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quarta-feira, 17 de abril de 2024

Antigos aliados ignoram apelos de Lula e põem em xeque mediação do Brasil na região - Ricardo Della Coletta (FSP)

Antigos aliados ignoram apelos de Lula e põem em xeque mediação do Brasil na região

Exemplos com Nicarágua e Venezuela ilustram, ainda que parcialmente, perda de influência de Brasília na América Latina

Brasília
Folha de S. Paulo, 16/04/2024

Ao menos dois impasses na política externa do Brasil mostram que as dificuldades que o presidente Lula enfrentou para se colocar como mediador em temas globais, como a Guerra da Ucrânia, repetiram-se num contexto regional e mesmo com líderes com quem o Partido dos Trabalhadores tem laços históricos.

Na semana passada, Lula disse ao cardeal Pietro Parolin estar profundamente decepcionado com o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega. Durante audiência com o principal emissário do papa Francisco, o brasileiro lamentou que, no ano passado, Ortega nem sequer tenha respondido a pedidos de um telefonema para que ele pudesse interceder pela libertação do bispo Rolando José Álvarez —que ficou detido por mais de 500 dias e acabou expulso do país centro-americano em janeiro— e por outros religiosos perseguidos pelo regime nicaraguense.

O presidente relatou a Parolin ter tentado fazer o máximo possível, mas afirmou que Ortega se mostrou inflexível. O cardeal, por sua vez, agradeceu os esforços de Lula.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante evento no Palácio do Planalto, em Brasília - Gabriela Biló - 15.abr.22/Folhapress

Houve ainda um segundo caso em que um antigo aliado de Lula na região ignorou apelos diretos por moderação. O presidente promoveu uma guinada em sua política em relação à Venezuela depois que o ditador Nicolás Maduro decidiu bloquear o registro da candidatura de uma adversária.

O líder venezuelano, no entanto, também fez pouco caso do pedido de Lula, que havia defendido que a oposição pudesse participar livremente do pleito.

Os dois casos revelam um cenário na América Latina mais complexo do que o imaginado por auxiliares do petista no final de 2022, quando ele derrotou Jair Bolsonaro (PL). De acordo com especialistas ouvidos pela Folha, o cenário é ainda agravado por um quadro de desarticulação política na região

O PT é aliado histórico de Ortega, líder da revolução sandinista e no poder de forma ininterrupta desde 2007. A ditadura nicaraguense chegou a anunciar a libertação de Álvarez em meados de 2023, mas o religioso não aceitou a condição imposta por Ortega, de que deixasse a Nicarágua. O regime voltou a prendê-lo, e Álvarez só foi solto no início deste ano, com o compromisso de ir para o Vaticano —na prática, uma expulsão.

Ao longo desse processo, Lula teria tentado conversar com Ortega, mas seus pedidos não tiveram resposta.

Em relação à Venezuela, o brasileiro expressou sua frustração com Maduro no final de março, após o regime impedir o registro eleitoral de Corina Yoris. A acadêmica havia sido indicada para substituir María Corina Machado, principal nome da oposição, porém impedida pelo chavismo de concorrer a cargos públicos.

Em reunião com Maduro no início de março, em São Vicente e Granadinas, Lula havia defendido que o pleito venezuelano precisa ser o mais democrático possível. Ele também fez uma comparação com sua própria situação em 2018, quando, preso no âmbito da Operação Lava Jato, indicou Fernando Haddad (PT) para substituí-lo na eleição presidencial.

"Eu indiquei outro candidato, perdemos as eleições. Mas fez parte do jogo democrático. Participei, perdi, paciência", declarou o presidente dias depois, ao se referir à reunião com Maduro. O petista disse ainda que o bloqueio chavista contra a oposição é grave, revertendo a postura adotada até então de relativizar as críticas contra o ditador.

Para Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard, Lula tem tido dificuldades de projetar sua influência política mesmo com governos "do mesmo corte ideológico".

"O caso da Nicarágua mostra que o peso gravitacional do Brasil na América Latina vem caindo gradativamente. Não somos prioridade imediata para esses países face a outras potências", diz.

Em referência específica à América do Sul, Kalout aponta ainda que está em curso um "processo de fragmentação política e econômica". Para ele, isso "decorre da ausência de um país que é capaz de unir e ter um projeto claro de integração baseado em desenvolvimento e investimento".

"Integrar sem investir e propor apenas uma visão política não é mais possível", afirma.

Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional da UFMG, por outro lado, afirma que não é possível avaliar a influência do governo Lula na América Latina apenas olhando o caso da Nicarágua e da Venezuela.

"A gente tem que resgatar outros episódios em que Lula foi bem-sucedido, por exemplo na mediação do conflito entre Venezuela e Guiana. A bomba foi desarmada e, pelo menos por ora, é mais positiva do que negativa a participação do Brasil", analisa.

Ele se refere à crise do Essequibo, região da Guiana rica em recursos naturais e reivindicada pela Venezuela. O Brasil chegou a ser garantidor de um acordo entre os dois países, mas Caracas assinou uma lei que trata o território guianense como parte da Venezuela —o que voltou a acirrar as tensões.

Lopes afirma ainda que a situação atual da região é muito mais desafiadora do que nos mandatos anteriores de Lula, quando havia uma convergência ideológica de líderes de esquerda."Agora a América Latina é tremendamente heterogênea em relação à primeira década do século 21", diz.

