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sábado, 24 de fevereiro de 2024

O governo Netanyahu é um GOVERNO GENOCIDA - Pronunciamento do secretário-geral de MSF, Christopher Lockyear, ao Conselho de Segurança da ONU

Pronunciamento do secretário-geral de MSF, Christopher Lockyear, ao Conselho de Segurança da ONU


NY, 22 de fevereiro de 2024

Senhora presidente, excelências, colegas,

No momento em que pronuncio estas palavras, mais de 1,5 milhão de pessoas estão encurraladas em Rafah. Pessoas que foram violentamente forçadas a irem para esta faixa de terra no sul de Gaza estão arcando com as consequências da campanha militar de Israel.

Vivemos sob o medo de uma invasão terrestre.

Nossos temores são baseados na nossa própria experiência. Há apenas 48 horas, quando uma família estava ao redor de uma mesa de cozinha em uma casa que abrigava funcionários de MSF e suas famílias em Khan Younis, um projétil de 120mm disparado por um tanque rompeu as paredes do local e explodiu, iniciando um incêndio, matando duas pessoas e deixando outras seis com queimaduras severas. Cinco dos seis feridos são mulheres e crianças.

Havíamos tomado todas as precauções possíveis para proteger os 64 trabalhadores humanitários e membros de suas famílias de um ataque desse tipo, notificando as partes em conflito sobre a localização e marcando claramente o edifício com uma bandeira de MSF. Apesar das nossas precauções, nosso prédio foi atingido não apenas por um disparo de tanque, mas por tiros intensos. Algumas pessoas ficaram presas no prédio em chamas enquanto os disparos contínuos atrasavam a chegada de ambulâncias ao local. Hoje pela manhã, olho para fotos que mostram a extensão catastrófica dos danos e vejo vídeos de equipes de resgate retirando corpos carbonizados dos escombros.

Isto tudo é extremamente familiar – forças israelenses atacaram nossos comboios, detiveram nossos funcionários e destruíram nossos veículos com tratores, e hospitais foram bombardeados e invadidos. Agora, pela segunda vez, um dos abrigos onde estavam nossos funcionários foi atingido. Ou este padrão de ataques é intencional ou é um indicativo de incompetência negligente.

Nossos colegas em Gaza têm medo de que, conforme eu pronuncio hoje essas palavras, eles sejam punidos amanhã.

Senhora Presidente, todos os dias nós testemunhamos o horror inimaginável.

Nós, assim como tantos outros, ficamos horrorizados pelo massacre praticado pelo Hamas em Israel em 7 de outubro, e ficamos horrorizados pela reação de Israel. Sentimos a angústia das famílias cujos entes queridos foram feitos reféns em 7 de outubro. Sentimos a angústia das famílias daqueles detidos arbitrariamente de Gaza e da Cisjordânia.

Como humanitários, ficamos perplexos com a violência contra civis.

Estas mortes, destruição e deslocamentos forçados são o resultado de escolhas políticas e militares que desrespeitam flagrantemente as vidas de civis.

Estas escolhas poderiam ter sido feitas, e ainda podem ser feitas, de maneira muito diferente.

Por 138 dias, testemunhamos o sofrimento inimaginável da população de Gaza.

Por 138 dias, temos feito tudo que é possível para efetuar uma resposta humanitária relevante.
Por 138 dias, temos assistido à destruição sistemática de um sistema de saúde que apoiamos há décadas. Temos assistido aos nossos colegas e pacientes serem mortos e mutilados.

Esta situação é o ponto culminante de uma guerra travada por Israel contra toda a população da Faixa de Gaza— uma guerra de punição coletiva, uma guerra sem regras, uma guerra a qualquer preço.

As leis e os princípios dos quais dependemos coletivamente para permitir a assistência humanitária estão agora corroídos ao ponto de perderem seu significado.

Senhora Presidente, a resposta humanitária em Gaza é uma ilusão —uma ilusão conveniente que perpetua a narrativa de que esta guerra está sendo travada em linha com leis internacionais.

Apelos por mais assistência humanitária ecoaram nesta sala.

Ainda assim, em Gaza temos cada vez menos a cada dia—menos espaço, menos medicamentos, menos comida, menos água, menos segurança.

Já não falamos mais de intensificar a ação humanitária; falamos de sobreviver mesmo sem o mínimo necessário.

Hoje, em Gaza, os esforços para prover assistência são irregulares, episódicos e totalmente inadequados.

Como podemos oferecer ajuda que salva vidas em um ambiente onde a diferença entre combatentes e civis não é levada em conta?

Como podemos manter qualquer tipo de resposta quando trabalhadores médicos são alvejados, atacados e demonizados por atender aos feridos?

Senhora Presidente, ataques a serviços de saúde são ataques à humanidade

Não restou nada que possa ser chamado de um sistema de saúde em Gaza. Os militares de Israel desmantelaram hospitais, um após o outro. O que restou é tão pouco diante de tamanha carnificina que é simplesmente absurdo.

A desculpa dada é a de que as instalações médicas foram usadas para fins militares, embora não tenhamos visto qualquer prova verificada de maneira independente de que isso tenha ocorrido.

Em circunstâncias excepcionais nas quais um hospital perde seu status de local protegido, qualquer ataque deve atender aos pricípios de proporcionalidade e cautela.

Ao invés da aderência à lei internacional, vemos a inutilização sistemática de hospitais. Isto tem deixado inviáveis as operações de todo o sistema médico.

Desde 7 de outubro, fomos forçados a evacuar nove instalações de saúde distintas.

