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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

E por falar em ideologia, que tal cristã? - Resenha de livro de Catherine Nixey, por José Carlos Fernandes

Seleciono poucos trechos de uma resenha crítica que segue depois:

“... cenário geral que descreve corresponde ao que é hoje consensual entre os historiadores: à medida que foi ganhando poder, o cristianismo – que, no final do século IV já era a religião de 79% da população do império – foi crescendo em intolerância e envidou todos os esforços para suprimir as religiões pagãs.”
A natureza crescentemente intolerante do cristianismo não teve como alvo exclusivo as religiões pagãs: ainda que, mais tarde, a Igreja tenha ficado com a fama de preservadora da cultura da Antiguidade Clássica, também esta foi perseguida nos primeiros tempos da afirmação do cristianismo."
Paulo Roberto de Almeida

Quando Deus escorraçou Júpiter: a destruição do Mundo Clássico pelos cristãos



José Carlos Fernandes
Observador, 29 Setembro 2018

"A chegada das trevas", de Catherine Nixey, é o livro que dá a conhecer a destruição deliberada da cultura da Antiguidade Clássica pelos cristãos durante os séculos IV a VI.



Habituámo-nos a ver estátuas gregas sem braços nem cabeça e, automaticamente, atribuímos estes estragos ao desgaste do tempo, à incúria dos homens e a calamidades como terramotos, incêndios e guerras. Estes três agentes são certamente responsáveis pela perda e mutilação de muitas obras de arte, mas muita estatuária e arquitectura clássicas foram vítimas de outro fenómeno: o encarniçamento dos cristãos contra a cultura e a religião “pagãs”. Hoje associamos a destruição deliberada de obras de arte de outras culturas aos taliban – que dinamitaram os Budas de Bamyan, no Afeganistão – ou ao Daesh – que destruiu parte da cidade de Palmira, na Síria – mas os cristãos dos séculos IV a VI terão praticado actos similares numa escala muito maior e movidos por um espírito similar de fanatismo e intolerância. É esse o assunto que Catherine Nixey trata em The darkening age: The Christian destruction of the Classical World (2017), editado em Portugal pela Desassossego como A chegada das trevas: Como os cristãos destruíram o Mundo Clássico, com tradução de Pedro Carvalho e Guerra.
A chegada das trevas: Como os cristãos destruíram o Mundo Clássico, de Catherine Nixey

A devoção ao martírio

Quando se pensa em Império Romano e Cristianismo, a imagem que primeiro vem à mente é a de cristãos indefesos a serem atirados às feras nos circos romanos, muito por culpa do popular romance Quo vadis? (1895), de Henryk Sienkiewicz, e do não menos popular filme dele adaptado em 1951. Porém, embora o Estado romano tenha promovido a perseguição de cristãos e alguns tenham perecido na arena, a investigação histórica sugere que as multidões de mártires descritas por Eusébio de Cesareia (c.260/265-c.339/340) são pouco dignas de crédito, tal como acontece, aliás, com boa parte das informações providenciadas pelo “pai da História da Igreja”, que deverá ser visto mais como um propagandista do que como um historiador no sentido moderno do termo.
As perseguições começaram em 64 d.C., com Nero, que terá acusado os cristãos de ter ateado o Grande Incêndio de Roma e que lhes terá infligido um suplício à altura do seu suposto crime: os cristãos terão sido amarrados a postes e untados com pez e outras substâncias combustíveis e usados como tochas humanas para iluminar os jardins do seu palácio – o suplício pode soar retorcidamente sádico, mas a história dos imperadores romanos está recheada de actos cruéis.
“As tochas de Nero”, por Henryk Siemiradzki, 1876
A forma como Nixey descreve o Grande Incêndio de Roma é sintomática da sua falta de rigor intelectual: “enquanto o seu povo fugia, Nero terá passado os seis dias e sete noites do desastre a assistir, da sua torre alta, enlevado pela ‘beleza das chamas’. Terá passado o tempo vestido a rigor e cantando uma composição de sua autoria (O saque de Illium) acerca do incêndio de outra cidade famosa. É possível que até tenha tocado a cítara enquanto o fazia”.
“Triunfo dos mártires cristãos no tempo de Nero”, por Eugéne Romain Thirion (1839-1910)
Perante eventos sobre os quais existem várias versões, Nixey não hesita em escolher uma – aquela que melhor se ajusta à sua “narrativa” ou a que é mais colorida e pitoresca –, omitindo a existência das restantes. Nas suas mãos, lendas há muito desautorizadas pelos historiadores são apresentadas como factos indiscutíveis e adornadas com detalhes “realistas” da sua própria lavra, e textos de propaganda – pró-cristãos ou anti-cristãos – são tomados em conta como se fossem relatos presenciais, isentos e objectivos.
Seja como for, Nixey vai de encontro à perspectiva hoje sustentada pela maioria dos historiadores quando afirma que “ainda que as histórias de mártires tenham, frequentemente, gerado guiões apelativos e empolgantes, muito poucas, talvez nenhuma, destas histórias são baseadas em factos históricos. […] Não foram assim tantos os anos de perseguição ordenada pelo governo no Império Romano. Menos de 13 – em três séculos inteiros […] A ideia de uma linha de imperadores inspirados por Satanás, sequiosos do sangue dos fiéis, é mais um mito cristão”.
“Mártires cristãos no Coliseu”, por Konstantin Flavitsky, 1862
Nixey afirma que “não temos conhecimento de nenhuma perseguição conduzida pelo governo durante os primeiros 250 anos do cristianismo com excepção de Nero”. Nixey omite os registos de perseguições nos reinados de Domiciano (86-96), Trajano (98-117) e Sétimo Severo (193-211), mas é possível que tenham sido acções empreendidas a nível local, sem o aval de Roma. Só com Décio, em 250, as perseguições foram desencadeadas por decreto imperial e foram exercidas sistematicamente em todo o império, embora Nixey as trate com ligeireza, alegando que “a intenção do édito de Décio era garantir a lealdade ao seu império […] Ainda que o édito de Décio tenha apanhado cristãos, não lhes fora, com toda a certeza, destinado. E foi breve: pouco mais de um ano depois de ter sido lançada a primeira perseguição, já terminara”.
Porém, Nixey nada diz sobre a Grande Perseguição iniciada em 303 pelos co-imperadores Diocleciano, Maximiano e Galério, que foi a mais intensa conduzida contra os cristãos pelo Estado romano.
“A última oração dos mártires cristãos”, por Jean-Léon Gérôme, 1883
Seja como for, Nixey não pode descartar como irrelevantes as perseguições anti-cristãs levadas a cabo por autoridades locais e arruaceiros, pois muitos dos actos contra a religião e a cultura clássicas que relata no livro foram também obra de autoridades locais e arruaceiros.

