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domingo, 18 de outubro de 2020

Na origem do conceito de América do Sul no discurso diplomático do Brasil: um texto de 1992 - Paulo Roberto de Almeida

Quando se começou o movimento para o impeachment do presidente Fernando Collor, creio que eu estava ainda no Uruguai, em Montevidéu, servindo como conselheiro, e representante alterno, da Representação do Brasil junto à ALADI, quando tive a oportunidade de negociar um dos primeiros documentos posteriores à assinatura do Tratado de Assunção, criando o Mercosul, que foi o Protocolo (depois chamado "de Brasília") sobre Solução de Controvérsias no Mercosul. Assim que completei dois anos no posto, fui removido de volta a Brasília, para servir na recém instituída SGIE, Secretaria Geral de Integração Econômica, sob a direção do embaixador Rubens Barbosa, que também me quis remover de Genebra – onde servia sob as ordens do embaixador Rubens Ricupero, na Delegação junto aos organismos econômicos – assim que chegou a Montevidéu, o que recusei, ficando meus três anos completos na cidade suíça, a mais internacional de todas.

A minuta abaixo, de um projeto de discurso do novo chanceler do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, no governo Itamar Franco – creio que aproveitado praticamente na íntegra (pois que, como registrado na ficha deste trabalho, reproduzida abaixo), tal como publicado no Boletim de Diplomacia Econômica, que eu também passei a dirigir, junto com o BILA, Boletim de Integração Latino-Americana, que eu criei na SGIE – para a posse do embaixador Lampreia como SG do Itamaraty, a convite de FHC (chanceler até maio de 1993), tem um parágrafo que já ressalta a "América do Sul", como espaço prioritário para a atuação do Brasil no processo de integração, mas o texto preparado também discorre sobre os demais tópicos da política externa.

284. “Minuta de discurso sobre política externa”, Brasília: 7 outubro 1992, 7 p. Texto conceitual, expondo as novas bases da política externa brasileira, utilizado integralmente no pronunciamento do Chanceler Fernando Henrique Cardoso, por ocasião da posse do Secretário-Geral das Relações Exteriores, Emb. Luiz Felipe Palmeira Lampreia, feita no Itamaraty em 09/10/1992. Discurso transcrito no Boletim de Diplomacia Econômica (Brasília: MRE/SGIE-GETEC, n. 13, novembro 1992), p. 11-17. Sem inscrição na relação de publicados. 

Eu até me permiti incluir uma menção a um dos meus pensadores-escritores favoritos, George Orwell, e outra menção ao parlamentarismo, que não sei se foram preservadas no discurso finalmente lido pelo chanceler FHC: eu precisaria conferir nesse Boletim de Diplomacia Econômica ou no Repertório de política externa do Brasil, relativo ao ano de 1992, que deve existir online. Aliás, coloquei muitas outras coisas, que eu mesmo pretendia que FHC abordasse – como o fato de que o diplomata não poder ser alguém desconectado da sociedade –, mas não sei agora se foram preservadas: como se sabe, os Gabinetes costumam podar qualquer ideia fora do padrão tradicional, e só costumam conservar o bullshit habitual do diplomatês insosso, o que nunca foi meu estilo.

Faço este registro, pois que acabo de receber um trabalho no Academia.edu que trata do tema, cuja informação completa segue in fine: 

A integração da América do Sul no discurso da política externa brasileira (1992-2010)
Samir Perrone


Eis a minha minuta, que merece confronto com o texto do discurso oficial: 

(Minuta)

Discurso do Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores

por ocasião da posse do Sr. Secretário-Geral

 

(Palácio Itamaraty, 09/10/92)

 

Senhor Secretário-Geral das Relações Exteriores, 

Embaixador Luiz Felipe Palmeira Lampreia,

Senhoras e Senhores,

 

[Lampreia, Seixas Correa...]

 

Tenho perfeita consciência do privilégio de assumir o cargo de Chanceler do Governo Itamar Franco numa época de reafirmação dos valores da ética e da democracia. Embora assumindo a direção de nossa política externa nas circunstâncias políticas por demais conhecidas de todos, minha vinda para o Itamaraty não pode ser considerada como um evento fortuito, um raio no céu azul da política nacional. Longe disso. 

Meu interesse nos temas de política exterior e de relações internacionais vem de longa data e não preciso recordar aqui a experiência acadêmica e política adquirida em diversas passagens e estadas, voluntárias ou involuntárias, em países da América Latina, da Europa e nos Estados Unidos. No período recente, já membro do Congresso brasileiro, mas ainda conservando laços com a academia, pude aprofundar minha visão da inserção internacional do Brasil, seja como membro da Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal, seja ao participar de inúmeros eventos onde aflorava no debate a questão de nossas relações internacionais e a posição peculiar do Brasil num mundo em transformação.

 

Minha chegada ao Itamaraty coincide com um momento decisivo e inovador da História do Brasil: o desafio de conciliar a busca do desenvolvimento econômico com o imperativo da justiça social, o crescimento com equidade, o progresso social com a repartição equilibrada das conquistas materiais.

Não há mais lugar, no Brasil de hoje, para o que tentam aferrar-se a privilégios e arbitrariedades; não há mais espaço para os que buscam vantagens pessoais sob o manto da impunidade.

 

Nestas últimas semanas e dias, o Brasil deu ao mundo uma perfeita lição de exercício democrático, reafirmando o grau de amadurecimento de suas instituições. A hora, portanto, é de afirmação da democracia, do primado do direito e das liberdades individuais, do pluralismo, da moralidade no trato da coisa pública, do respeito à vontade da maioria e da proteção das minorias.

 

A política externa de um país é, poder-se-ia dizer parafraseando um autor por demais famoso, a continuação de sua política interna por outros meios. O Brasil de hoje, que me cabe representar internacionalmente, caracteriza-se por uma conjuntura política onde vigora plenamente a ordem democrática e onde o amadurecimento das instituições — ainda agora testadas em seus mecanismos mais sensíveis, quais sejam o da máxima direção do Estado e o da vigência de normas constitucionais que regulam o funcionamento do Governo — nos permite vislumbrar um cenário de intensificação, mas também de normalização, do diálogo entre as forças políticas nacionais.


Sendo assim a projeção de sua política interna, a política externa do Brasil democrático só pode ser uma política externa democrática, aberta aos influxos da sociedade e plenamente sintonizada com os interesses da Nação em seu conjunto.


O Itamaraty deve desempenhar um papel de relevo na construção de uma nova nacionalidade, suscetível de propiciar ao País uma inserção internacional de acordo com seus legítimos interesses internos e de contribuir igualmente para a redução do imenso atraso social e material em que ainda vegeta grande parte de sua população.


O diplomata não pode ser um cidadão isolado das realidades sociais de seu País, um indivíduo desconectado do cenário interno, alheio aos problemas materiais e humanos que afetam seus concidadãos. A ordem democrática no plano das relações exteriores deve permitir justamente que essa dimensão social interna possa refletir-se no trabalho de formulação e de execução da política externa governamental.