Há uma semana, o hospital Nasser foi invadido. O pessoal médico foi forçado a sair apesar de ter recebido garantias reiteradas de que poderia ficar para continuar atendendo aos pacientes.

Estes ataques indiscriminados, assim como os tipos de armas e munições utilizadas em áreas densamente povoadas, mataram dezenas de milhares de pessoas e mutilaram outros milhares.

Nossos pacientes têm ferimentos catastróficos, amputações, membros esmagados e queimaduras graves. Eles precisam de atendimento especializado. Precisam de reabilitação longa e intensiva.

Médicos não podem tratar estes ferimentos em um campo de batalha ou nas cinzas de hospitais destruídos.

Não há leitos, medicamentos e suprimentos suficientes.

Cirurgiões não tiveram escolha a não ser realizar amputações sem anestesia em crianças.

Nossos cirurgiões estão ficando até sem gaze para impedir que seus pacientes sangrem. Eles usam uma vez, espremem o sangue, lavam, esterilizam e reutilizam para o próximo paciente.

A crise humanitária em Gaza deixou grávidas sem cuidados médicos por meses. Mulheres em trabalho de parto não podem aceder a salas de parto. Estão dando à luz em barracas de plástico ou edifícios públicos.

Equipes médicas agregaram um novo acrônimo ao seu vocabulário: WCNSF — sigla em inglês para criança ferida sem familiar sobrevivente.

As crianças que sobreviverem a esta guerra não vão carregar apenas os ferimentos visíveis das lesões traumáticas, mas também os invisíveis—aqueles causados pelos reiterados deslocamentos, medo constante e por testemunhar membros da família serem literalmente despedaçados diante de seus olhos. Essas feridas psicológicas têm levado crianças tão pequenas como de 5 anos nos dizer que preferiam estar mortas.

Os riscos para o pessoal médico são enormes. Todos os dias, temos feito a escolha de prosseguir com o nosso trabalho diante do perigo cada vez maior.

Estamos apavorados. Nossas equipes estão mais do que exaustas.

Senhora Presidente, isso tem de parar.

Nós, junto com o resto do mundo, temos acompanhado de perto o modo como este Conselho e seus membros têm abordado o conflito em Gaza.

Reunião após reunião, resolução após resolução, este órgão não conseguiu endereçar de maneira efetiva este conflito. Vimos membros deste Conselho deliberarem e agirem com atraso enquanto civis morrem.

Estamos perplexos com a disposição dos Estados Unidos de usar seus poderes como membro permanente do Conselho para obstruir os esforços para a adoção da mais evidente das resoluções: uma pedindo um cessar-fogo imediato e sustentado.

Por três vezes este Conselho teve a oportunidade de votar por um cessar-fogo que é tão desesperadamente necessário, e por três vezes os Estados Unidos usaram seu poder de veto, mais recentemente na última terça-feira.

Uma nova proposta de resolução feita pelos Estados Unidos pede de maneira ostensiva por um cessar-fogo. Apesar disso, ela é no mínimo falaciosa.

Este Conselho deveria rejeitar qualquer resolução que obstrua ainda mais os esforços humanitários no terreno e leve este Conselho a endossar de maneira tácita a violência contínua e as atrocidades em massa em Gaza.

A população de Gaza precisa de um cessar-fogo não quando seja “viável” mas agora. Eles precisam de um cessar-fogo sustentado, não “um período temporário de calma”. Qualquer coisa que fique aquém disso é negligência grosseira.

A proteção de civis em Gaza não pode estar condicionada a resoluções deste Conselho que instrumentalizem o humanitarismo para ocultar objetivos políticos.

A proteção de civis, de infraestrutura civil, de trabalhadores da saúde e de instalações de saúde recai, antes de mais nada, sobre as partes envolvidas no conflito.

Mas é também uma responsabilidade coletiva, uma responsabilidade que recai sobre este Conselho e seus membros individuais, como aderentes à Convenção de Genebra.

As consequências de deixar que o Direito Humanitário Internacional torne-se letra morta repercutirão muito além de Gaza. Isto será um fardo duradouro em nossa consciência coletiva. Não se trata apenas de inação política, tornou-se cumplicidade política.

Há dois dias, uma equipe de MSF e suas famílias foram atacados e pessoas morreram em um lugar onde havia sido dito a elas que estaria protegido.

Hoje, nosso pessoal está de volta ao trabalho, arriscando mais uma vez a vida pelos pacientes.

O que vocês estão dispostos a arriscar?

Nós exigimos as proteções prometidas sob o Direito Humanitário Internacional.

Exigimos um cessar-fogo de ambas as partes.

Exigimos que haja espaço para transformar a ilusão da assistência em assistência realmente significativa.

O que vocês farão para que isso seja possível?

Muito obrigado, Senhora Presidente.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Atitudes de Lula em questões internacionais prejudicam Brasil na política externa - R7, Portal Correio

Atitudes de Lula em questões internacionais prejudicam Brasil na política externa, dizem especialistas

Presidente brasileiro se tornou 'persona non grata' para Israel após comparar ações de defesa israelense ao nazismo

Os gestos e as atitudes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva têm prejudicado o Brasil na área da política externa, avaliam especialistas consultados pelo R7. Os exemplos citados são as declarações sobre as ações de defesa de Israel, que o considerou “persona non grata”, do conflito entre Rússia e Ucrânia e a tentativa de relativizar o regime ditatorial de Nicolás Maduro na Venezuela. As informações são do R7, parceiro nacional do Portal Correio.

