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quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

O censo de 1872 revisitado - Jornal Nexo

ESPECIAL

Censo de 1872: o retrato do Brasil da escravidão
Por Daniel Mariani, Murilo Roncolato, Rodolfo Almeida e Ariel Tonglet em 27 de junho de 2017

O Brasil contava meio século desde a sua independência de Portugal, mas continuava sem poder dizer, em números, quem era. A prática de se recensear de tempos em tempos a população era comum entre países tidos como modernos e consolidados, como Estados Unidos, que contava seus habitantes desde 1790. Durante muito tempo, o conhecimento sobre o total de brasileiros dependeu de estimativas grosseiras. Na década de 1870, o governo imperial de D. Pedro 2o vê o momento adequado e planeja a realização de tal empreitada para finalmente conhecer e poder mostrar ao mundo um quadro idealmente próximo da composição populacional do país.


Vejam neste link: https://www.nexojornal.com.br/especial/2017/07/07/Censo-de-1872-o-retrato-do-Brasil-da-escravidão?utm_medium=Email&utm_campaign=BoasVindas1&utm_source=assgeral&utm_content=jornalismopremiado

Imperdível...
PRA

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Marcelo Raffaelli: um embaixador historiador, e sua obra, no RI em Pauta

Nesta próxima quarta-feira, dia 23, vou receber no IPRI o embaixador aposentado Marcelo Raffaelli, que prestará um depoimento sobre sua vida, obra e atividades profissionais para a série "Relações Internacionais em Pauta", do IPRI (http://www.funag.gov.br/ipri/riempauta/).
Dele eu tenho um livro publicado em inglês sobre os acordos internacionais de produtos de base, elaborado com base em sua experiência de trabalho no Gatt, e a obra sobre as relações Brasil-Estados Unidos no século 19, publicado em dois volumes pela Funag.
Sobre essa obra eu fiz uma resenha quando os dois volumes foram divulgados, que transcrevo abaixo no formato publicado na revista Desafios do Desenvolvimento:


Relações Brasil-Estados Unidos, na infância

Paulo Roberto de Almeida
Desafios do Desenvolvimento (maio 2007)

Marcelo Raffaelli:
 A Monarquia e a República: Aspectos das Relações entre Brasil e Estados Unidos Durante o Império
(Rio de Janeiro-Brasília: Centro de História e Documentação Diplomática/Funag, 2006, 290 p.)

Exemplo de síntese histórica,em sua objetividade e concisão, a compilação de despachos e ofícios trocados ao longo do século XIX por diplomatas brasileiros e norte-americanos, com suas respectivas secretarias de Estado, compõe um relato saboroso das relações entre dois grandes países do hemisfério.O autor é diplomata experiente, com passagens por diversas embaixadas e longo estágio como funcionário do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, das iniciais em inglês de General Agreement on Tariffs and Trade). Aposentado, atual presidente da Associação dos Diplomatas Brasileiros, pesquisou velhos arquivos empoeirados (os americanos certamente microfilmados).

Organizado tematicamente, antes que cronologicamente, o livro abrange desde o reconhecimento da Independência brasileira até o fim do regime monárquico e a inauguração da República no Brasil, bem recebida pelos Estados Unidos.O delicado equilíbrio entre os poderes traçado na Constituição de 1786 – cuja inspiração os founding fathers foram buscar em Montesquieu – serviu de modelo para que Rui Barbosa e outros republicanos tentassem mimetizar o sucesso americano, a começar pela designação da nova federação como “Estados Unidos do Brazil”(assim mesmo, com “z”). Aparentemente, o molde não bastou para frutificar por aqui.