O Governo que agora assume tem plena consciência de suas responsabilidades para com a sociedade, em outros termos de transformações nas esferas política, econômica e social. Ele está disposto a enfrentar as demandas por mudanças profundas na vida do País, tomando iniciativas nos campos institucional, legislativo e administrativo. Essa agenda deve ser igualmente transposta para o campo da política externa. O dinamismo no plano  interno não pode conviver com o imobilismo no plano externo.

 

A conjuntura externa impõe, aliás, mudanças na postura internacional do Brasil. O fim da guerra fria, o término do confronto Leste-Oeste, a desideologização das relações internacionais, já conformam, por eles mesmos, os novos elementos de um cenário mundial sensivelmente diferente daquele em que crescemos e fomos educados: os velhos conceitos, os antigos argumentos, os discursos tradicionais podem ser guardados na estante. A linguagem da diplomacia contemporânea deve necessariamente ser diferente, menos preocupada com os equilíbrios estratégicos e as disputas pela hegemonia e mais voltada para a superioridade tecnológica e a performance econômica.


A ordem econômica mundial não pode mais ser moldada pela vontade de algumas poucas economias dominantes: a globalização dos circuitos produtivos, dos fluxos de comércio e de investimentos, cria uma enorme rede de interesses interdependentes, muito embora alguns participantes dessa imensa fazenda econômica sejam, como na fazenda imaginada por George Orwell, mais interdependentes do que outros. Alguns, “mais iguais do que outros”, avançam na conformação de espaços econômicos exclusivos, num movimento já conhecido como de regionalização e ao qual não podemos ficar alheios.


Os países em desenvolvimento são, precisamente, frágeis em sua interdependência com o mundo, em especial com os parceiros desenvolvidos, dependentes que são do acesso a capitais e fontes externas de tecnologia moderna. A América Latina, particularmente, perdeu espaço relativo nos mercados internacionais nos últimos dez ou doze anos, enquanto a Ásia caminhava celeremente na busca de uma nova inserção internacional.


Esse contraste, doloroso para nós, acostumados que estávamos a décadas de crescimento contínuo, ilustra com força a importância do componente econômico na agenda diplomática contemporânea. Não se trata aqui de reduzir a importância do aspecto político, mas de reconhecer a primazia dos interesses econômicos e comerciais na projeção externa do País.

 

Daí derivam novos princípios que deverão orientar a política externa do Brasil nos anos 90. Nossa diplomacia, em respeito a suas tradições, deve procurar antecipar-se aos movimentos do presente, orientando seu instrumental de análise e de atuação para detectar, como bem disse o Chanceler Celso Lafer, os nichos de oportunidade que assegurem ao Brasil melhor acesso aos mercados e aos fluxos de capitais e tecnologia.

 

Realismo e objetividade no tratamento dos temas de interesse concreto do Brasil de hoje devem caracterizar essa política externa preocupada com nossa inserção no mundo contemporâneo. Sem descurar os temas tradicionais da agenda diplomática brasileira, a política exterior em minha gestão dará prioridade às matérias relacionadas com o comércio exterior e a integração regional.


O Brasil é um país a vocação ecumênica, uma nação cujos interesses espelham a vontade política, e mesmo a necessidade econômica, de um relacionamento verdadeiramente universal. No campo comercial, onde somos um global trader, é preciso desenvolver uma visão estratégica do comércio exterior, captando as novas oportunidades surgidas em áreas dinâmicas, seja em termos de produtos de alta demanda potencial ou de mercados promissores.


Para realizar a já chamada inserção competitiva do Brasil na economia mundial, a ação diplomática externa estará voltada, em especial, para a consolidação dos compromissos do País com o sistema multilateral de comércio, em especial com o GATT. Cabe operar aqui o abandono das posturas essencialmente defensivas e protecionistas  neste e em outros foros, pois é do nossos interesse que a regulamentação de novos temas da agenda econômica mundial seja feita no GATT e em outros foros multilaterais, com vistas a reduzir o potencial discriminatório de medidas nacionais unilaterais, de iniciativas puramente regionais ou resultando de acordos entre blocos ou parceiros mais poderosos.


O Brasil deve colocar-se numa postura receptiva ao desenvolvimento de novas frentes de negociação externa objetivando a liberalização dos fluxos de comércio e o aumento das condições de acesso de produtos brasileiros aos mercados internacionais. Na política comercial externa deve procurar-se seguir uma estratégia diferenciada, com a busca aludida de nichos de mercado nos países desenvolvidos e uma maior agressividade nos mercados regionais e dos países em desenvolvimento.


O MERCOSUL representa, obviamente, prioridade fundamental de nossa política externa, não apenas em termos econômicos, mas também nos planos político e diplomático. Na área econômica, porém, atenção especial deve ser dada às negociações tendentes ao pleno atingimento dos objetivos propostos no Tratado de Assunção e confirmados na decisão de Las Leñas do Conselho do Mercado Comum, que estabeleceu um cronograma de medidas a serem cumpridas até o final da fase de transição, em 31 de dezembro de 1994. 


A América do Sul, no contexto da integração regional, constitui um espaço econômico relevante para nossos interesses comerciais e econômicos: aqui é preciso definir políticas e ações positivas que permitam ao Brasil tomar iniciativas regionais, e não reagir a elas de maneira defensiva, dentro do realismo, gradualismo e equilíbrio que caracterizam [essa nova orientação.]


A política de integração, no plano hemisférico, deve ser vista como uma ação complementar aos esforços de modernização tecnológica, de melhora de competitividade e de uma melhor inserção externa. A negociação da integração regional deve articular-se com a política econômica externa vis-à-vis os países desenvolvidos, dos quais continuará a derivar o essencial dos nossos instrumentos de modernização tecnológica.


A Ásia assumirá importância crescente para a política externa brasileira, em especial em sua vertente econômica: em seu conjunto, o continente asiático, já foi, em 1991, o terceiro mercado para as exportações brasileiras.  Nesses termos, continuaremos a examinar com interesse o aprofundamento de nossas relações com o Japão e os países de crescimento dinâmico, procurando igualmente intensificar as relações de cooperação científica e tecnológica com a China e a Índia, países com os quais temos uma certa afinidade de interesses no cenário macropolítico mundial.


A prioridade em relação à África - em especial os países de língua portuguesa - é reflexo de nossa própria identidade cultural: os laços de sangue e os vínculos culturais constituem uma base sólida para a continuação de um relacionamento exemplar. Examinarei com atenção as possibilidades de cooperação com esse continente, particularmente nos campos da prestação de cooperação técnica e de participação em projetos de desenvolvimento.


Também na área cultural, o papel do Itamaraty, como difusor dos valores e bens da civilização brasileira deve ser reforçado e ampliado. Em coordenação com o Ministério da Cultura, necessitamos redefinir o alcance e as prioridades de nossa política de difusão cultural. Em minha gestão, tenciono dar ênfase à diplomacia cultural, estreitando os vínculos com a comunidade ibero-americana e com os países da África lusófona.

 

Pretendo abrir o Itamaraty para um amplo diálogo com as forças políticas nacionais, representadas no Congresso ou presentes na sociedade civil. Num momento em que a nacionalidade se apresta a discutir a opção parlamentarista, à qual me filio particularmente, o Itamaraty deve estar pronto para participar dessa revisão fundamental dos princípios operacionais de nossa democracia, inclusive no que se refere ao processo decisório e de implementação da política externa.