Desde o início do conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas, Lula tem buscado o papel de conciliador, visando um cessar-fogo permanente na região. A mesma atitude tem sido tomada em relação à guerra da Rússia na Ucrânia. Nas principais ocasiões, o petista enviou o assessor especial para assuntos internacionais, Celso Amorim, para se reunir com membros de ambos os governos na tentativa de se buscar uma solução.

Lula registrou diversas dificuldades para colocar em prática seu plano de o Brasil ser protagonista e pacificador nas questões internacionais voltadas para a área da segurança. O líder brasileiro criticou os Estados Unidos, por supostamente alimentar a guerra na Ucrânia, e recebeu uma repreenda da Casa Branca, que afirmou que o Brasil estava “papagueando” o discurso adotado pela Rússia para negar que tem culpa.

O episódio mais recente e polêmico ocorreu nessa segunda-feira (19), quando Israel classificou Lula como “persona non grata” no país até que haja uma retratação sobre as declarações feitas pelo presidente brasileiro.

No fim de semana, o petista comparou as ações de defesa israelense no conflito contra o grupo terrorista Hamas ao nazismo. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza, com o povo palestino, não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler decidiu matar os judeus”, afirmou o petista na ocasião.

Depois do mal-estar causado pela fala do presidente, o governo israelense tornou Lula “persona non grata” no país. O embaixador brasileiro em Tel Aviv, Frederico Meyer, foi chamado por Lula para consultas e embarca para o Brasil nesta terça (19). 

“Cada vez que o presidente Lula viaja ao exterior, traz estragos e prejuízos em termos de política externa. E são episódios tristes para os brasileiros, que compõem tradicionalmente um povo pacífico, aberto e amigo com as demais nações. No caso de Israel, os gestos parecem fechar as portas aos israelenses e desrespeitam os judeus que em solo brasileiro estão. É uma tremenda ofensa”, avalia a professora de direito da Universidade de São Paulo (USP) Maristela Basso.

“Por outro lado, acirra também a polarização no país, uma vez que, aqueles que seguem o pensamento ideológico-partidário de Lula, se sentem autorizados à revanche antissemita. É extremamente prejudicial nas relações internacional e interna, porque serve de combustível para a eventual prática de crime”, acrescenta.

Para a professora de direito da USP, os gestos de Lula fazem com se que perca completamente o espaço de conciliador que o Brasil buscava ocupar entre países que estão em disputa, como Israel e Palestina e Rússia e Ucrânia.

“Perdeu a credibilidade. Essas manifestações são incompatíveis com o posto de líder, de conciliador. Qualquer pretensão que se tinha, de ser o protagonista, de ocupar espaço de liderança, acabou”, argumenta.

Outro episódio citado pelos especialistas trata-se do regime ditatorial de Nicolás Maduro na Venezuela. No ano passado, Lula disse que o ditador merece mais respeito, apesar de o governo dele ser conhecido por episódios de violação de direitos humanos, censura à imprensa e prisão a opositores. O petista evitou dizer se o país vizinho é uma democracia, mas destacou que a situação política do país não pode sofrer interferência de outras nações.

Para o diplomata e diretor de Relações Internacionais do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, Paulo Roberto de Almeida, as declarações do presidente podem prejudicar a política externa brasileira.

“A declaração de Lula é absolutamente equivocada nos planos histórico, diplomático e político. Não há equiparação possível ao Holocausto, que foi organizado por um Estado contra uma determinada população. Foi um massacre. Não há precedentes na história”, avalia.

“Temos duas questões que caracterizam o [mandato] Lula 3, que deveria ser mais maduro pelas experiências dos mandatos anteriores. O que a gente repara é que tem havido tensões internas e externas que derivam das posturas típicas do PT. No campo econômico, o intervencionismo que vimos em casos como a Vale e a Petrobras. No campo da política externa, o que se nota são posições mais próximas do partido [PT] que as da diplomacia brasileira,” explicou.

“Quando Lula cita o Holocausto, isso ultrapassa a linha do aceitável por ser um fato único na história da humanidade. O Holocausto é algo inimaginável até em relação a outros genocídios, por ter sido um projeto estatal do hitlerismo de eliminar todos os judeus. Isso é algo inédito na humanidade. Essa palavra ‘Holocausto’ o Lula pronunciou por ignorância histórica e causou um choque no povo judeu.”

O advogado especialista em direito internacional Bernardo Pablo Sukiennik argumenta que a classificação do brasileiro como ‘persona non grata’, como reação israelense, amplifica a crise gerada pelo petista.

“Isso quer dizer que essa pessoa, no caso o Lula, não é mais bem-vinda em Israel. Não há previsão de visita ao Estado, mas com essa nomenclatura estão deixando claro que, enquanto o governo for liderado por Isaac Herzog e Benjamin Netanyahu, ele não é bem-vindo lá”.

O diplomata Almeida avalia a reação israelense como grave, pois não há precedentes na histórica republicana brasileira deste tipo de movimento e, dessa forma, mostra a gravidade da situação.

“Após a ‘persona non grata’, a retaliação pode atingir acordos e tratados de cooperação entre os dois países. Não creio que chegue a muito, até porque perderiam muito comercialmente, mas pode ser que seja feita uma espécie de corretivo ao Brasil. Além de sinalizar aos demais líderes mundiais de que não vão aceitar manifestações com esse tipo de conteúdo.”

“Não necessariamente envolve romper acordos, porque não seria do interesse do governo nem de empresas israelenses que exportam ao Brasil, principalmente, na área de segurança, mas mostra um descontentamento para a manutenção, pelo menos temporária, de cooperação”, acrescenta Almeida.