A obra realiza uma descrição sintética de cada um dos chefes de missão e suas respectivas instruções diplomáticas,o que permite contrastar a objetividade comercial dos anglo-saxões com a generalidade das metas brasileiras no gigante em formação. Analisa, ainda,os problemas do tráfico escravo (abolido bem antes nos EUA, que se dedicaram à “criação”de escravos) e alguns contenciosos diplomáticos decorrentes da Guerra de Secessão.Outro problema abordado é o da impossível abertura do rio Amazonas à navegação internacional, reclamada por americanos e europeus, mas temida pelos dirigentes da monarquia brasileira, numa posição diametralmente oposta às demandas brasileiras no rio da Prata,que era a única via de acesso às terras de Mato Grosso. Interessante à leitura, também, são os despachos nos quais os enviados a cada capital comentam características do povo e do país em que servem, com toda a franqueza dos papéis confidenciais.

No plano historiográfico, trata-se de um excelente resumo de fontes primárias, com intenso apoio nos arquivos oficiais e em bibliografia equilibrada.O autor deixa falar os velhos papéis,o que contrasta saudavelmente com certas obras que, ao pretender analisar a emergência da “nova Roma” da atualidade, descambam rapidamente para teorias conspiratórias. Raffaelli produziu uma excelente síntese sobre as relações entre os dois gigantes hemisféricos, antes que este gigante meridional pretendesse estabelecer “relações especiais” com o Big Brother do norte, já na era do barão de Rio Branco.

O livro está disponível na Biblioteca Digital da Funag: 
http://funag.gov.br/loja/download/329-monarquia-e-a-republica.pdf

Marcelo Raffaelli por ele mesmo: 

Nascido em 1929, formado em Direito pela PUC do Rio em 1953. Fiz o concurso, que tomou os inteiros 2 meses de 12/51 e 1/52, para o IRB e terminei o CPCD em maio de 1953. Na SE, trabalhei (1953-55) na velha Divisão Econômica, na Assessoria de Imprensa do Gabinete e novamente na DE; (1962-1964) na divisão da Europa Ocidental; (1971-3) chefe das Divisões de Produtos de Base e de Política Comercial; (1977-9) chefe dos departamentos da Àsia, África e Oceania e dos Organismos Regionais Americanos.
No exterior - Embaixada em Caracas, CG em Amsterdam, Missão na ONU, embaixada em Washington, Delegação junto a ALALC em Montevidéu (Representante Suplente), ministro em Londres, embaixador em Abidjã.
Em 1982 agreguei para servir no GATT, na presidência do Órgão de Vigilância dos Têxteis, onde fiquei até o fim de 1994; tinha pedido aposentadoria do MRE em 1990.
Assim, minha carreira levou-me a participar de muitas negociações bi e multilaterais, cobrindo tanto assuntos econômicos como políticos, ou políticos com fundo econômico, como os acordos sobre pesca da lagosta durante o período em que nosso mar territorial tinha 200 milhas...
Minhas publicações resumem-se a Rise and Demise of Commodity Agreements, escrito (em inglês) durante a época em que as negociações da Rodada Uruguai colocaram meu OVT em marcha lenta e me deram o tempo para tanto. Foi publicado na Inglaterra em 1995.
Também em 1995 publiquei, em coautoria com minha então assistente Tripti Jenkins, um relatório, que me foi encomendado pela associação dos países exportadores de têxteis, sobre o acordo de têxteis negociado no contexto da Rodada.
Em 1996 a FUNAG publicou A Monarquia e a República, livro que cobre aspectos das relações Brasil-EU durante o Império e que foi possibilitado pelo fato de que, morando naquele momento em Washington, pude pesquisar nos National Archives e na Biblioteca do Congresso, bem como em nosso Arquivo Histórico. Para o CHDD escrevi um artigo sobre a chamada guerra da lagosta.
Ultimamente, morando de novo em Washington, aproveitei a riqueza dos recursos oferecidos pela NARA e Bibl. do Congresso para um livro sobre o período que vai do fim da monarquia francesa, em 1792, a 1828; trata da interação, da influência que mutuamente se exerciam Europa e Estados Unidos de um lado, e do outro as colônias espanholas e o Brasil. 

sábado, 27 de fevereiro de 2010

1720) O Indiana Jones da diplomacia brasileira: Duarte da Ponte Ribeiro


Para quem acha que os diplomatas são todos uns "punhos de renda", melhor revisar suas concepções, ou preconceitos...
Este meu artigo:
Um diplomata a cavalo: Duarte da Ponte Ribeiro”,
texto escrito em Brasília, em 28 de janeiro de 2005, só foi publicado, em versão reduzida, no Boletim ADB (Brasília: Associação dos Diplomatas Brasileiros, ano XII, n. 48, jan/mar. 2005, p. 16-19).
Como ele nunca foi publicado in totum, reproduzo-o aqui, para deleite de eventuais curiosos e para acalmar aqueles que acham que estamos servindo em postos pouco recomendáveis do ponto de vista do saneamento básico, ou que ganhamos pouco...