De perseguidos a perseguidores

Galério, que foi o principal instigador da Grande Perseguição iniciada em 303, arrependeu-se no final da vida: em 311, quando estava gravemente enfermo, fez publicar um “Édito de Tolerância”, que ordenava o fim das perseguições e o direito dos cristãos às suas práticas religiosas (um evento crucial omitido por Nixey).
Se era misericórdia divina que esperava com este gesto, Galério não foi recompensado neste mundo, pois sucumbiu seis dias depois da publicação do édito e na acesa disputa pelo poder que se seguiu Constantino acabou por prevalecer, infligindo uma decisiva derrota a Maxêncio na Batalha da Ponte Mílvia, em 312. A vitória de Constantino terá contado com a ajuda de Cristo, que lhe terá aparecido num sonho na véspera do embate, o que o levou a converter-se ao cristianismo e a promulgar, com o co-imperador Licínio, o Édito de Milão (313), que garantiu liberdade de culto para todas as religiões (e devolveu aos cristãos as propriedades confiscadas – um elemento omitido por Nixey –, algo que o édito de Galério não contemplara).
“A conversão de Constantino”, por Peter Paul Rubens, 1622
Eusébio relata que o édito foi acolhido com entusiasmo e que se viveram “tempos maravilhosos”, mas Nixey argumenta que, uma vez que, por esta altura, os cristãos representariam apenas 7-10% da população do império, que ascenderia a 60 milhões, seria improvável um cenário em que “dezenas de milhões de [não-cristãos] cantavam e dançavam nas ruas e olhavam umas para as outras com rostos sorridentes e olhos brilhantes enquanto os seus templos eram esmagados”. Nixey está provavelmente certa quanto ao empolamento da felicidade do povo perante o édito, mas a sua argumentação não faz sentido: nem imediatamente após o édito nem durante o resto do longo reinado de Constantino, que se estendeu até 337, houve “templos esmagados”.
É certo que, após a conversão ao cristianismo, Constantino deixou de fazer sacrifícios aos deuses romanos, concedeu isenções fiscais e privilégios jurídicos aos cristãos, remunerou generosamente o clero, fez construir ou reparar, a expensas das finanças imperiais, igrejas por todo o império, e ergueu uma dúzia delas só em Roma. Acolheu bispos na sua corte como conselheiros, nomeou outros cristãos para altos cargos na estrutura do Estado e manifestou publicamente um apreço crescente pelo cristianismo, convidando os seus súbditos a renunciar ao paganismo, pois, argumentava, o deus cristão era moralmente superior – como escreve Simon Baker em Roma: Ascensão e queda de um império (Casa das Letras), “A mensagem era clara: o cristianismo passava a ser […] a religião oficialmente favorecida no mundo romano”.
Constantino oferece a coroa ao papa Silvestre I (313-335), fresco de autor anónimo no mosteiro beneditino de Santi Quattro Coronati, Roma, c.1247
Nixey escreve que Constantino “exigiu que as estátuas fossem removidas dos templos” e dando crédito ilimitado ao mesmo Eusébio que achara pouco fiável uns parágrafos atrás, traça um cenário devastador de remoção, mutilação e fundição de estátuas de deuses e de profanação, pilhagem e destruição de templos, sob as ordens de Constantino. E, prossegue, um pouco por todo o império esta “destruição deu nova coragem a outros cristãos e os ataques disseminaram-se”, e as pessoas “espontaneamente, sem qualquer ordem do imperador, destruíram os templos vizinhos e as estátuas e erigiram casas de oração”.
Seria talvez o que Eusébio desejava, mas não foi o que aconteceu.
Simon Baker admite que “alguns templos tradicionais foram fechados e a consulta aos oráculos foi proibida, em especial para os governadores e os prefeitos”, mas a medida visava “eliminar as práticas de magia e a superstição”, não a devoção aos deuses tradicionais, já que seria pouco sensato o imperador desafiar as crenças de 90% dos seus súbditos. “A interdição oficial dos sacrifícios nunca pôde ser posta em prática […] e o imperador até levantou a interdição para que um culto conhecido como Mistérios Eleusínos não fosse afectado. E, mais tarde, também autorizou a construção de um novo templo pagão em Itália, consagrado à família imperial. Aos templos de Roma foi garantida a protecção do imperador e passou a ser função do prefeito da cidade restaurar e manter os edifícios, as estátuas e os centros dedicados aos antigos cultos romanos” (Baker).
Mas há mais: Constantino continuou a assumir o título de Pontifex Maximus, a mais alta posição na hierarquia sacerdotal romana, e continuou, pelo menos até 325, a cunhar moeda em que a sua efígie surgia associada ao culto pagão de Sol Invictus (e não a símbolos cristãos).
Moedas com a efígie de Constantino numa face e Sol Invictus no verso
E quando, em 330, consagrou a cidade de Constantinopla, que fundou no lugar da antiga cidade grega de Bizâncio, as cerimónias incluíram ritos cristãos e pagãos e, “ao contrário da descrição de Eusébio, a cidade que ficou com o nome de Constantino não era exclusivamente cristã. O imperador preencheu a sua nova cidade com tesouros artísticos do mundo clássico” (Baker). E vale a pena lembrar que, embora se tenha convertido em 312, Constantino só se fez baptizar pouco antes da morte, em 337.
Nixey omite estes factos, pois para a sua “narrativa” não convém a figura de um Constantino ambíguo, que tenta promover o cristianismo sem alienar os crentes nos antigos deuses, mas sim um Constantino fanático e fundamentalista que escaqueira estátuas e arrasa templos.
“O baptismo de Constantino”, escola de Rafael, 1517
Mas não há dúvida de que, com os sucessores de Constantino, o cristianismo foi ganhando força no centro do poder imperial e escorraçando as religiões “pagãs”, numa tendência irresistível que só conheceu um efémero retrocesso durante o reinado de Juliano o Apóstata (361-63). Nixey dá conta desse crescendo através da citação, ao longo do livro, de uma sucessão de leis anti-pagãs cada vez mais repressivas promulgadas pelos imperadores:
356: “instituída a pena de morte para os que faziam sacrifícios” (Nixey)
388: “Não haverá qualquer oportunidade para o homem sair em público e debater a religião ou para a discutir ou dar qualquer conselho acerca dela”.
391: “Pessoa alguma terá o direito de realizar sacrifícios; pessoa alguma se aproximará dos templos; pessoa alguma prestará reverência aos altares”.
399: Os templos das zonas rurais “deveriam ser derrubados sem perturbação ou tumulto”, de forma a remover “a base material de toda a superstição”.
407: “Não será de todo permitido realizar banquetes de convívio em honra de rituais sacrílegos em locais fúnebres ou para celebrar qualquer cerimónia solene”.
408: “Se alguma imagem se ergue ainda no seu templo ou altar, deverá ser arrancada das suas fundações […] Os templos que estejam situados em vilas e cidades ou no exterior das cidades serão devolvidos ao uso público. os altares serão destruídos em todos os locais”.
529: “Todos os que fizessem ofertas sacrificiais seriam executados. Todos os que adorassem estátuas seriam executados […] Era a imposição activa do cristianismo a todos os pagãos pecadores do império […] Todos tinham, agora, de se tornar cristãos” (Nixey).
O Império Romano em 395
Esta legislação anti-pagã e pró-cristã não só é apresentada de forma confusa e desgarrada como Nixey se esquece da peça mais importante: o Édito de Tessalónica, promulgado pelos imperadores Teodósio I, Graciano e Valentiniano II em 380, que fez do cristianismo (na sua versão de Niceia) a religião oficial do império. É relevante a menção à “versão de Niceia”, pois entre a morte de Cristo e o final do século IV o cristianismo conhecera sucessivas fracturas e acesas disputas teológicas, ramificando-se num sem número de correntes e seitas – antinomianismo, apolinarismo, arianismo, audianismo, docetismo, donatismo, eunomianismo, gnosticismo, marcionismo, monofisitismo, nestorianismo, pelagianismo, pneumatomaquianismo, sabelianismo – que se reivindicavam as únicas legítimas herdeiras de Cristo, se acusavam mutuamente de heresia e lutavam entre si com tanto empenho como o que punham no confronto com os pagãos. A coexistência (tumultuosa) de diferentes facções cristãs é um elemento essencial para a compreensão da política e da religião no Império Romano na época em apreço, mas Nixey pouco ou nada diz sobre ela.
Ário (256-336), protagonista de uma das principais polémicas que ameaçou dividir a Cristandade
Apesar das omissões e imprecisões de Nixey, o cenário geral que descreve corresponde ao que é hoje consensual entre os historiadores: à medida que foi ganhando poder, o cristianismo – que, no final do século IV já era a religião de 79% da população do império – foi crescendo em intolerância e envidou todos os esforços para suprimir as religiões pagãs. Nixey afirma que “as breves e esporádicas perseguições romanas aos cristãos não são nada em comparação com o que os cristãos infligiram aos outros” e apresenta como prova desta asserção (que até poderá ter uma parte de verdade) este facto: “No mundo de hoje existem mais de 2.000 milhões de cristãos. Não existe um único verdadeiro ‘pagão’”. O raciocínio é falacioso, já que muitas são as razões que podem levar à extinção de uma religião: no tempo em que Cristo terá andado pelo mundo também já não existiam adoradores de Pihassassa, deus hitita do relâmpago, ou de Shulmanu, deus acádio do submundo, e não consta que tal deserção tivesse resultado de serem activamente perseguidos pela sua crença. Por outro lado, a crença no panteão greco-romano não sobreviveu melhor nas regiões que, a partir do século VII, caíram sob domínio muçulmano, embora este fosse mais permissivo do que o mundo cristão no que respeita à liberdade de culto.
“O triunfo da Igreja”, de Peter Paul Rubens, c.1625: notem-se os infelizes trucidados sob as rodas da carruagem, no campo inferior direito
Entre as abundantes provas nos escritos da época do pendor totalitário e violento do cristianismo vale a pena destacar dois trechos em que Santo Agostinho (que viveu em 354-430 e, vale a pena lembrá-lo, começou por professar o maniqueísmo), justifica os desmandos cometidos em nome de Cristo contra quem não partilhasse dessa crença: “[A Igreja] persegue no espírito do amor”; “Onde há terror, há salvação […] Oh, selvajaria misericordiosa!”. São Jerónimo, São João Crisóstomo e outros “Padres da Igreja” teceram considerações de natureza análoga, que Nixey cita em diversos pontos do livro.
Há quem hoje queira branquear o longo historial repressivo da Igreja apresentando a Cruzada Albigense, Torquemada e a Santa Inquisição como acidentes de percurso e casos de excesso de zelo, mas na verdade não poderia esperar-se melhor de uma instituição que tem por “pais” Santo Agostinho, São Jerónimo e São João Crisóstomo.
Santo Agostinho numa disputa com hereges, atribuído à oficina de Pau Vergós, c.1470-86

