o STF teve momentos melhores e outros piores, como durante a última ditadura, quando a composição do tribunal foi alterado ao gosto dos militares por meio da mudança no número de ministros e da cassação de alguns integrantes. Mas foi a Constituição de 1988 que lançou as sementes para que a corte fosse adquirindo um protagonismo e um poder crescentes ao longo das décadas seguintes. Para começar, “a Carta ampliou a quantidade de instituições que podem perguntar ao STF se uma lei é ou não constitucional”, escreve Teixeira. Antes, só a Procuradoria-Geral da República podia fazer isso. Atualmente, qualquer partido nanico consegue inundar o STF com questionamentos, como de fato acontece.

Além disso, há centenas de políticos e autoridades que só podem ser julgados pelo STF quando acusados de algum crime — é o famoso foro privilegiado. Os ministros do STF também precisam decidir sobre pedidos de habeas corpus e representam a quarta (!) e última instância judicial do País, caso haja alguma questão constitucional envolvida em processos que chegam de todo o Judiciário.

Pouco a pouco, a corte foi adquirindo a tradição de assumir papeis que cabem ao Legislativo e ao Executivo sob a desculpa de decidir a constitucionalidade de leis e políticas públicas. Isso começou a ocorrer com mais frequência já no governo de Fernando Henrique Cardoso, ganhou força nos primeiros mandatos de Lula e saiu do controle a partir da gestão de Jair Bolsonaro, que por não conseguir lidar com o Congresso deixava que tudo fosse judicializado.

O livro é rico em exemplos dos avanços do STF sobre atribuições do governo ou do Parlamento. Analisados em conjunto e em uma perspectiva cronológica, permitem compreender como a corte ganhou musculatura. Tem para todos os gostos. Há, por exemplo, o julgamento sobre pesquisas com células-tronco, em 2008, em que o STF passou por cima de uma lei discutida e aprovada no Parlamento, enquanto um dos ministros tentou tipificar um novo crime em cima de suas próprias suposições morais e filosóficas e outro aproveitou a oportunidade para expandir as situações em que o aborto é permitido. Mais recentemente, há a discussão atual em torno da Lei Antidrogas, com os integrantes da corte se dispondo a definir detalhes como a quantidade de maconha que separa um usuário de um traficante.

Decisões contraditórias da corte, às vezes com intervalos curtos de tempo e com idas e vindas de um mesmo ministro, são citadas em bom número no livro. Assim, o STF muda o entendimento sobre como deve ser um processo de impeachment de um presidente (Fernando Collor e Dilma Rousseff não tiveram o mesmo tratamento), da mesma forma que é capaz de aplicar com maior ou menor liberalidade uma mesma regra constitucional, a de que parlamentares só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável, a depender das circunstâncias políticas.

Teixeira argumenta que, pela Constituição, o senador petista Delcídio Amaral não poderia ter sido preso em 2015, nem o deputado bolsonarista Daniel Silveira, em 2021. Em ambos os casos, ministros do STF fizeram um contorcionismo interpretativo para considerar que os crimes eram permanentes, permitindo a prisão “em flagrante” dos políticos.

Em outro exemplo, um entendimento da Corte que serviu para afastar do cargo o deputado Eduardo Cunha, em 2016, não valeu depois para os senadores Renan Calheiros e Aécio Neves. E praticamente a mesma composição do STF, com um intervalo de poucos anos, suspendeu a nomeação de Lula como ministro de Dilma, de Cristiane Brasil para o Ministério do Trabalho de Michel Temer e de Alexandre Ramagem como diretor da Polícia Federal sob Bolsonaro, em três episódios de interferência indevida e injustificável em prerrogativas do presidente da República.

Fica claro no livro que os ministros do STF se permitem tomar decisões disparatadas como essas — julgando não com base no Direito, mas em interesses pessoais ou políticos — por uma variedade de razões. Entre elas está o fato de que a Corte cria as próprias regras sobre como proceder em determinadas situações. Em 2023, por exemplo, o tribunal anulou trecho do Código de Processo Civil que impedia juízes de atuar em casos a cargo de bancas de advocacia de parentes (os escritórios das esposas de quatro ministros têm processos na Corte, alguns envolvendo disputas bilionárias).

A outra é que, por não haver nenhuma instância acima do STF, seus integrantes dão de ombros para regras da magistratura, para prazos e para procedimentos sem precisar temer qualquer sanção. É o que permite que eles abram processos de ofício e distribuam para o relator que quiserem, sem obedecer à norma do sorteio, como fez o ministro Dias Toffoli com o inquérito das fake news, também chamado de inquérito do fim do mundo.

Também se sobressaem o fator vaidade e a questão do vínculos políticos. No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, muitos ministros do STF falam fora dos autos em entrevistas, palestras e aulas e apreciam os holofotes dos julgamentos televisionados. Ao mesmo tempo, não se privam da companhia de figuras influentes da política nacional ou de empresários em festas ou viagens particulares — mesmo que essas pessoas enfrentem processos no próprio STF.

O autor aborda também o acesso privilegiado de certos advogados a ministros do Supremo, prática conhecida jocosamente como “embargos auriculares”. Ou seja, a imparcialidade dos integrantes da nossa mais alta Corte é colocada em dúvida, com boas razões, com frequência. E eles não parecem se incomodar muito com isso. Desde que, claro, ninguém diga nada.

Críticas diretas a ministros do STF são muito mal recebidas. Alguns deles tratam de processar os autores das opiniões negativas na primeira instância da Justiça, contando com a alta probabilidade de que os juízes pensarão duas vezes antes de tomar uma decisão que vá contra aquele que está no topo da magistratura.

Outros partem para algo mais rápido e efetivo: a censura. Foi uma reportagem sobre Dias Toffoli na revista Crusoé, da qual Teixeira é editor, o que motivou, no início, o interminável inquérito das fake news. E foram críticas diretas a Alexandre de Moraes que o levaram, em alguns dos casos que agora vêm à tona com mais detalhes, a ordenar a suspensão de perfis ou conteúdos das redes sociais.

Essa postura dos ministros do STF, que deveriam entender que receber críticas faz parte da descrição do cargo, é comparada por Teixeira ao crime contra a “pessoa do rei ou seu Estado real”, previsto nas Ordenações Filipinas, conjunto de leis da coroa portuguesa que vigorou entre os séculos XVII e XIX. Dizia seu livro quinto, título VI, que o “lesa-majestade (...) é um crime tão grave e abominável, que os antigos sabedores o estranharam e o comparavam à lepra”.

A Suprema Corte brasileira que emerge do livro STF — Como chegamos até aqui é implacável com os pobres, como mostram exemplos de penas duras que foram mantidas para ladrões de galinhas, de bermudas ou de macacos automotivos, e garantista com poderosos, a ponto, escreve o autor, de reverter entendimento anterior sobre a possibilidade de prisão em segunda instância para favorecer Lula, em 2019, “fulanizando” a jurisprudência. Compreender e reconhecer seus excessos interessa a todos os brasileiros, independente de posicionamento político. E, apesar dos ecos das Ordenações Filipinas, criticar abertamente sua atuação ainda é a melhor forma de pressionar seus integrantes a conter o próprio poder.

Análise por Diogo Schelp 

Jornalista e comentarista político, foi editor executivo da Veja entre 2012 e 2018. Posteriormente, foi redator-chefe da Istoé, colunista de política do UOL e comentarista da Jovem Pan News. É mestre em Relações Internacionais pela USP.