 

É minha intenção igualmente manter estreito contato com os setores produtivos, para que estes possam fazer o acompanhamento da agenda econômica externa, nos foros multilaterais ou no MERCOSUL, com plena consciência de suas implicações para as empresas e os agentes econômicos internos.

 

Refletindo as prioridades que pretendo desenvolver à frente da Chancelaria, estou reestruturando o funcionamento das Subsecretarias e de outras unidades subordinadas, com vistas a unificar, por exemplo, o tratamento dos temas econômicos.

 

Desde os primeiros momentos na chefia da Casa, dediquei atenção especial às questões administrativas, que tanto afetam o Itamaraty e sobre as quais espero em breve dar boas notícias a todos os funcionários, no Brasil ou no exterior.

 

Conclamo a Casa a participar deste esforço. Espero contar com a colaboração, o entusiasmo e a dedicação desse corpo de funcionários diplomáticos altamente qualificado, e de funcionários administrativos e de apoio, que, apesar das dificuldades materiais e das limitações orçamentárias, continuam a dar o melhor de seus esforços para o Itamaraty.  Quero manter estreito contato com a Casa e aproveitar suas virtudes.

 

[segue texto final do Gabinete]

 

Relação de Trabalhos n. 284


Anexo: 

A integração da América do Sul no discurso da política externa brasileira (1992-2010)

Published 2014
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Esta tese aborda a construção do discurso da política externa brasileira acerca da integração da América do Sul, particularmente a partir da década de 1990. Através da perspectiva de estudos da Análise de Política Externa e com relevantes contribuições do campo da Análise do Discurso, este trabalho enfoca o desenvolvimento desta noção de integração sul-americana ao longo dos governos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Assim, a pesquisa apresenta uma discussão teórica acerca do estatuto do discurso na área de política externa, seguida por um levantamento do histórico de aproximação entre o Brasil e seus vizinhos da América do Sul. Com base nestes elementos, o trabalho examina as características institucionais e os principais agentes envolvidos no processo de construção do discurso da política externa brasileira para a integração regional. A seguir, a análise se volta para os aspectos discursivos, com ênfase nos pronunciamentos dos chanceleres e dos presidentes brasileiros, para compreender suas condições de emergência e existência, bem como verificar as continuidades e rupturas no desenvolvimento desta “nova” noção de região. O objetivo desta análise consiste em identificar os principais elementos políticos, sociais e simbólicos mobilizados na articulação deste discurso da política externa para a integração da América do Sul.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Falecimento do Embaixador, ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia - nota do CEBRI, memorias Paulo Roberto de Almeida

Homenagem ao ex-chanceler, embaixador Luiz Felipe Lampreia

Paulo Roberto de Almeida
Por ocasião de seu falecimento, em 2/02/2016

Nunca trabalhei sob a ordens diretas do Embaixador Lampreia, mas tive o prazer de desfrutar, usufruir, aprender e colaborar com ele, enquanto chefe de missão ou chanceler, nas inúmeras interfaces de trabalho que pude ter com ele, seja na Secretaria de Estado -- quando eu me ocupava de assuntos financeiros -- seja nos postos, notadamente em Paris e em Washington, quando ele passava rápida ou ocasionalmente, ou quando ele se delongava para os compromissos, multilaterais ou bilaterais, que estivessem na agenda de relações exteriores e de política internacional do Brasil.
Em todas essas ocasiões, pude avaliar seu conhecimento perfeito dos temas da agenda econômica, comercial ou financeira, dos quais eu me ocupava, e sobretudo seu senso de equilíbrio, seja em relação ao Gatt-OMC, organizações de Bretton Woods, Mercosul, negociações da Alca, acordos de investimento, e vários outros assuntos dos quais fui sucessivamente responsável e em relação aos quais cabia a ele tomar a decisão final, no âmbito do nosso ministério (e acima dele, na Presidência da República).
Nunca tive esse privilégio de trabalhar sob suas ordens diretas, mas tive a oportunidade de preparar “position papers”, ou notas de informação, e até mesmo discursos, quando ele tinha de ir ao Congresso, falar em uma ou outra das comissões de relações exteriores, ou quando tinha de falar em público, em algum encontro diplomático ou seminário acadêmico.
Lembro-me, especialmente (e devo ter o texto registrado como documento de trabalho em meu computador), de ter preparado, em 1993, subsídios para seu discurso de posse, quando o então senador Fernando Henrique Cardoso foi designado chanceler pelo presidente Itamar Franco, e ele assumiu a Secretaria Geral do Itamaraty, o mais alto posto, fora do cargo político de ministro de Estado (que ele também assumiu mais tarde), a que pode aspirar um diplomata. Foi o momento em que o Brasil distanciou-se do conceito bastante vago e pouco operacional de América Latina, para adotar a prioridade política da América do Sul, nosso ambiente de "manobras diplomáticas" naturais para a construção de um espaço econômico integrado no continente a partir do Mercosul (ainda não tinha sido lançada a Alca, mas o presidente Bush pai já tinha proposta a "Iniciativa para as Américas" e o Brasil tomou a iniciativa de reforçar os laços sub-regionais).
Anos mais tarde, lembro-me igualmente de tê-lo questionado sobre o "esquecimento relativo" da América do Sul (e isso foi antes da reunião de presidentes da região em 2000, a convite do presidente FHC), durante esses anos todos em que ele foi chanceler. Ele me respondeu evasivamente, mas era claro que trabalhar com os vizinhos, sobretudo num projeto de livre comércio, quando o Brasil estava claramente à frente de vários dos nossos vizinhos, seja industrialmente ou tecnologicamente, era bastante difícil, e Lampreia tinha plena consciência disso. Os projetos de acordos comerciais com os vizinhos do Grupo Andino (logo em seguida CAN) não avançavam como gostaríamos. 
Foi por isso, aliás, que o Brasil propôs a IIRSA, em 2000, Iniciativa de Integração Física da América do Sul, que depois foi sabotada deliberadamente pelos companheiros, quando eles assumiram o poder em 2003, ou pelo menos colocada em bases políticas antiamericanas, no experimento da CASA, que depois redundou (por manobras do caudilho Chávez) na Unasul bolivariana, dando um golpe nas pretensões e nos projetos do Brasil).
Lampreia provavelmente teria atuado de maneira muito diferente se tivesse, por um desses acasos da história, continuado à frente do Itamaraty. Por isso mesmo, sempre admirei seu senso de equilíbrio, seu jeito ponderado e cuidadoso de atuar nas diversas frentes de trabalho, a anos-luz de distância da pirotecnia e do histrionismo conduzido mais tarde pelos companheiros. 
Um último episódio de meu relacionamento com ele posso revelar aqui, pois ele foi um dos muitos colegas -- vários embaixadores experientes -- que “caíram como patinhos”, se ouso dizer, nas minhas memórias apócrifas do Barão do Rio Branco.
Corria o ano de 2011, e estavam sendo feito preparativos para comemorar dignamente os 100 anos de falecimento do nosso patrono maior da diplomacia, Juca Paranhos. Eu inventei um caderno desconhecido, “descoberto” por acaso nos arquivos históricos do Itamaraty do Rio de Janeiro, e me pus a escrever eu mesmo as "memórias" de Rio Branco, com sutilezas, subentendidos e alusões muito pertinentes ao ambiente da época, mas também com “mensagens” subreptícias dirigidas a nossa própria época, um pouco sobretudo (Argentina, obviamente, os militares também, e vários outros episódios muito conhecidos dos biógrafos e leitores, especialmente diplomatas). Comecei a publicar no meu blog, esses "episódios" da vida do Barão, que tinham permanecido na obscuridade durante cem anos, e, para minha surpresa, muita gente graúda se deixou convencer pela veracidade do caderno.  Descendentes do Barão vieram me interrogar onde estaria esse caderno até então desconhecido, e eu disse que tinha obtido uma cópia anos atrás no próprio arquivo, e mais não disse.
Lembro-me, então, que estando em Paris, para aulas na Sorbonne, em março ou abril de 2012, encontrei-me a seu pedido com Luiz Felipe Lampreia, que me confessou que foi um dos muitos que se deixou levar pela minha brincadeira com a história.
Nesse momento, tive de contar a verdade, pois o jornalista Merval Pereira pretendia publicar em sua coluna diversos dos meus "trechos das memórias do Barão", como se verdadeiros fossem. Para evitar um constrangimento ao jornalista, tive de confessar a tramoia. Mas, vários embaixadores se entusiasmaram com a minha “descoberta” -- Lampreia entre eles -- a ponto de me sugerir publicação completa, e não apenas em “pílulas” (que eu ia fabricando de acordo com a imaginação, e tentando adaptar o mais possível ¡a linguagem da época; o Embaixador Ricupero, aliás, me sugeriu várias expressões do Barão, como essa coisa de "suar dez lenços", para subir a serra até Petrópolis). 
Enfim, foi uma tarde algumas gargalhadas e uma conversa sumamente agradável num hotel de Saint Germain, que não sei se foi um dos que hospedaram D. Pedro II em seu exílio.
Devo tê-lo encontrado uma ou duas vezes mais, no Rio ou em Brasília, e trocamos diversas correspondências eletrônicas ao longo destes últimos anos, quando ele escrevia seus artigos e eu comentava, ou quando eu lhe mandava alguns materiais de minha lavra.
Ficou faltando, e aqui confesso minha frustração, uma resenha comparada, ou paralela, que eu pretendia faze de seu livro sobre o frustrado acordo de Teheran, com a Turquia, a propósito do programa nuclear iraniano, objeto igualmente de um livro do ex-chanceler Amorim (que conduziu uma política externa não consensual, objeto de diversas críticas tópicas, mas elegantes, de Lampreia). Ainda vou fazer, assim como escrever mais alguns textos com base em seus livros e artigos.
Um grande chanceler: expresso aqui meus mais profundos sentimentos e condolências a todos os seus familiares, que confesso ter conhecido muito pouco, e expresso aqui minha simpatia e elevada consideração a todos os seus muitos alunos, da ESPM-Rio, entre outros, e também a seus muitos admiradores, entre os quais eu me incluo, certamente.
Numa época, e que faltam estadistas ao Brasil (e como), Lampreia se colocava exatamente entre o reduzidíssimo número de personalidades que tinham perfeita consciência dos desafios colocados ao país, e que sabia o que, e como, precisávamos fazer para construir uma nação respeitada no ambiente internacional, sem essas demonstrações de amadorismo e de sectarismo dos últimos treze anos.
Minha homenagem, portanto, ao ex-chanceler Lampreia, um dos grandes dos últimos cem anos, com Rio Branco, Oswaldo Aranha, Silveirinha e Celso Lafer.