Um diplomata a cavalo: Duarte da Ponte Ribeiro
Paulo Roberto de Almeida

Aqueles que pensam, por experiência própria ou relato de terceiros, que a situação sanitária de certos postos está abaixo da crítica ou que as condições de vida, em geral, de determinados países deixam muito a desejar, bem fariam em ler, ou reler, a biografia de Duarte da Ponte Ribeiro, Um Diplomata do Império, do historiador José Antonio Soares de Souza (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952; Coleção Brasiliana 273). Trata-se, provavelmente, do mais versátil colega já conhecido nos anais da nossa história diplomática, um verdadeiro sobrevivente e um aventureiro involuntário de muitas das peripécias da nossa primeira diplomacia.
Sobreviveu à invasão de Portugal, onde nascera em 1795, pelas tropas de Junot, a serviço de Napoleão, e a muitas viagens de navio, logo após sua formação como médico, no Real Hospital Militar do Morro do Castelo, no Rio de Janeiro joanino. Cirurgião de bordo, a partir de 1811, sobreviveu a viagens tempestuosas, a meias rações de água, ao escorbuto e a uma terrível carneirada (febre de Angola), quase dado como morto após três dias de agonia. Logo depois da independência, em 1824, tendo decidido permanecer no Brasil e servir ao novo Estado, foi vítima de um terrível acidente: “uma espingarda de dois canos rebentara em suas mãos, causando-lhe a descarga despedaçamento da mão e braço esquerdos, perda de ossos, tétano conseqüente...”.
Médico renomado, mas impossibilitado agora de operar o bisturi com a destreza necessária, ele se transforma em diplomata praticamente por acaso. Tendo sido nomeado, em 1826, cônsul do Brasil na Espanha, deparou-se, entretanto, com a curiosa situação de não lhe ser dado o necessário exequatur, por não reconhecer o governo espanhol a independência do Brasil, devido à ocupação brasileira na Cisplatina. Acompanhado da mulher e cinco filhos (o último nascido em Lisboa), Ponte Ribeiro retornou portanto ao Brasil, sem ter conseguido cumprir sua primeira missão diplomática. Não tendo recebido passagens ou qualquer ajuda de custo da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, viu-se na constrangedora situação de ser obrigado a vender as pratas da casa e o seu primeiro uniforme de diplomata, para poder custear as passagens de volta, ficando ainda devedor de um amigo de Lisboa em mais de 50 mil réis.
Em fevereiro de 1829, Duarte da Ponte Ribeiro era nomeado cônsul geral e encarregado de negócios no Peru. Embarcou numa fragata brasileira até Montevidéu, daí passou a Buenos Aires, com instruções de seguir por terra até o Chile: a Secretaria de Estado não tinha idéia, aparentemente, das dificuldades de um tal trajeto. Se encontrasse ambiente favorável nesse país, deveria entregar uma carta credencial que o acreditava igualmente como encarregado de negócios, interino, junto ao governo do Chile. Em abril, entretanto, com as “províncias unidas” ainda em situação de guerra civil, ele avisava o ministro brasileiro sobre a impossibilidade de prosseguir por terra, “enquanto o país não ficar sossegado dos montoneiros e dos índios selvagens”. Terminou viajando por mar, mas embarcando a partir de Montevidéu, numa fragata francesa, que fez o percurso pelo Cabo de Horn. Em agosto de 1829, depois de arrostar os tempestuosos mares do extremo sul, apresentava suas credenciais na capital do Peru.