 

 

terça-feira, 9 de abril de 2024

Diplomacia ideologizada - Denis Lerrer Rosenfield ( Estadão)

 ESPAÇO ABERTO

Diplomacia ideologizada

O atual governo, de repente, torna-se um baluarte do antiocidentalismo, sob a máscara esquerdista da luta contra o Imperialismo norte-americano'

Denis Lerrer Rosenfield 
O Estado de S. Paulo, 8/04/2024

Em períodos normais, as relações externas do País têm pouco impacto sobre a política interna. Presidentes e diplomatas estão centrados na defesa dos interesses estratégicos do Brasil, de seus interesses comerciais e em sua inserção num mundo cada vez mais globalizado. Isso se traduz pelo fato de que questões diplomáticas se tornam assuntos restritos de especialistas e do Itamaraty. Saliente-se a neutralidade e a imparcialidade, enquanto princípios norteadores, do trabalho de nossa diplomacia. Todavia, a diplomacia presidencial está tendo como efeito a perda de popularidade do presidente.

A causa se deve a que o presidente Lula e o PT geraram uma inflexão desta política diplomática, praticamente operando uma ruptura, embora não cansem de dizer que estão apenas fazendo uma correção de rota. Se há correção de rota, caberia determinar se há rota alguma no que estão apresentando, salvo se a virmos sob o prisma do apoio a presidentes autocráticos, avessos à democracia, e da crítica feroz aos valores ocidentais, aqueles mesmos que introduziram no mundo os princípios da liberdade e da igualdade. Chega a ser lamentável a fraternidade introduzida com os terroristas do Hamas, com o ditador Nicolás Maduro, com Vladimir Putin e Cuba.

De repente, o atual governo torna-se um baluarte do antiocidentalismo. Tudo isso sob a máscara esquerdista da luta contra o "imperialismo norte americano", como se nosso futuro estivesse atrelado ao fundamentalismo islâmico, do Hamas ou do Irã, aos valores da "Grande Nação" russa, eurasiana e não ocidental, ou ao esquerdismo venezuelano.

Dentre as aberrações diplomáticas, fica difícil privilegiar uma ou outra. A de Maduro é um caso contumaz de apreço pela violência, pela ditadura e pela mais cruel repressão, e isso desde o primeiro governo Lula. Segue coerente! Seria, ao arrepio de toda a lógica, uma "democracia" por realizar eleições fraudulentas, sem a participação legítima da oposição e sem imprensa e meios de comunicação livres.

Ademais, a população venezuelana vive sob a miséria e a violência, como se isso fosse, então, o reino do socialismo/comunismo. Se esse é o reino da igualdade, melhor os eleitores brasileiros se organizarem para o próximo pleito eleitoral, pois não é isso que almejam.

Ainda sob a ótica diplomática, bastou o Itamaraty fazer uma nota amiga, tímida, solidária com Maduro e sua trupe, quase se desculpando por exprimir uma pequena discordância, para que o ditador e seu ministro de Relações Exteriores dessem um tapa na cara do Brasil. E o que fez o presidente brasileiro? Calou-se!

O caso da Rússia é um caso à parte, pois a ditadura de Putin é considerada como se fosse de esquerda, quando defende abertamente valores de extrema direita, ancorados na Igreja Ortodoxa, na repressão indiscriminada a quaisquer opositores, em valores antiocidentais, propugnando pela ideia de uma civilização russa que se projetaria para o exterior, sendo a invasão da Ucrânia o seu primeiro passo e tendo em Alexander Dugin o seu mais proeminente pensador. Lula e o PT são uma amostra de daltonismo político, nem mais sabendo distinguir esquerda de direita.

Cuba é outro exemplo de um amor incontido. A ditadura castrista e seus herdeiros não cessam de submeter a sua população à miséria, à repressão policial, à ausência de liberdade, com uso intensivo de prisões e tortura, se for o caso. Essa ilha é tão feliz sob o domínio comunista que os seus servos (não se pode considerá-los cidadãos) têm um único objetivo: fugir do paraíso. Recentemente, uma dirigente petista chegou a dizer que a situação cubana se deve ao "bloqueio" americano. Não há nenhum bloqueio, mas embargo! A ilha não está cercada militarmente, pode comercializar com quem quiser, salvo com os Estados Unidos e com empresas americanas no mundo. Por que não se torna próspera negociando com a Rússia, a China e o Irã?

A visita do presidente Emmanuel Macron ao Brasil, por sua vez, foi constrangedora. Os dois presidentes não negociaram o que é mais importante para o Brasil: o acordo Mercosul-União Europeia. O presidente francês deu-se, inclusive, ao luxo de dizer que a proposta atual, fruto de 20 anos de laboriosas negociações, era "péssima". Tudo deveria recomeçar, provavelmente para atender aos interesses dos agricultores franceses, que nem querem ouvir falar de restrições ambientais, pelos próximos 20 anos. Lula e Macron ficaram saltitando de mãos dadas como namorados e fazendo fotos com indígenas na Amazônia. Os franceses adoraram as fotos! Paradoxalmente, Lula colocou-se na posição do colonizado e Macron, do colonizador.

Lula, até agora, não se desculpou por sua infame comparação entre o Holocausto judeu sob o nazismo e a autodefesa de Israel, operando uma guerra urbana, em meio a túneis e com o Hamas utilizando a sua população como escudo humano. Hospitais tornam-se centros do terror, em flagrante crime de guerra. Entretanto, numa completa inversão, Israel é que seria culpado pela "destruição de hospitais". Vale aqui, também, o antiocidentalismo, senão o antissemitismo.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Estadão diz que, sob Lula, Brasil é “impotência regional medíocre” - Editorial Estadão

Estadão diz que, sob Lula, Brasil é “impotência regional medíocre”

Jornal considera o petista rígido com a Europa e o Oriente, mas omisso em relação ao próprio continente

Pleno News, 8/04/2024

https://pleno.news/brasil/politica-nacional/estadao-diz-que-sob-lula-brasil-e-impotencia-regional-mediocre.html?utm_source=pushnotification&utm_medium=notificacao 

O jornal O Estado de S.Paulo chamou o Brasil sob a gestão Lula (PT) de “impotência regional medíocre” ao observar que o país permanece omisso diante dos abusos cometidos pelo ditador Nicolás Maduro, na Venezuela. No texto opinativo, o periódico aponta que, enquanto o petista comete exageros ao falar da Europa e do Oriente Médio, ele impõe um “silêncio ensurdecedor ao Itamaraty” em relação ao próprio continente Sul Americano.

O editorial contextualiza que Maduro, após impedir que o principal grupo de oposição se candidatasse às eleições, decidiu agora “legalizar” a repressão por meio de uma lei “Contra o Fascismo, Neofascismo e Expressões Similares”. Através da nova legislação, qualquer manifestação ou movimento que o regime considerar “fascista” poderar ser punido com mais de 8 anos de cadeia.

– A ironia é que, se houvesse Justiça independente na Venezuela, Maduro e seus bate-paus seriam os primeiros a ser punidos por esses crimes, a começar pelo último. Não há na América do Sul nada mais similar ao regime fascista de Mussolini que o regime chavista – avalia o jornal.

O Estadão também apontou que Maduro promulgou a lei criando o Estado venezuelano da “Guiana Essequiba”, visando anexar 70% do território do país vizinho. Apesar disso, o que de fato surpreende o veículo de imprensa não é a postura de Maduro e sim a omissão da parte de Lula.

– A condenação da comunidade internacional civilizada é unânime, inclusive de lideranças de esquerda latino-americanas. Todos os países do Mercosul, com exceção do Brasil, condenaram sem meias palavras a orgia totalitária chavista. (…) Lula rebaixou o Estado brasileiro a uma usina de panos quentes. No improviso de uma entrevista coletiva, Lula se descuidou de sua habitual hipocrisia deixando escapar que considera “grave” o bloqueio à candidatura da substituta de Corina, mas, oficialmente, o máximo que permitiu à sua chancelaria foi uma nota de “preocupação”. O resto é silêncio, mesmo ante a ameaça de um conflito regional – assinalou o periódico.