Parlamentares evangélicos repudiaram as palavras de Lula

As Frentes Parlamentares Evangélicas (FPE) do Congresso Nacional e do Senado Federal
repudiaram as palavras de Lula. Em nota, os parlamentares disseram que comparar os ataques de Israel ao Hamas com o nazismo, que vitimou seis milhões de judeus, é provocar um conflito ideológico desnecessário.

“Com a ressalva do respeito às pessoas que inocentemente morrem, Israel, ao contrário de Hitler, está exercendo o seu direito de sobreviver diante de um grupo com o objetivo de eliminar os judeus”, diz o documento.

Para a FPE, “não é justo exigir que uma nação se mantenha passiva diante de um ataque covarde que estupra e mata jovens, idosos e crianças das formas mais horríveis e continua com a política de se esconder atrás de reféns (civis inocentes)”.

Ainda de acordo com a nota, as verbalizações do presidente “não representam o pensamento da maioria dos brasileiros e comprometem a política internacional de forma desnecessária”.

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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A questão palestina - Rubens Barbosa (Estadão)

 A QUESTÃO PALESTINA

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 13/02/2024

       

        Continua a crescer a pressão da opinião pública mundial por uma solução a médio e longo prazo para a dramática situação no Oriente Médio, a fim de evitar a escalada do conflito entre Israel e Hamas e de buscar um entendimento que permita a estabilização política, econômica e militar na região.

       Os altos custos do apoio militar para a Ucrânia e a aproximação da eleição presidencial nos EUA, com forte impacto negativo à candidatura de Biden, são agravados, no curto prazo, pela multiplicação dos incidentes militares, com o risco da situação sair do controle, e pela necessidade de garantir a segurança de Israel e a viabilização do Estado Palestino.

        Com esse pano de fundo, o governo de Washington lançou um balão de ensaio com o vazamento de um esboço de proposta por meio de comentários no New York Times e no The Economist, com grande repercussão.

        Segundo se noticia, estaria havendo conversas sigilosas no sentido de viabilizar um amplo plano de paz - hoje de difícil aceitação por todas as partes envolvidas -, mas que poderá, com concessões de todos, tornar possível vislumbrar uma luz no fim do túnel, caso a posição do governo norte-americano se mantenha firme e os entendimentos se intensifiquem.

        Assim, a política dos EUA em relação a região parece estar evoluindo. O presidente Biden anunciou inéditas sanções contra colonos israelenses que promovem violência contra palestinos na Cisjordânia. Thomas Friedman, no New York Times, prevê uma nova “Doutrina Biden” para o Oriente Médio. As linhas principais dessa nova política americana passariam por uma atitude firme em relação ao Irã, por uma forte pressão sobre Israel, para que aceite a criação de um Estado Palestino, e pelo fortalecimento da aliança com a Arábia Saudita, que reconheceria diplomaticamente Israel. The Economist acrescenta que, em meio a intensa ação diplomática, lideradas pelos EUA e Arábia Saudita, o plano estaria tomando forma, a partir das negociações para a liberação dos reféns em poder do Hamas, (Netanyahu recusou a  última proposta do Hamas), para modificar a política interna israelense e permitir a possibilidade de criação do Estado Palestino.

        O primeiro passo seria uma posição dura em relação ao Irã, incluindo uma retaliação militar robusta contra aliados e agentes do Irã na região (Houthis, ISIS e outros grupos) em resposta às mortes dos três soldados americanos em uma base na Jordânia, por um drone aparentemente lançado por uma milícia pró-Irã ativa no Iraque. O segundo eixo consistiria em uma iniciativa diplomática sem precedentes, para promover um Estado palestino, que envolveria alguma forma de reconhecimento pelos EUA de um Estado palestino desmilitarizado na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, que passaria a existir somente depois que os palestinos tivessem desenvolvido um arcabouço de instituições definidas e críveis, assim como capacidades de garantir que esse Estado seja viável e incapaz de ameaçar Israel. O governo norte-americano estaria mantendo consultas dentro e fora do governo americano a respeito das diferentes formas que esse reconhecimento do estatuto de Estado dos palestinos poderia assumir. O terceiro eixo seria uma aliança de segurança ampliada dos EUA com a Arábia Saudita que também envolveria a normalização das relações dos sauditas com Israel, com reconhecimento mútuo e com garantias de segurança respaldadas pelo governo norte-americano. Seria a retomada dos entendimentos entre a Arabia Saudita e Israel (acordo de Abraão) para o reconhecimento do Estado de Israel, se o governo israelense estiver preparado para aceitar um processo diplomático que leve a criação de um Estado palestino desmilitarizado, liderado por uma Autoridade Palestina fortalecida.

       A primeira fase está em curso com os ataques dos EUA aos grupos terroristas no Iraque, na Síria e no Yemen. Como nem os EUA, nem o Irã, nem os países do Golfo querem uma escalada da guerra na região, a fase inicial teria de ser concluída com o controle dos grupos terroristas financiados por Teerã. As conversas reservadas entre EUA, Arabia Saudita, Irã e Israel mostrarão se as duas etapas seguintes da estratégia serão viáveis a médio prazo.

         O ataque terrorista de 7 de outubro contra Israel e seus desdobramentos estão forçando uma reformulação fundamental na maneira como a questão do Oriente Médio deve ser tratada. Se vencer as resistências, a Doutrina Biden produzirá um equilíbrio geopolítico e políticas domésticas mais seguras. Essa estratégia poderia dissuadir o Irã, tanto militarmente, quanto politicamente, ao tirar a carta palestina de Teerã. Poderia promover o estatuto do Estado palestino em termos consistentes com a segurança israelense e, simultaneamente, criar condições para a normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita, em termos que os palestinos possam aceitar. Mas para que a questão seja bem-sucedida é indispensável que esses três eixos estejam assegurados e interconectados. O plano promete uma nova arquitetura econômica e de segurança no Oriente Médio. Essa estratégia poderia se tornar o maior realinhamento estratégico na região desde o tratado de 1979 em Camp David.