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 2 de fevereiro de 2016

Nota de pesar sobre o falecimento do Embaixador Luiz Felipe Lampreia
 CEBRI, 2/02/2016

É com imenso pesar que o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) comunica, em 2 de fevereiro, a perda de um dos grandes nomes da diplomacia brasileira, Embaixador Luiz Felipe Lampreia, conselheiro fundador do CEBRI, ex-Presidente do Conselho Curador  e referência global em relações internacionais.

Lampreia foi um dos esteios do CEBRI desde a sua fundação. Graças a ele, o CEBRI consolidou-se como um respeitado centro de discussões sobre o posicionamento do Brasil no cenário internacional. “O Brasil perde uma referência em relações internacionais, e o CEBRI, um de seus mentores. Colaborador atuante, objetivo e pragmático, o Embaixador Lampreia era grande incentivador de uma postura ousada e atuante do CEBRI”, destaca o presidente Rafael Benke. “Cabe-nos agora trabalhar arduamente para continuar fazendo realidade esse desejo”, finaliza.

Com destacada atuação no tratamento de temas financeiros, econômicos e comerciais, o Embaixador Lampreia foi um ícone da diplomacia brasileira, dedicando-se às relações exteriores do país por três décadas. Foi um dos mais longevos ministros das Relações Exteriores, de 1995 a 2001, além de representante permanente do Brasil junto aos organismos internacionais sediados em Genebra, na Suíça. Mesmo aposentado, continuava atuante: mantinha um blog no GLOBO, escrevia artigos e participava de debates e entrevistas sobre política externa com frequência. Era presidente do Conselho de Relações Internacionais da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) e integrava o Conselho de várias empresas nacionais e multinacionais.

O CEBRI lamenta sua partida prematura, transmite sua solidariedade aos familiares, amigos e admiradores do Embaixador Lampreia, e coloca o e-mail à disposição para receber mensagens e depoimentos que serão encaminhados à família: institucional@cebri.org.br

O corpo do embaixador será velado no dia 04.02, quinta-feira, na Capela 3 do Memorial do Carmo.
Rua Monsenhor Manoel Gomes, 287 - Caju, Rio de Janeiro
11h- Velório
14h- Cremação

Rafael Benke
Presidente do Conselho Curador - Centro Brasileiro de Relações Internacionais

sábado, 3 de janeiro de 2015

Aventuras diplomaticas com o Iran, livro de Luis Felipe Lampreia - resenha de Marcos Guterman

Aposta em Teerã
Luiz Felipe Lampreia
Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2014

MARCOS GUTERMAN
O Estado de S.Paulo, 3/01/2015

Úbris é o termo grego que designa "excesso de confiança", e suas principais características são a imoderação e a arrogância. É a tal conceito que recorre o diplomata Luiz Felipe Lampreia, em seu recém-lançado livro Aposta em Teerã (Editora Objetiva), para qualificar a tentativa da diplomacia brasileira, em 2010, de negociar um acordo nuclear com o Irã.

Não é exagero afirmar que teria sido um feito histórico se naquela oportunidade o Brasil conseguisse arrancar do governo iraniano o compromisso firme de interromper o desenvolvimento de um processo técnico que, a certa altura, garantiria ao Irã a capacidade de fazer armamentos nucleares. No entanto, acreditar que um acordo dessa envergadura pudesse ser costurado por um país com escasso poder diplomático no âmbito das grandes querelas internacionais e sem nenhum envolvimento político relevante com o Oriente Médio demanda um voluntarismo e uma ingenuidade raras vezes vistos em negociações com esse grau de complexidade. Mas o presidente brasileiro na época era Luiz Inácio Lula da Silva, e isso explica tudo.