Por fim, o Estadão manifesta que a política externa brasileira foi “sequestrada pelas afinidades pessoais e ideológicas de Lula” e está “desmoralizada ante a comunidade internacional”.


sábado, 6 de abril de 2024

O Itamaraty lulopetista choca pela desfaçatez das posições em favor de criminosos de guerra e violadores dos direitos humanos (Estadão)

Brasil muda de posição e se abstém sobre inquérito sobre crimes na guerra da Ucrânia

Lula: "Conheci o Putin no G7, no G20, na ONU. Nós fazemos partes de várias organizações internacionais que você tem a participação heterogênea de muitos países, muita gente que você não concorda, mas faz parte", 

Estadão, 5/04/2023

O governo brasileiro se absteve numa votação no Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas e deixou de apoiar um pedido de extensão do prazo de trabalho da comissão de inquérito sobre crimes de guerra na Ucrânia. A comissão havia sido criada em março de 2022, com voto favorável do Brasil, após a invasão do território ucraniano por tropas russas.

O Brasil foi um dos 17 países que se abstiveram na votação, realizada nesta quinta-feira, dia 4, em Genebra, na Suíça. A resolução, no entanto, foi aprovada por 27 votos a favor e 3 contra.

Com isso o mandato da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Ucrânia foi renovado por um novo período de um ano. Em abril de 2023, a comissão de inquérito havia sido postergada por 12 meses - ela seria encerrada caso não recebesse a nova extensão do mandato agora. No ano passado, o Brasil não era parte do conselho e portanto não participou da votação.

O Estadão pediu esclarecimentos ao Itamaraty sobre o que motivou a abstenção do Brasil e questionou se o posicionamento não se choca com políticas do atual governo de promoção dos direitos humanos. Até o momento não houve resposta. O espaço segue aberto para manifestação.

Durante a votação nesta quinta-feira, o embaixador Tovar da Silva Nunes, representante permanente do Brasil junto às Nações Unidas em Genebra, afirmou que os termos da resolução aprovada poderiam impedir o diálogo entre os dois lados na guerra.

Tovar Nunes ponderou que o país manifesta "profunda preocupação" com a situação na Ucrânia, "particularmente com as alegadas violações envolvendo crianças deslocadas e deportadas, ataques a civis e o crescente número de mortes".

"No entanto, permanecemos descontentes com o texto diante de nós. A resolução é desequilibrada e coloca o fardo das violações dos direitos humanos apenas em um lado do conflito, não deixando espaço suficiente para o diálogo que poderia criar condições para prevenir violações de direitos humanos e construir uma paz duradoura na região", afirmou o chefe da missão brasileira em Genebra.

"Desde a sua criação em 2002, o Brasil argumentou que a comissão de inquérito não parecia ser o mecanismo adequado para revisar os fatos no terreno. No momento de sua concepção, referências a processos judiciais futuros antecipavam o resultado das investigações propostas. À luz desses fatos, o Brasil vai se abster nesta resolução."

O embaixador também questionou menções no texto da resolução aprovada a iniciativas jurídicas contra a Rússia, no TPI e na Corte Internacional de Justiça (CIJ), dizendo que poderiam ser "prejudiciais".

A diplomacia de Kiev rebateu o argumento brasileiro de que o conteúdo da proposta fosse tendencioso ou impedisse o diálogo. A representante da Ucrânia disse que o único pedido era que o conselho mantivesse o monitoramento das "atrocidades cometidas pela agressão russa" e que o mecanismo internacional independente verificasse a dor enfrentada diariamente pelo povo ucraniano.

Na mesma resolução aprovada, o CDH da ONU cobrou que o governo Vladimir Putin pare imediatamente violações de direito humanos e abusos contra a lei humanitária internacional na Ucrânia. Exigiu também a retirada rápida, do território ucraniano, das tropas militares invasoras e de grupos mercenários aliados de Moscou. E cobrou que o governo Putin não recrute ilegalmente residentes do território invadido para suas Forças Armadas.

O CDH disse ainda que a Rússia deve parar a deportação forçada e ilegal de civis do território ucraniano. Putin é alvo de um mandado de prisão em aberto, expedido pelo Tribunal Penal Internacional, acusado de transferência forçada de crianças, um crime de guerra.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva tem feito uma série de gestos em favor da Rússia. Autoridades do governo têm dito, por exemplo, que Putin seria bem-vindo ao país para a cúpula do G20 e argumentam que ele gozaria de certas prerrogativas e imunidades por ser chefe de Estado.

Em uma discussão paralela, na Comissão de Direito Internacional da ONU, o Brasil se posicionou a favor da imunidade de autoridades governamentais e contra o alcance de ordens de prisão do TPI a países - e a seus representantes - que não integrem o estatuto fundador da corte, como é o caso da Rússia desde 2016. O Itamaraty, no entanto, argumento que o debate é genérico e não teria implicação no caso da vinda de Putin ao Rio para o G20.

O governo brasileiro tem objetado tentativas de países aliados da Ucrânia e adversários de Moscou, entre eles os EUA e membros do G-7, de excluir Putin da arena internacional. O Brasil também se opôs a sanções e, em mão contrária, ampliou o comércio com os russos, que atingiu US$ 11 bilhões no ano passado.

Em setembro de 2023, no G20 da Índia, Lula defendeu em entrevista a uma rede de TV indiana que Putin não seria preso no país. Depois, em entrevista coletiva, voltou atrás de criar obstáculos a uma eventual ordem de prisão no país e afirmou que o caso caberia à Justiça brasileira.

Na esteira da controvérsia, o governo já discutiu inclusive a possibilidade de reavaliar a participação no Estatuto de Roma, que criou o TPI, por considerar que ele não funciona de forma adequada. A revisão tem apoio de Celso Amorim.

"Conheci o Putin no G7, no G20, na ONU. Nós fazemos partes de várias organizações internacionais que você tem a participação heterogênea de muitos países, muita gente que você não concorda, mas faz parte", argumentou Lula, na quinta-feira, dia 28. "Faz parte do processo democrático conviver democraticamente na adversidade. Não são fóruns de iguais, são de Estados, de países e temos de respeitar o direito de cada um fazer o que quer no seu país, criticando o que não concorda."

Os posicionamentos de Lula a respeito da guerra na Ucrânia afetaram a popularidade do presidente e provocaram a impressão, entre parceiros ocidentais, que ele apoia o regime russo. Lula já cogitou que a Ucrânia deveria ceder a Crimeia para firmar um acordo de paz e disse que tanto Putin quanto o presidente ucraniano Volodimir Zelenski tinham o mesmo grau de responsabilidade pela guerra. A Ucrânia, porém, foi invadida unilateralmente pelos russos, em 24 de fevereiro de 2022.

Ele afirmou ainda que os EUA e países europeus incentivavam a guerra ao fornecer armas e dinheiro para defesa de Kiev. Lula vetou a exportação de equipamentos bélicos fabricados no Brasil. O petista fracassou na tentativa de se colocar como potencial mediador do conflito.

Na semana passada, disse ainda que não era obrigado a ter o mesmo "nervosismo" dos europeus com Putin e disse que os "bicudos vão ter de se entender". O presidente e o PT enviaram cartas de cumprimentos pela reeleição de Putin, numa eleição sem controlada que foi alvo de contestação internacional.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Macron fez Lula avançar um pouco mais do que gostaria na questão das eleições venezuelanas - Lourival Sant'Ana (Estadão)

A visita de Macron e o tímido afastamento de Lula da ditadura venezuelana 

Política externa brasileira teve um reencontro com o Iluminismo com a visita do presidente francês. É cedo para dizer se foi o despertar de um longo e profundo sono dogmático 

Foto do author Lourival Sant'Anna

Por Lourival Sant'Anna ( ESTADAO / 31mar24)

A política externa brasileira teve um reencontro com o Iluminismo. Se foi o despertar de um longo e profundo sono dogmático ou apenas um breve clarão em meio às trevas, é cedo para dizer. Em três dias de visita, Emmanuel Macron percorreu sorridentemente com Lula os eixos estratégicos das relações Brasil-França. O presidente brasileiro aproveitou o instante de lucidez até para se desmarcar, ainda que timidamente, da ditadura venezuelana.