 

Rubens Barbosa, ex-embaixador em Washington, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras

       

domingo, 14 de janeiro de 2024

Manifesto pela Retirada do Apoio Brasileiro à Petição Sul-Africana Contra Israel - dirigido ao presidente Lula

PRA: Não tenho a menor ideia de quem ou quais pessoas possam ter escrito esse manifesto, mas creio que reflete a posição de cidadãos preocupados com a credibilidade diplomática do Brasil.

*Manifesto pela Retirada do Apoio Brasileiro à Petição Sul-Africana Contra Israel*

“Prezado Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,

Nós, cidadãos preocupados, expressamos nosso descontentamento com a decisão do governo brasileiro de apoiar a ação da África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça. Compreendemos a complexidade da situação em Gaza e o sofrimento da população local. No entanto, é imperativo avaliar todos os aspectos antes de endossar tal iniciativa, principalmente quando se trata da séria acusação de genocídio.

Genocídio, por definição, implica a intenção de exterminar pessoas com base em nacionalidade, raça, religião ou etnia. Não acreditamos que seja sua visão ou a percepção geral dos brasileiros que Israel tenha tal objetivo. Pelo contrário, reconhecemos que o conflito teve início com um ataque terrorista do Hamas, que declaradamente busca a eliminação de Israel e de seu povo.

O Hamas utiliza civis como escudos humanos e mantém reféns inocentes, o que contribui significativamente para a complexidade e gravidade da situação em Gaza. Ao apoiar o pedido da África do Sul, o Brasil pode inadvertidamente reforçar uma visão distorcida dos eventos, simplificando uma realidade complexa.

*Instamos, portanto, uma reconsideração desse apoio* e a adoção de uma abordagem justa e equilibrada. Enquanto buscamos aliviar o sofrimento em Gaza, é crucial pressionar não apenas Israel, mas especialmente o Hamas, para que cesse o uso de escudos humanos e liberte os reféns. A responsabilidade pela situação deve ser atribuída a todas as partes envolvidas, sem acusações infundadas, como a de genocídio praticado por Israel.

Apelamos por uma atitude que promova a verdade, a justiça e um ambiente propício para negociações de paz duradouras.”


sábado, 13 de janeiro de 2024

Carta do ex-chanceler Celso Lafer ao Chanceler Mauro Vieira (11/01/2024)

 https://www.academia.edu/113412415/Carta_do_ex_chanceler_Celso_Lafer_ao_Chanceler_Mauro_Vieira_11_01_2024_

Carta do ex-chanceler Celso Lafer ao Chanceler Mauro Vieira (11/01/2024)

2024, Carta de Celso Lafer ao chanceler Mauro Vieira
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CELSO LAFER Professor Emérito Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Exmo. Sr. Embaixador Mauro Vieira DD Ministro das Relações Externas Palácio do Itamaraty - Brasília Caro Mauro Tomo a liberdade, pelas razões abaixo expostas, de tecer considerações sobre a iniciativa da Africa do Sul de submeter à CI] uma imputação de genocídio a Israel - e do apoio brasileiro a tal iniciativa. (...)




domingo, 12 de novembro de 2023

Tempos estranhos construídos entre nós - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

Tempos estranhos construídos entre nós

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP

  Jornal da USP: 10/11/2023 

https://jornal.usp.br/artigos/tempos-estranhos-construidos-entre-nos/


Virou criminoso ter ideias, tomar partidos, expressá-los. Ficou démodé tratar assuntos sérios, complexos e dinâmicos com a gravidade e o zelo que merecem. Está, como nunca, perigoso afirmar ponderações, convicções, avaliações. A sociedade brasileira – como todas as demais ocidentais e extremo-ocidentais – passou de sólida a líquida; e de líquida a mole. Sendo mole, perdeu a fluidez. Sem fluir, entrou em transe. Nesse transe, estancou a transição de melhoramentos. Sem melhorar, regrediu. Ao regredir, desesperou-se. Acelerou na curva e avançou em marcha à ré. Iniciou namoro desavergonhado com a obscuridade e com a desrazão. Questionando a civilização, reprimindo a civilidade, naturalizando o descontrole de pulsões. Quanta desonra. Sim: descivilização.

O incidente do 7 de outubro de 2023 no Oriente Médio mobilizou a atenção do mundo inteiro – o Brasil incluso. A brutalização das relações entre judeus e islamitas ganhou intensidade poucas vezes anotada. Centenas de pessoas foram assassinadas em instantes e outras tantas foram sequestradas a cativeiros sabe-se lá de qual salubridade. Como tudo hoje contém imediatidade, as imagens, os sons e os clamores médio-orientais inundaram rápido retinas e sentidos em todo o planeta. A indiferença virou instantaneamente impossível. Sucumbir a ela se firmou como sinônimo de covardia, desumanidade, indecência.

Autoridades israelitas se apressaram em classificar as atrocidades como o seu 11 de setembro em menção aos incidentes terroristas que abriram o novo século revelando a impotência da potência norte-americana em seu próprio território. A gravidade do simbolismo dessa comparação dispensa observações. Entusiastas da causa dos palestinos não titubearam em aplaudir a audácia dos ismaelitas radicais que na senda de Osama bin Laden continuam querendo islamizar o mundo inteiro. O impacto moral dessa louvação também dispensa análise demorada. Ausência de meio-termo. Pura e simplesmente isso. Uma ausência de meio-termo que inebriou qualquer ponderação. Avec Dieu, on ne discute pas! [Com Deus, não se discute], lembrou um politólogo argelino.

