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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Essa gente totalitaria, nao tem jeito - J. R. Guzzo


Avanço para o passado
Imaginem por um curto instante o estado de choque em que ficariam o comitê central do PT, seus milhares de militantes e sua agressiva (e cada vez mais cara) máquina de propaganda, se esta revista, para dar um exemplo de entendimento bem fácil, publicasse um texto no qual o povo brasileiro fosse chamado de “essa gente”. Mais: que “essa gente” está cometendo uma enorme “ingratidão” ao protestar contra o governo, depois de todos os presentes que tem ganhado das nossas mais altas autoridades. O mundo viria abaixo – eis aí, diria a esquerda nacional, a prova definitiva da sordidez sem limites da “grande mídia” brasileira. Mas, graças ao bom Deus, quem disse isso não foi VEJA, e sim o secretário-geral (com nível de ministro) Gilberto Carvalho, descrito como homem de importância praticamente sobrenatural dentro e fora do Palácio do Planalto. Será que foi mesmo ele? Sim, está provado que foi, numa viagem recente a Porto Alegre. “Fizemos tanto por essa gente”, queixou-se Carvalho, “e agora eles se levantam contra nós.” Essa gente? Eles? Ingratidão? É um concentrado de insultos à população que parece ter saído diretamente da linguagem utilizada no Brasil antes da abolição da escravatura.
Está tudo errado nessa declaração, a começar pelo sujeito da frase. “Fizemos”? Quem “fizemos”? É como se o ministro e seus companheiros estivessem tirando dinheiro do próprio bolso para dar aos pobres; mas quem banca tudo é o povo, a cada tostão que tem de pagar em impostos quando compra um palito de fósforo que seja. Ao mesmo tempo, está tudo certo, certíssimo: a frase do companheiro é provavelmente a tomografia mais fiel já feita até hoje dos verdadeiros sentimentos que os donos atuais do Brasil têm em relação à sociedade brasileira. O secretário, simplesmente, disse em público aquilo em que ele e os companheiros acreditam em particular. Foi uma espécie de hora da verdade — por distração, ou sabe-se lá por que, Carvalho esqueceu a regra-base de seu partido, que manda os chefes não falarem como pensam e, mais do que tudo, não agirem como falam. “Essa gente” a que se refere o companheiro Carvalho, exatamente como os barões do café falavam no Brasil do atraso, é a mesma de sempre: o povão da fila do ônibus ou da sala de espera do SUS, essa grande massa sem rosto ou nome, ignorante, preguiçosa, inepta, desinformada, capaz de ler não mais do que três palavras juntas na telinha do celular, sem noção de seus direitos, só utilizável para o trabalho braçal e ainda por cima ingrata. Quando um dos mais notáveis lordes do almirantado petista fala como falou sobre a nossa “gente”, aparece à vista de todos o real projeto das forças que estão no governo: reinar sobre uma opinião pública obediente, inconsciente e boçal, que tem de agradecer quando recebe um pouco daquilo a que tem direito. O que querem é manter o Brasil exatamente como está e sempre esteve, mas com a astúcia de fingirem que estão mudando tudo.
Ao longo desses anos todos, não foi eliminado no Brasil nem um privilégio sequer, essa praga que mantém nossa vida pública amarrada no século XIX
O governo do ex-presidente Lula, de Dilma Rousseff e do PT é uma das mais bem-sucedidas farsas jamais levadas ao público na história política brasileira. Por conta de progressos ocorridos nos níveis de bem-estar, os mesmos que dezenas de outros países alcançaram nos últimos anos (ou até menos do que muitos deles conseguiram), Lula e seu entorno, com endosso de gente séria pelo mundo afora, garantem que sua missão de fazer uma revolução social no Brasil foi um espetáculo — o tipo da operação concluída com sucesso, como dizem as vozes que desbloqueiam cartões de crédito pelo telefone. Mas não mudou nada no modo como o país é governado, nem como o poder é distribuído, nem como o bolo é fatiado; não houve nenhuma “mudança estrutural”, que é a maneira de os economistas dizerem que foi trocada a pintura do carro, mas não se mexeu em nada no motor. De concreto, mesmo, é o compromisso do governo petista de manter intacto o Brasil do passado — injusto, desigual, atrasado, onde o importante não é ser cidadão brasileiro, e sim depender de quem está no governo. Lula e seu auditório tinham prometido acabar com esse Brasil obsoleto e colocar em seu lugar uma nação pronta para o século XXI. Onze anos após eles chegarem à Presidência da República, o Brasil, na sua essência, está idêntico ao que receberam em janeiro de 2003 — e seus melhores aliados são justamente os chefes políticos que equivalem, hoje, aos senhores de engenho de ontem. Com certeza não houve revolução nenhuma em todo esse período. Como estava, ficou.