Lula e Macron têm vários pontos em comum. Ambos enfrentam uma oposição autoritária, governam países amazônicos, recusam-se a se alinhar com os EUA e detestam Jair Bolsonaro.

Eles se comprometeram em Belém a investir 1 bilhão de euros em iniciativas de conservação e desenvolvimento sustentável nos próximos quatro anos na Amazônia brasileira e na Guiana Francesa. Isso é quase três vezes todo o Fundo Amazônia.

No fórum empresarial Brasil-França, em São Paulo, com ênfase na transição energética, Macron celebrou aumento de 26% nos investimentos franceses no Brasil, ultrapassando estoque de 40 bilhões de euros. Mais de 1.100 filiais de empresas francesas atuam no Brasil. Com mais de meio milhão de contratados, os franceses são os maiores empregadores estrangeiros aqui.

Até mesmo em um ponto prejudicial aos interesses do Brasil, a implosão do acordo Mercosul-União Europeia, os dois presidentes estão alinhados. Macron acredita no livre comércio, mas não encontra condições políticas para fazer frente ao protecionismo agrícola francês, explorado por sua rival Marine Le Pen.

Lula não acredita em livre comércio. Há mais de 20 anos ele protege os setores da indústria e dos serviços da competição externa. Em seu primeiro mandato, torpedeou a criação da Área de Livre Comércio das Américas.

Lula respondeu ao banimento europeu às importações de commodities associadas ao desmatamento com outro obstáculo: a proteção das compras governamentais. Assim, os dois amigos podem culpar um ao outro pelo sepultamento do acordo.

No Rio, ambos viram a Marinha brasileira lançar ao mar o submarino Tonelero, o terceiro construído com tecnologia francesa. Macron afirmou que a França não transferiu tanta tecnologia de defesa a nenhum outro país. A parceria envolve a construção de cinco submarinos, o último deles com propulsão nuclear.

O Brasil tem outros cinco submarinos, fruto de parceria com a Alemanha, que também compartilhou tecnologia. É o único país do Hemisfério Sul com capacidade de construir submarinos. Essas armas são estratégicas para a proteção da vasta e rica costa brasileira. A propulsão nuclear eleva sua autonomia e reforça seu maior ativo: a invisibilidade.

Noutro lampejo, o presidente brasileiro abandonou o discurso contra a aquisição de armas, que o levou no passado recente a acusar Estados Unidos e Europa de terem interesse em fomentar a agressão russa contra a Ucrânia. “Queremos ter conhecimento para garantir a todos os países que querem paz que saibam que o Brasil estará ao lado de todos porque a guerra não constrói, a guerra destrói”, discursou.

É o poder de dissuasão, e não a retórica pacifista, que previne guerras. O escritor romano Flávio Vegécio já sabia disso no século 4: “Aquele que deseja a paz precisa se preparar para a guerra”.

Macron afirmou que potências pacíficas como França e Brasil têm de “falar com firmeza e força”, caso não queiram ser “lacaios” de outras nações: “Nós temos a mesma visão de mundo. Rejeitamos um mundo que seja prisioneiro da conflitualidade entre duas grandes potências. E temos de defender nossa independência, nossa soberania e o direito internacional”.

Macron é herdeiro de uma antiga tradição francesa, que preconiza um sistema de defesa europeu robusto e independente dos EUA. A França não faz parte da estrutura militar da Otan, mesmo sendo aliada. Esse propósito se tornou mais crítico para a Europa com a ascensão de Donald Trump, que ameaça violar as alianças de defesa dos EUA.

Ao mesmo tempo, Macron é um dos líderes da ajuda militar à Ucrânia, e tem afirmado que a Rússia precisa ser derrotada. Mas não se espera que Lula entenda isso. O Brasil não é relevante nessa questão.

Na região em que o Brasil pode exercer um papel, a América Latina, Lula parece ter entendido algo. “Não tem explicação jurídica, política, você proibir um adversário de ser candidato”, disse ele sobre a exclusão da candidata da oposição venezuelana, Corina Yoris, por sua vez substituta da verdadeira candidata impedida de disputar a eleição presidencial, María Corina Machado.

Macron precisa voltar mais vezes.

domingo, 24 de março de 2024

Por que o Brasil cresce pouco: pela falta de investimento, o físico e o social - Rolf Kuntz (Estadão)

 Interessante artigo do Rolf Kuntz, publicado no Estadão de hoje. Aponta um problema excluído das análises dos economistas do governo e do PT : a pífia taxa de investimento – 14,7% do Produto Interno Bruto (PIB) estimada pela Fundação Getúlio Vargas para o mês de janeiro ( menor que a taxa média mensal, de 16,3%, do período iniciado em janeiro de 2015

Maurício David

Novo país, só com novo crescimento

Se quiser produzir, em seu governo, um legado relevante, o presidente Lula terá de se empenhar nestes dois investimentos, o físico e o social 

Por Rolf Kuntz 

O Estado de S. Paulo, 24/03/2024


O morticínio em Gaza, a guerra na Ucrânia e as lambanças atribuídas ao ex-presidente Jair Bolsonaro são muito mais interessantes que a pífia taxa de investimento – 14,7% do Produto Interno Bruto (PIB) – estimada para o mês de janeiro pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mas os cricris da imprensa, da Faria Lima e da academia podem apontar mais um detalhe sinistro. Além de pífia, essa taxa é menor que a mísera média mensal, de 16,3%, do período iniciado em janeiro de 2015. O presidente Lula pode ter excelentes motivos, ainda mais como presidente do Grupo dos 20, para dar mais atenção àqueles assuntos do que a uns números medíocres. Ministros da área econômica talvez possam, ou devam, gastar algum tempo com essas ninharias. Mas serão, mesmo, ninharias?

O otimismo presidencial só parece ter sido afetado, nos últimos dias, pela perda de popularidade apontada por algumas pesquisas. Ele cobrou mais trabalho dos ministros, mais atenção à saúde e maior esforço de comunicação. Maior empenho pode ser uma boa ideia, principalmente se houver objetivos claros e estratégias bem definidas. Os otimistas ainda esperam esses detalhes. O presidente pode, com razão, festejar o crescimento econômico de 2,9% no ano passado, mas o horizonte está pouco claro neste momento.

Os sinais positivos observados no começo do ano ainda são pouco entusiasmantes. A recuperação da indústria permanece como um dos desafios principais. A produção industrial diminuiu 1,6% em janeiro e acumulou avanço de 0,4% em 12 meses. Mas ainda ficou 0,8% abaixo do patamar pré-pandemia (começo de 2020) e em nível 17,5% inferior ao recorde alcançado em maio de 2011. Em fevereiro novo recuo deve ter ocorrido, segundo estimativa da Confederação Nacional da Indústria (CNI). O País continua incapaz, tudo indica, de reverter a desindustrialização, mas o assunto foi pelo menos incluído na pauta do governo.

A produção deve ter aumentado 0,6% em janeiro, segundo o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br). O Monitor do PIB, atualizado mensalmente pela FGV, indicou expansão de apenas 0,1%, liderada pela agropecuária e pelos serviços. Mas a economia rural, embora ainda vigorosa, deve crescer menos neste ano que em 2023, segundo as últimas projeções. O avanço geral será mais dependente da indústria do que vem sendo há alguns anos. Mas o setor industrial dependerá de renovação e de muito investimento para reassumir, por um período longo, o velho papel de principal motor do crescimento.