“Fica longe de todos os livros pagãos!”

A natureza crescentemente intolerante do cristianismo não teve como alvo exclusivo as religiões pagãs: ainda que, mais tarde, a Igreja tenha ficado com a fama de preservadora da cultura da Antiguidade Clássica, também esta foi perseguida nos primeiros tempos da afirmação do cristianismo. O espírito de discussão aberta dos gregos, que estavam dispostos a ponderar diversas perspectivas e teorias, desde que racionalmente argumentadas, parecia particularmente abominável aos crentes num só deus e num só livro e São João Crisóstomo descreveu “a filosofia pagã como uma loucura, a mãe dos demónios e uma doença” (Nixey). As Constituições Apostólicas advertiam “Fica longe de todos os livros pagãos!” e consideravam que todos eles podiam ser substituídos, com grande benefício, pela leitura exclusiva da Bíblia.
E assim, graças à destruição deliberada, à raspagem de pergaminhos com textos clássicos para lhes sobrepor orações e edificantes histórias de santos e mártires, e à simples incúria, “menos de 10% de toda a literatura clássica sobreviveu até à actualidade [e] apenas um centésimo de toda a literatura latina sobreviveu” (Nixey).
A supressão do legado da Antiguidade Clássica parece ter sido rápida e eficaz, a fazer fé na proclamação triunfal de Teodoreto de Cirro (c.393-c.458-66): “Onde está Platão? Em lado nenhum! Onde está Paulo? Nas bocas de todos!”.
“S. Paulo pregando em Atenas”, por Rafael, 1515
Entre os vários episódios relatados por Nixey da perseguição movida pelos cristãos aos escritos, obras de arte e figuras que representavam a cultura greco-romana, vale a pena destacar dois, por estarem entre os mais célebres e por a forma como Nixey os trata ser sintomática das debilidades do seu livro: a destruição do Serapeu de Alexandria e o assassinato de Hipácia.