Em 1830, empenhado em reduzir despesas, o ministro dos negócios estrangeiros, Francisco Carneiro de Campos, comunicava-lhe que o Império havia decidido reduzir o seu salário anual a dois contos e quatrocentos mil réis, e ainda advertia: “Escuso dizer a Vossa Mercê que qualquer excesso de despesa não será abonado”. Com a Regência, sua missão no Peru foi retirada em novembro de 1831, mas a comunicação só chegou a Lima em abril seguinte, após o que Ponte Ribeiro parte em direção ao Chile. Na capital chilena, Ponte arrostou sua conhecidíssima inimiga, pois, atacado de cólera-morbus e novamente desenganado, conseguiu escapar da morte, “desmentindo os prognósticos dos médicos”. Em agosto de 1832, ele já estava de volta à Corte, “longe dos apuros que passara com o miserável ordenado de 2:400$000”, mas também sem qualquer outro salário.
Nessa época, inexistia a carreira diplomática e Ponte Ribeiro permaneceu em disponibilidade sem nada receber, até que se lhe deparasse uma nova oportunidade de servir ao país. Essa lhe surge um ano depois, quando o ministro Silva Lisboa o nomeia encarregado de negócios no México, onde deveria informar que “o principal objeto da nossa gloriosa revolução, com tanta fortuna realizada em 7 de abril de 1831, fôra eximir-nos da influência portuguesa, não havendo sido senão nominal até aquela época a independência, que com tanto custo havíamos conseguido de uma metrópole que, por séculos, nos escravizara”.
A caminho da Inglaterra, para depois ir ao México, ele se demora em Portugal, em missão secreta, seguindo os passos do ex-imperador, para saber das possibilidades de sua volta ao Brasil. Em fevereiro de 1833 segue de paquete para a Inglaterra e daí partiu para Vera Cruz, aonde chegou em 28 de abril, depois de ter passado por São Domingos, Jamaica e Honduras. Fugiu do porto mexicano imediatamente, apressado e espavorido com receio do “vômito preto”, que matava de quinze a vinte pessoas por dia. Um de seus primeiros ofícios já consignava que “os negócios desta República (então dirigida pelo presidente Sant'Ana) chegaram ao último estado de complicação e oferecem o mais horroroso aspecto... Toda a República está hoje em revolução”. Em março de 1835, ele descreve um “violento terremoto” na capital do país: “No estado de Oaxaca apareceu um novo vulcão, vomitando lava, e se crê que ele produziu estes terremotos”.
Com todo vômito preto, vulcões e terremotos, Ponte Ribeiro só se demorou um ano e meio no México, pois em fevereiro de 1835 Manoel Alves Branco, o novo ministro, assinou sua carta revocatória, que só lhe chegou em outubro. Demorou um pouco para partir, por se achar doente, “com ulceração e infarto das glândulas da garganta”. Partiu de Vera Cruz em 8 de novembro e chegou a Filadélfia duas semanas depois, para novamente enfrentar sua velha conhecida: “Na mudança repentina de um país extremamente caloroso e outro coberto de neve, regressou a minha enfermidade de garganta, com uma pulmonia de que estive à morte”. Conseguiu resistir à morte, como ele disse, por que “preciso buscar pão para cinco filhos”.
Os meses que passou em Filadélfia, bloqueado pela neve e preso a uma cama, meditando sobre a morte e observando o começo da expansão americana em direção ao Texas e outras regiões, fizeram-no desconfiar pelo resto da vida dos americanos: “Deus livre o Império brasileiro de uma questão com os Estados Unidos, que sirva(-lhes) de pretexto para organizar expedições... Desculpa V.Exa. este desabafo contra os Yankees. Cuidado com eles...”. Na volta ao Brasil, ele ainda passou pela Inglaterra e por Lisboa.