Contudo, a formação de capital produtivo na indústria e na maior parte da infraestrutura tem sido, neste século, muito limitada. Tem-se investido muito mais na modernização e na expansão produtiva do agronegócio. Também os serviços têm avançado mais que o setor industrial na expansão da capacidade e na renovação. Somadas todas as parcelas, a taxa de investimento da economia continua muito abaixo da necessária para sustentar um crescimento mais vigoroso. A média do período iniciado em 2015 foi estimada pela FGV em 16,3% do PIB. É uma taxa muito inferior, portanto, àquelas observadas no mundo emergente, com frequências superiores a 20% do PIB.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conhece a importância da formação de capital produtivo, mas tem-se mostrado, na prática, pouco propenso a cuidar do assunto de uma forma ampla. Não se vai longe quando se concentra o esforço nos chamados “investimentos sociais” e pouco se trabalha pelos outros objetivos. Uma boa malha de transportes – para citar um exemplo fácil – pode beneficiar tanto o grande empresário rural ou industrial quanto as populações mais necessitadas.

A atenção a essas populações depende, é claro, de políticas especiais e às vezes complexas, mas um governo eficiente deve buscar ao mesmo tempo o aumento da produção e a promoção da igualdade. Importantes em todo o mundo, as políticas educacionais e de formação de mão de obra são especialmente relevantes no Brasil, assim como o saneamento e a promoção da saúde pública. O setor privado pode ter papel importante nessas tarefas, mas a responsabilidade básica e intransferível é do setor público.

Para isso é preciso gastar muito, com muita competência e com muito cuidado na fixação de objetivos, porque o dinheiro é escasso e o orçamento público é muito ruim. Recursos públicos são engessados, a gestão de pessoal é pouco flexível e a elaboração orçamentária é sujeita à apropriação de verbas para fins pessoais de parlamentares. Num país onde faltam recursos para investir em equipamentos materiais, pode ser especialmente difícil mobilizar capital e vontades para o desenvolvimento humano. Se quiser produzir, em seu governo, um legado relevante, o presidente Lula terá de se empenhar nestes dois investimentos, o físico e o social, ambos essenciais para a construção de um país mais produtivo e mais moderno em todos os sentidos. Se engajar todos os ministros nessa aventura, ainda terá de batalhar pelo apoio, muito mais difícil, de parlamentares muito raramente voltados para grandes questões nacionais.

*JORNALISTA


Putin e os gays terroristas - Lourival Sant'Ana (Estadão)

Putin cobra caro em seu papel de herói 

Lourival Sant’Ana

O Estado de S. Paulo, 24/03/2024

 

O atentado contra o principal centro de convenções de Moscou, na sexta-feira, coincidiu com a inclusão, pelo governo russo, dos defensores dos direitos dos homossexuais na lista de terroristas.

Os sacrifícios dos russos sob a autocracia de Vladimir Putin se agravam e, paradoxalmente, sua dependência dele.

Ao menos 133 pessoas morreram.

O Estado Islâmico Khorasan (Isis-K), filial do grupo no Afeganistão, reivindicou a autoria. A mídia estatal russa anunciou que os quatro suspeitos são do Tajiquistão, ex-república soviética de maioria muçulmana.

Em discurso à nação, Putin afirmou que os quatro autores do atentado foram detidos.

"Eles tentaram se esconder e se deslocaram rumo à Ucrânia, onde, de acordo com dados preliminares, uma janela estava preparada para eles do lado ucraniano para cruzarem a fronteira." Prevendo que o Kremlin tentaria envolvê-lo, o governo ucraniano negou participação logo depois do atentado. A Ucrânia tem feito ataques com mísseis e drones aéreos e marítimos contra alvos russos.

Milícias russas contrárias ao regime atacam áreas na Rússia.

São ações militares convencionais, não terroristas.

Em contrapartida, o Isis-K atacou a Embaixada da Rússia em Cabul, em 2022, e distribui propaganda antirrussa no Afeganistão.

O apoio militar russo à ditadura de Bashar Assad foi decisivo para a derrota do Estado Islâmico na Síria. No dia 7, o FSB, serviço secreto russo, anunciou ter prevenido um ataque de uma célula do EI contra uma sinagoga em Moscou.

Os 24 anos de Putin no poder são marcados pelo uso político do terrorismo. Em setembro de 1999, explosões em quatro prédios residenciais nas cidades de Moscou, Buynaksk e Volgodonska deixaram 307 mortos e mil feridos. O quinto atentado, em Ryazan, foi frustrado: um casal foi flagrado de madrugada por um morador colocando sacos de explosivos no porão do prédio.

A polícia constatou que os explosivos, detonadores, e sua instalação no porão seguiam o padrão dos outros atentados.

A testemunha anotou a placa do carro. O casal e o motorista foram detidos e identificados como agentes do FSB. O caso foi abafado.

Na época, Putin era primeiro-ministro, depois de ter sido diretor do FSB e secretário do Conselho de Segurança, no governo de Boris Yeltsin. Putin atribuiu os atentados a separatistas da Chechênia, república russa de maioria muçulmana.

Centenas de chechenos foram presos sem provas.

Putin lançou a segunda guerra da Chechênia, tornou-se herói nacional e se elegeu presidente em março de 2000, em eleição antecipada pela renúncia de Yeltsin. A Chechênia foi arrasada pelas Forças Armadas russas, que pela lei não poderiam atuar dentro da Rússia.

As táticas seriam repetidas em Geórgia, Síria e Ucrânia.


Em 2002, 40 terroristas chechenos invadiram um teatro de Moscou durante a apresentação de um musical, tomaram 850 reféns e plantaram bombas no local. Eles exigiam a retirada das forças russas da Chechênia.

Voluntários foram ao local negociar com os terroristas. O diálogo foi interrompido no quarto dia pela invasão de agentes russos. Eles injetaram gás nervoso no sistema de ventilação do teatro, mataram os terroristas e 132 reféns.

Em 2004, separatistas chechenos invadiram uma escola em Beslan, tomando 1.100 reféns.

No segundo dia, houve uma explosão, seguida da invasão de forças russas. A intervenção deixou 334 mortos, dos quais 186 crianças, além de 31 terroristas.


Esses e outros episódios foram utilizados para convencer os russos de que estão sob ameaça de inimigos desumanos, e só Putin pode protegê-los. A mesma estratégia é usada em relação à homossexualidade.

Em 2011, milhares de russos foram às ruas depois de constatarem que Putin não deixaria o poder. Ele se aliou à Igreja Ortodoxa e passou a perseguir os homossexuais e transgêneros, impedidos de casar, adotar filhos ou mudar de sexo.

Em seu discurso ao Parlamento em fevereiro de 2023, um ano depois de invadir a Ucrânia, Putin afirmou: 

"O Ocidente não para de distorcer fatos históricos, atacar a cultura e a Igreja Ortodoxa russas. O Ocidente está pervertendo a família, a identidade nacional. Estão tornando a pedofilia a norma em sua vida. Padres incentivam casamentos do mesmo sexo.

A Igreja Anglicana estuda a ideia de um Deus de gênero neutro. Perdoem, Pai, eles não sabem o que fazem"
.

Diante das mortes na Ucrânia, dos retrocessos e do terrorismo, boa parte dos russos se torna mais leal a Putin. A alternativa seria concluir que a dor é em vão. Isso a tornaria insuportável.