Lampreia é um narrador privilegiado. Na carreira diplomática desde 1963, foi secretário-geral do Itamaraty entre 1992 e 1993 e ministro das Relações Exteriores entre 1995 e 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Portanto, conhece de perto os limites da diplomacia brasileira e os riscos, para os reais interesses do País, de embarcar em aventuras que possam comprometer a imagem do Brasil.

Pode-se argumentar que, ao fazer críticas à diplomacia de Lula, Lampreia move-se por divergências políticas - afinal, trabalhou com FHC e, segundo a lógica binária atualmente em vigor no Brasil, teria necessariamente de ser antagonista da diplomacia petista. Mas não é isso o que se encontra no ensaio de Lampreia. Ao contrário: o ex-chanceler reconhece que, sob Lula, "nunca em nossa história estivemos em posição tão elevada na escala de prestígio internacional". Nenhum outro país, diz Lampreia, conseguiu em tão pouco tempo "um aumento comparável de estatura".

Talvez tenha sido em razão desse êxito inicial que Lula se deixou seduzir pela ideia de que o Brasil teria, sob seu governo, reunido condições de interferir nos grandes contenciosos internacionais. O líder petista tinha a pretensão de se apresentar ao mundo como o mediador capaz de resolver os impasses que ameaçam a segurança do planeta, pois o que faltava às partes em litígio, em sua visão, era simplesmente a vontade de sentar e conversar. Tal ingenuidade mal escondia a soberba do ex-metalúrgico que se acreditava capaz de triunfar onde os gigantes - especialmente os Estados Unidos - fracassaram.

Dessa forma, como mostra Lampreia, a aventura do Itamaraty em Teerã não pode ser condenada em si mesma, pois havia um sincero desejo, por parte dos diplomatas brasileiros, de encontrar uma solução para aquele perigoso impasse internacional. No entanto, o mesmo não se pode dizer das intenções ególatras de Lula.

Lampreia demonstra, em detalhes que normalmente são conhecidos apenas pelos protagonistas das negociações, de que maneira Lula se deixou iludir pelas circunstâncias. "Nunca antes um presidente brasileiro tinha jogado seu prestígio pessoal em uma operação de tão alto risco e com tão poucas chances de êxito", escreveu o ex-chanceler.

O Irã sempre afirmou que seu programa nuclear é pacífico, mas, fiel ao estilo ambíguo, pouco se esforçou para provar o que dizia, criando um clima crescente de confronto. Por essa razão, a comunidade internacional vem aprovando várias rodadas de sanções com o objetivo de forçar o país a abandonar seus planos - para Lampreia, não resta mais a menor dúvida de que o Irã quer a bomba.

Em 2010, às vésperas da adoção de novas punições, Brasil e Turquia decidiram tentar articular uma nova negociação com o Irã. A confiança brasileira se acentuou quando o presidente americano, Barack Obama, enviou uma carta a Lula na qual disse que Washington via com bons olhos um acordo como o que estava sendo negociado - o Irã deveria aceitar que um terceiro país enriquecesse seu urânio o suficiente apenas para fins médicos. Na avaliação de Lampreia, porém, a mensagem de Obama era um incentivo, mas não uma autorização para negociar em nome dos Estados Unidos.

O erro de interpretação da diplomacia brasileira resultou em um acordo no qual o Irã não aceitou incluir garantias reais para convencer as grandes potências de que não construiria um arsenal nuclear. Resultou também na constrangedora cena de Lula erguendo o braço do então presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, "como um campeão de luta", conforme escreveu Lampreia, gerando repercussão negativa nos países que lutavam para enquadrar o Irã.

Pouco depois dessa cena em Teerã, que deveria servir como a imagem do triunfo pessoal de Lula, o Conselho de Segurança da ONU ignorou olimpicamente o acordo costurado por Brasil e Turquia e aprovou uma nova e dura rodada de sanções contra o Irã. O Itamaraty não podia dizer que não tinha sido avisado - o próprio governo da Rússia informara a Lula que a adoção de sanções era muito provável e teria o apoio de Moscou, que até então se alinhava a Teerã.

Para Lampreia, o "coração do problema" é que nenhum acordo como o oferecido pelo Brasil e a Turquia ao Irã seria suficiente para frear o programa nuclear - ao contrário, serviria apenas para que os iranianos ganhassem tempo. Os Estados Unidos, a Rússia e a China sabiam disso, e o Brasil deveria saber também, antes de embarcar nessa aventura embaraçosa, fruto de graves erros de percepção.

Lampreia considera que a principal lição desse caso é que a diplomacia brasileira deve considerar seus limites e buscar protagonismo somente nos setores em que o País é forte, como meio ambiente. Quando quer mostrar "que somos mais capazes do que as grandes potências de resolver importantes impasses internacionais", como escreve o ex-chanceler, a diplomacia lulopetista fracassa - e a úbris é punida com a nêmesis, castigo que recoloca o prepotente em seu devido lugar.

JORNALISTA E HISTORIADOR

sábado, 1 de março de 2014

Venezuela e atitude do Brasil - Luiz Felipe Lampreia

Será que é o caso de demonstrar alguma surpresa ante a atitude do governo brasileiro em relação à violência repressiva do governo companheiro da Venezuela?
Alguém estava esperando outra coisa dos companheiros?
Poucas vezes na vida senti vergonha do meu país: durante a ditadura militar, por exemplo, quando se cometiam abusos contra os direitos humanos, ou quando havia censura à imprensa, sempre idiota e odiosa. Ou já na democracia, quando se cometiam bárbaros assassinatos contra pessoas, adultas ou não, culpadas ou não, aliás ainda hoje. Basta ver o que ocorre nas penitenciárias: não é somente vergonha o que sentimos, mas engulhos, nojo, horror e compaixão pelos presos em condições desumanas (salvo os quadrilheiros políticos do Mensalão, obviamente, bandidos talvez até piores, mas tratados com deferências e regalias).
No campo da política externa, quando o Brasil, mais pelo lado dos militares do que dos diplomatas, apoiou golpes de Estado em outros países. Agora pode-se dizer que temos mais um motivo para sentir vergonha do nosso país. Não pelo lado dos diplomatas, que estou certo contemplam com horror o que se passa no país vizinho (mas que, disciplinados, ou submissos não dizem absolutamente nada). Mas pelo lado dos companheiros, que pelo visto não têm vergonha de apoiar ditaduras assassinas. Vergonha, de fato, pelo Brasil.
Um dia acaba, mas o registro precisa ficar. Eu faço a minha parte: registro...
Paulo Roberto de Almeida 

O que diz o Brasil?