O Brasil seria um país bem melhor se Carvalho fosse uma exceção — um “ponto fora da curva”, como se diz hoje. Infelizmente, não é assim. Na verdade, o secretário-geral da Presidência é a própria curva — um espelho que reflete sem piedade a vida como ela é no ano 11 da Era Lulista. Mais que isso, reflete o exemplo de conduta que o homem recebe de quem está acima, e quem está acima dele é a presidente da República. Essa última viagem de Dilma à Suíça e a Cuba, por exemplo, é um perfeito improviso do falso esquerdismo do governo, que tenta ocultar, com palavrório, notas oficiais de sintaxe primitiva e a pura e simples mentira, os hábitos de sultão que seus barões adotam na realidade do cotidiano: falam de um jeito, vivem de outro. O que poderia comprovar melhor seu desprezo pelo cidadão comum do que a mentira que a presidente obrigou seu ministro do Exterior a dizer em público, para esconder os motivos de uma escala “não programada” que fez em Portugal – e, ainda por cima, uma mentira incompetente, incapaz de resistir a 24 horas de investigação? A atitude oficial é: “Inventem aí uma coisa qualquer para dizer ao público”. Para piorar, Dilma hospedou-se num hotel onde a diária da principal suíte passa dos 8 000 euros, soma de meter medo em qualquer campeão das nossas elites mais vorazes. Pode uma coisa dessas? Não pode. Não é uma questão legal; é uma questão de compostura, só isso. A governante número 1 de um país com as misérias do Brasil simplesmente não tem o direito moral de gastar 8 000 euros do Tesouro Nacional para pagar uma noite de sono. O conserto ficou pior que o defeito quando Dilma decidiu esclarecer uma conta de cerca de 300 reais que pagou em seu jantar em Lisboa. “Paguei com o meu dinheiro”, disse ela. “Se o dinheiro é meu, eu como onde quiser. Estou pagando.” Há linguajar que reproduza tão bem o vocabulário truculento da elite brasileira, nos seus piores momentos de onipotência, grosseria e mania de grandeza? Nada de admirar, no fundo, quando se sabe que a presidente aluga um caminhão só para levar suas roupas em viagens internacionais — ou acha comum requisitar hospedagem para 45 assessores, como nesse último passeio. É um dos vícios públicos brasileiros que mais agradam ao PT — a ideia de “aproveitar” até o bagaço tudo o que o “governo está pagando”.
O fato é que existe hoje, nas massas que habitam a máquina estatal, uma imensa distância separando a pregação revolucionária que fazem no palanque das ações que praticam na vida diária. Para manter a pose de “esquerda”, e ao contrário do que ensina o dito popular, o cidadão come presunto Pata Negra, mas arrota mortadela da venda. Quer falar como socialista e, ao mesmo tempo, viver como burguês; não pode dar certo. Há um preço mínimo a pagar para sustentar uma imagem, e esse preço exige que se enfrente um pouco de desconforto para segurar a onda de herói popular. Fidel Castro, por exemplo, hospedou-se num pulgueiro do Harlem em sua primeira visita a Nova York — não no Excelsior de Roma ou no Ritz Four Seasons de Lisboa, como fez sua companheira Dilma. Demagogia? Fidel achou que não; parece que sabia o que estava fazendo.
A governante número 1 de um país com as misérias do Brasil simplesmente não tem o direito moral de gastar 8 000 euros do Tesouro Nacional para pagar uma noite de sono