É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS


sexta-feira, 8 de março de 2024

‘Foco na desigualdade é coisa de invejoso; o importante é reduzir a miséria’: Rainer Zitelmann - José Fucs (Estadão)

‘Foco na desigualdade é coisa de invejoso; o importante é reduzir a miséria’, diz historiador alemão

Para o pesquisador, o que leva à queda sustentável da pobreza não são ações governamentais de redistribuição de renda nem programas internacionais de ajuda, mas o crescimento econômico, que prospera nas economias de livre mercado e em sociedades que veem os empreendedores de sucesso como modelo e não como bode expiatório


Por José Fucs 

Entrevista com  Rainer Zitelmann  -  Historiador e sociólogo

O Estado de S. Paulo, 6/03/2024

O historiador e sociólogo alemão Rainer Zitelmann, de 66 anos, faz parte de uma estirpe rara de intelectuais, que concentra seus estudos nos benefícios do capitalismo para o desenvolvimento e a redução da miséria, e não nos males que o sistema supostamente causa para a sociedade, como a maioria de seus pares.

Autor do livro O capitalismo não é o problema, é a solução (Ed. Almedina), publicado no Brasil em 2022, ele acabou de lançar uma nova obra que aborda os efeitos positivos gerados pela liberdade econômica no desenvolvimento e na redução significativa da miséria no mundo nos últimos 40 anos. O novo livro – cujo título provisório em português (O Milagre da economia de mercado e a riqueza das nações) nada tem a ver com o título em inglês (Como as nações escapam da pobreza– deve ser lançado no País em junho pela mesma editora.

Nesta entrevista ao Estadão, realizada por e-mail e complementada por videoconferência, Zitelmann fala sobre a preocupação crescente com o aumento da desigualdade social e sobre o trabalho produzido pelo economista francês Thomas Piketty, apresentado em detalhes no livro O capital no século 21, lançado em 2014, que se tornou uma referência internacional no assunto. “O que representou, na interpretação de Piketty, o pior momento (em termos de desigualdade) foi, na verdade, o melhor momento da história da humanidade, porque a pobreza nunca caiu tão rapidamente quanto nas últimas décadas”, afirma. “Eu estou interessado na pobreza, e não na desigualdade. O foco na desigualdade é coisa de gente invejosa.”

Segundo Zitelmann, as sociedades que têm uma atitude positiva em relação aos empreendedores bem-sucedidos vão alcançar o sucesso de forma mais consistente do que as que usam os ricos como bodes expiatórios. Confira a seguir sua entrevista ao Estadão.

Você acha que os chineses querem voltar aos tempos de Mao, porque havia mais igualdade naquela época?

Em seu novo livro, o sr. afirma que a liberdade econômica, e não as ações governamentais de redistribuição de renda e os programas internacionais de ajuda, é que promove a redução da pobreza no mundo. O que o leva a dizer isso?

No meu livro, eu menciono vários estudos científicos que chegaram à mesma conclusão nas últimas décadas. A ajuda ao desenvolvimento é, na melhor hipótese, ineficaz, e muitas vezes até contraproducente. Podemos observar isso na África: nenhum continente recebeu tanta ajuda para o desenvolvimento como a África. Mas as pessoas lá ainda são extremamente pobres. Os países asiáticos não receberam tanta ajuda. Seguiram um caminho diferente, permitindo mais liberdade econômica. Veja os casos da Coreia do Sul, de Taiwan, de Cingapura e mesmo de países que se autodenominam socialistas, como a China e o Vietnã. Eles fizeram enormes progressos na luta contra a pobreza com a liberalização de suas economias.

O sr. pode dizer de que forma a liberdade econômica beneficia os mais pobres? Isso não é mais uma crença ideológica do que uma conclusão baseada em fatos e na realidade?

Eu sou historiador e sociólogo. Para mim, apenas os fatos contam. Eu olho para a história para ver o que funciona e o que não funciona. Antes do surgimento do capitalismo, há 200 anos, 90% da população mundial viviam na pobreza extrema. Hoje, menos de 9% vivem na miséria. Na China, 45 milhões de pessoas morreram entre 1958 e 1962, em decorrência do “Grande Salto Adiante” implementado por Mao Tsé-Tung (1893-1976), que foi a maior experiência socialista da história. Na época da morte de Mao, 88% da população chinesa viviam na extrema pobreza. Depois, veio o Deng Xiaoping (1904-1997), que introduziu a propriedade privada e implementou a economia de mercado no país. Ele disse: “Deixem algumas pessoas ficar ricas primeiro”. Resultado: o número de pessoas vivendo na miséria na China hoje representa menos de 1% da população.

Como exatamente a liberdade leva à redução da pobreza e aos resultados que o sr. mencionou?

Liberdade econômica significa deixar os empreendedores fazerem seus negócios, ganharem dinheiro, ficarem ricos. Quando há liberdade na economia, o resultado é o crescimento, que é a única forma de reduzir a pobreza. Isso é o que muita gente não entende. Não é que o governo não precise fazer nada. Mas, se o governo não estiver tão envolvido nas coisas e deixar os empreendedores decidirem o que produzir e os consumidores, o que consumir, a economia vai ganhar dinamismo, o país vai crescer e a pobreza vai diminuir.

Muita gente defende a ideia de que a redistribuição de renda é essencial para reduzir a miséria e diz que a economia de livre mercado leva a mais desigualdade. Em sua avaliação, a redistribuição de renda não é uma forma de amenizar as dificuldades dos mais vulneráveis?

Vou continuar no caso da China para responder a esta pergunta: sim, a desigualdade hoje é maior do que era nos tempos de Mao. Não havia bilionários na China naquela época. Hoje, há mais bilionários na China do que em qualquer outro lugar do mundo, exceto nos Estados Unidos. Você acha que os chineses querem voltar aos tempos de Mao, porque havia mais igualdade naquela época? Durante minhas conversas na China, não encontrei ninguém que quisesse isso. Eu estou interessado na redução da pobreza e não na desigualdade. O foco na desigualdade é coisa de gente invejosa.

No livro O capital no século 21, publicado em 2014, o economista francês Thomas Piketty mostra, com base em dados históricos, que houve um grande aumento da desigualdade no mundo nas últimas décadas, e faz críticas duras a esta situação. Qual a sua opinião sobre o trabalho e as ideias de Piketty sobre o problema da desigualdade?

As teses de Piketty foram refutadas muitas vezes. Muitos dos números que ele usa estão simplesmente errados, como já foi provado repetidas vezes. Mas, mesmo que estivessem corretos, o que isso significaria? Ele diz, em primeiro lugar, que a desigualdade diminuiu durante a maior parte do século 20. Aí, a partir da década de 1980, veio o que ele considera como um momento ruim, quando a desigualdade aumentou. Mas o que, na interpretação de Piketty, representou o pior momento foi, na verdade, o melhor momento da história da humanidade, porque a pobreza nunca caiu tão rapidamente como neste período. Nas últimas décadas, desde o fim do comunismo na China e em outros países, o declínio da pobreza ocorreu num ritmo inédito na história. Em 1981, 42,7% da população mundial viviam na pobreza absoluta. Em 2000, o índice havia caído para 27,8% e hoje é inferior a 9%. Então, como você poder ver, tudo depende do foco, a desigualdade ou a pobreza, na análise da questão.

Como exatamente a liberdade leva à redução da pobreza e aos resultados que o sr. mencionou?

Liberdade econômica significa deixar os empreendedores fazerem seus negócios, ganharem dinheiro, ficarem ricos. Quando há liberdade na economia, o resultado é o crescimento, que é a única forma de reduzir a pobreza. Isso é o que muita gente não entende. Não é que o governo não precise fazer nada. Mas, se o governo não estiver tão envolvido nas coisas e deixar os empreendedores decidirem o que produzir e os consumidores, o que consumir, a economia vai ganhar dinamismo, o país vai crescer e a pobreza vai diminuir.