Auxiliares de Lula e diplomatas ouvidos pela Folha concordam que a falta de um instrumento de integração regional é um dos principais obstáculos para a atuação internacional do governo no âmbito sul-americano.

Hoje não há em funcionamento uma organização internacional responsável pela coordenação política na América do Sul, a exemplo do que ocorreu com a Unasul e depois com o Prosul (aliança de governantes de direita).

Lula tentou relançar um projeto de integração numa reunião de presidentes em Brasília em maio do ano passado, mas houve veto à recriação da Unasul —que acabou vista por alguns países como um projeto ideológico de esquerda.

Os países então acordaram o lançamento de uma iniciativa chamada Consenso de Brasília, em que ministros dos diferentes governos têm se encontrado periodicamente para discutir suas áreas. O problema é que esse esforço tem sobrevivido principalmente graças ao impulso político dado por Brasil, Chile e Colômbia. Há dúvidas sobre a sustentabilidade de longo prazo em caso de mudança de orientação desses governos.

Mesmo no contexto da américa Latina o cenário é desafiador, dizem diplomatas e especialistas. Como a Folha mostrou, a Celac, principal organização de coordenação política na América Latina, rachou no conflito diplomático entre México e Equador. A cúpula virtual da entidade desta terça (16) foi esvaziada, com o boicote de cinco países e outros líderes que decidiram escalar ministros para representá-los.



domingo, 7 de abril de 2024

Legado econômico da ditadura: desempenho da economia brasileira no período militar foi mediano - Samuel Pessoa (FSP)

Samuel Pessôa

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP. 

Legado econômico da ditadura

Com ajustes necessários, desempenho da economia brasileira no período militar foi mediano 

Folha de S. Paulo,  07abr24

É fato que houve piora do desempenho econômico no período democrático medido pelo crescimento do PIB per capita. Nesta coluna, avaliarei qual teria sido o custo, na forma de perda de desempenho econômico, que tivemos com a democracia.

Análises como esta servem para aquelas pessoas que argumentam que a redemocratização foi ruim pois a economia tinha um desempenho melhor na ditadura.

Se a pessoa pensa dessa forma, para ela, a democracia não é um valor fundamental. Para essa pessoa, a escolha do tipo de governo tem que ser feita de acordo com as consequências práticas deste ou daquele tipo de governo. Não é a minha visão, mas vou aceitar essa premissa e analisar os números com esse olhar. 

Segundo os dados do Ipea, o crescimento brasileiro do produto per capita entre 1964 e 1984, considerando 1963 como base de comparação, foi de 3,9% ao ano. Para o período de 1985 até 2019 —deixei a fase da pandemia de fora—, foi de 1,2% ao ano. Houve, portanto, uma vantagem de 2,8 pontos percentuais por ano para a ditadura.

Note que mantive na conta a década perdida da ditadura, os anos 1980, e a década perdida da democracia, os anos de 2013 até 2022. Ambas tiveram uma componente internacional. Nos anos 1980, a elevação dos juros nos EUA; na última década perdida, a queda dos preços das commodities que ocorreu em duas etapas, em 2011 e 2014.

No entanto, o elevado grau de vulnerabilidade que demonstramos aos choques externos foi fruto de escolhas que fizemos internamente nos dois períodos. Com os militares, a decisão de endividar o país por meio de dívida em moeda estrangeira com juros flutuantes; no episódio mais recente, uma série de medidas —a mais importante delas

foi a mudança do marco regulatório do petróleo— que aumentaram muito a exposição da economia brasileira à queda dos preços internacionais das commodities.

Recentemente, em artigo publicado no terceiro fascículo de 2023 da Revista Brasileira de Economia, Edmar Bacha, Guilherme Tombolo e Flávio Versiani revisam os números da economia brasileira de 1900 até 1980. Com os novos números, o crescimento brasileiro ao longo do período ditatorial foi 1 ponto percentual menor do que a estatística que consta no Ipea. A vantagem da ditadura cai para 1,8 ponto percentual por ano.

A dificuldade de pararmos com o exercício por aqui é que a ditadura ocorreu em um período distinto daquele em que transcorreu a democracia. A economia mundial teve desempenho distinto.

Isto é, se imaginarmos um contrafactual em que a ditadura continuasse até agora, o crescimento não teria sido o mesmo. Qual teria sido o crescimento na ditadura se ela continuasse conosco?

Minha proposta é avaliarmos pela diferença entre o crescimento que tivemos na ditadura e a média do crescimento dos países na mesma época. Ou seja, a hipótese de meu exercício é que a diferença entre o comportamento do Brasil na ditadura em relação aos demais países naquele período se manteria até hoje. Considerarei como comportamento médio dos demais países o crescimento mediano de um conjunto de países que usarei como grupo de controle para a análise consequencialista do período ditatorial.

Considerei todos os países com informações disponíveis de PIB per capita de 1963 até hoje da base de dados de Maddison. Ajustei os números de Maddison para o Brasil à correção de Bacha, Tombolo e Versiani. O crescimento per capita brasileiro entre 1964 e 1984 foi de 2,4% ao ano, e o da mediana dos países da base de dados foi de 2,4%. Não houve uma clara vantagem da ditadura sobre a mediana das taxas de crescimento da base de Maddison.