O extremismo da situação ostracizou as penúrias eslavas e as misérias africanas. O presidente ucraniano segue desesperado sem saber o que fazer. O clamor de Kiev, Kinshasa, Abuja, Bamako, Bangui foi retirado inteiramente dos focos de atenção. A guerra dos mundos saiu do itinerário de Washington, Paris, Londres, Berlim, Bruxelas, Moscou e Pequim para se imiscuir nas batalhas milenares intermináveis dos herdeiros abraâmicos em seus destinos médio-orientais.

Com Deus, por certo, não se discute. Mas as pessoas, de lado a lado, estão morrendo. E não somente islamitas e judeus. Mas também católicos, protestantes, agnósticos, hinduístas, animistas e toda a infinita variedade de abstêmios de fé. Que fazer?

Um alto funcionário do Estado de Israel classificou os palestinos – e não simplesmente os elementos do Hamas que tocaram o terror em Israel – de “animais” antes de endossar a supressão do fornecimento de gás, alimentos e medicamentos aos moradores de Gaza. Lideranças do Hamas em Doha, Teerã e Beirute prometeram reunir forças para, desta vez, eliminar até o último de seus oponentes infiéis.

Quanto ressentimento, quanto ódio, quanta dor.

Onde falta pão, vaticina o provérbio, todos brigam e ninguém tem razão. Todos ali, no Oriente Médio, islamitas, judeus ou não, desejam um simples seu lugar ao sol. Mas a Providência parece não cooperar. Tem mil e quinhentos anos que esse tormento dura. E vai seguir assim. E, por frigir assim, tudo exige imensa cautela, parcimônia, decência, honradez, civilidade e retidão. Não se deve, pois, jogar nem brincar com o sofrimento dos outros como informa um outro adágio conhecido e de valor.

No entanto, a professora Francirosy Campos Barbosa, em seu artigo Cantando al sol como la cigarra: enquanto o terror, publicado neste espaço, no dia 23 de outubro de 2023, evidenciou que por aqui, pelo Brasil, brasileiros não se cansam de jogar e brincar com o sofrimento alheio. E, pior, parecem, inclusive, gostar.

Pelo que ela reportou no artigo, após colaborar com órgãos de imprensa para o esclarecimento de aspectos da tormenta no Oriente Médio, ela começou “a receber inúmeros ataques, por e-mail e pelo Instagram”. E, diante do temor, obrigou-se a revelar aqui, no Jornal da USP: “Temo pela minha segurança e integridade física”.

Três dias depois, no 26 de outubro de 2023, a Comissão Arns, presidida pelo eminente advogado José Carlos Dias e pela digníssima Professora Emérita da USP Maria Victoria Benevides, enviou um ofício ao magnífico reitor da Universidade de São Paulo solicitando a “Defesa e proteção de docentes ameaçados pela manifestação sobre o conflito Israel e Hamas”.

Dispensa-se o cotejamento pessoal para se ter a convicção de que a professora Francirosy – com quem tenho a honra e o privilégio de figurar côte à côte neste espaço – expressa as qualidades de uma pessoa simpática, sensível, correta, inteligente e intelectualmente honesta. Basta que se leia o que ela escreve por aqui e alhures.

Ninguém, como se sabe, toca fundo no imaginário nem na alma de outro alguém – mesmo em divergência – sem praticar a nobreza desses predicados supramencionados. Ninguém desprovido desses predicados consegue adentrar em assuntos tão moralmente complexos, como esses da nova fase das agonias médio-orientais, de modo parcimonioso e tranquilo como a professora Francirosy aqui, ali e em toda parte o faz.

Constrange, porquanto, simular J’accuse sem ser Zola nem ter a ilusão de querer sê-lo. A professora Francirosy possui gente mais consistente para protegê-la. Mas, de toda sorte, constrange muito mais lembrar que a liberdade de expressão segue em vigor como um valor no âmbito da legislação brasileira e no interior de todas as convenções sobre garantias civilizacionais em todo o planeta. Constrange, assim, rememorar que gente civilizada conversa, persuade-se, reconhece-se, harmoniza tensões e elimina aporias. Mesmo com o silêncio. Muita vez com a ausência. Outras tantas somente com a retidão.

Nada disso reside exclusivamente em Hegel nem simplesmente nos iluministas obcecados pelo imperativo da razão. Um apóstolo primitivo, que renasceu no caminho de Damasco para depois morrer decapitado em fúrias romanas, já dizia “sede meus imitadores”, “amai-vos uns aos outros”. O budismo, o hinduísmo, o judaísmo, o espiritismo, todos os animismos e o islamismo comungam nessa métrica e forjaram civilizações mundo afora assentadas nessa convicção. Mas a agonia permanece, o dissenso reina e uma renovada selva selvagem transvestida de descivilização parece em toda parte se avizinhar. Infelizmente, desta vez agora, ao que tudo indica, sem Dante nem Virgílio tampouco Beatriz para algo salvar.