Muita gente defende a ideia de que a redistribuição de renda é essencial para reduzir a miséria e diz que a economia de livre mercado leva a mais desigualdade. Em sua avaliação, a redistribuição de renda não é uma forma de amenizar as dificuldades dos mais vulneráveis?

Vou continuar no caso da China para responder a esta pergunta: sim, a desigualdade hoje é maior do que era nos tempos de Mao. Não havia bilionários na China naquela época. Hoje, há mais bilionários na China do que em qualquer outro lugar do mundo, exceto nos Estados Unidos. Você acha que os chineses querem voltar aos tempos de Mao, porque havia mais igualdade naquela época? Durante minhas conversas na China, não encontrei ninguém que quisesse isso. Eu estou interessado na redução da pobreza e não na desigualdade. O foco na desigualdade é coisa de gente invejosa

O sr. afirma que, nos últimos 40 anos, US$ 568 bilhões fluíram para África sem efeitos positivos e sustentáveis na redução da pobreza. Com base no que o sr. diz isso? As ações realizadas com esse dinheiro todo não ajudaram os mais pobres na África?

Não. Sabemos disso pelos estudos que eu menciono no livro. A maior parte do dinheiro vai para os chamados “projetos”, que às vezes até melhoram as coisas no curto prazo, quando os recursos estão entrando. Mas, quando o dinheiro para de entrar e os projetos chegam ao fim, tudo volta a ser como antes. Além disso, grande parte do dinheiro fica nas mãos de elites corruptas. Então, a ajuda para o desenvolvimento não é uma forma de combater a pobreza. É uma forma de manter governos corruptos na África, com recursos fornecidos pelos pagadores de impostos americanos e europeus. Muito desse dinheiro vai também para as ONGs que desenvolvem os projetos. Elas precisam crescer, para manter o grande número de pessoas que empregam, e estão muito felizes com os relatórios que produzem, a burocracia que produzem. Estão interessadas principalmente na própria sobrevivência.

No seu livro, o sr. usa os casos do Vietnã e da Polônia como exemplos de países que reduziram de forma significativa a pobreza nos últimos 20 ou 30 anos, após a liberalização de suas economias. Na prática, como a liberalização ajudou estes países a reduzir a miséria?

Em 1990, o Vietnã era o país mais pobre do mundo. O que a guerra não destruiu, a economia planificada socialista destruiu. O PIB (Produto Interno Bruto) per capita era de US$ 98, inferior até aos US$ 130 da Somália. Mas, com as reformas pró-mercado lançadas pelos vietnamitas no fim da década de 1980, o número de pessoas vivendo na pobreza extrema caiu de cerca de 80% da população para 5%. A Polônia, na década de 1980, era um dos países mais pobres da Europa. Depois, com as reformas que abriram caminho para a economia de mercado, a Polônia se tornou a campeã de crescimento na Europa por três décadas seguidas e as condições de vida da população melhoraram muito.

Por que o sr. escolheu o Vietnã e a Polônia como exemplos para o seu livro? O que eles fizeram de diferente que os levou a ter resultados positivos na redução da miséria?

Todos os anos, desde 1995, a Heritage Foundation, dos Estados Unidos, publica o Índice de Liberdade Econômica, que mostra o quão livre é um país do ponto de vista econômico. Eu analisei todos os 177 países da lista para ver onde tinham ocorrido os maiores ganhos em liberdade econômica. E em nenhum outro país de dimensões equivalentes a liberdade aumentou tanto quanto na Polônia e no Vietnã. Isso me deixou curioso. Aliás, o índice de 2024 acabou de ser publicado e o Vietnã ganhou 13 posições em relação a 2023, subindo da 72.ª para a 59.ª posição, num momento em que a liberdade econômica se deteriorou em quase todo o mundo. Isso só confirma minha análise. Tive também uma ligação pessoal com os dois países, porque as duas mulheres com quem tive as relações mais longas da minha vida vieram da Polônia e do Vietnã.

Os dois países, o Vietnã e a Polônia, tinham uma economia planificada antes da liberalização, na qual o Estado controlava quase tudo, inclusive os preços dos bens e serviços. Muita gente acredita que a vida das pessoas era melhor naquela época. O que o sr. pensa sobre isso?

No meu livro, eu conto várias histórias sobre a vida cotidiana das pessoas no Vietnã e na Polônia. Conto a história de crianças que tinham de esperar horas na fila só para conseguir arroz – e, mesmo assim, não recebiam o suficiente para saciar a elas e a suas famílias. Considerando que os salários mensais das pessoas eram suficientes apenas para garantir as despesas de subsistência de uma semana, quase todo mundo tinha de encontrar fontes adicionais de ganho para compensar a escassez. Em Hanói, era comum as famílias usarem um cômodo de seus apartamentos para criar porcos. A criação de porcos era a melhor fonte de rendimento extra que havia e a maioria das famílias destinava um quarto em um apartamento de três quartos para os porcos, tendo de conviver com o barulho e o mau cheiro, em condições de higiene terríveis.

No caso da Polônia, a situação era semelhante?

Na Polônia, acontecia a mesma coisa. As pessoas tinham de esperar horas e horas nas filas – e algumas vezes até dias – para comprar coisas para o seu dia a dia. Muitas até pagavam para outras pessoas ficarem para elas na fila. E, quando chegava a vez delas, acabavam comprando coisas que nem precisavam, porque não sabiam se iriam faltar depois. De repente, elas podiam até trocar esses produtos por outros, com outras pessoas. As longas filas eram muito típicas do socialismo. Na Polônia, havia também selos para comprar certos produtos que tinham oferta limitada. Se você perdesse o selo, tinha de fazer uma dieta, porque não podia repor. Estes são os melhores exemplos de que o sistema não funcionava – e isso não aconteceu nos 1950 e 1960, no pós-guerra, mas nos anos 1980.

Nestes países, eu falei com muitas pessoas e também fiz muitas entrevistas. Não queria que meu livro fosse apenas cheio de números, embora ele tenha muitos dados. Queria que as pessoas tivessem uma palavra a dizer e falassem sobre suas vidas naquela época e agora. E, como no caso da China, não conheci ninguém no Vietnã e na Polônia que quisesse voltar aos tempos da economia socialista.

No caso da Polônia, o país conseguiu unir a liberdade econômica com a democracia. Já o Vietnã manteve o sistema autoritário de partido único que também se mantém na China, em Cuba e na Coreia do Norte. De que forma isso influenciou o desenvolvimento econômico e a redução da pobreza nos dois países?

No Vietnã, em razão do regime de partido único, as reformas econômicas foram mais fáceis de implementar do que na Polônia. É preciso compreender que, num primeiro momento, as reformas tendem a piorar as coisas. Na Polônia, não foi diferente. O desemprego, por exemplo, que era camuflado nos tempos do comunismo, ganhou visibilidade. Numa democracia, durante o período de transição, os meios de comunicação social e os partidos politicos que se opõem à liberalização da economia incitam as pessoas contra as reformas e defendem mais intervenção estatal. É exatamente isso que estamos vendo agora na Argentina, após a eleição de Javier Milei para a presidência.

O sr. poderia dar um exemplo de um país rico que empobreceu com a implantação de um regime socialista, supostamente destinado a promover a redução da desigualdade e da miséria?

Um exemplo emblemático é a Venezuela. Nos anos 1970, a Venezuela era um dos países mais ricos do mundo. A Venezuela era uma boa democracia, com uma economia de mercado dinâmica, e as pessoas tinham um bom padrão de vida. Aí, com a ascensão do Hugo Chávez (1954-2013), tudo mudou. Os primeiros dois ou três anos nem foram tão ruins, porque ele teve a sorte de os preços do petróleo estarem em alta no mercado internacional, garantindo recursos para bancar as ações sociais. Mas aí o Chávez começou com as nacionalizações, os preços do petróeo caíram e as coisas se deterioraram rapidamente. Mais de 25% da população da Venezuela, o equivalente a 7,5 milhões de pessoas, fugiram do país desde então. Se isso pôde acontecer num país como a Venezuela, pode acontecer em qualquer lugar.