A destruição do Serapeu de Alexandria

Embora seja usual falar-se na destruição da Biblioteca de Alexandria como um evento catastrófico localizado num ponto no tempo, o que parece ter acontecido na realidade foi que o edifício e o seu fabuloso acervo foram sofrendo vários golpes ao longo de séculos.
Mapa de Alexandria, c.30 a.C.
A biblioteca, que se situava no Brucheion (o Quarteirão Real) e fazia parte do Musaeum, uma instituição consagrada ao conhecimento e que incluía um jardim zoológico e espaços destinados ao estudo da astronomia, terá sido fundada no século III a.C, por Ptolemeu I ou pelo seu filho Ptolemeu II, e terá albergado, no seu período de esplendor, 40.000 a 400.000 rolos de papiro. O cerco de Júlio César a Alexandria, em 48 a.C., que causou um incêndio nas docas que alastrou descontroladamente pela cidade, costuma ser apontado como causa maior da destruição da biblioteca, mas a verdade é que as versões sobre os eventos são díspares e vão da destruição total a ter escapado incólume. Algumas fontes indicam que a biblioteca só terá sido destruída quando da tomada da cidade pelo imperador Aureliano em 274 d.C. Mas é também aventado que, por volta de 260 d.C., o que restava do acervo da biblioteca já fora transferido para o Serapeu.
O Serapeu de Alexandria era um templo dedicado a Serápis, um deus greco-egípcio, símbolo da abundância e da ressurreição, cujo culto fora incentivado por Ptolemeu I. O templo terá sido mandado construir por Ptolomeu III Euergetes, que reinou de 246 a 222 a.C. Nixey diz do Serapeu que “era de tal modo fabuloso que os escritores do mundo antigo se debatiam para encontrar maneiras de transmitir a sua beleza”, mas o único escritor que cita, por várias vezes, é o historiador romano Amiano Marcelino (330-391/400), que elege o Serapeu como “o mais magnífico edifício do mundo inteiro”.
Nixey serve-se de Marcelino para recriar, com imensas liberdades literárias, um Serapeu esplendoroso, mas omite que esse mesmo historiador relatou que a biblioteca do Serapeu também terá sido destruída quando do incêndio de 48 a.C. Claro que esta informação não era nada conveniente para a “narrativa” de Nixey, que pretende que o que restava do acervo da Biblioteca de Alexandria se perdeu em 392 d.C., quando o bispo Teófilo, encabeçando uma horda de monges cristãos, arrasou e pilhou o Serapeu, numa acção que Nixey descreve com pormenores fantasiosos e que apresenta como tendo sido realizada espontaneamente, sem provocação, movida apenas pelo apetite pela destruição e pelo fanatismo religioso.
Ruínas do Serapeu de Alexandria
Nixey baseia-se exclusivamente num relato do historiador Eunápio – e na sua imaginação – e omite que existem outras versões da destruição do Serapeu e que nem sequer há consenso quanto à data em que ocorreu e não providencia contexto para o episódio. É relevante enquadrá-lo no contexto da progressiva consolidação do cristianismo como fé oficial do Império Romano e da concomitante repressão da prática dos rituais “pagãos”, iniciada no reinado do imperador Constantino – que, em 325, ordenara o encerramento do Serapeu. O imperador Teodósio I (reinado: 379-395) representou o culminar dessa política, ao interditar a observância de qualquer cerimónia religiosa que não fosse cristã. O decreto de 391, que interditava a entrada de fiéis nos templos, levou a que muitos destes ficassem ao abandono, o que deu ensejo aos grupos cristãos para deles se apropriarem, convertendo-os em igrejas. Terá sido o que Teófilo fez com um templo de Dionísio em Alexandria, o que suscitou a ira dos “pagãos”. Nos confrontos sangrentos que se seguiram entre cristãos e não-cristãos, os desordeiros pagãos acabaram por ver-se forçados a buscar refúgio no Serapeu, onde se barricaram e tomaram reféns cristãos. E terá sido em resposta a estes actos que os cristãos destruíram o Serapeu, algures em 391-92.
A esta distância temporal é impossível saber o que realmente se terá passado, tal como é impossível apurar se o Serapeu albergava ainda qualquer rolo proveniente da Biblioteca de Alexandria. Porém, Nixey afirma, sem uma hesitação, que “as dezenas de milhares de livros, o que restava da maior biblioteca do mundo, perderam-se, não mais voltando a aparecer. Talvez tenham sido queimados”. E, de especulação em especulação, conclui: “Tinha sido destruído muito mais do que um templo. Enquanto a notícia da destruição se espalhava pelo império, parte do espírito da cultura antiga morreu também […] Os filósofos e os poetas fugiram da cidade, horrorizados”.
A única estrutura que se mantém hoje de pé no Serapeu de Alexandria é a chamada “Coluna de Pompeu”, que, na verdade, foi erguida muito depois da passagem de Pompeu (106-28 a.C.) pelo Egipto: quem ordenou a sua construção, em 298 d.C., foi Diocleciano

O assassinato de Hipácia

É preciso colocar a destruição do Serapeu no contexto da tumultuosa história de Alexandria nos primeiros séculos da era cristã. A cidade foi assolado por confrontos entre gregos e judeus (Alexandria albergava a maior comunidade judaica do Mundo Antigo) em 38 d.C. e 66 d.C., e sofreu novas destruições na Segunda Guerra Judaico-Romana em 115 d.C. Quando o imperador Caracala visitou Alexandria em 215, a caminho de uma campanha na Pérsia, soube que na cidade tinha sido levada à cena uma peça satírica que o tinha como alvo e ordenou o massacre do conselho de notáveis que fora enviado para o receber e deu rédea livre às suas tropas para matar, pilhar e queimar – Cássio estima que tenham sido mortas 20.000 pessoas. Em 297, Lúcio Domício Domiciano, aproveitando o descontentamento no Egipto resultante do anúncio de um novo imposto, tomou o poder naquela província romana e reivindicou o título de Augusto, o que levou o imperador Diocleciano a dirigir-se para o Egito e cercar Alexandria; Domiciano faleceu durante o cerco, dando lugar, nas pretensões ao título imperial, a Aurélio Aquileu, que resistiu até meados de 298, altura em que as tropas de Diocleciano entraram na cidade. Além de ter erguido a “Coluna de Pompeu” para comemorar esta vitória, Diocleciano terá compensado os danos resultantes do cerco com amplas obras de renovação urbana, que foram parcialmente destruídas em 365, em resultado de um tsunami causado por um terramoto em Creta.
Ao omitir estes eventos, Nixey sugere que Alexandria era um lugar pacífico onde só os cristãos eram fonte de atrito e violência. Outro dos exemplos do espírito sanguinário e intolerante dos cristãos que Nixey escolhe abordar é o assassinato de Hipácia.
“Morte da filósofa Hipácia”, gravura incluída em Vies des savants illustres (1866), de Louis Figuier
Hipácia (c.350/370-415 d.C.) foi uma filósofa neo-platónica, astrónoma e matemática de Alexandria, que ganhou renome no meio intelectual da época, mas algumas das afirmações que Nixey faz sobre ela – “a maior matemática da sua geração”, “era, sem dúvida, uma beldade” – carecem de fundamento. Hipérboles à parte, Hipácia foi certamente uma figura maior da vida de Alexandria e revelou abertura de espírito ao ignorar linhas divisórias entre cristãos e não-cristãos, partilhando o seu saber com uns e outros – foi professora, entre outras figuras, de Sinésio de Cirene (que, em 410, se tornaria bispo em Ptolemais, no que é hoje a Líbia).
Hipácia ensinando em Alexandria, aguarela de Robert Trewick Bone (1790-1840)
A morte do bispo Teófilo I (o que destruira o Serapeu) em 412, abriu uma crise sucessória na liderança da diocese de Alexandria, entre Cirilo, sobrinho do falecido, e um rival chamado Timóteo. Ao longo dos anos, a aura de sabedoria granjeada por Hipácia levou a que tivesse vindo a desempenhar o papel de conselheira dos assuntos da governação da cidade, pelo que o seu antigo discípulo Sinésio lhe escreveu a pedir que mediasse o conflito entre as duas facções cristãs. Hipácia era amiga de Orestes, o governador romano do Egito (e um recém-convertido ao cristianismo), mas não se sabe que papel terá ela desempenhado efectivamente no confronto. O que é certo é que Cirilo venceu a disputa e mal se viu no poder começou a perseguir os apoiantes de Timóteo e a fechar as suas igrejas; tendo logrado este intento, atirou-se aos judeus de Alexandria, fechando sinagogas, confiscando propriedades e expulsando-os da cidade – há quem estime que 100.000 judeus terão sido expulsos.
Orestes tentou conter a agressividade de Cirilo e das suas milícias de monges – os parabalani – e reafirmar a sua autoridade, mas acabou por escapar por pouco de ser linchado por uma turba. A situação entre Cirilo e Orestes ficou num impasse tenso e alguns cristãos atribuíram aos conselhos de Hipácia a recusa de Orestes em aceitar as propostas de Cirilo. Terá sido este o motivo porque, num dia de 415, um grupo de parabalani fez parar Hipácia numa rua de Alexandria e a matou barbaramente.
O assassinato de Hipácia foi seguramente um acto horrendo, mas foi menos um triunfo da intolerância e selvajaria cristãs sobre a racionalidade e abertura de espírito do Mundo Clássico do que um episódio macabro numa luta política pelo controlo de Alexandria. Ora, Nixey dá tão pouca relevância à componente política do caso que conclui a narrativa com a descrição detalhada e explícita da morte de Hipácia e se esquece de relatar que este homicídio levou Orestes a sentir-se desamparado e impotente perante as maquinações de Cirilo e a abandonar Alexandria.
Em vez de apresentar uma visão equilibrada do passado, Nixey parece mais interessada em subscrever o mito, surgido no século XVIII, de Hipácia como mártir do racionalismo grego às mãos do obscurantismo cristão, que teve como pedra basilar um panfleto anti-católico de 1720, por John Toland, com o elucidativo título de “Hipácia, ou História da mais bela, virtuosa, culta e, em todos os sentidos, perfeita dama, que foi esquartejada pelo clero de Alexandria, para benefício da soberba e crueldade do seu arcebispo”.
Folha de rosto do panfleto de John Toland
No século XIX, a imagem “mítica” de Hipácia e a visão romantizada da civilização grega foram consolidadas em vários poemas, romances e peças de teatro de pendor neo-helenista, que a louvavam como símbolo máximo “da verdade e da beleza” e “mártir da ciência” e aproveitavam para zurzir no catolicismo.
Hipácia na visão da fotógrafa Julia Margaret Cameron, 1867
A mais popular destas produções foi o romance Hypatia (1853), de Charles Kingsley, que a exalta como “a última dos Helenos” e serviu de inspiração a um quadro de um erotismo incongruente (e franco mau gosto) da autoria de Charles William Mitchell.
Hipácia, por Charles William Mitchell, 1885: a “beldade” de Hipácia foi um mito conveniente para os artistas vitorianos necessitados de pretextos para pintar cenas eróticas
No século seguinte, Hipácia foi apropriada pelo movimento feminista, já que foi uma das primeiras mulheres da história a afirmar-se como igual dos homens no plano intelectual e a desempenhar papel de relevo na ciência e na filosofia e a intervir no governo da polis.
Todos estes séculos de lendas e fantasias – que, nalguns casos, fizeram, anacronisticamente, coincidir o assassinato de Hipácia com a destruição da Biblioteca de Alexandria, ou, pelo menos, do que dela restava no Serapeu – convergiram para o filme Ágora (2009), realizado por Alejandro Amenábar sobre argumento de Amenábar e Mateo Gil e com Rachel Weisz no papel de Hipácia.
[Trailer de Ágora]