Os fatos, essa coisa irritante, oferecem muitos outros exemplos da obra de falsificação construída por Lula, Dilma e pelo PT para convencer a plateia de que a “direita”, os “ricos” e os que querem a volta do pelourinho e da chibata são os únicos brasileiros que discordam do governo. É o contrário: estes todos, no mundo das realidades, estão casados com o PT e o PT está casado com eles. Basta olhar um pouco. Não há um único trabalhador no ministério do Partido dos Trabalhadores; em onze anos de governo, e num país com 200 milhões de habitantes, não conseguiram encontrar nenhum até agora, um só que fosse. Ao longo desses anos todos, não foi eliminado no Brasil nem um privilégio sequer, essa praga que mantém nossa vida pública amarrada no século XIX. Não foi cortado um único dos 20 000 a 25 000 cargos públicos para os quais a presidente, seus ministros, os burocratas mais lustrosos e os onos do poder podem nomear quem bem entenderem. A propriedade privada continua sendo sagrada para quem conta com amizades “lá em cima” — sobretudo depois que tantos companheiros passaram a desfrutar dos seus aspectos mais agradáveis. Usineiros continuam, como acontece há séculos, recebendo dinheiro do contribuinte para resolver seus problemas — só neste ano de 2014, levarão perto de 400 milhões de reais para casa. Os “rentistas”, maldição-mor na linguagem da moda entre os economistas de esquerda, nunca viveram tão bem com as suas rendas.
Empresários amigos, e amigos dos amigos, continuam desfrutando o caixa do BNDES, a juros inferiores a 1% ao ano, como sempre desfrutaram durante os governos a serviço da “alta burguesia”. Tem sido especialmente simpático com frigoríficos, gente da celulose, capitães da “indústria nacional” e empreendedores da modalidade Eike Batista, a quem conseguiu emprestar 200 milhões de reais para reformar um hotel no Rio de Janeiro; Eike não reformou um único mictório, a carcaça do hotel já foi vendida e o BNDES, naturalmente, ainda não recebeu um centavo de volta. As empreiteiras de obras públicas vivem uma nova época de ouro, tão rentável como viviam nos governos de “direita”. Uma delas, a Odebrecht, despacha direto com Lula na construção de um incompreensível estádio para o Corinthians, e construiu para Cuba, com dinheiro do povo brasileiro cedido por Dilma, um porto avaliado em quase 1 bilhão de dólares.
O FGTS virou uma festa para milionários. Não há dinheiro que pertença de forma mais clara e direta ao trabalhador — na verdade, existe uma lista, nome por nome, de quem é proprietário das somas ali depositadas e quanto, exatamente, cada um tem na sua conta. O Partido dos Trabalhadores, porém, permite que o governo gaste como bem entender o dinheiro do trabalhador: inventou um “Fundo de Investimento” para o FGTS investir os recursos que recebe todo mês através da folha salarial das empresas, e já tinha, segundo revelação recente da revista EXAME, quase 30 bilhões de reais em carteira no fim de 2013. Três quartos dessa montanha de dinheiro estão aplicados — onde mais poderia ser? — em títulos de dívidas e ações de empresas privadas, muitas de capital fechado. Se algo der errado com elas, as garantias que o FGTS terá serão os papéis de companhias quebradas. Belo investimento para o trabalhador brasileiro, não? Só mesmo um governo dos trabalhadores cuidaria tão bem dos seus interesses financeiros. Na maior parte esse dinheiro está espalhado pela finíssima flor da elite que o PT fala todos os dias em exterminar: a incansável Odebrecht, a Friboi, construtores de sondas para a Petrobras, empreiteiras de obras, construção naval e por aí afora. Deu para entender? O melhor da história é como se decide quem vai receber o dinheiro do fundo. Um conselho de doze membros é quem realmente manda – e ali o governo tem seis representantes, mais três que vêm dessas entidades chapa-branca como Confederação Nacional da Indústria etc. E não há ninguém para falar pelo trabalhador? Sim, um só — um cartola da CUT. Se no lugar dele se sentasse o marajá de Baroda, os trabalhadores brasileiros estariam mais bem representados.
É difícil levar adiante essa vigarice de “governo do povo” quando se considera, além de tudo o que já foi dito, que a presidente da República, como se cogita com certa angústia no Palácio do Planalto, está ameaçada de não poder ir a nenhum jogo da Copa do Mundo, para não levar uma vaia de 24 quilates. Que “governo popular” é esse? O companheiro Carvalho está achando que é uma tremenda injustiça. Mas o que se vai fazer? “Essa gente” é mesmo uma dor de cabeça.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Cinco perguntas "cretinas" - J. R. Guzzo