Quando as coisas chegam no ponto em que chegaram na Venezuela, a insatisfação da população não acaba levando a uma mudança no quadro?

Algumas pessoas pensam que as coisas tem de se tornar muito, muito ruins para surgir uma boa solução, mas isso não é verdade. A história não é um filme de Hollywood com garantia de final feliz. As coisas também podem se tornar piores, como aconteceu na Alemanha nos anos 1930, quando Adolph Hitlerchegou ao poder. Ninguém podia imaginar que algo terrível iria acontecer, mas aconteceu. Com o Hugo Chávez, foi a mesma coisa. Eu me lembro que os intelectuais de esquerda da Europa e dos Estados Unidos estavam entusiasmados com o tal socialismo do século 21 defendido pelo Chávez, porque finalmente tinham um exemplo de uma nova utopia, já que na Coreia do Norte as coisas não funcionaram tão bem como eles imaginavam. Mas, no fim, o resultado na Venezuela foi o pior possível. O caso da Venezuela é um aviso de que as nações também podem se tornar mais pobres.

Além da Venezuela, que outro caso o sr. citaria de um país que era rico e empobreceu, em decorrência de uma maior intervenção do Estado na economia, da perseguição aos ricos e da implementação de uma política de distribuição de renda?

Outro exemplo que ilustra bem este fenômeno é a Argentina. Muita gente não sabe, mas a Argentina também já foi muito rica. Há cem anos, a Argentina era um dos países mais ricos do mundo, tanto quanto os Estados Unidos. Aí eles começaram com essa política peronista de redistribuição de renda e deu no que deu, com um aumento considerável da pobreza ao longo do tempo. De um lado, eu tenho dúvidas hoje se as pessoas terão um ou dois anos de paciência para esperar os efeitos positivos das reformas que estão sendo implementadas pelo Milei. Como eu disse há pouco, a experiência da história mostra que algumas coisas ficam piores no começo. O desemprego cresce e às vezes há até recessão. Mas elas foram pacientes o suficiente para esperar 80 anos para mudar, vendo a situação do país se deteriorar cada vez mais, desde 1945. Com exceção da década de 1990, a Argentina teve inflação de dois dígitos em todos os anos. Era algo normal para eles.

O sr. afirma que, em geral, os ricos são “demonizados” e não admirados em quase todo o mundo. São vistos como “exploradores " dos pobres por muitas pessoas, especialmente pelos intelectuais. Mas, na sua visão, ter uma atitude positive em relação aos ricos e ao capitalismo é algo que favorece o desenvolvimento e a redução da miséria. O que a atitude das pessoas em relação aos super-ricos tem a ver com a diminuição da pobreza?

Eu realizei uma pesquisa sobre a imagem dos ricos em 13 países. A inveja social dos ricos é mais acentuada na Françae em seguida na Alemanha. Já os poloneses e os vietnamitas têm uma atitude positiva em relação aos ricos. A Universidade de Comércio Exterior de Hanói até me convidou para participar de um curso sobre o preconceito contra os ricos e o que é possível fazer contra isso. Não consigo imaginar uma universidade na Europa ou nos Estados Unidos realizando um workshop como esse. As sociedades nas quais as pessoas consideram os empreendedores bem-sucedidos como modelo alcançarão o sucesso de forma mais consistente do que as que veem os ricos como bode expiatório. Quando há pessoas que querem ser ricas e têm possibilidade de se tornarem ricas, as coisas funcionam. Recentemente, escrevi um livro sobre o ódio aos ricos no Chile, junto com o economista chileno Axel Kaiser, chamado El Odio a los Ricos (O ódio aos ricos). No livro, nós mostramos que os problemas no Chile, que era o país mais liberal e mais bem-sucedido da América do Sul, começaram com uma campanha contra os ricos.

Muitas pessoas acreditam que os mais ricos enriquecem à custas dos mais pobres, em linha com as ideias propagadas por Karl Marx. Qual a sua visão sobre esta questão?

No coração das crenças de todos os socialistas, há esta ideia de soma zero, de que os ricos só se tornam ricos porque tiram dinheiro dos pobres. Mas eu sempre pergunto: como explicar que, na China, por exemplo, o contingente de pessoas vivendo na miséria caiu de quase 90% para 1% da população em 40 anos, enquanto o número de bilionários aumentou de 0 para 600? Não é lógico. Isso aconteceu no mundo inteiro. A população mundial vivendo na pobreza extrema passou de 43% do total em 1980 para 9% hoje, enquanto o número de bilionários aumentou de 500 para 2.700. A razão que leva à redução da pobreza e torna algumas pessoas muito ricas é a mesma: o crescimento econômico. Este é meu principal argumento contra o pensamento de soma zero. Essas pessoas pensam a mesma coisa em relação ao mundo: que os países ricos têm de dar dinheiro para os pobres, para eles melhorarem sua situação. Também é um tipo de pensamento de soma zero. Elas não entendem que não é assim que funciona.

Na China, o presidente Xi Jinping e o Partido Comunista começaram a falar há alguns anos sobre “prosperidade comum”, em razão do aumento do número de bilionários e do crescimento da desigualdade. Isso levou também o regime a adotar medidas para controlar mais a livre iniciativa e estimular as doações e a redistribuição de renda. Qual a sua avaliação sobre esta questão?

Em 2019, um relatório de trabalho do Fórum Económico Mundial afirmava que “o setor privado da China – que vem se recuperando desde a crise financeira global de 2008– agora é o principal motor do crescimento econômico do país”. O relatório mencionava também a combinação dos números 60, 70, 80 e 90, que é frequentemente utilizada para descrever o papel do setor privado para a economia chinesa. O setor privado chinês contribui com 60% do PIB do país e é responsável por 70% da inovação, 80% da mão de obra urbana e 90% dos novos empregos. A riqueza privada também é responsável por 70% do investimento e 90%das exportações.

A ascensão da China resultou totalmente da introdução da propriedade privada e das reformas capitalistas que fizeram recuar a influência do Estado. Nos últimos anos, contudo, a tendência começou a se inverter. O Estado voltou a interferir muito mais na economia e isso já levou a um abrandamento do crescimento econômico chinês.

Na sua opinião, o que pode ter um impacto negativo no combate à pobreza e na melhoria da qualidade de vida da população mundial nas próximas décadas?

O esquecimento das pessoas. Vemos isso acontecer em todos os lugares. Depois de um tempo, as nações esquecem por que tiveram sucesso. Acabei de dar o exemplo da China, mas há muitos outros. Durante anos, em quase todo o mundo, os países estão indo na direção de uma economia mais planificada. Os socialistas, hoje, controlam quase toda a América Latina – a vitória de Javier Milei é a única exceção em anos. Os Estados Unidos e a Europa também estão caminhando cada vez mais para uma economia planificada. No seu grande discurso em Davos, em janeiro, o Milei enfatizou que, em geral, o socialismo moderno já não promove a nacionalização dos meios de produção. Segundo ele, isso não é mais necessário. O mercado livre está sendo cada vez mais sufocado pela intervenção governamental na economia, pela regulamentação cada vez maior, pelo aumento da tributação e pelas políticas dos bancos centrais. Os meios de produção e os ativos imobiliários até podem continuar a ser considerados como propriedade privada no papel. Mas só os títulos formais de propriedade se mantêm, porque os supostos proprietários perdem cada vez mais o controle sobre seus ativos, na medida em que o Estado é que lhes diz o que fazer (e o que não fazer) com eles.