Para o período democrático, o crescimento do Brasil foi de 1,9% ao ano, e o crescimento da mediana foi de 2,1%, uma diferença de 0,2 ponto percentual para pior.

Ou seja, a diferença da ditadura sobre o grupo de controle foi de 0,2 ponto percentual (0,2 + 0) maior que a diferença da democracia brasileira sobre o grupo de controle. Acumulada de 1985 até hoje, essa diferença gera um ganho de renda de 8%.

Parece muito pouco se levarmos em conta que o bem-estar de uma sociedade não depende só do ganho de renda, mas também da desigualdade, que certamente seria maior se a ditadura tivesse continuado até os dias de hoje.

Ou seja, nem o consequencialismo salva nossa experiência ditatorial.

Falta de rumo de Lula 3 causa o barraco do BBB 24 da Petrobras - Vinicius Torres Freire (FSP)

Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA). 

Falta de rumo de Lula 3 causa o barraco do BBB 24 da Petrobras 

Após quase um terço do mandato, governo não tem política para a estatal, petróleo e energia 

Os assuntos mais importantes da Petrobras são política de preços, pesquisa e plano de investimento —quanto vai para petróleocombustíveis fósseis ou energia renovável. A petroleira é a única estatal, talvez a única empresa do país, que se possa chamar de "estratégica", como a esquerda gosta de dizer até de barraca de dogão.

Mais importante é a política nacional de petróleo e energia. Isto é, saber quanto mais petróleo se vai explorar e quais as alternativas econômicas que preservem a segurança do abastecimento de energia. Ou saber o que se vai fazer de impostos, dividendos e outros dinheiros petrolíferos. Por ora, tais receitas mal ajudam a cobrir as despesas do governo muito deficitário. Como seria possível, então, que a exploração de petróleo ajudasse a bancar pesquisa e desenvolvimento de energias renováveis? O que se pode fazer a respeito? 

Não há política nacional de petróleo e energia, apenas disputas desorganizadas em um governo que já vai completar um terço de mandato. Petrobras, Meio Ambiente, Minas e Energia, Casa Civil e Fazenda, para citar os mais influentes, no caso, têm ideias diferentes ou mesmo opostas a respeito. Não há decisão de rumo e projeto.

Não há nem mesmo política para Petrobras, apenas desejos de Luiz Inácio Lula da Silva. No limite, tais vontades vagas são incompatíveis com normas e com a solidez econômica da Petrobras. De imediato, tais desejos estimulam a politicalha, esse salseiro vexaminoso que prejudica também o crédito da petroleira e mesmo o do governo.

Nosso maior interesse vai para o BBB 24 da Petrobras. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, espezinha o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, para quem soltou em público, nesta Folha, um "sabe com quem está falando?" e um "ponha-se no seu lugar". O presidente da Petrobras pede a Lula que decida quem manda no barraco. Lula "se irrita", não gosta de ser "emparedado", vaza pelas mídias. Prates ou seus amigos choramingam anonimamente: Prates está "machucado". O drama cafona e irrelevante jorra. Informações sigilosas vazam.

Silveira é amiguinho do casal presidencial. Bajula o presidente, que quer "obras" da Petrobras: navio, refinaria, gasoduto, fábrica de lampião, sabe-se lá. Por vários motivos, pois, entre eles o desejo de mandar mais na empresa, Silveira se sente à vontade de dinamitar Prates, que tentava conciliar estatutos e interesses (e pressões internas) da empresa com os desejos de Lula quanto a preços e investimentos.

A vulgaridade do "reality" aumenta. Uma turma vaza veneno sobre Prates, suas nomeações heterodoxas na empresa, várias de petistas e sindicalistas, tendo, porém, deixado "bolsonaristas" em cargos relevantes. Outra turma vaza que Silveira e amigos seus no conselho da empresa são quase-bolsonaristas (nem bem isso são: agem de acordo com a oportunidade de poder). Etc.

Entra Aloizio Mercadante na história, que talvez substituísse Prates. No paredão, ele "desagrada" ao mercado; na fofoca amiga, teria dito a Prates que não vai lhe passar uma rasteira e que está "moderado" no BNDES.

O país adora fofoca, novela, barraco e reality, das elites toscas ao restante do povo. Disputa de poder e intriga são compreensíveis e mais interessantes do que balanços, eficiência, transição energética e política de desenvolvimento. Causa desânimo terminal que a burrice da conversa seja tão grande mesmo nisso que se chama de elite nacional.

Dentro e fora do governo, nos ministérios, no BNDES, na Petrobras etc., há gente séria e capaz de pensar uma política. O governo, porém, é uma desordem jeca, amigo de ideias provincianas e erradas de desenvolvimento. Lula, coadjuvado por vassalos atrasados e ignaros, deixou essa baderna daninha acontecer.


segunda-feira, 1 de abril de 2024

Lincoln Gordon pode ter sido o embaixador do golpe, mas para isso teve a ajuda do coronel Vernon Walters - Elio Gaspari (Globo, FSP)

O americano esteve em todas

Elio Gaspari


O Globo, domingo, 31 de março de 2024


Na manhã de hoje, há 60 anos, o embaixador americano Lincoln Gordon chegou à sua sala por volta das 9h15m. Ele sabia que o golpe estava por dias, mas não sabia que o general Olímpio Mourão Filho, comandante da Região Militar com sede em Juiz de Fora (MG), havia resolvido se rebelar. Quem o avisou que a coisa havia começado foi seu adido militar, o coronel Vernon Walters, um homem corpulento, amigo de militares brasileiros desde a Segunda Guerra Mundial.