O guião do filme não se pauta pelo rigor histórico e apresenta a oposição entre Hipácia e os cristãos de forma maniqueísta, mas, sendo um filme com orçamento de 70 milhões de dólares destinado ao entretenimento de massas (numa variante anti-teísta do género conhecido no mundo anglo-saxónico como “sword-and-sandal”), é legítimo que tome tais liberdades de forma a torná-lo acessível a quem só pretende desfrutar de duas horas de distração no cinema.
Já não poderá aplicar-se a mesma benevolência a A chegada das trevas, que, sendo um livro de divulgação histórica, não deveria ter um parti pris anti-cristão nem apresentar como indiscutíveis e reais eventos sobre as quais existem versões divergentes ou que chegaram ao nosso conhecimento através de fontes dúbias e relatos fantasiosos. Ao enviesamento anti-cristão e ao sacrifício da complexidade histórica em favor de uma narrativa simplista soma-se o pouco talento de Nixey para a escrita de livros: A chegada das trevas está frouxamente estruturado e está redigido num estilo farfalhudo e sensacionalista. Nixey tem tão escassas aptidões comunicacionais (ou redigiu o livro tão apressadamente) que, numa nota na pg. 100, consegue gastar uma dúzia de linhas a descrever as circunstâncias da morte de Plínio o Velho, sem que transmita a informação crucial de que este pereceu na erupção do Vesúvio.

A ascensão do cristianismo, trazendo uma componente fanática e monomaníaca a um mundo em que a religião fora encarada, até então, com apreciável margem de tolerância e elasticidade, e o apagamento parcial da cultura clássica que daí resultou, não são, ao contrário do que proclama a contracapa, uma “história largamente desconhecida”, mas são um tema fascinante, que proporcionaria uma obra de divulgação histórica aliciante, desde que elaborada com isenção e rigor intelectual.

sábado, 29 de abril de 2017

Coreia do Norte: os Kim, do regime mais surrealista possivel - Jose Carlos Fernandes

Meu amigo Mauricio David me envia um interessante artigo do jornalista português José Carlos Fernandes sobre a enigmática dinastia Kim que impera na Coréia do Norte... 
Paulo Roberto de Almeida
 
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A Dinastia Kim: fatos, propaganda e rumores

Os Kim governam a Coreia do Norte desde o fim da última guerra mundial e parecem crer que sobreviverão à próxima. Folhear o álbum de família ajuda a compreender o enigmático regime de Pyongyang. 
Nem sempre é fácil separar fatos de propaganda, mas quando esta atinge proporções maciças, os líderes são elevados a um estatuto semi-divino e o país vive sob um regime totalitário, fechado e paranóico há mais de 70 anos, torna-se numa tarefa quase impossível. Isto é inevitável no que respeita ao princípio da vida de Kim Il-sung, pois as pessoas que o teriam conhecido pessoalmente durante a juventude já desapareceram, mas também é válido para muitos aspectos da vida dos seus netos.
Seja como for, é possível ir cruzando a informação, nem sempre fidedigna, que é transmitida por dissidentes que fogem da Coreia do Norte ou estrangeiros com informação privilegiada sobre os bastidores do regime – como Kenji Fujimoto, que alega ter sido sushiman pessoal de Kim Jong-Il – e tentar perceber que parte da propaganda oficial é real e qual é fantasia.
Quando a tensão entre o regime de Kim Jong-un e os EUA, a Coreia do Sul e a comunidade internacional atinge um dos pontos mais altos de sempre ( “A ameaça é real? Até onde irá o conflito na Coreia?“), vale a pena recuar até ao início do século XX.

Kim Hyong-jik (1894-1926)

Pai de Kim Il-Sung e bisavô do atual líder, Kim Jong-un. Natural da aldeia de Mungyungbong, casou-se com Kang Pan-sok (1892-1932) em 1899, quando tinha apenas 15 anos: Kim Il-sung, o primeiro filho, nasceria em 1912; o segundo filho, Kim Yong-jun nasceria oito anos depois. Kim Hyong-jik e Kang Pan-sok eram cristãos protestantes (presbiterianos), culto que florescera na Coreia após um tratado firmado com os EUA em 1882, e Kim Hyong-jik, embora tenha nascido numa família de camponeses, foi educado numa escola de missionários americanos e chegou a trabalhar ele próprio durante algum tempo como missionário. Uma vez que o regime coreano é de natureza ateísta, Kim Il-sung tentou, posteriormente, minimizar a devoção religiosa dos pais, alegando que esta era meramente utilitária e superficial.
A Kim Hyong-jik e Kang Pan-sok a propaganda oficial atribui o papel de líderes independentistas, com atos de bravura contra o ocupante japonês – o reino da Coreia fora transformado num protetorado do Japão em 1905 e fora anexado em 1910.
A família mudou-se para a Manchúria quando Kim Il-sung tinha sete anos, o que a propaganda explica pela necessidade de fugir à repressão japonesa, mas que teve provavelmente por objetivo encontrar melhores condições de vida.
Após estudo de alguns livros sobre medicina tradicional, Kim Hyong-jik dedicou-se à ervanária e fez disso a sua principal fonte de rendimento, mas, a dar crédito a Kim Il-sung, a família nunca teve vida desafogada: a dieta estava limitada aos produtos mais elementares e baratos e o espectro da fome nunca andou longe.