Cinco perguntas

J. R. Guzzo
Revista Veja, 30 de julho de 2012 
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Estas cinco indagações, e tantas outras, deveriam ser enviadas ao Ministério de Perguntas Cretinas, pois é exatamente assim que todas elas são vistas pelo governo
Pede-se às altas autoridades brasileiras, respeitosamente, a cortesia de responder às perguntas feitas nas linhas abaixo, por serem de possível interesse do público. O que a Receita Federal faz em relação a esses pacotes de dinheiro vivo que políticos e funcionários do governo vivem enfiando nos bolsos e bolsas? A Polícia Federal e o Ministério Público, a esta altura, já poderiam ter montado uma cinemateca inteira com os vídeos que registram essas cenas. Nunca acontece nada de sério com os indivíduos flagrados metendo a mão na massa, é claro. Mas como fica a sua situação perante o Fisco? Ninguém pode negar que recebeu, pois há prova filmada de que todos receberam. O que colocam, então, em suas declarações de renda? Se não declaram nem indicam a fonte pagadora, estão praticando sonegação. Se declaram e pagam o imposto devido, a Receita poderia ser acusada de estar cometendo crime de receptação, por receber parte de bens roubados. Como é que fica?
Alguém no Itamarary poderia informar por que o Brasil tem embaixadas no Azerbaijão, Mali, Timor-Leste, Guiné Equatorial, São Cristóvão e Névis, Santa Lúcia, Botsuana, Nepal, Barbados e outros lugares assim? Seria possível citar algum caso em que alguma dessas embaixadas fez alguma coisa de útil para os contribuintes brasileiros? Daria para descrever, digamos, uma jornada de trabalho do embaixador brasileiro no Mali? A que horas ele chega ao serviço – e, a partir daí, fica fazendo o quê, até voltar para casa? Seria bom, também, saber até onde o Itamaraty quer chegar. Pelas últimas contas, parece que existem hoje 193 países no mundo. e o Brasil só tem 126 embaixadas; faltam mais 67, portanto. A dura verdade é que não temos nada, por exemplo, na Micronésia, em Kiribati ou em Tuvalu. Vamos ter?
Por que o Brasil tem embaixadas no Azerbaijão, Mali, Timor-Leste, Guiné Equatorial, São Cristóvão e Névis, Santa Lúcia, Botsuana, Nepal, Barbados e outros lugares assim?
Por que, e principalmente por ordem de quem, o dr. Juquinha, ou José Francisco das Neves, ficou oito anos inteiros, de 2003 a 2011, num cargo-chave do programa nacional de ferrovias? Já é chato, para uma Grande Potência, como quer ser o Brasil, ter na sua alta gerência um cidadão que se faz chamar de “dr. Juquinha”. Mas o problema, mesmo, é que o homem saiu dali quase diretamente para o xadrez, acusado de acumular durante sua passagem pelo governo um patrimônio pessoal de 60 milhões de reais; a principal obra sob a sua responsabilidade, a “Ferrovia Norte-Sul”, pagou as empreiteiras um “sobrepreço” de 100 milhões, só no trecho de Goiás. Ninguém, durante esse tempo todo, quis saber como o dr. Juquinha enriquecia, a ferrovia não andava e a obra ficava cada vez mais cara?
Qual o destino da montanha de papel que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, obriga as 60000 farmácias brasileiras a acumular todo santo dia? Basta uma continha rápida para perceber a prodigiosa quantidade de entulho que elas juntam na forma de receitas retidas, fotocopiadas, carimbadas no verso, preenchidas a mão pelo balconista etc. Sabe-se que hoje as farmácias têm de manter “livros de escrituração manual” e que há, para o futuro, a promessa de um sistema “eletrônico”. E no momento? A Anvisa verifica, um a um, cada papel desses? O que faz com eles? Ainda no tema: como é possível, segundo informou há pouco a revista “Exame”, que 1250 pedidos de compra de equipamentos hospitalares de última geração, críticos para salvar vidas, estejam retidos hoje pela agência, que não autoriza sua entrada no Brasil?
Como a empreiteira Delta se tornou a maior construtora de obras do PAC? Suas atividades, como se vem apontando há pelo menos cinco anos, cobrem o Código Penal de uma ponta à outra – está metida em corrupção, fraude, falsificação, desvio de verbas, superfaturamento, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, criação de empresas-laranja e por aí afora. Só no ano passado, apesar de toda essa folha corrida, recebeu quase 900 milhões do governo federal. Será que a presidente Dilma Rousseff, nestes seus dezoito meses no cargo, nunca teve a curiosidade, nem por um instante, de saber quem era a empreiteira número 1 do seu PAC, do qual é a própria mãe? Por que o PT e o governo fazem tanta força para que o dono da empresa, Fernando Cavendish, não seja interrogado no Congresso, como se guardasse o Terceiro Segredo de Fátima?
Estas cinco indagações, e tantas outras, deveriam ser enviadas ao Ministério de Perguntas Cretinas, pois é exatamente assim que todas elas são vistas pelo governo. Mas esse ministério só existiu na imaginação de Millôr Fernandes; está fazendo uma falta danada, entre os quase quarenta do Brasil Grande de hoje.

