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sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Haiti, uma vez mais: crises recorrentes devem servir de alerta - Ricardo Seitenfus (Brasil de Fato)

O Haiti é um Estado falido, em todos os planos. Acontece...

O Haiti, uma vez mais: crises recorrentes devem servir de alerta

O espoucar de foguetes à notícia da adoção da Resolução deve ser temperado pois o mais difícil está por vir

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
  

Após meses de tergiversações o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, por treze votos favoráveis e duas abstenções (China e Rússia), no início desta semana, uma Resolução autorizando o envio de uma missão multinacional de apoio à segurança no Haiti.

Apesar do ruído da grande imprensa internacional, dos políticos e dos diplomatas, a decisão não constitui novidade alguma pois o Haiti se tornou, para sua infelicidade, desde o início dos anos 1990, um dos principais clientes do Conselho de Segurança. Desde então nada menos de dez « Missões » da ONU foram enviadas ao país. Com distintos propósitos e instrumentos de ação.

A existência de um « rosário missioneiro » como no caso haitiano, indica e tende a comprovar que o aporte destas missões foi nulo. Mal pensadas e conduzidas, seus reiterados fracassos levam à necessidade de retornar periodicamente ao Caribe. Exatamente o que estáo correndo atualmente.

O teor da Resolução indica que a missão reunirá componentes policial e militar de países voluntários. Seu financiamento idem. Se trata de uma original e pouco comum missão « não-onusiana ». Embora autorizada pelo Conselho de Segurança, a responsabilidade será de um grupo de países, ainda indefinidos, capitaneados pelo Quênia.

Paralelamente há indicação sobre a necessidade de um acerto político entre os haitianos. Para tanto o Conselho de Segurança confia nos esforços diplomáticos e de mediação da Comunidade do Caribe  (Caricom), da qual o Haiti é membro.

Sempre é aconselhável observar e analisar o conteúdo, o contexto e a semântica das Resoluções do Conselho de Segurança. Todavia um texto é o que ele diz e também o que ele cala. Neste sentido há silêncios que falam por si. O mais importante deles é a subjacente crítica à ação da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah) (2004-2017) cujo braço armado foi permanentemente comandado por generais brasileiros.os sucessivos governos brasileiros, o fato é que sob nosso comando, militares à serviço da Minustah e sob a bandeira das Nações Unidas, levaram ao Haiti, pela primeira vez em outubro de 2010, o vírus da cólera que infectou 800 mil pessoas e vitimou 30 mil, sobretudo camponeses da região rizícola de Artibonite, na região central do Haiti. Ainda hoje, a epidemia provoca mortes.

A máquina política, diplomática, burocrática, militar e jurídica das Nações Unidas tentou acobertar o escândalo. A presente Resolução do Conselho de Segurança ao aprovar uma missão « nao-onusiana » condena a todos, inclusive o poderoso Departamento de Operações de Paz.

Um segundo silêncio diz respeito à Organização dos Estados Americanos. Sequer mencionada, a OEA paga tributo à atuação pífia de seu Secretário Geral e aos equívocos decorrentes de seu alinhamento automático à posições equivocadas e frontalmente contrárias ao seu protagonismo em crises anteriores.

O espoucar de foguetes à notícia da adoção da Resolução deve ser temperado pois o mais difícil está por vir : fazer transitar seus propósitos para o terreno dos fatos. As recorrentes crises haitianas devem servir de alerta. Não é por acaso que o país recebeu a alcunha de « cemitério de projetos ». Considero que a antiga « Pérola das Antilhas » como o país das ilusões e inocências perdidas. Aconselho à todos cautela, prudência e caldo de galinha.

Ricardo Seitenfus foi Representante da OEA no Haiti (2009-2011) e autor de Haiti: dilemas e fracassos
internacionais
 e A ONU e epidemia de cólera no Haiti.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Mortes por cólera e golpe eleitoral: o rastro das missão brasileira no Haiti - Ricardo Seitenfus

MISSÃO DE PAZ?

Mortes por cólera e golpe eleitoral: o rastro das missão brasileira no Haiti

Ex-representante da OEA fala sobre as consequências da missão militar brasileira no país mais pobre do ocidente

Brasil de Fato, 9/09/2020

A um mês de completar três anos da retirada das Forças Armadas brasileiras do Haiti, o rastro da presença dos militares ainda está presente no país. A principal marca da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), comandada pelas tropas do Brasil durante treze anos (2004-2017), são milhares de vítimas de uma epidemia de cólera, a miséria e a instabilidade política em que o país se encontra ainda hoje.

É o que afirma Ricardo Seitenfus, doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra que atuou como representante especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti entre 2009 e 2011.

Em seu livro A ONU e a Epidemia de Cólera no Haiti, Seitenfus aponta que soldados do Nepal que atuaram na Minustah foram os responsáveis por levaram o vírus ao Haiti. Segundo ele, ao invés de combater a disseminação da doença, a Organização das Nações Unidas (ONU) concentrou esforços em esconder sua responsabilidade pelo episódio com conivência dos oficiais brasileiros. 

“Há uma lei do silêncio em torno da questão que é vergonhosa. Se sabia desde o início [que os soldados nepaleses levaram a coléra para a ilha] e isso provocou milhares de mortes. Quando fazemos o balanço da situação do Haiti no momento em que saímos, é de um país com 50 mil mortes de cólera, instável e mais pobre do que estava. Ao invés de premiar os militares que lá foram, deveríamos pedir a conta a eles”, disse Seitenfus, em entrevista ao Brasil de Fato.

Durante a Missão de Paz, o Brasil enviou 37 mil militares ao Haiti, maior força militar brasileira no exterior depois da Guerra do Paraguai.

"Nós nos apresentamos como salvadores do Haiti. Premiamos os generais brasileiros que passaram no Haiti com postos de ministros. No Palácio do Planalto, nunca foi contestado nada, quando de fato o Brasil foi conivente com essa situação", afirmou o especialista.

Para ele, é urgente que os brasileiros e haitianos conheçam todos os lados da Missão de Paz que deixou danos permanentes no país.

"Foi uma experiência para o Brasil que começou de forma eufórica e terminou de forma trágica. Essa é a experiência da Minustah. E eu espero que os militares - muitos se referiram ao Haiti como se fosse um pós-doutorado que tivessem feito lá fora - reflitam sobre sobre os aspectos absolutamente negativos da missão".

Confira a entrevista completa.

Brasil de Fato - Em seu livro “A ONU e a epidemia de cólera no Haiti” você aponta a responsabilidade da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah) em relação a epidemia de cólera que atingiu o país. Como isso aconteceu?