Walters ralou durante esse dia. No fim da tarde achava-se que o general Castello Branco, seu colega de barraca na Itália e chefe do Estado-Maior do Exército, estava encurralado no Ministério da Guerra. (Falso, ele estava num aparelho na Zona Sul.) Um marechal avisou-o de que uma tropa legalista da Vila Militar marchava para Minas Gerais. Às 19h05m seu prognóstico era sombrio: “A rebelião parece estar perdendo ímpeto.”

Naqueles dias o Rio de Janeiro penava um racionamento de energia e bairros inteiros ficavam sem luz à noite. Perto das 23h, o marechal Lima Brayner, chefe do Estado-Maior da Força Expedicionária Brasileira durante a guerra, ouviu pancadas na entrada de serviço do seu apartamento de Copacabana, abriu a portinhola e viu, iluminado por uma vela, o coronel Walters. Brayner disse-lhe: “O Kruel acaba de lançar um manifesto.” “Graças a Deus”, respondeu Walters, um católico devoto.

A adesão do general Amaury Kruel, comandante da guarnição de São Paulo, havia decidido a parada. O marechal Cordeiro de Farias, patriarca de todas as sublevações militares do período resumiria a questão: “O Exército foi dormir janguista a acordou revolucionário.”

No dia 2 de abril, Walters passou pela casa de Castello Branco, em Ipanema. No dia 4, de novo, e também na do ex-presidente, marechal Eurico Dutra (1946-1950).

Eleito presidente, no primeiro dia de serviço, Castello convidou-o para um almoço no Palácio do Planalto. Walters presenteou-o com um abacaxi.

O coronel Walters entrou na mitologia das intervenções militares americanas como se, com seus seu pés enormes, esmagasse governos. Teria ajudado a derrubar o rei Farouk no Egito (1954), o premier Mossadegh no Irã (1953), os presidentes Manuel Prado no Peru e Arturo Frondizi na Argentina (1962), noves fora Jango. É um exagero.

Na vida real ele foi mais que isso. Onde houve encrenca ou mistério, lá está ele. Conversas secretas com chineses e vietnamitas? Foi Walters quem bateu à porta de embaixada chinesa em Paris com um recado do presidente americano Richard Nixon. Era em sua casa que Henry Kissinger se escondia para negociar com os vietnamitas do Norte. Escândalo do Watergate, que derrubou o presidente dos Estados Unidos? Ele era o vice-diretor da Central Intelligence Agency em 1972, quando a Casa Branca concebeu um estratagema para congelar as investigações do FBI. Walters e o diretor da CIA, Richard Helms, barraram a manobra.

Walters alistou-se no Exército para derrotar o nazismo e continuou na carreira para derrotar o comunismo. Em 1989, ele era embaixador na Alemanha e de sua janela viu o fim do Muro de Berlim. Morreu em 2002, aos 85 anos.

O homem que falava oito línguas

Walters era um interlocutor direto, dotado de um humor sarcástico. Costumava dizer que falava outras sete línguas (francês, italiano, espanhol, português, alemão, russo e holandês) mas não pensava em nenhuma. Seu português tinha pouco sotaque, como o de Roberto Campos.

Quando Fidel Castro lhe disse que estudou com padres, cortou:

— Yo también, pero me quedé fidel.

Quando era acusado de saber tudo sobre o Brasil, respondia.

— Se eu fosse isso tudo, não teria comprado um apartamento no Panorama Palace Hotel. (Lançado no Rio nos anos 1960, o Panorama foi um mico e hoje é chamado de Favela Hub.)

Walters alistou-se no Exército em 1941 antes mesmo que os Estados Unidos entrassem na guerra. Seu pai teve algum dinheiro, mas perdeu-o na Depressão dos anos 1930. Tinha talento para idiomas e lapidou-o na adolescência, como mensageiro de uma companhia de seguros da Babel de Nova York. Achou que com isso teria uma boa posição mas, de saída, virou soldado raso.

Um ano depois era tenente, na área de informações, e um coronel mandou que aprendesse português. Em 1943 foi designado para acompanhar oficiais brasileiros nos Estados Unidos e, mais tarde, na Itália. Daí em diante foi interprete das conversas de presidentes americanos com brasileiros, de Dutra a Médici, de Harry Truman a Richard Nixon. Teve dois padrinhos, o presidente Eisenhower e Averell Harriman, milionário, diplomata, ex-governador de Nova York grão-duque do partido democrata.

Depois de ter vivido alguns anos no Rio (e virar flamenguista), era adido militar em Roma em 1962, quando o embaixador Lincoln Gordon pediu ao presidente Kennedy que o removesse para o Rio, reforçando o dispositivo militar da embaixada. Walters moveu céus e terra para não sair de Roma, pensou em pedir passagem para a reserva. Em outubro o coronel desceu no Rio e teve 13 generais para recebê-lo no aeroporto.