Regimes opressivos e violentos, que desservem às aspirações do povo, acabam um dia colhendo o que semearam: a revolta. É o caso da Ucrânia, onde o que era uma disputa administrável tornou-se confronto sangrento. Mais próxima de nós, está a tragédia da Venezuela.
Sob a presidência de Nicolás Maduro, a quem falta o enorme carisma de Hugo Chávez, o país está descendo às profundezas do desgoverno e da brutalidade. Quando as prateleiras dos supermercados estão vazias, a moeda nacional derrete, a inflação está em alta vertiginosa — é natural que haja manifestações de protesto. Qualquer regime democrático as aceita, sob regras publicamente definidas de local, hora e não violência. O regime de Maduro, ao contrário, alegou que se tratava de uma conspiração fascista financiada pelos EUA e começou a baixar o porrete. As forças policiais usaram fartamente cassetetes e gás lacrimogêneo, a Sebin (a Gestapo venezuelana) usou armas de fogo contra a multidão. Os relatos de tortura, espancamentos e ameaças de morte são numerosos. A imprensa tem sido reprimida na cobertura dos choques e, segundo relatos confiáveis, muitos jornalistas têm sido presos ou agredidos na tentativa de encobrir a repressão. A violência de atirar contra os manifestantes é também levada a cabo pelos esquadrões chamados colectivos, em tudo semelhantes às tropas de choque nazistas da SS ou os squadristi de Mussolini, inclusive por terem sido lançados pelo governo de Maduro.
Silêncio em relação à Venezuela é um erro
Prognosticar se o governo de Maduro vai cair não é o escopo deste artigo. O tema principal aqui é a posição do governo brasileiro sobre o massacre que está em curso na Venezuela. Em primeiro lugar, coloca-se a questão de saber se o governo da Venezuela viola seus compromissos jurídicos internacionais. Vale lembrar que, nas normas jurídicas continentais, consta o Compromisso Democrático da OEA, assinado por todos os países membros, que coloca com clareza o que é uma democracia, bem como o Protocolo de Ushuaia do Mercosul (tive a honra de assiná-lo como chanceler brasileiro em 1998), que contém a cláusula democrática e prevê inclusive a suspensão do país que a viole.
Por que o governo brasileiro se omite nessas condições? Por que, por muito menos e de forma altamente discutível e prejudicial aos interesses nacionais, castigou o Paraguai em nome da referida cláusula democrática? E agora, em face das atitudes antidemocráticas do governo venezuelano, nada diz.
O respeitado jornal “La Nación”, de Buenos Aires, publicou matéria no dia 21 de fevereiro em que afirma: “Silêncio cúmplice. Erro estratégico. Postura inadmissível de um suposto líder regional com aspirações globais. Ante a crise que se vive na Venezuela, são cada vez mais numerosas as vozes que condenam a falta de ação do Brasil no conflito que sangra seu vizinho e mais recente sócio no Mercosul.”
Creio, com a maior convicção, que o silêncio do Brasil face à repressão violenta sobre a oposição que está sendo praticada pelo governo Maduro é um erro que afeta a credibilidade de nosso país em sua tradicional defesa dos direitos humanos e dos valores democráticos. É uma mancha para o atual governo, que espero seja apagada por uma postura mais definida .
Fonte: O Globo 28/2/2014

SOBRE LUIZ FELIPE LAMPREIA


Luiz Felipe Lampreia

Sociólogo e Diplomata, Lampreia foi Embaixador do Brasil em capitais estratégicas da Europa, atuando ainda como Secretário Geral do Itamaraty e Ministro das Relações Exteriores entre 1995 e 2001. É responsável por um blog sobre Política Internacional no site de O Globo.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Luiz Felipe Lampreia: hierarquia e disciplina, com atenuante, no caso Eduardo Saboia


Uma fuga inédita

Luiz Felipe Lampreia
Folha de S. Paulo, 01/09/2013 


Luiz Felipe Lampreia Instituto Millenium

O caso da fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina é inédito na história diplomática do Brasil.

Nunca um diplomata brasileiro tomou, como o funcionário Eduardo Saboia, de sua própria cabeça e sem autorização nem conhecimento de seus superiores a decisão de retirar clandestinamente do país um asilado de nossa embaixada.

Isso foi feito com graves riscos, que puseram em perigo a vida do próprio senador boliviano, do jovem diplomata brasileiro Saboia e de seus acompanhantes.

Como disse em palavras lapidares o novo ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo Machado: “Não estaremos num bom caminho se permitirmos que se percam aspectos essenciais de nossa cultura institucional, como o princípio da hierarquia. O Itamaraty que eu entendo é também aquele que atua decisivamente no cumprimento das instruções recebidas e no estrito respeito à lei”.

Por outro lado, a questão tem um outro aspecto relevante que é a não concessão pelo governo boliviano do salvo-conduto que permitiria ao senador Pinto uma saída honrosa e legal. O princípio de direito internacional que rege essa matéria é o seguinte: “O embaixador (ou o encarregado de negócios), que é a autoridade asilante, analisará a presença de natureza política da perseguição que sofre o asilado potencial e a atualidade do ocorrido e reclamará da autoridade local a expedição de um salvo-conduto”.

O Brasil deveria ter feito exigência mais enérgica da concessão de salvo-conduto pela Bolívia, em cumprimento ao direito internacional

Isso foi feito, mas o governo boliviano recusou-se, durante mais de um ano e meio, a conceder o salvo-conduto, sob alegações diversas. O novo procurador-geral da República disse-o bem no Senado Federal: “O Estado boliviano, para permitir a consequência lógica do que é o asilo territorial, deveria ter concedido, sim, o salvo-conduto”.

É de grande relevância registrar que existe uma Convenção sobre Asilo Diplomático firmada em Caracas no dia 28 de março de 1954, que se acha em pleno vigor e da qual a Bolívia é signatária desde o primeiro dia, assim como nosso país.

Essa convenção reza que “concedido o asilo, o Estado asilante pode pedir a saída do asilado, sendo o Estado territorial obrigado a conceder imediatamente, salvo caso de força maior, as garantias necessárias a que se refere o artigo 5º e o correspondente salvo-conduto”.

Como o senador Roger Faria é opositor ferrenho do presidente Evo Morales, o governo boliviano decidiu ignorar as regras do direito internacional, violando a Convenção de Caracas de 1954.

A meu juízo, o governo brasileiro deveria ter tratado do assunto com mais firmeza. Estando em jogo questão de tal delicadeza, impõe-se uma posição firme e categórica. Em outras palavras: exigência mais enérgica do cumprimento do direito internacional em seus dispositivos pertinentes.

Porém, diante do fato consumado da evasão do senador Roger Pinto com a cooperação total de um funcionário diplomático, creio que o Itamaraty fez bem em abrir um inquérito administrativo para apurar responsabilidades no caso. Espero, contudo, que sejam levados em conta os atenuantes de tipo emocional que levaram o jovem Eduardo Saboia a cometer a grave quebra das normas que disciplinam o serviço diplomático brasileiro.


domingo, 23 de junho de 2013

Iran: o fim de um lamentavel presidente (que não seja o unico) - Luiz Felipe Lampreia