Ricardo Seitenfus - A primeira coisa que quero enfatizar é que o Haiti, apesar de reunir condições sanitárias que nós sabemos que são as piores do Ocidente, nunca, nunca, reitero, em toda sua história, teve cólera. A história da cólera nas Américas exclui o Haiti. A primeira vez que chega a cólera no Haiti é em outubro de 2010 por meio de movimentos de tropas das Nações Unidas e soldados vindos da região de Katmandu, do Nepal. A cólera surge justamente em um vilarejo ao lado de Mirebalais, onde estava a base de soldados do Nepal.

Isso ficou claro, e aí é importante o fio do tempo, a cronologia. Em novembro de 2010, ficou bastante claro. Mesmo em outubro, autoridades haitianas, a começar pelo presidente da República, René Préval, faz uma declaração para a imprensa: "isso é uma doença importada". Ficou bastante claro desde o início que havia um elemento exógeno, estrangeiro, que havia se inserido no meio haitiano naquela região. E as Nações Unidas tomam uma decisão em sua mais alta cúpula de não reconhecer a essa realidade.

E a partir daí estabelece uma estratégia de várias etapas, que eu descrevo no livro, de negação, minimização, até que em 2013, três anos depois, eles reconhecem que sim. Mas aí falam que têm imunidade. Que as operações de paz se beneficiam da imunidade das Nações Unidas.

Mas durante esse período, caso as autoridades haitianas soubessem, desde o início, desde 20 de outubro de 2010, que tivessem certeza que dali que veio a cólera, o embrião, assim que se comporta, poderiam ter tomado medidas preventivas como, por exemplo, proibir a utilização dos rios.  No Haiti, os rios, no interior, que dão água potável,  são utilizados para banho, para dar de beber aos animais, preparar as refeições, cozinhar, fazer de tudo. Os rios são limpos. Não existem defensivos agrícolas, as águas são limpas, é uma agricultura absolutamente natural.

E a partir daí, essa água que era uma fonte de vida no Haiti, sobretudo no Haiti rural, se transformou. Houve, como o epidemiologista francês Renaud Piarroux fala, um verdadeiro tsunami colérico. Não foi um ou dois turistas. Aquilo matou dezenas e centenas e depois milhares de pessoas em um período extremamente curto.

Queria fazer uma primeira diferenciação entre o que aconteceu no Haiti na época e o que acontece hoje. É que se sabe muito bem como tratar a cólera. É uma doença hiper conhecida, comportamento previsível, mesmo que seja objeto de mutações genéticas, o comportamento de impedir que se use os esgotos e o uso apenas de água encanada e tratada. Enfim, há uma série de medidas profiláticas bastante simples de serem aplicadas.

No entanto, as Nações Unidas naquele momento, não seguiram o caminho normal que segue a ciência no caso da cólera, que é a análise do que compõe esse vibrião colérico. Eles foram buscar outras motivações e origens possíveis para o surgimento do cólera e deixaram de lado a análise do genoma sequencial. 

O que foram fazer? Disseram que várias teses apareceram... uma era de que forças telúricas surgiram a partir do terremoto de janeiro de 2010. É inédito que cientistas se baseiem nisso, porque nunca se viu. Depois falaram do balastro dos navios que acostam em um porto que chama San Mar, mas também, evidentemente, não foi ali que nasceu. 

E uma terceira explicação foi o aquecimento global, dizendo que a cólera seria originária do aquecimento global, que impulsionaria o surgimento do bacilo cholerae na região do Delta do Artibonite. Ou seja: se afasta completamente o que já em 1851 havia sido estabelecido, que teria que analisar o genoma sequencial do cólera. E se vai para teorias naturais, que as origens seriam naturais e não de atividade humana. Essa é uma diferença muito grande em relação à covid-19 porque não sabemos qual o comportamento dele. A ciência está dividida, alguns exigem certas coisas, outros propõem a cloroquina... Há um debate dentro da ciência que se presta a uma utilização política.

No caso da cólera no Haiti não. Deveria ser bastante claro: é a análise do genoma sequencial. E é isso que, finalmente, a comissão de especialistas convocados pelo Ban Ki-moon, então secretário-geral da ONU, quando entrega o relatório em maio de 2011, afirma. Fazendo a análise do genoma sequencial e dizendo que provavelmente veio do Nepal, que é em razão da atividade humana, ou seja, dos excrementos e não uma causa natural.

Mas mesmo assim, como no relatório os especialistas escrevem provavelmente, as Nações Unidas se utilizam da expressão para alegar que não há certeza. Mas havia certeza.

Em 2012, uma das integrantes da comissão de especialistas disse: "não, o vibrião (bactéria) colérico tem a mesma composição no Haiti e no Nepal, exatamente a mesma". Então há uma situação bastante clara desde o início. Um elemento estrangeiro, de origem humana, que provoca a cólera no Haiti. E as Nações Unidas, ao longo de todo esse período, tem essa atitude de desviar a atenção, de desresponsabilizar. 

E, muito importante enfatizar isso, há uma conjunção de vontades de esconder a realidade. A grande imprensa internacional praticamente não fala sobre isso. Os governos envolvidos com a Minustah, a começar pelo nosso, não falam sobre isso. 

Para que tenha uma ideia, ainda em 2017, sete anos depois que havia o reconhecimento científico-político dessa realidade, o então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Aloysio Nunes, vai ao Haiti para se despedir das tropas, que estavam voltando, e diz que as infelicidades haitianas não são de responsabilidade da Minustah. Há o que eu chamo de Omertá. Uma lei do silêncio em torno da questão, que é vergonhosa. Se sabia desde o início e isso provocou milhares de mortes.

O Renaud Piarroux não fala de dez mil, ele fala em 50 mil mortes em total silêncio, em total conivência. Em total lei da Omertá, dos mafiosos italianos. Ainda hoje, fico muito feliz que estejamos tratando disso, é uma responsabilidade intelectual minha de escrever esse livro. É um livro desagradável, claro que é, porque a realidade é muito desagradável.

Nós nos apresentamos como salvadores do Haiti. Premiamos os generais brasileiros que passaram no Haiti com postos de ministros. No Palácio do Planalto, nunca foi contestado nada, quando de fato o Brasil foi conivente com essa situação. O Brasil não exerceu a responsabilidade que deveria ser a sua.

E mais ainda, o general Paul Cruz que em 2010 era o Force Commander da Minustah, ele tinha a responsabilidade do acampamento, da base dos nepaleses. Ou seja, o Brasil, não somente seus militares mas também o seu governo, têm responsabilidade em relação a isso.