Kim Il-sung (1912-1994)

Kim Il-sung é um “nome de guerra” – o nome de batismo foi Kim Song-ju. Após quatro anos na Manchúria com os pais, o jovem Kim foi enviado, aos 11 anos, de volta para a Coreia, para viver com os avós maternos e frequentar uma escola coreana (mas onde o ocupante impunha o ensino em língua japonesa). Regressou à Manchúria passados dois anos e, revelando extraordinária precocidade, aos 14 anos terá, alegadamente, fundado a União Abaixo o Imperialismo, com o propósito de combater o ocupante japonês e promover o marxismo-leninismo. Do que não há dúvida é do seu envolvimento com ativistas independentistas de pendor marxista, o que o levou a ser preso pela polícia chinesa em 1929. Ele os seus camaradas foram libertados em 1930 após uma greve de fome, mas Kim Il-sung já não regressaria à escola: a carreira que pretendia abraçar era a de revolucionário. Aderiu ao Partido Comunista Chinês e, pouco depois, o imperialismo japonês estendeu-se à Manchúria, que foi convertida num estado-fantoche designado Manchukuo, contra o qual Kim começou a desenvolver acções de guerrilha, integrado no Exército Unido Anti-Japonês do Noroeste.
Kim – que entretanto adoptara em 1935 o nome pelo qual é conhecido – foi lutando contra o ocupante japonês e subindo na hierarquia do exército guerrilheiro, em parte por mérito próprio e em parte como resultado da morte dos outros líderes.
Quando, em 1940, era perseguido pelas forças japonesas, atravessou o Rio Amur para o lado soviético. Foi levado para a cidade de Vyatskoye, onde os soviéticos treinavam a guerrilha coreana e incorporado no Exército Vermelho, onde lhe foi atribuído o comando de um batalhão formado por exilados coreanos e chineses e a patente de major.
Entretanto, conhecera, em 1937, a sua primeira esposa, Kim Jong-suk, que, conta-se na biografia oficial, terá salvado a vida do futuro Querido Líder numa emboscada japonesa. Casaram-se em 1941 e, pela mesma altura, nasceu Kim Jong-Il, embora a biografia oficial pretenda que este viu a luz do dia numa base secreta no Monte Paektu, na Coreia, em 1942. Compreende-se a necessidade de apimentar a vida dos Kim nesta fase em que viveram em passividade e segurança do lado de lá da fronteira durante cinco anos (ao contrário do que seria previsível, a URSS e o Japão limitaram-se a vigiar-se mutuamente), enquanto a II Guerra Mundial devastava boa parte do mundo e outros independentistas arriscavam as suas vidas na Coreia, lutando contra o ocupante.
Só a 8 de Agosto de 1945, três meses após o colapso do III Reich e dois dias depois do ataque nuclear contra Hiroshima é que a URSS se decidiu a declarar guerra a um Japão que estava praticamente de rastos, com o fito de obter ganhos territoriais e dilatar a sua esfera de influência. As tropas soviéticas derrotaram as forças japoneses na Manchúria e Coreia com grande facilidade, entraram em Pyongyang a 24 de Agosto e detiveram-se no paralelo 38, ficando a ocupação da parte sul do país a cargo dos americanos.
Kim Il-sung desembarcou a 19 de Setembro de 1945, na Coreia sem ter intervindo na sua libertação e, pior do que isso, nem sequer falando correctamente a língua do país em que não punha os pés há mais de 20 anos. Tal não impediu que os soviéticos lhe atribuíssem o cargo de secretário-geral do ramo norte do Partido Comunista Coreano. Kim deixou de se apresentar como nacionalista fervoroso a passou a ser um “patriota socialista”, refletindo a sua subalternidade em relação aos soviéticos. Foi necessário algum esforço de propaganda para impor Kim Il-sung, que, além de ser jovem, aparentava ser mais novo do que era e ficara a meio do ensino secundário (duas desvantagens de monta numa sociedade que associava idade a sabedoria e que, na tradição confucionista, prezava a educação formal) e parecia ser uma marioneta dos soviéticos. Pode ver-se nesta campanha o embrião daquilo que viria a ser o desmesurado culto da personalidade em torno de Kim Il-sung.
O outro candidato que os soviéticos consideraram para liderar os destinos da Coreia era o independentista Cho Man-sik, mas este revelou possuir pensamento autônomo e não parecia disposto a aceitar que ao jugo japonês se seguisse o jugo soviético. Foi assim que, no início de 1946, Kim foi colocado à frente do governo provisório e, com a proclamação, a 9 de Setembro de 1948, da República Popular Democrática da Coreia do Norte, assumiu definitivamente os destinos do país – só a morte o faria deixar o cargo, 46 anos depois.
A partir de 1949 Kim começou a assediar Stalin para que este o autorizasse a invadir a Coreia do Sul. O líder soviético começou por considerar a conjuntura desfavorável (ainda havia forças americanas na Coreia do Sul e Mao Tse Tung ainda não consolidara o seu poder na China) e recusou, mas o contexto evoluiu favoravelmente e Kim foi manobrando até que conseguiu que a URSS e a República Popular da China lhe dessem aval ao seu plano para a unificação da península. A invasão começou a 25 de Junho de 1950, mas, após um rápido avanço inicial, os norte-coreanos foram repelidos pela força conjunta da Coreia do Sul, EUA e Nações Unidas, que entraram em Pyongyang a 19 de Outubro. A vida política de Kim poderia ter chegado ao fim, não fosse a China ter respondido aos seus pedidos de socorro. A guerra acabou por durar três anos, causar 2.5 milhões de vítimas civis (1.5 no Norte, um milhão no Sul) e deixar a península devastada – e tudo isto para que, no fim, a fronteira entre as duas Coreias regressasse, com pequenas alterações, ao ponto de partida.
A morte de Stalin, em 1953, e a subida de Khrushchev ao poder arrefeceram as relações entre a Coreia do Norte e a URSS e a governação errática de Mao Tse Tung também causou algum afastamento entre os dois países (embora nunca tenha havido um corte de relações nem com a URSS nem com a república Popular da China). Em compensação, a Coreia do Norte estreitou laços com regimes comunistas da Europa de Leste, sobretudo com a República Democrática Alemã e a Romenia, cujo presidente, Nicolae Ceaușescu, ficou fascinado com o culto da personalidade em torno de Kim Il-sung e tentou emulá-lo no seu país.

Para afirmar a sua independência da URSS e da República Popular da China, em 1965 Kim Il-sung expôs os princípios fundamentais da Juche, um misto de ideologia política, misticismo religioso e nacionalismo, a que já aludira num discurso de 1955. Embora tenha por ponto de partida algumas ideias do marxismo-leninismo, representa a “ideia-mestra da revolução Coreana”, assenta nos princípios da “independência política”, “auto-sustentação económica” e “autonomia na defesa” e promete “uma nova era de desenvolvimento na História da Humanidade” (embora os norte-coreanos esfomeados que se têm visto obrigados a desenterrar e comer raízes tenham provavelmente uma perspectiva pouco entusiástica sobre a “nova era de desenvolvimento”).
Descontando a retórica, a Juche acaba, na prática, por servir para justificar o isolacionismo e repressão do regime e a perpetuação dos Kim no poder: “As massas populares estão no centro de tudo e o líder é o centro das massas”. Todos os anseios e aspirações das massas, bem como a luta de classes, só poderão ser alcançados através de um Grande Líder, um ser semi-divino, de superiores capacidades intelectuais, infalível, incorruptível, benévolo e que age exclusivamente em prol das massas.
 