domingo, 9 de maio de 2010

Para diminuir um pouco o otimismo com o Brasil

Sem querer ser pessimista, acho que o colunista foi até otimista com a situação social do Brasil.
Não se trata apenas de "abismo social", ou seja carências que se acumularam desde um passado longínquo e que não conseguimos eliminar ou diminuir rapidamente.
A coisa é muito pior.
Quem quer que conheça a educação brasileira, sabe que a situação é muito pior do que revelam as estatísticas, na frieza dos números pavorosos que exibimos em comparação com outros países.
Não é que não estejamos melhorando na educação; é que estamos piorando, a olhos vistos.
Estamos retrocedendo rapidamente, no que se refere à qualidade do ensino, à capacidade dos professores. Estamos indo para o brejo.
Se eu for considerar, então, a qualidade dos homens "públicos", a mediocridade se espalha rapidamente, quando não a desonestidade e a desfaçatez.
Acho que o colunista foi bonzinho....
Paulo Roberto de Almeida

A metade do caminho
J. R. Guzzo
Revista Veja, edição 2164, 12 de maio de 2010

"Basta pensar durante cinco minutos sobre certas realidades paraconstatar o disparate que é considerar o Brasil atual um país bem-sucedido"

Está entre os maus hábitos permanentes do Brasil a ilusão de achar que é possível conviver, sem maiores prejuízos, com a combinação com a qual tem convivido até hoje – uma geleia geral que junta a incompetência da máquina pública na execução dos seus deveres, a indiferença de um eleitorado sem interesse, paciência ou informação para acompanhar o que os políticos fazem com o seu dinheiro e os vícios de um sistema político que está entre os piores do mundo. O sentimento da maioria é que não compensa esquentar a cabeça com esse vale de lágrimas, quando o dia a dia tem assuntos mais urgentes para o cidadão resolver. Mas o pouco-caso com a realidade, infelizmente, sempre cobra um preço alto. Não se trata de uma cobrança que vai ficar para o futuro, como frequentemente se imagina. O preço já está sendo pago há muito tempo, e tende a ficar cada vez mais alto. Basta ver tudo de que o Brasil de hoje precisa com urgência, e não tem – e tudo o que tem de sobra, e de que não precisa.