Com 41 anos, a fase mais importante da vida de Duarte da Ponte Ribeiro estava começando ali, quando influenciaria decisivamente a futura demarcação dos limites do Brasil. O novo ministro dos negócios estrangeiros, Visconde de Abaeté, nomeou-o em junho de 1836 encarregado de negócios nas repúblicas da Bolívia e do Peru, junto com seu filho, de apenas 14 anos, designado adido de segunda classe nas mesmas repúblicas. A razão era puramente financeira, como explica Soares de Souza: “Elevara-se-lhe agora o ordenado para 3:200$000 (anuais), dando-se-lhe mais a quantia de 400$000 para os gastos da legação; porém exigiam-lhe outras despesas bem maiores, com a designação para a Bolívia e Peru. (...) O único alvitre de que se pôde lançar mão, para se remediar o mal, foi a nomeação de um dos filhos do encarregado de negócios para o cargo de adido, o que redundaria em aumento de vencimento para o pai. (...) Enganava-se redondamente, pois coisa nenhuma seria abonada ao rapaz até o fim da missão.”
A caminho da nova missão, acompanhado apenas pelo filho adido, demorou-se Ponte Ribeiro em Montevidéu e em Buenos Aires, onde freqüentou o Arquivo Militar, estudando os geógrafos antigos e copiando cartas e mapas. “Um mapa ou documento, que se referisse aos limites do Brasil, exercerá sobre ele irresistível atração. (...) Será qualquer coisa digna de todos os sacrifícios e a que o próprio furto se exculpará pela natureza do objeto furtado”. Em Buenos Aires, ele queria comprar de um dos comissários espanhóis encarregados de demarcar os limites do tratado de Santo Ildefonso, já velho e doente, quase na miséria, todos os trabalhos que possuía sobre essas demarcações. Informava ele ao ministro: “Ele está velho, enfermo e pobre; e por isso resolvido a vender mais barato: pede sete mil pesos fortes, mas estou bem persuadido que dará por cinco”. O Império, porém, foi mais uma vez sovina, negando-lhe qualquer dotação.
Duarte da Ponte Ribeiro deixou Buenos Aires, por terra, em outubro de 1836, empreendendo uma viagem de quase mil léguas, com recomendações dadas pelo próprio ditador Rosas. Percorreu, em diligência, a lombo de burro ou a cavalo, as províncias de Santa Fé, Córdoba, Santiago del Estero, Tucumã, Salta e Jujui, chegando a Chuquisaca, na Bolívia, em 30 de dezembro. Um amigo, na Secretaria de Estado, “não compreendia que se fizesse semelhante loucura”, mas podia Ponte “gabar-se de ser o brasileiro que mais viajara pelo continente americano”.
Em 3 de janeiro de 1837, ele já entrava em funções, transformando-se em cronista dos lances políticos e guerreiros que se desdobravam nas repúblicas do Peru, Bolívia e Chile. Os complicados conflitos do Rio da Prata, “não se comparavam em complexidade à pavorosa luta que desencadeara o Marechal Santa Cruz, ao impor a federação Peru-Bolívia”. O Marechal era o político mais poderoso dos Andes e pretendia, num futuro próximo, “dirigir todas as repúblicas do Pacífico”. Descendente de incas e de nobres espanhóis, falava as línguas indígenas, era possuidor de inteligência, tinha habilidade política e perfeito conhecimento dos homens, mas “a dissimulação, a desmedida vaidade e ambição ilimitada, reduziram-no à craveira comum dos demais ditadores”.
A Bolívia parecia a Santa Cruz demasiado acanhada, mas ao Chile não convinha essa união. Quando Ponte Ribeiro apresentou-se na Bolívia, já o Chile se movimentava contra o Marechal, oferecendo-se o diplomata brasileiro como mediador, em nome do Império. “Teria sido das mais calmas a estada de Ponte Ribeiro na Bolívia, se não fôra a feição peculiar ao governo boliviano de não estacionar por muito tempo no mesmo local. (...) Escarrapachado no lombo de um burro, teve o diplomata brasileiro de segui-lo por caminhos escabrosos, que na estação de chuvas se tornavam intransitáveis”.