Não se fiando apenas no poder espiritual da Juche, Kim Il-sung afadigou-se a tentar obter argumentos mais prosaicos e sonantes em que fundamentar a afirmação da Coreia do Norte no concerto das nações e logo em 1963, solicitou ajuda à URSS para o desenvolvimento de armas nucleares; perante a resposta negativa, reendereçou-o à China, que também a recusou. A Coreia do Norte começou então a construir um reator de pesquisa em Yongbyon, mas só foi obtido progresso significativo com a ajuda do Paquistão. Em 1993, o Paquistão terá fornecido informação à Coreia do Norte sobre enriquecimento de urânio, em troca de know-how sobre mísseis balísticos e os desenvolvimentos do programa nuclear coreano levaram os EUA a exercer pressão, que parece ter convencido Kim Il-sung a renunciar ao programa nuclear e a manifestar intenção de aproximar-se do Ocidente.
A 8 de Julho de 1994, a Rádio Pyongyang anunciou, em tom lúgubre. “O Grande Coração parou de bater”. Kim Il-sung sucumbira a um ataque cardíaco, aos 82 anos.

Kim Man-il (1944-47/8)

Segundo filho de Kim Il-sung e Kim Jong-suk, nascido, como o primogénito, em Vyatskoye, na URSS. Terá morrido afogado em Pyongyang, possivelmente na piscina da casa da família, em circunstâncias não esclarecidas.

Kim Jong-Il (1941-2011)

As informações sobre os primeiros anos da sua educação são contraditórias e vagas – a versão oficial afirma que estudou em Pyongyang, outras fontes apontam para a República Popular da China. Em 1960, matriculou-se na Universidade Kim Il-sung de Pyongyang e licenciou-se em política económica marxista.
Ainda antes de terminar os estudos já acompanhava o pai em digressões pelo país, mas só ganhou relevo na política norte-coreana em 1980, ao ser anunciado formalmente como sucessor de Kim Il-sung, e foi consolidando a sua posição através de através da atribuição de cargos e títulos honoríficos e através de cerimónias cada vez mais extravagantes a assinalar o seu aniversário.
Porém, antes, teve de livrar-se do vice-presidente Kim Dong-kyu, que era o segundo na hierarquia do Estado, tinha um passado heróico na luta independentista contra os japoneses (onde perdera um braço) e se opunha a que Kim Jong-Il sucedesse ao pai. Mas Kim Jong-Il terá conseguido convencer o pai, mediante documentos forjados, de que o vice-presidente tivera um comportamento traiçoeiro e, em 1977, este foi destituído e exilado e, posteriormente, internado num “campo de reeducação”, onde morreu de fome em 1984.
Com a morte do pai, em Julho de 1994, Kim Jong-Il herdou boa parte dos cargos em este que ainda estava investido, nomeadamente o de Secretário-Geral do Partido dos Trabalhadores Coreanos, e prosseguiu a política de centralização e micro-gestão a que já dera início quando o pai ainda estava no poder. Mas, talvez por ainda não sentir o seu poder completamente consolidado, foi fazendo concessões à comunidade internacional quanto ao programa nuclear, que em acordos de Outubro de 1994 e Junho de 1995, se comprometeu a suspender.

A verdade é que em meados da década de 1990, Kim Jong-Il estava também crescentemente dependente da ajuda alimentar externa, pois o país atravessava uma grave crise económica, em resultado de décadas de gestão inepta, de técnicas agrícolas inadequadas, de uma alocação desproporcionada de recursos às Forças Armadas e do crescimento demográfico, resultando em fome generalizada, cortes de energia e proliferação do mercado negro. Em finais da década, Kim Jong-Il implementou uma política de aproximação à Coreia do Sul, que resultou na criação, em 2003, do parque industrial de Kaesong, na zona desmilitarizada entre as duas Coreias.
No domínio do programa nuclear, a atitude cumpridora da década de 1990 deu lugar a uma política ambígua e errática, com anúncios de suspensão do programa a alternarem com bravatas e a ameaças, mas evoluindo, na prática, para a criação de um arsenal nuclear. Em 2003, o país retirou-se do Tratado de Proliferação Nuclear, em 2005 reconheceu a posse de armas nucleares e desde então já conduziu pelo menos cinco testes nucleares subterrâneos e tem vindo a ensaiar mísseis capazes de transportar ogivas nucleares, apesar das sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU e das pressões da comunidade internacional.
Em 2008 começaram a multiplicar-se rumores sobre o estado de saúde de Kim Jong-Il, baseados na sua ausência em importantes cerimónias de Estado (nomeadamente a parada militar que assinalou os 60 anos da Coreia do Norte), e começou a especular-se que a atitude mais dura e intransigente da Coreia do Norte no domínio nuclear resultava de Kim Jong-Il já não deter o poder efetivo e de este ter passado para as mãos dos generais. A proliferação de boatos foi tal que a agência noticiosa oficial da Coreia do Norte se sentiu obrigada a divulgar fotografias que, supostamente atestariam que o Grande Líder estava de saúde e visitava quintas e fábricas, mas que foram suficientemente ambíguas para suscitar suspeitas de falsificação e o reacender dos rumores.
Em Abril de 2009, após oito meses sem ser visto em público, Kim Jong-Il surgiu na Assembleia Popular Suprema, ficando por esclarecer quanto haveria de verdadeiro nas notícias sobre os seus problemas de saúde. Fez viagens à China e à Rússia, em 2010 e 2011, e sucumbiu a um ataque cardíaco a 17 de Dezembro de 2011.
A vida amorosa de Kim Jong-Il foi complexa e obscura, até para os padrões do regime norte-coreano, pois sabendo que algumas das mulheres com que se relacionou não mereciam aprovação do pai, Kim Jong-Il fez os possíveis por ocultá-las. Terá tido (pelo menos) três filhos: Kim Jong-nam, nascido em 1971, filho da atriz de cinema Song Hye-rim; Kim Jong-chul, nascido em 1981, filho da bailarina Ko Yong-hui, que nascera no Japão, de pai coreano e mãe japonesa; três anos depois, Ko Yong-hui deu à luz o terceiro filho de Kim Jong-Il, Kim Jong-un.
Esperar-se-ia que fosse o primogénito a ser designado como sucessor de Kim Jong-Il e assim foi até 2001, até que Kim Jong-nam foi detido no aeroporto de Narita, em Tóquio acompanhado de uma mulher e uma por viajar sob nome (chinês) falso e com um passaporte forjado da República Dominicana. Acabou por confessar ser filho de Kim Jong-Il e alegou que apenas pretendia visitar a Disneylândia de Tóquio, com duas mulheres e uma criança de criança de quatro anos (apresentado como seu filho).
As autoridades japonesas deportaram-no para a China e a situação parece ter criado embaraço em Pyongyang e, pouco depois, a propaganda oficial começou a enaltecer Ko Yong-hui como “Mais Fiel e Dedicada Súbdita do Querido Líder Camarada Comandante Supremo”, o que levou a que se suspeitasse que a sucessão tinha sido transferida para o filho do meio, Kim Jong-chul. Porém, consta que Kim Jong-Il achava o filho do meio demasiado efeminado e destituído de iniciativa e que preferia o feroz e turbulento filho mais novo. E, com efeito, a 1 de Julho de 2009, Kim Jong-un foi eleito Secretário-Geral do Partido dos Trabalhadores Coreanos e, após a morte do pai, assumiu a chefia da Coreia do Norte.