Na noite de 13 de março de 1964 ele viu o discurso de João Goulart na casa do general Castello Branco. (O alto da testa de Castello batia abaixo da base do queixo de Walters, que o descreveria assim: “Baixo, robusto. O pescoço muito curto e a grande cabeça dão a impressão de que é corcunda”.)

Walters deixou o Brasil em 1967 como general. Uma semana depois da edição do AI-5, quando havia pressão para que os EUA se afastassem da ditadura, ele escreveu ao secretário de Estado Henry Kissinger defendendo a aliança:

“Se o Brasil se perder, não será outra Cuba. Será outra China”.

Walters foi adido militar em Paris, vice-diretor da CIA, embaixador nas Nações Unidas e em Berlim. Lá, pelo seu jeitão loquaz, o secretário de Estado James Baker evitava-o.

Washington manda, e Walters cumpre

Em 1966 a Polícia Federal prendeu dois americanos com contrabando de minérios na Amazônia. Um poderoso senador foi ao secretário de Defesa e pediu por eles. Walters recebeu o seguinte telegrama:

“Apreciamos seus francos comentários se há algo que possa ser feito nesse caso através de seus bons contatos com seus interlocutores militares brasileiros.”

Walters foi a Castello Branco dizendo-se envergonhado por encaminhar a gestão. Dias depois, as celas dos americanos amanheceram com as portas abertas e eles fugiram.

Missão impossível, Resgatar Kissinger

Quando: 1970.

Onde: Paris

O general Walters está no seu gabinete de adido militar na França e recebe uma mensagem de Washington informando que o avião que conduz do secretário de Estado Henry Kissinger para mais um encontro secreto com vietnamitas está sobre o Atlântico e será obrigado a descer no aeroporto de Frankfurt, na Alemanha.

Missão: Trazer Kissinger, incógnito, a Paris.

Walters desceu, caminhou até o palácio presidencial e pediu para ser recebido imediatamente pelo presidente francês Georges Pompidou. Expôs o seu caso: precisava de um avião para buscar o secretário.

Quando Pompidou perguntou-lhe o que Kissinger vinha fazer em Paris, respondeu que a viagem envolvia uma senhora.

Pompidou emprestou-lhe um jato militar, ele desceu em Frankfurt, atravessou a pista, mandou apagar os refletores e resgatou Kissinger. Seguindo a rotina, levou-o para seu apartamento, onde a empregada jamais soube quem era o hóspede.

Serviço:

Walters escreveu dois livros de memórias, o primeiro, “Missões silenciosas”, muito bom, tem edição em português.

 

domingo, 24 de março de 2024

Dois diplomatas americanos tiveram papel relevante em 1964: Thomas Mann e Lincoln Gordon - Elio Gaspari (FSP, O Globo)

Antes de transcrever o artigo abaixo, de Elio Gaspari, agradecendo a Maurício David a gentileza da transcrição, permito-me indicar que convivi com Lincoln Gordon, durante minha estada na embaixada em Washington (1999-2003), incentivando-o a publicar um livro sobre o Brasil. Quando saiu, providenciei uma edição brasileira, mas cobrando um capítulo extra sobre o golpe de 1964. Ele o fez. Está aqui a ficha do livro, do qual fiz primeiro uma resenha da edição americana, depois a da edição brasileira: 

788. “Mr. Gordon e o Brazil”, Washington, 3 mai. 2001, 5 p. Resenha do livro de Lincoln Gordon: Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001). Publicado na Revista Eletrônica de História do Brasil, Dep. de História e Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 4, n. 2, jul/dez. 2000.  Divulgado no blog Diplomatizzando (17/04/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/04/lincoln-gordon-o-embaixador-do-golpe.html).


894. “Mr. Gordon e o Brazil”, Washington, 22 abr. 2002, 8 p. Apresentação à edição brasileira do livro de Lincoln Gordon: Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001, xviii+243 p.; ISBN 0-8157-0032-6); A Segunda Chance do Brasil: a caminho do Primeiro Mundo (São Paulo: Editora Senac, 2002). Divulgado no blog Diplomatizzando (17/04/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/04/lincoln-gordon-o-embaixador-do-golpe.html). Relação de Publicados n. 384. 


 Duas dicas de leitura : "Lincoln Gordon", de Bruce Smith e "Thomas C. Mann", de Thomas Allcock (ambos podem ser encomendados pela internet, via a Amazon Books)

Via Maurício David: 

Elio Gaspari ( O Globo e Folha de São Paulo, domingo 24 de março de 2004)

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada

 

Dois diplomatas americanos tiveram papel relevante em 1964 

Thomas Mann foi um conservador resolvido e Lincoln Gordon, um liberal atormentado 

Os 60 anos da deposição do presidente João Goulart são um bom pretexto para lembrar de dois diplomatas americanos que tiveram papel relevante naqueles dias.

Um é Lincoln Gordon, o professor de Harvard que o presidente John Kennedy mandou para o Brasil em 1961 como seu embaixador. Falava muito, sempre. Adquiriu tamanha proeminência que o jornalista Otto Lara Resende propôs: "Chega de intermediários, Gordon para presidente".

O outro é Thomas C. Mann, ex-embaixador no México e secretário de Estado adjunto a partir de dezembro de 1963. Esteve em todas: na armação do golpe que derrubou o presidente da Guatemala em 1954, foi uma das molas do desembarque de tropas americanas na República Dominicana, em 1965, e deixou digitais nos golpes do Brasil e da Bolívia. Atribui-se a ele o que seria a doutrina Mann de apoio a governos militares na América Latina. Falava pouco.