Saído de Chuquisaca em 19 de março de 1837, com o vice-presidente, chegou Ponte Ribeiro em 5 de abril a La Paz, onde estava o Marechal Santa Cruz, que ostentava os seguintes títulos: “Gran Ciudadano, Restaurador y Presidente de Bolívia, Capitan General de los Ejercitos, General de Brigada de Colombia, Gran Mariscal Pacificador del Peru, Supremo Protector de los Estados Sur y Nor-Peruanos”. Agora ia descer Ponte até o Pacífico, já que em Tacna os plenipotenciários dos dois países discutiam as bases da federação. Logo em seguida ele foi agraciado pelo Marechal com a Legião de Honra Boliviana, pois “se ha hecho acreedor a la gratitud nacional, por el vivo interés que toma en la prosperidad de estos Estados”.
No dia 28 de maio, ele já era recebido em Lima, em audiência pública pelo próprio Santa Cruz, agora no papel de presidente do Peru. A dominação não era tolerada pelos peruanos, mas era imposta por seus três generais: um alemão, outro irlandês e o terceiro inglês. Ponte estava no centro de todos os enredos, quer da política interna do país, quer da guerra declarada pelo Chile. “E se não fôra a mesquinhez do ordenado que lhe pagava o governo imperial, em desproporção ao custo de vida na capital peruana, não lhe teriam sido desagradáveis os sete anos de permanência em Lima”. Ele assistiu ainda à invasão de Lima por tropas chilenas, em agosto de 1838, tendo o Marechal Santa Cruz procurado convencê-lo da necessidade de uma aliança do Império com o Peru e da cessão de dois navios de guerra para sua inexistente armada.
Foi no quadro dessas conversações, que também envolviam questões de limites e um tratado de amizade, comércio e navegação, que se firmou, primeiro no espírito de Ponte Ribeiro, depois nos documentos e ofícios que ele despachava para a Secretaria de Estado, o princípio do uti possidetis, em contraposição ao tratado de 1777, como a base essencial para a resolução das pendências de fronteiras deixadas em aberto pela herança colonial luso-castelhana. Num projeto de tratado de comércio com a confederação Peru-Bolívia, que Ponte Ribeiro discutiu com o Marechal, figurava claramente o princípio do uti possidetis como referencial para a demarcação dos limites. Esta foi, provavelmente, a primeira vez que o Brasil utilizou-se do conceito em negociação com um estado vizinho, o que Ponte Ribeiro teve de sustentar incisivamente junto a seus superiores, face a instruções contrárias, e manifestamente inadequadas, do Rio de Janeiro.
A vida que levava Ponte Ribeiro em Lima era sóbria: evitava jantares, “alegando doença de estômago e regimes alimentares, mas na verdade para evitar retribuições que os seus ordenados não comportavam”. Como informa ainda Soares de Souza, “a única despesa extraordinária de Ponte Ribeiro no Peru consistia na compra de documentos raros”. O Império lhe dava muitos títulos - cavaleiro, comendador, depois barão - mas lhe recusava um salário condigno. “Afinal, excogitava ele, para que tanta luta, tanto estudo, tantas privações, tanto trabalho? para chegar onde chegou: a miséria! Para isso não fôra preciso enfrentar mares, tempestades, navios à vela, caminhos escabrosos e lombos de burro. Bastava-lhe ter ficado na Corte, onde os próprios negros tinham vida melhor”.
Tirante os navios à vela e o lombo dos burros, alguma semelhança entre esse quadro desolador com situações, salários ou episódios atuais? Talvez mera coincidência...

Brasília, 28 janeiro 2005 (Originais: 1381; Relação de Publicados: 548)
Publicado, em versão reduzida, no Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros
(Brasília: ADB, ano XII, nº 48, Jan-Mar 2005, p. 16-19)

Recomendo, aos que desejarem maiores informações, o livro de:
Luis Cláudio Villafañe Gomes Santos:
O Império e as repúblicas do Pacífico: as relações do Brasil com o Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, 1822-1889
(Curitiba: Editora da UFPR, 2002, 178 pp; ISBN: 85-7355-100-4)
para o qual eu escrevi um Prefácio:
A Política exterior do Império para as repúblicas do Pacífico”, (pp. 7-11)