Kim Jong-nam (1971-2017)

Kim Jong-nam não teve sorte com aeroportos: perdeu a corrida para a sucessão devido ao incidente do aeroporto de Tóquio e perdeu a vida no aeroporto de Kuala Lumpur, na Malásia, quando regressava de Macau, a 13 de Fevereiro de 2017. Aparentemente foi borrifado no rosto com um spray contendo gás de nervos VX, no que parece ter sido um homicídio planeado, de forma rocambolesca e trapalhona, pelos serviços secretos da Coreia do Norte, presumivelmente a mando do seu meio-irmão Kim Jong-un. As autoridades norte-coreanas têm insistido que Kim Hong-un sucumbiu a um ataque cardíaco e pressionaram as autoridades malaias para não realizar autópsia, suspender a investigação e libertar os suspeitos.
Se se recuar um pouco na vida de Kim Jong-nam, surgem indícios de que o incidente no aeroporto de Tóquio em 2001 não terá sido a única razão para o seu afastamento da sucessão. Kim Jong-nam tinha um comportamento indisciplinado e inconstante, viajava frequentemente para o estrangeiro (sob pseudónimo), frequentava estabelecimentos de vida noturna, onde terá tido comportamentos desordeiros (há testemunhas que referem que terá começado a disparar tiros para o ar no átrio de um hotel, em 1993, e que terá repetido a proeza num nightclub, no ano seguinte). A família materna de Kim Jong-nam também não ajudava, pois vários dos seus membros fugiram para a Coreia do Sul ou para países ocidentais e seria malvisto que um líder da Coreia do Norte tivesse ligações familiares a traidores.
Um desses fugitivos foi Li Il-nam, primo de Kim Jong-nam, que se escapuliu em 1982, durante uma viagem à Suíça e se estabeleceu em Seul, cidade onde acabaria por ser morto a tiro, por assassinos a soldo da Coreia do Norte, segundo as autoridades sul-coreanas. Há mesmo quem sugira que quem ordenou o assassinato do “renegado” Li Il-nam terá sido o seu primo Kim Jong-nam, que, na altura desempenhava altos cargos nos Ministérios das Forças Armadas e da Segurança de Estado. A ser verdade, a sua eliminação em Kuala Lumpur reveste-se de uma perversa ironia.

Kim Jong-chul (n. 1981)

Filho do meio de Kim Jong-Il e o primeiro dos dois filhos que este teve da sua companheira Ko Yong-hui. Consta que terá estudado em colégios privados na Europa, em França ou na Suíça (fazendo-se passar por filho do embaixador norte-coreano), tal como o irmão mais novo, Kim Jong-un. O seu perfil tem-se mantido discreto e, nos últimos anos, as poucas vezes que foi avistado fora da Coreia do Norte foi em concertos de Eric Clapton, em Singapura e Londres, e terá sido ele a mexer os cordelinhos para que o guitarrista fosse convidado a atuar na Coreia do Norte (a visita não se concretizou), apesar de a posição oficial ser de rejeição do rock ocidental.

Kim Jong-un (n. 1984)

Embora sendo o terceiro na linha sucessória da dinastia Kim, que exclui as mulheres e privilegia os filhos mais velhos, foi reconhecido como sucessor de Kim Jong-Il em 2009 e foram-lhe atribuídos cargos e títulos correspondentes a essa condição. Subiu ao poder após a morte do pai, em Dezembro de 2011.
Alguns analistas previram que, dada a sua juventude e inexperiência política, o tio Jang Song-thaek (n. 1946) poderia desempenhar temporariamente funções de regente.
Jang Song-thaek casara-se no início dos anos 70 com a única filha do Querido Líder, Kim Kyong-hui e foi subindo lenta e custosamente na hierarquia – purgas e outros “contratempos” alternaram com reabilitações – até que, por volta de 2006, chegou a vice-secretário da Comissão Nacional de Defesa e do Partido dos Trabalhadores Coreanos, o que faria dele a figura n.º 2 do Estado, de forma que, quando em 2008 circularam rumores de que Kim Jong-Il estaria gravemente doente, foi aventado que o poder teria passado para as mãos do seu genro.
Mas, a partir de 2011, Kim Jong-un não perdeu tempo a assumir, pelo menos publicamente, as rédeas da governação e a máquina da propaganda oficial passou a referir-se a ele com os ditirambos e hipérboles que caracterizam o culto dos líderes na Coreia do Norte. E em Dezembro de 2013, sem que nada o fizesse prever, ordenou a prisão e execução, por traição, do tio Jang Song-taek, a que se seguiu a supressão de todas as menções à sua existência e o apagamento da sua presença nas fotos, ao bom estilo stalinista. A queda de Jang Song-thaek arrastou outros “traidores” e algumas fontes indicam que a sua família próxima terá sido igualmente eliminada.
Num país em que as companheiras do Líder Supremo têm, usualmente, vivido na sombra, foi inesperado ver, a partir de 2012, Kim Jong-un surgir em público acompanhado pela “esposa e camarada” Ri Soi-ju (n. 1989). Ri Soi-ju destaca-se também pelo uso de roupas de famosos costureiros ocidentais e malas Dior e fontes sul-coreanas sugerem que ela tenha sido uma das muitas cantoras – dantes conhecida como Hyon Song-woi – do Ensemble Electrónico Pochonbo, um grupo de formação flutuante que toca versões pop de canções tradicionais e revolucionárias e tem a aprovação oficial do Estado norte-coreano (sem a qual, aliás, não é possível gravar ou difundir música no país).
A primeira aparição oficial de Ri Soi-ju como Primeira Dama teve lugar num concerto das Moranbong, um grupo concebido para dar resposta ao apetite da juventude norte-coreana por pop moderna e cujos elementos terão sido escolhidos por Kim Jong-un. Segundo a agência noticiosa oficial do país, “Kim Jong-un formou a banda Moranbong de acordo com os imperativos do novo século e de acordo com um grandioso plano para operar uma reviravolta dramática na literatura e nas artes”.
Além da música, Kim Jong-un também nutre forte paixão pelo basquetebol e, em 2014, surgiu em público ao lado do ex-basquetebolista norte-americano Dennis Rodman (que foi incumbido de promover o basquetebol no país), num jogo/exibição entre jogadores americanos e norte-coreanos.
Nestes momentos de tensão, resta esperar que o apreço de Kim Jong-un por basquetebolistas norte-americanos, da sua esposa por vestidos Chanel e malas Dior e da nomenklatura norte-coreana em geral por luxos ocidentais, pese mais do que a vontade, tantas vezes reiterada, de reduzir o mundo capitalista e imperialista a poeira radioativa.