Há um bocado de esperança, diante dos avanços reais que o país tem feito, de que, com perseverança, paciência e uma atitude mental afirmativa, dá para ir tocando as coisas; um dia, lá na frente, o grosso dos problemas estará resolvido. Existem fatos de sobra para demonstrar que o Brasil, neste momento, está muito melhor do que já foi em qualquer outra época do passado. Está melhor em questões essenciais, não em aparências, e está melhor de verdade, não porque quem diz isso é a propaganda boçal dos governos – até porque boa parte desse progresso não foi feita pelas autoridades constituídas, mas apesar delas. O problema é outro. Podemos ter crescimento de 6% ao ano, reservas de 250 bilhões de dólares e mais uma promoção no rating das agências internacionais que avaliam nossa capacidade de pagar dívidas. Podemos entregar, como acaba de ocorrer, 25 milhões de declarações de renda à Receita Federal. Podemos nos firmar como a sétima ou a oitava maior economia do mundo. Podemos ter e ser mais uma porção de coisas, mas vamos continuar sendo um país subdesenvolvido enquanto se mantiver essa situação em que tão pouca gente, na população brasileira, tem acesso real a uma vida efetivamente melhor.

Basta pensar durante cinco minutos sobre certas realidades para constatar o disparate que é considerar o Brasil atual um país bem-sucedido, quando 50% da população, por exemplo, não é servida por rede de esgotos – e, principalmente, quando uma calamidade desse tamanho é tratada com a maior naturalidade do mundo pelos outros 50%, em especial os que têm a obrigação de resolver o problema. O assunto, na verdade, é visto como uma tremenda chatice. Nem poderia mesmo ser diferente, quando se verifica que ainda não apareceu, em toda a história política do Brasil, um único homem público bem-sucedido que tenha elegido como prioridade em sua carreira a luta por instalação e tratamento de esgotos. Só um débil mental seria capaz de agir assim; pela sabedoria política em vigor, obra que não se vê é obra que não existe. Estamos avançando, é claro. Em 510 anos já se conseguiu chegar à metade do caminho; um dia, se Deus quiser, todos estarão atendidos. Mas a única pergunta que interessa, nessa e em outras questões do mesmo tipo, é: quando? Para os quase 100 milhões de brasileiros que não têm esgoto, faz toda a diferença.

Não se trata de uma questão isolada. Recentemente, num artigo que es-creveu para VEJA, o professor Gustavo Ioschpe observou que só 25% da população brasileira alfabetizada está em condições de entender um texto como aquele. Não lidava, ali, com nenhum pon-to de trigonometria avançada; era apenas uma página de revista, escrita em português corrente e que deveria ser acessível a todos os que completaram os primeiros oito anos de escola. É uma excelente notícia para os políticos, a começar pelos que mandam no atual governo – vivem se gabando de que o "povão" não lê nada do que a imprensa escreve e, portanto, as críticas que recebem não têm efeito nenhum. Mas, para os 75% que não conseguem entender o artigo do professor Ioschpe, essa situação é um desastre. É para eles que estão reservados, no Brasil que cresce a 6% e tem "grau de investimento", os empregos com trabalho mais pesado, os piores salários e, em vez de carreiras profissionais, ocupações sem futuro algum – isso quando conseguem emprego, num mercado em que competem em desvantagem cada vez maior.

Dá para ir levando assim, é claro. Mas, como informa o artigo que tão poucos brasileiros conseguem ler, não existe nenhum país desenvolvido no mundo com o abismo social do Brasil.