Mann era um texano conservador e resolvido. Os liberais detestavam-no e a recíproca era verdadeira. Gordon era um liberal atormentado e os dias de 1964 fizeram dele uma figura trágica. Morreu em 2009, aos 96 anos, repetindo que, ao colaborar com a queda de Jango, não preconizava a ditadura. De fato, condenou-a, mas ninguém o ouvia.

Na sua cerimônia fúnebre, a filha Anne lembrou: "Apesar de ter sido um democrata progressista que apoiou o New Deal de Franklin Roosevelt, (....) na minha opinião seu antagonismo diante dos movimentos reformistas de esquerda foi imediatista e acabou prejudicando o povo da região".

Gordon, o liberal trágico

Gordon saiu da cepa de liberais da Costa Leste dos Estados Unidos. Seu nome completo era Abraham Lincoln Gordon, marca da origem judaica da família de imigrantes russos. Aluno brilhante de Harvard, ganhou bolsas para temporadas na Europa. Em 1941, com a entrada dos Estados Unidos na guerra, colaborou na adoção de um novo veículo militar, o jipe.

Terminada a guerra, Gordon esteve no coração do Plano Marshall, que ajudaria a recuperação econômica da Europa. Era o maior time de craques que a elite americana produziu. Todos bem-educados, autoconfiantes e liberais.

Em 1961, eles voltaram ao poder com o presidente John Kennedy, e Gordon ganhou embaixada no Brasil. Com a memória do Plano Marshall, ele ajudou a conceber a Aliança para o Progresso, um programa de ajuda a reformas sociais na América Latina. Elas seriam uma resposta ao fascínio gerado pela revolução cubana do guerrilheiro Fidel Castro.

Ia tudo muito bem, até que Gordon passou a desconfiar do presidente João Goulart. Temia que Jango marchasse para a esquerda e para um golpe.

No dia 30 de julho de 1962, quando o presidente Kennedy começou a operar o grampo das conversas em sua sala de trabalho, Gordon foi a primeira vítima. Pediu que fosse reforçada sua equipe militar e recomendou que se jogassem alguns milhões de dólares para influenciar as eleições brasileiras.

Nessa conversa de meia hora, pela primeira vez, falou-se na deposição de Jango. Ela veio de Richard Goodwin, jovem assessor de Kennedy: "É bem provável que tenhamos de pedir a eles [os militares brasileiros] que tomem o poder lá pelo fim do ano".

O tema não prosperou, mas Gordon alarmava-se com Jango. Em agosto de 1963, Thomas Hughes, o diretor de pesquisas do Departamento de Estado, condenou seu alarmismo, sustentando que Goulart era um reformista.

Em outubro, o Brasil caiu de novo na roda e Kennedy levantou a possibilidade de uma ação direta dos Estados Unidos, mas Gordon a descartou. Contudo, dias depois, o embaixador pediu um plano de contingência militar para o Brasil. Ele resultaria mais tarde na Operação Brother Sam. Incluiu o porta-aviões Forrestal e petroleiros, sem tropa de desembarque. Tratava-se de "mostrar a bandeira", mas não foi necessário, e o Forrestal voltou para o alto mar no dia 3 de abril. 

Jango, seu dispositivo militar e suas bases sindicais ruíram como um castelo de cartas.

Gordon sustentou por décadas que chegou à embaixada pouco depois das 9h do dia 31 de março, sem saber do levante do general Mourão Filho. Vá lá.

Quatro dias antes, ele pediu que a frota fosse colocada de prontidão porque Jango radicalizava e, "se ele for bem-sucedido, é mais do que provável que o Brasil caia sob pleno controle comunista".

Um telegrama da CIA, do dia 30 de março, avisou que o golpe viria nos próximos dias. À noite, o secretário de Estado, Dean Rusk, avisou ao presidente Lyndon Johnson, que estava no Texas:

"Tive uma reunião com Tom Mann e um grupo daqui, incluindo a CIA (Agência Central de Inteligência), sobre a situação brasileira. A crise vai chegar ao auge nos próximos um ou dois dias, talvez até mesmo de hoje para amanhã."

Pouco depois, Johnson avisou ao secretário de imprensa que deveriam voltar para Washington.

Thomas Mann, o conservador resolvido

Tom Mann, um texano de Laredo, tinha 52 anos. Era o embaixador no México no dia 22 de novembro de 1963, quando o presidente John Kennedy foi assassinado e assumiu o vice Lyndon Johnson, também texano e seu amigo.

Johnson resolveu colocá-lo na chefia da diplomacia americana para a América Latina. Essa escolha marcou o primeiro racha com a equipe deixada por Kennedy. Tentaram barrá-lo, em vão.

Quando os militares brasileiros se rebelaram, o governo de Johnson abriu a pasta e seguiu o roteiro pedido por Gordon e deixado por Kennedy.

Mann fez isso com fé. Em março ele já havia reunido os embaixadores americanos da região, dizendo-lhes que deviam parar de maltratar os militares, pois as prioridades da Casa Branca deviam ser a defesa do patrimônio das empresas americanas e o combate ao comunismo. Mann já havia dito a Johnson que Jango era "um irresponsável".