A professora Francirosy não ficou isolada nesse torvelinho da desrazão brasileira dos últimos dias. O professor Salem Hikmat Nasser, da Faculdade de Direto da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, foi ainda mais hostilizado devido às suas sinceras e embasadas avaliações sobre as decorrências do 7 de outubro de 2023 em terras médio-orientais. Os seus contraditores, audazes e cruéis, permitiram-se formular uma petição pública solicitando o seu degredo. Inicialmente de seu espaço laboral, a FGV-SP. Em seguida de seu país, o Brasil. E, por fim, da face esférica deste firmamento; por assim dizer, desta vida.

Sim: em pleno século XXI, vivendo num país onde os seus paladinos se vangloriam do funcionamento das instituições, da qualidade de um regime político pretensamente democrático e da graciosidade de uma sociedade supostamente civilizada, professores são ameaçados de morte simplesmente por cumprir dimensões deontologicamente impostas pela sua função de elucidar.

Tem três anos que o professor Samuel Paty foi degolado à luz do dia na França pelo simples fato de lecionar uma das disciplinas alma mater das elucidações que segue sendo a história. Dominique Bernard, outro professor de História, foi assassinado, também sob a luz do sol, em seu ambiente de trabalho, semanas atrás, depois do 7 de outubro de 2023, pelas mesmas motivações radicais daqueles que acreditam e militam nas bases de absolutos étnico-religiosos impermeáveis à contradição, à divergência e à elucidação.

Pelo Brasil, ainda não se mata professor por isso. Ainda.

Excetuando-se matar, exemplos de agressão, hostilização, importunação, intimidação e humilhação de todo tipo viraram recorrentes no Brasil e em todas as partes do Ocidente e do extremo Ocidente. Cretinos, covardes e canalhas tornaram corriqueiro fustigar professor. E, por mais doentio que possa parecer, esses miseráveis parecem nisso orgasticamente se alegrar.

Instâncias públicas e privadas de monitoramento e controle seguem impotentes e sem nada efetivamente consistente aportar. O presidente Emmanuel Macron, na França, por Samuel Paty fez discursos, mobilizou recursos e pessoal, sinalizou campanhas e projetou ações. O assassinato de Dominique Bernard semanas atrás veio indicar, no entanto, que foi tudo – ou quase tudo – em vão.

Seguindo no velho mundo e retroagindo no tempo, vale sempre lembrar que Raymond Aron foi incontestavelmente um dos luminares do século XX. Seguramente um dos maiores intelectuais de sua época. Mas cometeu delitos gravíssimos aos olhos de seus coevos. Os seus principais desvios foram: 1) surfar a contravento; 2) recusar-se à hemiplegia de se enquadrar cega e ideologicamente à direita ou à esquerda; e 3) explicitar as suas posições, avaliações e elucidações a quem quiser e vier. Os seus contemporâneos não o perdoaram. Os seus detratores chegaram a afirmar ser melhor errar com Sartre (maoísta, esquerdista e confuso) que acertar com Aron. O ápice da contenda veio com os eventos de maio de 68. Diante daqueles espetáculos, Raymond Aron, que desceu às trincheiras da resistência ao nazismo com o general De Gaulle em 1940 para depois se afastar dele após a liberação de 1944, afirmou categoricamente ser “inadmissível e insuportável que um país sério como a França se permitisse retirar do poder o presidente-general Charles de Gaulle em favor do agitador-universitário Daniel Cohn-Bendit”. As suas razões e elucidações nesse expediente eram diversas. Mas a sua convicção profunda e inamovível remetia à memória dos ovos de serpentes que ele vira germinar na Alemanha dos anos de 1930. Ovos e serpentes que marinaram a ascensão de Hitler, do nazismo, do sem-nome, da Shoah. Em síntese, Aron acreditava no trágico. Sabia que por pouco, muito pouco, o nazismo e os demais totalitarismos deixaram de vencer. Antevia, assim, naqueles eventos de 1968, um perigo iminente. Um namoro incestuoso com o trágico. O trágico na vida e o trágico na história. Um namoro que poucos viam. E aqueles que viam fingiam não ver. Por tudo isso ver e dizer, esse gigante do século XX de nome Raymond Aron recebeu um lugar permanente no index da intelligentsia francesa até a sua morte no 17 de outubro de 1983.

Perguntar-se-ia, sutilmente, um desavisado onde estaria a liberdade de cátedra, a liberdade de expressão e a liberdade tout court.

Melhor não perguntar nem imaginar tampouco procurar. Há index em toda parte, a todos os gostos, com variada motivação.

De toda sorte, o passar dos anos foi evidenciando que as preocupações de Raymond Aron estavam recheadas de sentido e de razão. A trama por detrás do mantra do é proibido proibir impulsionou uma horizontalização da sociedade que, com o tempo, começou a retirar a bússola de todas as relações humanas não somente na França, mas em todo o Ocidente e Ocidente extremo. Avant la lettre, portanto, o sociólogo francês avistou o que hoje nos carcome: um pós-modernismo desvairado de mistura identitária e fúria woke.

Focado no Brasil, Nelson Rodrigues, um dos maiores luminares brasileiros de todos os tempos, foi dos primeiros a sentir os sinais de perigo aludidos nas preocupações do sociólogo francês. Perdida em vários lugares de sua extensa obra existe o alerta insistente ao fato de os “idiotas estarem perdendo a modéstia. [Pois] outrora silenciosos e contidos, agora – nos tempos do mestre pernambucano – esses canalhas, cretinos e covardes já maiorais, cheios de si, seguem loucos para aparecer”.

Morto no 21 de dezembro de 1980, quase três anos antes de Raymond Aron, Nelson Rodrigues foi – como Aron – privado da contemplação dos infortúnios que ele próprio percebeu e anunciou para os brasileiros. A imbecilidade dos idiotas foi pouco a pouco tomando conta da pátria Brasilis que ele tanto amou – mesmo sendo ele, Nelson Rodrigues, um simpatizante da máxima de Samuel Johnson que informa: patriotism is the last refuge of a scoundrel [o patriotismo é o último refúgio de um canalha].