O Globo, 22/06/2013

A eleição presidencial iraniana produziu dois resultados importantes: a vitória do candidato menos radical, Hassan Rouhani, e o fim do lamentável Mahmoud Ahmadinejad, presidente desde 2005. O presidente eleito fez campanha com o slogan “prudência e esperança”, o que está longe de ser uma plataforma arrojada, mas acenou com um ambiente de maior liberdade pessoal. Muito relevante foi sua postura, como ex-negociador nuclear, favorável a uma redução das tensões nessa matéria entre o Irã e os principais países ocidentais para permitir o abrandamento das sanções do Conselho de Segurança da ONU que estão sufocando a economia iraniana.
Quanto a Ahmadinejad, ele teve um de seus poucos momentos de glória no dia 16 de maio de 2010, quando o presidente do Brasil ergueu seu braço e proclamou vitória no confronto com aqueles que queriam cercear o programa iraniano de “uso pacífico” da energia nuclear”.
Deu no que deu: uma derrota esmagadora no Conselho de Segurança da ONU. Ao fim de seu mandato, restam para o povo iraniano uma das maiores taxas de inflação do mundo, elevados índices de desemprego, violenta queda das receitas de petróleo em resultado das sanções internacionais da ONU. Mestre da bazófia inflamada e das posições radicais, Ahmadinejad entra para a História como um pária internacional.
As eleições presidenciais do dia 14 de junho podem vir a reduzir a intransigência do regime. É óbvio que Rouhani, como aiatolá que é, não representa um opositor ainda que velado da teocracia. Alguns de seus predecessores no cargo também eram clérigos xiitas e também buscaram uma abertura política, com êxito muito relativo. Quem detém o poder, acima de todos, é sempre o aiatolá Khamenei, “líder supremo”. Para usar a expressão de um estrategista político brasileiro do passado, o regime iraniano avança por sístoles e diástoles. Em todo caso, pelo que se pode ler na imprensa internacional, Hassan Rohani, que foi o negociador nuclear de seu país, é o mais moderado de todos os que disputaram a eleição.
É interessante sublinhar que, mesmo com ênfases teocráticas e militaristas, o regime de Teerã promove regularmente transições de poder, fenômeno raro no Próximo Oriente.
Contudo, como atesta a violenta supressão do Movimento Verde de protestos, com sua agenda reformista, em 2009, o Irã não é uma democracia nos moldes ocidentais.
Com a recentíssima eleição, o regime adquiriu indiscutivelmente mais legitimidade. A questão que se põe é se o Irã poderá desempenhar um papel internacional mais construtivo sob o próximo presidente. A busca de armas nucleares poderá abrandar, permitindo uma atenuação das sanções do Conselho de Segurança? Veremos.
Haverá modificação em outra coluna mestra da política regional de Teerã: o apoio ao regime sanguinário de Bashar Assad? Sabe-se que a ingerência direta do Irã nos assuntos da Síria e do próprio Líbano continua a atear mais fogo nos conflitos internos desses países. Em minha opinião, o propósito de aumentar e consolidar sua influência em toda a região é um cânone do política externa iraniana que será mantido, seja qual for o resultado das eleições, com os métodos que forem necessários.
Resta a conhecer quais métodos serão empregados doravante pelo Irã.
Se Rohani não tiver poder para alterar profundamente os rumos do Irã, enquanto durar o regime retrógrado dos aiatolás o país não poderá exercer na sua região uma influência positiva, no plano cultural e político, compatível com sua grande herança cultural, seu peso específico e a contribuição do segmento mais culto de sua população. O presidente eleito vai assumir suas funções com muitos desafios.
O primeiro deles será afirmar-se na política iraniana em meio às lutas entre ultraconservadores que sempre ameaçam o equilíbrio interno.
O segundo desafio estará em combater a crise econômica que deriva sobretudo do maior conjunto de sanções jamais impostas a um país e que cortaram mais de 50% das exportações de petróleo e gás do Irã. O terceiro teste de Rouhani será conseguir avanços nas negociações nucleares sem ser atacado internamente como um vende-pátria. Três enorme desafios.
A Pérsia foi a primeira superpotência da Antiguidade.
Na época em que atacou a Grécia, sob Dario, em 490 AC, e dez anos depois, sob seu filho Xerxes, o império chegava à Índia e poderia ter-se firmado na Europa, não fossem as vitórias gregas em Maratona e Salamina.

Com os hebreus, os persas são os únicos povos antigos cujos textos sobreviveram nos tempos modernos. “A ascensão dos aiatolás tem sido um rebaixamento do país no sentido da violência feita às grandes tradições do passado iraniano”, como disse Robert Kaplan. Esperemos que Hassan Rouhani consiga reverter este curso.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Hermanos enemigos, e a decadencia argentina - OESP

O Mercosul a caminho do brejo, depois da Argentina, claro...
Como escreve o ex-ministro Lampreia: "A cada dia que passa fico mais convencido de que a Argentina está em marcha batida para o abismo."
So be it...
Paulo Roberto de Almeida

O alvo do governo Kirchner

19 de março de 2013 | 2h 13
Editorial O Estado de S.Paulo
 
A redução de 73% registrada em 2012 no saldo do Brasil no comércio com a Argentina - num período em que superávits dos principais parceiros comerciais dos argentinos aumentaram até 52% - não deixa dúvidas de que a política protecionista cada vez mais agressiva do governo da presidente Cristina Kirchner tem um alvo específico. Medidas administrativas que retardam ou impedem a entrada de produtos importados na Argentina têm sido contestadas por diversos países exportadores, mas toleradas pelo governo brasileiro. Como a escarnecer da atitude brasileira e das reiteradas promessas de amizade indestrutível da presidente Dilma Rousseff, feitas a sua colega argentina, o protecionismo de Buenos Aires prejudica direta e duramente o Brasil e preserva os demais países.
Os números da balança comercial entre os dois países não deixam dúvidas de que a condescendência com que o governo Dilma reage às restrições comerciais da Argentina estimula a ação dos funcionários do governo Kirchner notoriamente contrários à entrada de produtos brasileiros em seu país. Ruins para o Brasil já em meados do ano passado, os resultados do comércio bilateral ficaram ainda piores no acumulado de 2012.
Em julho do ano passado, as importações argentinas de produtos brasileiros tinham sido 67% menores do que as registradas em julho de 2011 e o superávit comercial acumulado pelo Brasil nos sete primeiros meses do ano tinha diminuído 52% em relação ao período janeiro-julho do ano anterior.
Em todo o ano passado, as exportações brasileiras para a Argentina somaram US$ 18 bilhões, 21% menos do que os US$ 22,7 bilhões exportados em 2011. As importações brasileiras de produtos argentinos, de sua parte, de US$ 16,8 bilhões, mantiveram-se praticamente no mesmo nível de 2011, de US$ 16,4 bilhões. Com isso, o saldo caiu de US$ 5,9 bilhões para US$ 1,6 bilhão, uma redução de 73% (algumas consultorias privadas, como a Abeceb.com, calculam a queda em 65%).
Atribui-se a queda das importações de produtos brasileiros à redução do ritmo da economia argentina no ano passado, quando deve ter crescido menos de 2%. Essa é uma explicação parcialmente verdadeira. Mas, no momento em que as exportações brasileiras caíam, as dos outros principais países fornecedores da Argentina cresciam, e em ritmo intenso. As da Holanda aumentaram 160%; as dos Estados Unidos, 9%; as do Japão, 7%; e as da Alemanha, 2%, como noticiou o jornal Valor (18/3). O superávit, que no caso do Brasil teve fortíssima contração, aumentou 52% para a Alemanha, 29% para os Estados Unidos e 14% para a China.
Brasil e Argentina são os principais integrantes do Mercosul, o bloco do Cone Sul que, teoricamente, é uma união aduaneira, na qual é livre a circulação de bens e serviços. Desde meados da década passada, no entanto, a Argentina vem restringindo a entrada de produtos estrangeiros, mesmo os originários de outros países do Mercosul.
No ano passado, o governo Kirchner instituiu um sistema de controle administrativo de importações que vem retendo mercadorias nos postos alfandegários até a emissão de uma autorização especial para a entrada no mercado argentino. Essa autorização está condicionada à apresentação prévia de uma declaração juramentada, cuja aceitação depende do juízo de setores do governo responsáveis pelas medidas protecionistas.
O objetivo dessas medidas é estimular a produção argentina, mas as ações do governo Kirchner no campo econômico vêm assustando os empresários, nacionais e estrangeiros, o que inibe os investimentos produtivos.
As presidentes dos dois países deveriam discutir, entre outras, a questão da deterioração do comércio bilateral por causa do crescente protecionismo argentino, numa reunião que estava marcada para o início de março. O encontro teve de ser adiado em razão da morte do presidente venezuelano Hugo Chávez. O tema, porém, não pode mais ser adiado, como deixam claro os dados recentes sobre o comércio bilateral. Se o governo Dilma não mudar sua atitude em relação à Argentina, o governo Kirchner se sentirá ainda mais livre para prejudicar o Brasil.
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Em marcha batida para o abismo