Quando se consulta essa solução proposta no apagar das luzes de seu mandato pelo Ban Ki-Moon e de recolher US$ 400 milhões para resolver essa situação, no site, é possível ver que os Estados Unidos colocaram US$ 10 milhões e que o Nepal colocou US$ 237 dólares e o Brasil zero.

É algo que temos que resgatar. Faz parte da nossa experiência, infelizmente com esses dados absolutamente negativos. E a humanidade não aprendeu porque está repetindo os erros com a covid. Não aprendeu e toda a discussão sobre a origem da covid é de novo a discussão sobre a origem da cólera.

Toda a discussão sobre o papel da OMS, também tivemos lá. Sobre o papel da OMS e da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) braço americano da OMS. Chegaram a falsificar mapas na época para mostrar que a cólera não havia surgido no departamento de Mirebalais, ou seja, houve uma conivência do conjunto das Nações Unidas, da chamada "família" das Nações Unidas. 

Quando se recupera os dados, as declarações, as informações, os mapas, é absolutamente incrível o que aconteceu no Haiti e que foi levado de roldão com um total manto de cumplicidade e de silêncio sobre isso.

Até chegar ao que eu te disse anteriormente, a questão da imunidade. Dizer que soldados envolvidos em operações de paz tem imunidade. Como? Baseado na Convenção de Londres de 1946, que foi firmada para proteger os funcionários civis das Nações Unidas. Como há também a proteção diplomática das convenções de Viena para os embaixadores, para os enviados... mas nunca se falou que isso protegeria soldados em armas, em armas ofensivas, inclusive.

Então, no frigir dos ovos, uma conclusão que se pode extrair dessa interpretação maximalista das Nações Unidas sobre o privilégio da imunidade é que os soldados das Nações Unidas, os capacetes azuis nas Operações de Paz, são os únicos que não precisam respeitar as Convenções de Genebra e não precisam respeitar o direito da guerra. Isso é um absurdo total. Sabemos que em 1948 foi firmada a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o primeiro princípio é o direito à vida.

E, portanto, lá os soldados, segundo essa interpretação das Nações Unidas, podem matar e voltar para seu país livremente, sem nenhum tipo de processo. Fazendo um parênteses, tem a questão dos "babies da Minustah".As crianças que foram geradas por soldados e aí tem uma lista de nacionalidades onde o Brasil está em segundo lugar. São mais de 280 crianças. Também não há nenhum tipo de proteção ou trabalho feito pelas Nações Unidas e muito menos pelos militares, pela Justiça militar dos países que enviaram tropas pra lá. 

E aí também é uma discussão jurídica que pra mim é bastante clara sobre o duplo chapéu que têm os soldados enviados em Operações de Paz, que seria o chapéu do país que envia e o chapéu das Nações Unidas. A ONU se esconde atrás dessa possível interpretação do duplo chapéu para dizer que a Justiça militar dos respectivos países fará com que isso seja resolvido, que fará justiça. E nunca foi feito.

Tem uma frase que eu utilizo que é: a justiça militar está para a justiça como a música militar está para a música. Há uma grande diferença entre justiça militar e justiça. 

Qual seria a responsabilização possível no caso da disseminação da cólera no Haiti?

Em 2017, o Ban Ki-Moon criou uma espécie de observatório sobre possíveis delitos sexuais, muitos haviam sido acusados em Operações de Paz. No Congo, no Haiti e outros lugares. Então, tem uma responsável que recebe as demandas por parte das famílias ou por parte das vítimas, mas são demandas individuais ao passo que isto está previsto exclusivamente para delitos de natureza sexual. Não está previsto para vítimas de ações coletivas, que é o caso da cólera.

Não há maneira de buscar justiça. As Nações Unidas haviam previsto no acordo de sede com o Haiti, uma comissão de reparações de particulares, e essa comissão nunca foi criada. 

Inclusive, na Comissão de Londres, na chamada sessão 29, que supostamente daria imunidade para todos em trabalho para as Nações Unidas, na sessão 30, ou seja, na sessão seguinte, diz que quando houver algum tipo de dúvida em relação à interpretação das sessões anteriores, seria feito uma consulta à Corte Internacional de Justiça. As Nações Unidas nunca aceitaram isso. Está previsto na Convenção de Londres de 1946 e também no acordo-sede entre as Nações Unidas e o Haiti, mas nunca permitiram.

Portanto há uma espécie de denegação de jurisdição. As vítimas não sabem a quem demandar. Isso é uma infração jurídica e mesmo penal. Ou seja, a vítima tem que ter meios de reclamação e não tem.

E com relação ao comando da Minustah, qual foi o papel das Forças Armadas brasileiras nesse período?

São duas fases da Minustah. Há uma fase que vai de 2004 a janeiro de 2010 e uma segunda fase de janeiro de 2010 até o seu fim. Até o final de 2009, eu representava a OEA no Haiti, tínhamos reuniões no Core Group para discutir o que chamávamos de modelo de saída de crise. Como podemos deixar o Haiti? Uma missão de paz onde não havia guerra. 

Tudo estava mais ou menos encaminhado. As gangues haviam sido desmanteladas, o Préval havia sido eleito no primeiro turno de 2006, a economia havia retomado um pequeno e médio crescimento, havia um diálogo nacional. Então, 2008-2009 é um momento de imaginar um modelo de saída de crise, fechar as malas e ir embora. É quando acontece o terremoto, em janeiro de 2010.

E o terremoto muda tudo. Vem os marines nos Estados Unidos, 20 mil. O Préval é visto como alguém inapto. Em outubro vem a cólera, um milhão de pessoas nas ruas. É necessário tirar todos os destroços da região metropolitana de Porto Príncipe. Há 230 mil mortos, 300 mil feridos. É uma catástrofe de dimensões gigantescas.

Nesse momento, quando os Estados Unidos enviam os 20 mil marines, mostram, bem claramente, que o Comando Sul não confia na Minustah. Há uma certa tensão entre a Minustah e militares americanos para saber quem vai fazer o que naquele momento, quem distribui os livros, quem faz segurança.

Os haitianos foram extremamente corajosos e até estóicos com o terremoto, não houve saques, rebeliões, não houve nada. Poucas semanas depois os marines foram embora, viram que não tinham função nenhuma ali. Mas mesmo assim, a partir daquele momento, o papel político da América Latina e propriamente do Brasil se esvai. O que é confirmado em dois episódios.

No episódio da cólera, onde ficamos em silêncio e não fizemos o que deveria ser feito, e no episódio das eleições do fim de ano de 2010 para a substituição do Préval. Houve um golpe eleitoral preparado pela Hillary Clinton com a conivência dos demais, que impactou o resultados das eleições no primeiro turno. Conto isso em outro livro: "Haiti: dilemas e fracassos internacionais".

Eu me opus ao golpe e me retiraram do Haiti em novembro de 2010. E ai é eleito o Michel Martelly. E aí é interessante... Fomos em uma Missão de Paz e resgatam o duvalierismo depois desse período. E ele faz o mandato dele de uma forma autoritária até 2016 e faz o sucessor dele que lá está até hoje. Não tem mais parlamento, não tem mais Conselho Eleitoral, desígnios dos prefeitos. É, de fato, um ditador.

Há mesmo até uma tese dizendo que normalmente depois de uma operação de paz o que fica no país que recebeu a operação de paz é um regime autoritário. É o caso da Libéria, do Congo, do Camboja. O primeiro-ministro do Camboja está no cargo há 37 anos. E foi colocado pelas forças de paz das Nações Unidas. Há outra tese que diz que as operações de paz das Nações Unidas, quando vão embora, deixam alguém autoritário e de extrema-direita. No caso do Haiti é bastante claro em relação a isso.

O Brasil perde, e a América Latina junto, o comando, mas unicamente pró-forma. Mandamos, nesse período, 37 mil militares ao Haiti. É a maior força militar brasileira no exterior depois da guerra da Tríplice Aliança, da Guerra do Paraguai. Mais ainda que na Segunda  Guerra Mundial quando mandamos 26 mil militares pro norte da Itália.

Então, é a maior presença brasileira militar depois da Guerra do Paraguai e quando fazemos o balanço disso, a situação do Haiti no momento em que saímos é um país com 50 mil mortes de cólera, deixamos um país instável, mais pobre do que estava e ao invés de premiar os militares que lá foram, deveríamos pedir contas a eles. Mas não foi isso que foi feito.Há uma tentativa de dourar a pílula, de contar outra história, quando a história é muito dramática, muito difícil.  

A América Latina teve esse papel triste, para as Forças Armadas brasileiras, foi um treinamento. Inclusive o Heleno, em 2010, diz que como treinamento foi excelente. Como Missão de Paz não tem mais sentido. Ele mesmo disse isso. Em 2010 deveríamos ter saído do Haiti e ter outro tipo de presença de cooperação econômica e desenvolvimento econômico e social. Hoje o Haiti está em pior situação do que estava em 2004.

E no caso desse exercício doméstico que as tropas brasileiras acabaram fazendo lá, vemos que mais pra frente tivemos uma intervenção no Rio de Janeiro da mesma forma. Esses militares estão hoje no governo. Foi uma decisão do governo mas qual o interesse das Forças Armadas em permanecer no Haiti? Visibilidade? Por que permaneceram ali?

Acho que há muitas razões. Primeiro a participação em uma operação de guerra sem correr nenhum risco. Tivemos zero mortes em combate, zero. Nenhum soldado, nenhum militar, nenhum policial morreu em combate no Haiti. Morreram em acidente, suicídio, é outra coisa.

Primeiro, é um exercício militar com baixa zero. Segundo, uma parte dele é paga pelas Nações Unidas. Terceiro: Tivemos autonomia de transporte, de comunicações, de testar a indústria bélica nacional, fantástica. Em um terreno propício. E, finalmente, uma última razão e que muitos mencionavam, e outros pensavam, que o Haiti era um laboratório que serviria de experiência para serem usadas nas regiões metropolitanas brasileiras.

A questão haitiana se resume às favelas de Porto Rico. Os militares, a começar pelo General Heleno, que fala claramente de usar helicópteros para sobrevoar favelas e atirar contra, como já foi feito no Rio de Janeiro. Como fizeram no Haiti. Dizer que no Haiti, como disse ele, havia uma autorização judicial, que o juiz dava autorização, isso não é verdade. O judiciário haitiano nunca se voltou a essa questão. Era única e exclusivamente dos militares da Minustah. 

Houve mortes em 2005 e 2006 sim [em decorrência do uso de helicópteros]! Há um documentário sobre isso, em que se mostra claramente que usaram helicópteros. Havia alguns diplomatas e militares que diziam que até escreveram que o Haiti seria um laboratório. Eu acho isso uma posição vergonhosa, de se utilizar dessa situação terrível para fazer uma espécie de aprendizado. Mas é isso que foi feito. 

O senhor aponta que os militares atuaram para encobria a epidemia de cólera no Haiti e hoje vemos os militares aqui no Brasil tomando pra si o Ministério da Saúde e também lidando com uma epidemia. O senhor vê semelhanças na ação militar brasileira nesses casos?

Eu acho que no caso do Haiti, se entrevistarem algum militar [brasileiro] sobre isso, ele vai dizer duas coisas: Primeiro que não sabia. E que segundo, não ficou claro de onde veio a origem [da cólera]. 

É evidente que o tratamento que foi feito em relação à cólera no Haiti foi feito com a conivência dos militares. Foi uma decisão política do Departamento de Assuntos Jurídicos da Secretaria Geral das Nações Unidas que sequer o secretário geral comanda. As decisões que emanam do Conselho de Segurança são inimputáveis. Se o Conselho decidiu pela missão de paz e segurança internacional, não pode ser colocada em questão nada que decorra dessa missão. 

O departamento de Assuntos Jurídicos zela para que isso seja respeitado. Nenhuma interpretação que venha a contrariar essa autonomia total e absoluta, essa imunidade total e absoluta, pode ser aceita.

Tanto é assim que quando houve a assinatura do Tratado de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI), os Estados Unidos conseguiram, para os crimes de guerra, de genocídio, fazer com que fosse aprovado por unanimidade uma resolução no Conselho de Segurança dizendo que as tropas em serviço das Nações Unidas não seriam submetidas ao TPI. Ou seja, poderiam vir eventualmente a cometer crimes de guerra mas não poderão ser julgadas pelo Tribunal de Haia.

Nota-se muito bem que há uma percepção de que tudo que está vinculado ao Conselho de Segurança está acima do bem e do mal. Não pode nem ser contestado. Nem por fatos como esse que estou narrando agora, nem pelo Direito. Direitos humanos, direito à vida, direito da guerra, Convenção de Genebra.

É uma visão dos Estados Unidos. Eles dizem: "se vocês não fizerem isso, vou paralisar as Operações de Paz". Parar o financiamento. Tem um artigo da Susan Rice, que foi embaixadora dos Estados Unidos na ONU e conselheira de Segurança Nacional do Obama. Onde ela descreve perfeitamente o papel das operações de paz nas estratégias do poder dos Estados Unidos. 

"O que é mais benéficos para nós? Mandar uma ação de paz ou nossos marines?". Uma operação de paz custa um quarto menos. "Eu adoro ir a um shopping que me dê 75% de desconto". Ela diz isso. 

E até os militares brasileiros, coniventes com essa situação, não entendem. Eu fico pasmo com gente de esquerda que não entenda isso. Em 2004, quem tomou a decisão de ir para o Haiti foi o Lula. Uma ilusão de entrar no Conselho de Segurança, de ter uma política externa mais ativa.

Eu apoiei isso, inclusive, em 2004. Eu pessoalmente apoiei. Só que vimos como fomos manipulados por essa situação. Se nós nos espelharmos na atitude que os militares tiveram, brasileiros e outros, durante a crise da cólera, estamos muito mal amparados hoje com os militares trabalhando com a covid.

Existem algumas semelhanças até da forma como trabalhar a informação. Uma coisa que marcou logo no começo foi o fato dos militares pararem de divulgar os dados em relação aos casos...

E no caso do Haiti, o que se fazia com os jornalistas? Se coloca no avião da FAB e levavam. Não deixavam falar com ninguém. Só com os militares. Pode pegar todo o material que veio de lá durante esses 12, 13 anos, a maioria é muito favorável. 

Mas eu acho que houve essas duas fases, só pra reiterar. Em janeiro de 2010, as cartas são embaralhadas, tudo é diferente. E ninguém está preparado pra isso. Ai foi improvisação, improvisação. Cólera, política, a reconstrução, a tentativa de salvar pessoas. Extremamente complexo.

Foi uma experiência inovadora para todos. Mas creio que em certos momentos de confusão é preciso ter certos princípios. Mas creio que os militares brasileiros e os brasileiros não tiveram esses princípios a partir do momento que foram coniventes com as mentiras das Nações Unidas em relação à cólera. Quando o Itamaraty foi conivente com o golpe protagonizado pela Hillary Clinton.

Quais seriam esses princípios que deveriam ter prevalecido?

O primeiro é o princípio democrático e do respeito à vontade do eleitor. E não trocar resultados. Fomos lá para ensinar a democracia. Talvez não com os melhores professores, mandamos militares, mas o princípio básico é respeitar o veredito das urnas.O segundo é respeitar os interesses daqueles que nós vamos ajudar. Fomos lá para ajudar os civis haitianos, para protegê-los. Nós terminamos matando 50 mil com a cólera e ficamos em silêncio. Fomos coniventes. Por nossa ação e omissão.

São dois princípios básicos que creio que infrigimos e não deixaram boas lembranças para os haitianos.  Acho que perdemos uma aura que tínhamos no Haiti, de simpatia, junto a população, junto aos movimentos de esquerda e aos nacionalista com essa missão que participamos. 

Quais são as responsabilidades que ainda precisam ser cumpridas em relação a esse episódio, no caso da ONU, e também enquanto Brasil? Qual seria o papel das nossas Forças Armadas, necessidade de reflexões nossas, brasileiros, sobre essa atuação?

A nossa primeira responsabilidade é falar a verdade. Reconhecer que efetivamente houve isso, por ação e omissão. Que agimos mal nesse período, fomos coniventes, nos silenciamos, participamos da Lei da Omerttá. O povo haitiano e o povo brasileiro têm direito de saber. Em segundo, é fazer com que essas Operações de Paz não estejam acima do direito, temos que ter uma formulação jurídica que enquadre os militares armados em Operações de Paz. Não é porque eles são enviados pelas Nações Unidas que têm total autonomia.

Eu cito, no livro, três documentos internos na ONU sobre as Operações de Paz. Nada mais. Nenhuma convenção internacional que defina como as tropas devem se comportar. Não existe isso. Não há nenhuma declaração das Nações Unidas que possa ser cobrada.

Então há o que eu chamo de limbo jurídico para as Operações de Paz. Não podemos admitir que depois da Guerra da Criméia, 1870, quando houve a criação do Direito da Guerra, proteger os feridos, os prisioneiros, a não tortura, proteger a população civil, todo esse arsenal que foi construído em quase dois séculos de proteção aos combatentes e aos efeitos dos combates, seja jogado fora. Não seja considerado nas operações. 

"Ah, mas estamos em uma operação de paz". A estamos impondo, por meio de armas, inclusive com armas ofensivas. Há o que eu chamaria de um buraco negro jurídico em torno das Operações de Paz. Seria muito importante que os juristas, aqueles que trabalham com os Direitos Humanos, direito humanitário, internacional, de guerra, se voltasse a isso e exigisse que tivéssemos uma carta de obrigações dos soltados em Operações de Paz.

Finalmente, foi uma experiência para o Brasil que começou de forma eufórica e terminou de forma trágica. Essa é a experiência da Minustah. E eu espero que os militares, muitos militares que se referem ao Haiti, à experiencia haitiana, como se fosse um pós-doutorado que tivessem feito lá fora, reflitam sobre os limites, sobre as limitações, sobre os aspectos absolutamente negativos.

Quando fazemos as contas, enviamos soldados para proteger a população civil no Haiti, provocamos uma situação que hoje, social, econômica e politicamente, é pior. Além disso, houve 50 mil mortes civis de inocentes. Essa é a marca registrada, para mim, da operação da Minustah do Haiti. Não temos porque nos vangloriarmos disso. 

Temos que fazer uma análise e levar, como em dado momento, a presidente Dilma e o Antonio Patriota levaram essa discussão pro Conselho de Segurança. Não somente sobre a responsabilidade de proteger, mas houve uma proposta brasileira sobre a responsabilidade ao proteger. Isso não foi levado em consideração pelos outros membros do Conselho. Houve somente uma discussão informal sobre isso. 

Mas eu creio que o governo brasileiro, qualquer governo, deveria insistir. Voltar a esse ponto fundamental sobre a responsabilidade ao proteger. Quais são os caminhos, os limites, os objetivos. Qual o enquadramento jurídico. Não podemos ter a carta branca que temos hoje.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A ONU e a epidemia de cólera no Haiti - Ricardo Seitenfus (livro)


Um dos casos mais tristes da história da Saúde Global é relatado por Ricardo Seitenfus, grande conhecedor do Haiti, que há anos abraçou a causa das vítimas da epidemia de cólera causada por uma desafortunada operação das Nações Unidas. O livro que conta esta história será lançado em São Paulo no dia 17 de dezembro. Trata-se de uma versão atualizada e ampliada da edição francesa. Transcrevo abaixo os textos de contracapa e orelhas da obra que estará na bibliografia dos meus cursos daqui para a frente, por seu caráter fundamental.

Ricardo Seitenfus presta um serviço histórico às vítimas da cólera do Haiti e a todos que se preocupam com a justiça internacional ou que creem no potencial das Nações Unidas para combater as doenças e promover os direitos humanos e o Estado de Direito no mundo. Esta obra é o testemunho mais eloquente do respeito devido ao povo haitiano e à consciência universal. Em um estilo simples e claro, mas erudito, o autor narra a importação da doença, identifica as artimanhas da ONU para contornar a verdade científica e, deste modo, não se responsabilizar. Com esta obra, o processo está lançado. As Nações Unidas estão condenadas. As incontáveis vítimas aguardam reparação.
Mario Joseph - Representante legal das vítimas da cólera

"Além do ilícito moral e jurídico, a maneira protelatória, diversionista e o reconhecimento tardio de sua responsabilidade na introdução da cólera no Haiti, fizeram com que a estratégia das Nações Unidas provocasse a pior epidemia de cólera da história recente da Humanidade ceifando a vida de milhares de vítimas que poderiam ter sido salvas. Trata-se de uma hecatombe sanitária, de um desastre político e de um escândalo científico. É uma história sórdida, vil, repleta de dores, mortes, injustiças e mentiras. Ela foi e continua sendo, escamoteada por grande parte de cientistas, da grande mídia internacional, da totalidade dos governos, dos militares a serviço da paz e dos funcionários da ONU e de suas agências como a Organização Mundial da Saúde (OMS). A interpretação maximalista, ilegal e abusiva do princípio da imunidade dos agentes a serviço das Nações Unidas, faz com que as Operações de Manutenção das Paz, patrocinadas pelo Conselho de Segurança, não estejam sujeitas aos ditames do Direito da Guerra, das Convenções de Genebra e do Direito Internacional Humanitário. Lendo as páginas que seguirão, o leitor será invadido por um sentimento de revolta causado pela atitude dos mentores da Organização das Nações Unidas. Jamais ela tratou um Estado membro – além disso, um Estado fundador – de maneira tão insolente quanto o fez com o Haiti e seu povo.
Ricardo Seitenfus, é Doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, Suíça. Atualmente aposentado, foi Professor em várias universidades brasileiras e estrangeiras. Foi Representante Especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti (2009-2011)

segunda-feira, 25 de março de 2019

As FFAA e a missão no Haiti: Vinicius Mariano de Carvalho (FSP)

Haiti foi marco, mas não causa da modernização dos militares, diz pesquisador
Folha de S. Paulo, 25/03/2019
 - A longa missão de paz da ONU comandada pelo Brasil no Haiti foi um marco na modernização do Exército, mas não sua causa —que se encontra na Constituição de 1988. Para os haitianos, seu legado se esvaiu com o fim dos quase 13 anos de operação. As opiniões são do pesquisador Vinicius Mariano de Carvalho, professor no Brazil Institute e no Departamento de Estudos da Guerra do King´s College, de Londres.
- O sr. busca separar o impacto da Minustah sobre as Força Armadas e para o conceito de operações de paz. Qual sua avaliação? 
- A operação era uma novidade na ONU, e demandou um forte aspecto de adaptabilidade. Havia a necessidade de empregar técnicas táticas, e havia uma correlação entre os componentes civil e militar da missão, um quadro bastante complexo de atores. O contingente militar era muito grande [passou de 12 mil, encerrou com quase 5.000 soldados, um quinto deles do Brasil] e navegou em águas não muito claras, se a missão era de manutenção de paz ou de construção da paz. Ao fim, ele obrigou a ONU a repensar suas operações. A Minustah se tornou uma grande escola para as Nações Unidas compreenderem a realidade em ambiente nos quais as forças oponentes não são muito claras. O Brasil teve papel bastante relevante nisso. Foi uma experiência, não direi nem positiva, nem negativa.
- Até hoje, forças de segurança vendem a ideia de que o Haiti foi uma escola para a atuação em favelas. Isso é um mito? 
- É importante lembrar que antes da Minustah já havia doutrina para isso. A Constituição de 1988 deixa claro que parte do treinamento das Forças Armadas era para garantia da lei e da ordem. O grande ganho para elas foi a exposição a outras doutrinas e práticas. Ela não era uma operação brasileira, apesar de que o componente militar maior sempre foi o brasileiro e o comandante era um general daqui. Outro grande ganho que não é lembrado foi o aprendizado de operação entre agências. Isso é mais importante do que os ganhos táticos no Haiti. A Minustah não foi um laboratório para operar nas favelas. Foi uma feliz coincidência haver a necessidade de operações no Brasil, mas aqui era outro contexto. Era muito diferente do que ocorria no Rio, do ponto de vista tático e político.
- Como assim? 
- A Minustah era multinacional com mandato da ONU, com regras de engajamento escritas. Ela era muito mais ampla. As GLOs são requisitadas por governos de Estado para segurança pública. Aqui, o emprego de tropas precisava de um claro amparo legal para evitar violações, um arcabouço.
- Uma crítica comum é a de que o Brasil estava fazendo serviço sujo para outras potências, como os americanos. 
- Isso é curioso, sempre se diz que outros países limpam a sujeira das grandes potências. Os EUA usualmente não mandam tropas.
A aprovação pelo Conselho de Segurança, em particular pelos cinco membros com poder de veto, mostra que isso transcende a ingerência americana. E o Brasil teve pela primeira vez uma atitude ativa, não apenas reativa.
- Em que a Minustah falhou? Qual sua principal crítica a ela? 
- Ela foi longa demais, e parte disso se deveu ao terremoto de 2010. Em certo momento, ela diluiu-se em seus objetivos. No Timor-Leste, a ONU tutelou a criação do Estado por dois anos. No caso do Haiti, ela ficou como uma missão de estabilização que durou 13 anos. Nesse período todo, muito do que seria necessário para uma transição para uma democracia não aconteceu. Hoje nós vemos os conflitos retornarem às ruas de Porto Príncipe, e temos lá a Missão de Transição. Aqui, é importante dizer que não se tratava apenas de uma questão do componente militar, mas ela virou um para-Estado dentro do Haiti. Quando ele saiu, o Haiti se viu novamente sem estabilização.
- Em 2014 e 2015, a ONU estudou as missões de paz num painel liderado pelo ex-presidente timorense José Ramos-Horta, no qual estava o general brasileiro Floriano Peixoto, hoje ministro. O grupo absorveu alguma lição do Haiti? 
- Sim. Ramos-Horta esteve aqui no King´s College semana retrasada e deixou isso claro. A primazia sempre deve ser do aspecto político. Não será um robusto componente militar que vai conseguir fazer o país ser bem-sucedido. Ficou clara também a questão da proteção de civis. A página mais sinistra da Minustah foi a introdução do cólera na ilha por meio das tropas [no caso, provavelmente de soldados nepaleses; doença matou mais de 10 mil pessoas].
- Qual o impacto do terremoto na formação dos militares brasileiros? 
- Foi o maior desastre humano da ONU. Apenas Floriano, que era o comandante militar, sobreviveu na cúpula da missão. Em 2009, a estabilização já estava em nível muito desejável, com Judiciário e modelos de eleição funcionando. As maiores gangues estavam neutralizadas. Aí veio o terremoto, que danifica completamente qualquer estrutura de Estado, além de ser uma catástrofe. O influxo de auxílio humanitário causou um desafio logístico incrível. Afeta a moral de todos.
- Foi quando chegaram os americanos. 
- Sim, mas é bom lembrar que nos primeiros dias depois do terremoto quem mandava era Floriano. Ele manejou de maneira exímia a cooperação militar americana, a ponto de que os soldados dos EUA não andavam armados. Os brasileiros responderam rapidamente com a instalação de um segundo batalhão, com muitos voluntários que já conheciam a realidade local. A resposta imediata foi muito boa, mas a missão teve de ser reconfigurada, o que causou a falta de orientação a seguir. Ela ficou sem direção.
- Essa é uma visão que isenta o comando militar, não? 
- Ele precisa ter claras orientações. Ele não pode fazer como bem entender. Assim, não dá para responsabilizar os comandantes militares pelo que aconteceu depois. Eu acho que deveriam ter aumentado o componente policial após o terremoto, que pudesse fazer a Polícia Nacional Haitiana ser efetiva.
Isso era um dos objetivos, e ficou muito abaixo do que deveria ter sido.
- O sr. vê correlação entre a ascensão da chamada “turma do Haiti” no governo Jair Bolsonaro com sua experiência formativa na ilha? 
- A proporção de oficiais superiores e generais que serviram no Haiti é muito grande. Isso os forjou com capacidade de trabalho internacional e de compreensão de contexto políticos. Para ficar em dois ministros egressos de lá, Carlos Alberto dos Santos Cruz implementou a brigada de intervenção da ONU depois no Congo. Floriano Peixoto participou do painel de operações de paz. Obviamente isso os coloca em destaque dentro do Brasil, até porque a decisão política que recai sobre o comandante de força numa missão é relevante. É interessante essa experiência, e espero que sigam úteis. O mesmo vale para o envio de um general brasileiro para o Comando Sul dos Estados Unidos.
- Qual o futuro das próximas missões para o Brasil? 
- Tem de ser uma decisão ativa, não reativa. Que a gente tenha a capacidade de fazer proposições. A escolha não pode ser conveniente. Tem de haver mais civis nas operações de paz também.
- Com tudo isso, 2004 é o principal marco do pós-1985 para os militares? 
- Acho que não. Isso começa em 1988, quando a Constituição reajusta o papel que o Exército vai ocupar. Nas Forças Armadas em geral, e no Exército em particular, surgem programas de modernização tanto tecnológicos quanto doutrinários. Com isso, há um Exército mais moderno, grande atividade de circulação de militares em escolas no exterior, há um intercâmbio muito maior. Isso marcou toda uma geração, que sabe ser necessário entender sobre geopolítica, falar línguas. O Haiti é uma consequência disso, não a causa. Isso se aplica à Marinha, que desde 2011 comanda a força naval da Unifil (Líbano), a única do tipo da ONU hoje.
- Esse protagonismo político levou ao episódio em que os militares intervieram nas ações do chanceler sobre a Venezuela. Há o risco de isso sair de controle? 
- Temos três meses de governo, e surgiram situações que demandaram diplomacia de defesa muito grande, como é o caso da Venezuela. O que me parece é que as Forças Armadas e o próprio vice-presidente [general Hamilton Mourão, que assumiu negociações na reunião do Grupo de Lima sobre a crise venezuelana na semana retrasada] têm deixado clara a implicação de decisões diplomáticas na área de defesa. Espero que as tomadas de decisões de uma grande estratégia nacional não sejam apenas dos ministros ou do vice, mas por parte de uma confluência de atores. Não pode ser decisão de um ou outro, para não haver equívocos.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Como o Brasil foi para o Haiti: Ricardo Seitenfus destaca o papel do Foro de S.Paulo

Parceria partidária contribuiu para envolvimento do Brasil no Haiti, diz professor

Para Ricardo Seitenfus, também ex-representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no país caribenho, governo adotou posturas do Foro de São Paulo — rompido com presidente haitiano que caiu em 2004

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Parceria partidária contribuiu para envolvimento do Brasil no Haiti, diz professor

O GLOBO, Domingo, 4 de Maio de 2014

RIO E BRASÍLIA — Dez anos e mais de 30 mil militares depois, as motivações do envolvimento do Brasil na Minustah continuam em debate. Ao longo desta década, a articulação por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU e uma diplomacia pautada por princípios humanistas foram alguns dos motivos comumente levantados na discussão sobre o engajamento brasileiro no Haiti. Mas, para Ricardo Seitenfus, ex-representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no país caribenho e professor de Direito Internacional da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a participação brasileira se deve, em parte, a uma ruptura político-partidária que terminou por contradizer o não intervencionismo previsto na Constituição de 1988.
Em artigo apresentado nesta semana na Universidade George Washington, na capital americana, Seitenfus defende que no centro das posturas brasileiras estão posições adotadas pelo Foro de São Paulo — organização que congrega partidos de esquerda da América Latina, entre eles o PT — antes da aprovação da Minustah pela ONU, em 30 de abril de 2004. Aliado nos anos 1990 do presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide — que cai em fevereiro de 2004, desencadeando o surgimento da Minustah —, o Foro rompe com o político e seu partido, a Família Lavalas, em paralelo às contestadas eleições parlamentares de 2000 no Haiti.
Então, a recém-criada Convergência Democrática, uma coalizão oposicionista liderada por Gérard Pierre-Charles, ex-aliado de Aristide, boicota o pleito legislativo e a eleição presidencial daquele ano por considerar que há irregularidades. Aristide acaba chegando à presidência com mais de 90% dos votos. Daí em diante, o Foro de São Paulo passa a denunciar o governo de Aristide, considerado populista, personalista e antidemocrático em documentos públicos do grupo e citados no artigo de Seitenfus. Ao mesmo tempo, endossa a Organização do Povo em Luta (OPL), partido liderado por Pierre-Charles, integrante da Convergência Democrática.
O distanciamento entre o Foro e Aristide culmina em uma resolução publicada pela organização em 17 de fevereiro de 2004, na qual afirma que a crise política haitiana “surge do flagrante desconhecimento das instituições democráticas” pelo governo de Aristide e expressa seu “amplo respaldo político” à OPL num momento em que a Convergência Democrática já defendia a renúncia do presidente haitiano.
— Quando Lula ganha as eleições em 2002, o então secretário-executivo do Foro (Marco Aurélio Garcia) vira seu conselheiro diplomático, e leva para o Palácio do Planalto a posição do Foro. A decisão (da presença brasileira no Haiti) foi tomada no palácio sem sequer consultar (o hoje ministro da Defesa e então chanceler Celso) Amorim, contrariando a postura histórica do Brasil de não intervenção — afirma o professor. — Confesso que participo disso. Eu fui enviado pelo governo brasileiro (foi mediador político em 2004), e agora me dou conta que havia isso antes.
Em seu artigo, Seitenfus faz uma cronologia do que chama de “surpreendente e impensável reviravolta” do governo brasileiro nos dias em torno da saída de Aristide, em 29 de fevereiro de 2004. O professor resgata o comunicado do Grupo do Rio — organização que precede a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) — publicado em 25 de fevereiro de 2004, em que os países-membros “manifestam seu apoio ao Presidente constitucionalmente eleito daquele país, Jean-Bertrand Aristide.” No dia 29, Aristide cai. Em 4 de março, o Brasil comunica que está à disposição da ONU para o envio de militares e o comando das tropas de paz no Haiti.
— O que acontece entre o dia 25 de fevereiro e o dia 4 de março é uma pergunta que ninguém responde — diz o professor, também autor do livro “Haiti: dilemas e fracassos internacionais”, que sai este mês pela editora Unijuí.
Tropas estrangeiras cedem lugar à polícia local
O Brasil sempre teve o contingente militar mais numeroso da Minustah e, com isso, desde o início lidera as forças de paz da missão. Mas, ao mesmo tempo em que o Brasil se apresenta aos haitianos quase sempre de farda e capacete azul, busca cooperar com o Haiti em áreas civis. O resultado, para Seitenfus, é a prisão do Brasil numa contradição.
— Outros países sempre defenderam que, se há uma operação de paz, deve haver imposição da paz. O Brasil sempre lutou para atacar não só as consequências da instabilidade, mas as raízes dos males, sem muito sucesso. Esse foi um dilema que o Brasil carregou ao longo de todo esse período e em outras operações de paz também, como no Timor Leste — diz o professor.
Para o pastor batista André Bahia, que vive no Haiti desde 2012, a Minustah tem buscado um enfoque mais civil neste últimos dois anos, ao mesmo tempo em que a Polícia Nacional Haitiana (PNH) gradativamente assume funções antes a cargo de militares brasileiros e de outros países.
— Em 2012, ainda era possível ver ações do tipo polícia realizada por militares estrangeiros. Os próprios brasileiros, que são responsáveis pela maior parte da capital, realizavam blitzes e patrulhas mais ostensivas. Mas, isso mudou. Vimos o 2º Batalhão Brasileiro da Força de Paz da ONU se despedir da missão realizando uma megaoperação conjunta entre vários órgãos de polícia da ONU e do Haiti, e ao mesmo tempo, do outro lado da rua, apoiando com meios e profissionais uma grande ação humanitária com médicos, educadores, esportistas e capelães voluntários brasileiros, haitianos civis e militares — conta Bahia. — Contudo, ainda há locais que sabidamente a PNH não entra.
Por outro lado, o nome do Brasil também está colado, às vezes, a iniciativas problemáticas. Omar Ribeiro Thomaz, professor de Antropologia da Unicamp e pesquisador do Haiti há 16 anos, cita as dez Unidades de Pronto Atendimento (UPA) prometidas pelo governo brasileiro dias após o terremoto de janeiro de 2010 — nenhuma saiu do papel. Thomaz também menciona falhas no projeto Pró-Haiti, criado com o objetivo anunciado de trazer até 500 estudantes haitianos para universidades públicas brasileiras. Até hoje, vieram 78.
Intenções não concretizadas
A promessa das UPAs deu lugar à construção de três hospitais comunitários de referência, um instituto destinado à reabilitação de pessoas com deficiência e de um laboratório de órteses e próteses. Em nota, o Ministério da Saúde informou que a decisão foi tomada em conjunto com o governo haitiano, com base na realidade do país, “que possui carência de estabelecimentos de saúde para atender à população, em especial em média complexidade”.
A inauguração dos hospitais chegou a ser anunciada para meados de 2013, mas o primeiro deles, assim como o instituto de reabilitação serão inaugurados amanhã, segundo o ministério. Os outros dois estabelecimentos devem começar a funcionar ainda neste semestre. “A mudança de data se deu em função das dificuldades enfrentadas pelo país no início do seu processo de reestruturação após o terremoto, que acabou causando um atraso inicial na liberação dos terrenos cedidos para as obras”, alega o ministério. O governo brasileiro colocou US$ 67,5 milhões na cooperação em saúde com o Haiti, destinados à construção e manutenção dos hospitais, formação de mil agentes comunitários e reforma de laboratórios, entre outras atividades.
Já segundo o Ministério da Educação, a vinda de 500 bolsistas seria para a realização de graduação sanduíche no Brasil, mas este tipo de bolsa “se mostrou inviável”, disse o ministério, em nota. Com isso, “foi acordada a troca de modalidade de bolsa, e os alunos que já estavam aqui foram migrados para a graduação plena”.
Para outros acadêmicos brasileiros que conhecem o Haiti, como o sociólogo Antônio Jorge Ramalho, professor de Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB), o Brasil tem méritos em seu desempenho no Haiti.
— O Brasil projetou sua imagem e bandeira e mostrou capacidade de ação, que é muito relevante. Essa atuação coloca o Brasil como um país respeitado quando se cita operações das Nações Unidas. Não é casual que a ONU, na República Democrática do Congo, onde, pela primeira vez, haverá uma brigada de intervenção, escolheu um general brasileiro (Carlos Alberto dos Santos Cruz, que comandou as tropas da Minustah entre 2006 e 2009). Ele terá autorização para usar a força para impor a paz. Um brasileiro vai comandar essa brigada graças ao bom desempenho do Brasil no Haiti — disse Ramalho, que viveu um ano e meio no Haiti na década passada.
Seitenfus, por sua vez, vê com preocupação um desgaste da imagem do Brasil com a prolongada atuação no Haiti e faz ressalvas à relevância da presença brasileira para o futuro do país caribenho.
— Cada dia que passa com a nossa presença com a cara militar, desgasta mais. Um capital imenso de reconhecimento, respeitabilidade, gastá-lo como nós estamos gastando no Haiti... — diz. — A formação da PNH é exclusividade dos EUA e do Canadá. Eles sabem que quando a ONU for embora, o poder será da PNH. A participação do Brasil nesse processo é muito marginal.
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