Três lustros antes, no dia 2 de abril de 1964, o mineiro Tancredo de Almeida Neves classificou de “canalhas, canalhas” aqueles senhores que surrupiavam o poder para apagar as luzes da Revolução de 1930. Vinte anos depois, o deputado Ulysses Guimarães considerava que os gestos autoritários, inconsequentes e descivilizados daqueles canalhas, canalhas, fardados e sem farda, com dinheiro e sem dinheiro, seguiam vivos, abundantes e contagiando e amealhando seguidores com roupagens libertárias. E não tido por contente na recepção de sua avaliação, o marido da dona Mora Guimarães ainda vaticinou aos céticos que aguardassem, “pois os próximos [canalhas] serão ainda piores”.

Quase trinta anos depois, a gravidade dessa profecia macabra do sábio da redemocratização somada à desesperação de Nelson Rodrigues subiu à superfície da compreensão todos com os protestos das noites de junho de 2013. A partir deles, os imbecis, os canalhas, os covardes, os cretinos e os idiotas, outrora soterrados no anonimato de sua irrelevância, começaram a dominar, barbarizar e terrorizar ineditamente o espaço público brasileiro com a fluidez da internet. Umberto Eco – mais que Olavo de Carvalho – tinha razão: as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis.

Se esses imbecis devem ou não se manifestar, trata-se de uma outra discussão. Entretanto, segue fora de parlamentação se esses incontestáveis pulhas – imbecis ou não; fardados ou não; parlamentares ou não; políticos ou não; empresários ou gente do comum – devem ou não importunar, intimidar, fustigar, ameaçar, humilhar professor em geral, professor universitário em particular ou qualquer concidadão brasileiro de qualquer matiz. Não. Mil vezes não.

Quem se dedicar a meditar sobre as tensões civilizacionais por detrás de toda essa delicada discussão vai notar que instituições escolares, academias e universidades não representam que uma porção periférica, limitada e reduzida do imenso sistema universal de transmissão de conhecimentos, saberes e valores que é a educação. A educação formal – diga-se assim para se referir a instituições formais de ensino – vive sabidamente hodiernamente estágios de miséria, pilhéria e regressão no mundo inteiro. Especialmente nos espaços ocidentais e extremo-ocidentais. A razão essencial dessa queda aos infernos dessa dimensão da educação se deve ao fato de que, salvo exceções, a educação formal deixou de funcionar como elevador social. Os seus frequentadores descobriram que o seu futuro econômico, social, intelectual e cultural pode independer de um diploma de uma instituição de ensino. Como consequência, salvo melhor demonstração, os seus frequentadores que ainda não totalmente desertaram começaram a se autoimpor a incultura como missão. Ou seja, estão virando incultos obstinados. E, infelizmente, nada indica que disponham de motivação para voltar a desejar se cultivar.

O fim da história (que não aconteceu) trouxe paradoxalmente consigo o fim do gosto pelo saber como um valor em si. As consequências civilizacionais gerais disso estão aí para quem quiser ver, entender e sentir. Mas no cadinho limitado da educação formal esses efeitos parecem ser vistos sem ser notados. Desditos sem ser ditos. Sublimados sem ser contraditos. Dito de modo direto: com a desvalorização do gosto pelo saber, o professor, intermediador desse saber, virou objeto da desconstrução e do escárnio de uma civilização em acelerada putrefação.

Em contrário, perceba-se que no Brasil desde as noites brasileiras de junho de 2013 que uma verdadeira chusma de canalhas defende e difunde impune e inadvertidamente o imperativo da necessidade da desconstrução e da destruição das instituições formais de ensino no País. Especialmente daquelas públicas. Notadamente das universidades. Conseguintemente de seus profissionais. Singularmente de seus docentes.

Chegou-se ao cúmulo de se inocular no imaginário da população brasileira hors les murs que as universidades seriam simplesmente um antro de doutrinação marxista, iniciação a psicotrópicos, conivência com imoralidades, além de espaço de deformação de caráter e bons costumes.

Muitos, claro, acreditaram e acreditam.

Como consequência, a integralidade das categorias dos profissionais universitários – e muito especialmente os segmentos docentes – passou a amargar perseguições morais e funcionais, dentro e fora de seus locais de trabalho, como jamais se viu.

Sim. É isto mesmo. A descivilização na sociedade brasileira parece que chegou aonde ela deveria terminar. Foi, assim, portanto, ficando, por evidente, perigoso ser docente, ter ideias, tomar partidos, expressá-los.

Quando se lê na petição da Comissão Arns que: “Por fim, solicitamos que nos sejam informadas as medidas tomadas pela Universidade de São Paulo para a defesa do direito à livre expressão da professora Dra. Francirosy. E ficaremos agradecidos com as providências administrativas tomadas pela Reitoria para a defesa dos princípios citados e para a proteção dos docentes ameaçados”, a perplexidade generalizada fica tão imensa que chega a obliterar a dramaticidade da situação da Francirosy Campos Barbosa, do professor Salem Hikmat Nasser e de tantos outros anônimos interpelados diuturnamente pela desrazão. Inicia-se outra reflexão. Menos amena, muito profunda e sem respostas seguras. Começa-se a, singelamente, meditar sobre que sociedade é esta, que país é este, onde foi que nos permitimos tanto errar.

Tempos estranhos construídos entre nós.

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