Às 11h46 do dia 31 de março, a pouca tropa do general Mourão Filho continuava no quartel e ele se preparava para almoçar e dormir a sesta. Em Washington, Dean Rusk discutia com Mann o apoio americano e a formação de uma equipe para trabalhar num apoio de emergência ao Brasil depois do golpe.

Com Jango deposto, Mann ligou para Johnson: "Espero que o senhor esteja tão feliz como eu a respeito do Brasil".

"Estou", respondeu o presidente. "Eu acho que foi a coisa mais importante que aconteceu no hemisfério em três anos", acrescentou Mann.

Em tempo: Johnson nunca acreditou que Lee Oswald tivesse sido o assassino solitário de Kennedy. Em pelo menos duas ocasiões, disse que "ele tentou pegar Fidel e Fidel pegou-o".

Em novembro de 1963, Mann era o embaixador no México, por onde Oswald havia passado, tentando conseguir um visto para Havana. Ele acreditava na conexão cubana e incentivou a investigação, até que o Departamento de Estado disse-lhe que abandonasse o caso: "Foi a experiência mais estranha da minha vida", disse a um senador que era grande amigo de Johnson, havia sido membro da comissão que investigara o crime e também não acreditava no atirador solitário.

Serviço: Estão na rede, em inglês, dois livros. Um, rico, com a vida de Gordon, e outro sobre um aspecto lateral de Mann. Um é "Lincoln Gordon", de Bruce Smith, e o outro é "Thomas C. Mann", de Thomas Allcock.


quarta-feira, 20 de março de 2024

“Rouba mas gera crescimento’”? Não é bem assim - Bernardo Guimarães (FSP)

 20mar24/ Folha de São Paulo

Bernardo Guimarães

Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP 

O argumento 'rouba mas gera crescimento' não se sustenta 

Empresas que vivem da corrupção limitam o crescimento da produtividade 

Eis a Odebrecht na praça outra vez. Como noticiou a Folha, a empresa, com novo nome, está liderando a disputa para retomar as obras da refinaria Abreu e Lima, da Petrobras.

A força da Odebrecht para liderar propostas para licitações bilionárias, dez anos depois do início da Lava Jato, toca em questões econômicas importantes ligadas à operação.

Uma discussão é sobre punição às empresas. Um argumento é que as pessoas deveriam ser punidas por corrupção, mas as empresas deveriam ser preservadas. Há importantes questões jurídicas aqui (sobre as quais não me cabe opinar), mas a base do argumento é econômica: a ideia é que a quebra dessas empresas reduziria a produtividade e, portanto, teria um impacto econômico negativo. 

Faz sentido esse ponto? Depende do que faz empresas como a Odebrecht serem líderes nesse setor.

Começo pelo argumento favorável.

Se uma grande empresa de engenharia se desfaz, os profissionais continuam existindo, mas a empresa perde a estrutura organizacional e o que fazia o todo ser maior que a soma das partes.

Com o tempo, esses profissionais acabarão se juntando em outras empresas, mas pode ser custoso e difícil replicar a estrutura que fazia o time jogar tão bem anteriormente.

Se é isso o que fazia a Odebrecht vitoriosa, a empresa ser muito produtiva, capaz de fazer obras com qualidade a um custo menor que as alternativas. Isso se traduziria em bons preços para quem a contratava.

Em 2005, o custo estimado da refinaria Abreu e Lima era de US$ 2,5 bilhões; agora, passa de US$ 20 bilhões. Adriano Pires, Luana Furtado e Samuel Pessoa estimaram que o custo de construção da refinaria por unidades de barril de petróleo foi 5 a 7 vezes superior ao custo de outras construídas na época pelo mundo.

Pode ser que, se não fosse a tecnologia organizacional da Odebrecht, o custo seria ainda maior (por exemplo, porque nossos profissionais seriam muito improdutivos). Mas haveria uma explicação alternativa pelo sucesso da empresa? Uma compatível com preços altos?

Bem, vamos supor que a força da Odebrecht fosse a capacidade de ganhar obras a um preço alto, por conta de conexões políticas.

Por exemplo, a empresa poderia ter um esquema bem organizado para transferir recursos para inúmeros políticos. Assim, ela criaria uma reputação de boa pagadora de propinas. Estes, em contrapartida, influenciariam concorrências e licitações de modo a favorecê-la.

É uma hipótese.

Uma implicação é que a empresa ganharia muitas concorrências a preços altos.

Outra implicação é que o tão falado argumento de perda de produtividade ocasionada pela quebra dessas empresas cai por terra.

Qualquer realocação de recursos na economia tem custo. Novas tecnologias, por exemplo, mudam a natureza dos empregos, exigem a realocação de pessoas em outras empresas. E tudo isso toma tempo e tem um custo no curto prazo. Esse tipo de custo estaria presente com a quebra de empresas cuja vantagem comparativa fosse a capacidade de ganhar concorrências baseada em esquemas de corrupção.

Esse, porém, é um custo que queremos pagar. É parte do processo de destruição criativa pelo qual passa a economia.

Empresas que têm como vantagem comparativa as ligações com políticos e a corrupção não são especialmente produtivas, mas ganham concorrências. Se elas não existissem, haveria mais espaço para o crescimento de outras mais produtivas e mais incentivos para o investimento em ganhos de produtividade. É isso que gera crescimento.

Em suma, o argumento ‘rouba mas gera crescimento’ não se sustenta.


segunda-feira, 4 de março de 2024

Embraer negocia 1ª linha do cargueiro KC-390 fora do Brasil - Igor Gielow (FSP)

 

Embraer negocia 1ª linha do cargueiro KC-390 fora do Brasil

Empresa que fornecer avião para a Arábia Saudita, que tem demanda para maior frota do modelo

RIAD (ARÁBIA SAUDITA)

Embraer negocia com a Arábia Saudita a criação da primeira linha de produção da estrela de seu portfólio militar, o avião de transporte multimissão KC-390, fora do Brasil.

"Nossa proposta é maximizar a presença da Embraer, com escritório de engenharia, linhas de produção", afirmou Caetano Spuldaro Neto, vice-presidente da Embraer Defesa para Oriente Médio e Ásia-Pacífico, durante conferência empresarial do Grupo Lide, do ex-governador paulista João Doria, em Riad.

Desde que assinou no ano passado um memorando de entendimento com o fundo saudita Sami para disputar a substituição da frota de cargueiros C-130 Hércules em operação no reino do golfo Pérsico, a empresa tem discutido opções para a fabricação local do seu avião devido às características da demanda árabe.

Um dos seis KC-390 que já estão em operação pela Força Aérea Brasileira
Um dos seis KC-390 que já estão em operação pela Força Aérea Brasileira - Müller Martin - 30.out.2023/FAB

Riad embarcou em um projeto modernizador de sua economia e sociedade, chamado Visão 2030, que visa libertar o país da dependência do petróleo, hoje responsável por 40% de suas receitas, segundo Osmar Chofhi, presidente da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira.

Para bancar a ideia, contudo, o país conta com seus petrodólares. O setor aeroespacial é um dos principais pilares do Visão 2030 por proporcionar não só compras de prateleira, mas parcerias tecnológicas.

É aí que entra a campanha do KC-390 na Arábia Saudita. O reino está interessado não só em comprar o avião, mas fabricá-lo e capacitar mão de obra local no processo —o plano é ter 50% do conteúdo local. Analistas de mercado afirmam que a Embraer conseguiria escalonar uma produção do tipo, dado o dinheiro disponível aos sauditas: o país teve o sexto maior orçamento de defesa do mundo em 2023, equivalente a R$ 340 bilhões.

O Oriente Médio é, proporcionalmente em relação ao PIB, a região do mundo onde mais se gasta em defesa. A rivalidade entre sauditas e seus aliados com o Irã, a guerra entre Israel e o Hamas e outros conflitos inspiram tal realidade.

"Contemplamos no nosso projeto um plano de uma linha montagem final e produção do KC-390. É uma proposta de valor alinhada com a Visão 2030", disse Spuldaro. Ele disse que as conversas envolvem aeronaves civis da Embraer, como o jato comercial E2, e carros voadores elétricos de sua subsidiária Eve.

A demanda nominal dos sauditas no campo de transporte militar a substituição paulatina de sua frota de 52 Hércules, lendário aparelho norte-americano que voa em diversas versões desde os anos 1950. Dessas, 33 são mais antigos modelos H, sem capacidade de reabastecimento em voo.

O KC-390 tem mirado o mercado mundial de Hércules. Além dos 19 aviões vendidos para sua primeira cliente, a FAB (Força Aérea Brasileira), a Embraer engatou uma série de negócios recentemente: cinco países europeusencomendaram ou selecionaram 18 aviões, a Coreia do Sul irá comprar 3.

O negócio saudita é de outra magnitude, com uma frota potencialmente superior à brasileira. Spuldaro disse que a ideia é transformar a Arábia Saudita em um centro de distribuição para todo o Oriente Médio.

Dali para chegar a outros ricos países da região, com os Emirados Árabes Unidos, é um pulo —ressalvando que, nesse mercado, a medida de tempo é em anos e sujeita a diversas intempéries.

A própria Arábia Saudita tem um longo histórico de negócios soluçantes de defesa, sujeitos a questões geopolíticas, como a aquisição de 54 novos caças ora em debate mostra: Riad queria ampliar sua frota do europeu Typhoon, mas aceitou a entrada do francês Rafale na disputa para pressionar melhores condições.

Os fabricantes europeus do Typhoon, Alemanha e Reino Unido à frente, haviam decretado um embargo parcial a Riad devido às violações aos direitos humanos do reino, mas a chegada dos franceses na disputa os fez abandonar os pudores.

Há um fator adicional para a Embraer, que é o peso político da relação entre a Arábia Saudita e os EUA, fabricantes do C-130. No mercado de defesa brasileiro, poucos esquecem que a escolha de Riad pelo tanque americano Abrams nos anos 1980.

O blindado havia sido derrotado tecnicamente pelo tanque brasileiro Osório, da Engesa, então uma das grandes empresas de defesa do mundo, mas a seleção acabou sendo política —e a fabricante paulista acabou falindo pelo investimento no produto, entre outros problemas.

O KC-390 segue em outras campanhas, como em Singapura e na Suécia, onde está avançada a negociação para uma compra casada: a venda do cargueiro para Estocolmo e a ampliação da frota de caças suecos Gripen, fabricados em conjunto com a Embraer, de 36 para 50 unidades.

O jornalista viajou a convite do Lide