19 de março de 2013 | 2h 10
Luiz Felipe Lampreia *
 
A Argentina, segundo o comentário venenoso de um diplomata americano que conheço, é um ex-país desenvolvido. A despeito de sua acidez, a frase revela uma certa verdade: nosso vizinho do sul já foi um país rico. Hoje, porém, está sem crédito internacional por não pagar suas dívidas, praticamente sem investimentos estrangeiros por falta de segurança jurídica. Seu crescimento econômico está alavancado em subsídios ao consumo sob forma de tarifas artificialmente baratas de gás, eletricidade e transportes. Em outras palavras, o modelo não é sustentável. Para completar o quadro de arrepios às regras internacionais existe uma proteção ilegal à sua indústria, como acaba de ser evidenciado pela ação que vários dos países mais importantes do comércio mundial movem contra a Argentina na OMC. Essa proteção é danosa ao Brasil, que por causa dela perdeu muitos bilhões de dólares em exportações no ano passado. Este quadro econômico aponta implacavelmente para o retrocesso do país.

Escrevi faz algum tempo o seguinte comentário: "Há mais de vinte anos, um importante ministro argentino ensinou a um surpreso embaixador brasileiro recém-chegado a Buenos Aires que a 'Argentina é pródiga em três coisas: carne, trigo e gestos tresloucados'. A decisão de expropriar a participação majoritária da Repsol na YPF foi um desses gestos. Somada à inadimplência de dez anos da dívida externa, que representa uma grave violação da ordem jurídica internacional, e ao crescente e arbitrário protecionismo que viola todas as regras do Mercosul e da OMC, a decisão coloca a Argentina à margem da legalidade global. Como me escreveu um grande amigo argentino recentemente, o governo argentino 'busca la maximización del presente. Eso fue el peronismo de los 50, el menemismo - aunque con algunas reformas para nada despreciables - y el kirchnerismo'. E na mesma correspondência acrescentou: 'Existe también entre nosotros un desequilibrio político muy pernicioso, que agudiza el mal anterior. Entre Cristina y su segundo, Binner, hubo 37 puntos de diferencia. Lo mismo sucedió con Perón en el 51. Hoy el gobierno controla 23 distritos sobre 24, además de las dos cámaras. En Brasil, la oposición gobierna los grandes estados y eso genera una dinámica virtuosa en muchas dimensiones'.

Gestos dessa gravidade têm sempre consequências sérias, mesmo que no imediato pareçam benéficos e sejam saudados pelo povo com orgulho e alegria. A longo prazo, essas ações terminam por pôr o país à margem das principais correntes de crédito, investimentos e comércio, ou seja, de todas as atividades que geram prosperidade e oportunidades econômicas para uma nação. O mau governo orienta-se pelo valor imediato de popularidade que obtém com seus atos impulsivos e não pensa nas consequências de seus atos no futuro". A cada dia que passa fico mais convencido de que a Argentina está em marcha batida para o abismo.

Se não bastasse, a sra. Cristina Fernandez de Kirchner está aprofundando sua ofensiva contra instituições básicas como a imprensa livre e o Poder Judiciário, que são ambas os últimos bastiões da resistência democrática. A deputada Elisa Carrió, que já foi candidata à Presidência, comentou, com agudeza, que "a única coisa que Cristina deseja é sua impunidade (...) se o povo não se defender rápido nos resta pouco tempo de uma Argentina republicana". Citações assim poderiam ser apresentadas fartamente e se contrapõem a outra, desta vez de autoria da procuradora-geral da República, Alejandra Gils Carbó, que afirmou: "A Justiça atual é ilegítima, corporativa, obscurantista e lobista". Um procurador de Benito Mussolini na década de 30 subscreveria a esse fraseado com especial prazer. As manobras contra a grande imprensa são também bem conhecidas. Canais de rádio e televisão têm sido comprados por empresários cuja reputação duvidosa é ressaltada em Buenos Aires e que coincidentemente são ligados à presidente. Como disse um importante jornalista do La Nación, José Crettaz, "a Casa Rosada (sede da Presidência) aprovou uma compra de meios (de comunicação) que violou a lei e depois permitiu que um empresário que cometeu essa irregularidade saísse incólume". A guerra da sra. Kirchner contra os Grupos Clarín e La Nación prossegue e visa a calar ou pelo menos cercear as duas maiores colunas mestras da liberdade de imprensa argentina.

Como se vê, a Argentina envereda velozmente para um modelo de partido e poder únicos. O populismo desenfreado já garantiu à presidente uma votação maciça nas últimas eleições. O peronismo detém, pela mesma razão, maioria esmagadora no Congresso e em quase todos os governos provinciais. Para completar o modelo de Estado autoritário e onipotente só falta controlar o Judiciário e a imprensa livre. Quando isso ocorrer, o governo poderá tudo e as instituições democráticas e republicanas estarão subjugadas. A perspectiva de alternância no poder, que já é tênue, estará acabada. Esse filme já foi visto em diversas épocas e muitos países do mundo. E acaba mal.

E o Brasil nisso? Perdemos muito espaço em nosso principal mercado de produtos manufaturados por efeito do protecionismo arbitrário argentino, como já mencionado. Nossas empresas investidoras na Argentina padecem muitas vezes sob a interferência excessiva dos governantes e são levadas à decisão de vender e sair do país, como é o caso da Petrobrás, que desempenhava papel importante na indústria de combustíveis. Ninguém pode, entretanto, derivar daí uma postura confrontacionista de nossa parte ou subestimar a relevância de nossas relações com nosso maior vizinho. Houve muitas vezes tempos melhores, mas com a Argentina temos um casamento indissolúvel, seja como for. É por isso mesmo que devemos lamentar a destruição sistemática dos fundamentos da democracia argentina e esperar que dias melhores permitam restaurar o vigor de nossa relação econômica. É por isso também que considero que não devemos abundar em gestos e palavras de solidariedade. Os ditadores adoram afagos, mas os democratas devem abster-se de fazê-los.

* Luiz Felipe Lampreia foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC.