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sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Luiz Gama: um abolicionista avant la lettre

 Eu tenho uma camiseta, oferecida pelo Livres, com a efígie do grande Luiz Gama.

Paulo Roberto de Almeida 

LUIZ GAMA: ESCRITOS INÉDITOS E FILME AJUDAM A RECUPERAR A IMPORTÂNCIA DO ADVOGADO NA LUTA ANTIRRACISTA!

Bolívar Torres
O Globo, 05/08/2021

Especialista em Luiz Gama (1830-1882), o pesquisador Bruno Rodrigues de Lima já trocou ideias com admiradores do abolicionista baiano em diversas áreas. Do cantor Jorge Benjor ao jurista alemão Thomas Duve (diretor do prestigioso Instituto Max Planck), passando por líderes religiosos como a ialorixá Mãe Stella, não foram poucos os que revelaram, em conversas informais com o doutorando em História do Direito pela Universidade de Frankfurt, um profundo interesse e respeito por Gama.

Nascido livre e vendido pelo pai como escravo aos 10 anos de idade, o advogado, poeta, orador e jornalista estudou Direito por conta própria e foi responsável por libertar centenas de escravizados. Mas, após sua morte, o seu legado acabou apagado pela História oficial do abolicionismo, em detrimento de personalidades hoje mais conhecidas, como Joaquim Nabuco. Por isso, Lima defende a ideia de que o reconhecimento de Gama ainda é “underground” — ou seja, acontece fora de universidades, museus, monumentos e outros espaços institucionais.

Graças ao trabalho de diversos artistas e pesquisadores (incluindo Lima), Gama vem gradualmente reconquistando o lugar que merece, incluindo títulos importantes. O mais recente deles é o de Doutor Honoris Causa da Escola de Comunicações e Artes da USP, recebido mês passado. Nos cinemas, sua vida é retratada na cinebiografia “Doutor Gama”, dirigida por Jeferson, de que estreia hoje. E seus escritos ganham uma primeira edição de “Obras completas”, com nada menos do que 600 textos até então desconhecidos (80% do total). Descobertos pelo próprio Lima em veículos como o jornal Democracia, os inéditos revelam perspectivas novas sobre Gama.

—A História oficial cuspiu em Gama, mas os movimentos populares guardaram sua memória, principalmente as lideranças mais velhas nas comunidades negras de Salvador —diz Lima, responsável pela organização e pelas mais de 7 mil notas da publicação das obras completas. —É uma gratidão que passou de pai para filho. Já vi muita gente que não leu uma página sequer de Gama e ainda assim sabe que ele deixou um modelo de resistência a ser seguido.

A amplitude do pensamento de Gama ficou mais evidente nos últimos anos, graças ao garimpo de pesquisadores dedicados. Umas das grandes responsáveis por sua ressurgência, Ligia Fonseca Ferreira, professora da Unifesp, revelou a verve literária do abolicionista, idealizando livros como “Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas” (2011). Já as cinco mil páginas das “Obras completas” (Hedra) organizadas por Lima serão publicadas em dez volumes até julho de 2022, mas não em ordem cronológica. Os primeiros a chegar foram o 4 (“Democracia”) e o 8 (“Liberdade”), ambas no mês passado.

Pesquisando em arquivos públicos durante nove anos, Lima descobriu textos que, garante, podem mudar as interpretações sobre Gama. Um documento original, redigido de próprio punho, dá a entender que o abolicionista seria responsável pela criação de uma biblioteca comunitária com 5 mil títulos — feito até então atribuído exclusivamente à loja maçônica da qual ele fazia parte. Além disso, manifestos no jornal Democracia, assinados sob o pseudônimo Afro, revelam o teórico comprometido com um projeto de escola laica e pública.


—Isso significa que ele tinha uma obra sobre o tema pelo menos 30 anos antes dos primeiros debates sobre educação popular — diz Lima. — Outros textos inéditos mostram que Gama finalizou sua luta política sem fazer qual- quer concessão a liberais e conservadores, até mesmo republicanos. Segundo ele, nenhuma dessas três forças políticas representaria o abolicionismo de verdade. Acredito que isso explica porque Gama foi apagado após sua morte.

Alfabetizado ainda como escravo, Gama conquistou sua própria liberdade. Atuou voluntariamente em processos de alforria, mas também teve clientes ricos, tornando-se um dos três advogados mais bem pagos de São Paulo. Este itinerário excepcional é contado por Jeferson De em “Doutor Gama”. Três atores vivem o abolicionista em diferentes fases: Pedro Guilherme (infância), Angelo Fernandes (adolescência) e Cesar Mello (maturidade). Sem deixar de lado o aspecto romanesco de sua vida, o cineasta queria que o longa servisse como uma janela para a obra do autor e mostrasse suas ideias. Uma das liberdades tomadas pelo roteiro foi juntar diferentes processos protagonizados por Gama em um só. Para Jeferson de lançar o longa no momento em que a sociedade ainda repercute o assassinato de George Floyd e a chacina do Jacarezinho tem um significado especial.

— Quando trabalhamos o roteiro, em muitos momentos parecia que íamos rodar um filme sobre 2021, e não sobre o século XIX — diz o cineasta, que em 2019 dirigiu a minissérie de ficção “A revolta dos Malês”, baseada no levante de escravizados em Salvador. —As pautas de Gama são contemporâneas e mostram que nossas lutas vêm de longe.

Para manter o máximo de fidelidade aos fatos históricos, a produção recorreu aos conhecimentos de Ligia Fonseca Ferreira, que atuou como consultora. A professora lançou em 2020 o livro “Lições de resistência”, que reúne artigos jornalísticos de Gama.

—As homenagens são justas e importantes, mas o legado de Luiz Gama é sua escrita diz Ferreira. —Através da sua faceta de jornalista, ele era ouvido como um influenciador. É importante resgatá-lo não só como um precursor do abolicionismo, mas também como uma encarnação da prática completa da luta antirracista.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A oportunidade de conhecer o pensamento de Luiz Gama - Ligia Fonseca Ferreira, Leila Kiyomura (Jornal da USP)

A oportunidade de conhecer o pensamento de Luiz Gama

Coletânea recém-lançada reúne textos essenciais do negro ex-escravizado que rompeu barreiras, liderou luta abolicionisa e teve enorme influência no debate intelectual do fim do século XIX. Visão do racismo institucional tem enorme atualidade

Por Leila Kiyomura, no Jornal da USP

“Qual é verdadeiramente e onde encontrar a obra de Luiz Gama? O que ela nos diz sobre seu espantoso letramento e sólida cultura, sobre as estratégias mobilizadas por um negro e ex-escravizado que se torna uma liderança num mundo de brancos?” Foi esse questionamento que levou Ligia Fonseca Ferreira a fazer uma pesquisa de doutorado, iniciada no final dos anos 1990 na Biblioteca Brasiliana que, na época, ficava na residência do bibliófilo José Mindlin. Também foi esse questionamento que, duas décadas depois, a professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) lembrou em seu discurso, no início desta primavera, ao ser homenageada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A pesquisadora, doutora pela Universidade de Paris 3, na França, foi condecorada com a medalha Luiz Gama, na primeira vez que uma não jurista a recebe.

A professora Ligia Fonseca Ferreira – Foto: acervo pessoal

“Difícil dizer da minha honra, alegria e emoção de receber esta medalha, plena de simbolismos, resumidos no magnífico desenho de Oscar Niemeyer, especialmente neste ano de 2020 em que se celebram os 190 anos de Luiz Gama, cujo pensamento, exemplo e valores ainda mantêm seu frescor”, continuou Ligia para os integrantes da OAB. Emocionada, ressaltou: “Confesso, igualmente, ter ficado surpresa com a notícia desta recompensa inimaginável, sendo eu professora da área de letras”.

Ligia trava o desafio de “trazer a história e a obra de Luiz Gama para o campo da literatura, da história do abolicionismo, da república, das ideias jurídicas e do jornalismo”. Um trabalho que resultou em livros, artigos, no pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, nos grupos de pesquisa do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e no recém-lançado Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, publicado pelas Edições Sesc São Paulo, obra que reúne textos de um dos principais ativistas do movimento abolicionista e republicano.

O livro enfoca, segundo Ligia, o poeta e advogado autodidata Luiz Gama, mas destaca seu principal legado, que são seus escritos, que ainda permanecem pouco conhecidos. “São 61 artigos integrais, dos quais 42 inéditos, publicados em nove jornais paulistas e cariocas entre 1864 e 1882, data em que falece, no auge de seu prestígio, um dos mais notáveis pensadores negros do século 19”, explica. “Os leitores de hoje podem acompanhar a carreira de um jornalista negro que rompeu barreiras, conquistou o saber e se tornou figura de destaque no meio letrado, em sua época exclusivo de brancos. Luiz Gama fazia questão de demonstrar, através de seu exemplo, a falácia das crenças pseudocientíficas em voga numa sociedade escravocrata convencida da incapacidade intelectual e inferioridade moral dos africanos e seus descendentes, base da ideologia racista que ainda persiste entre nós.”

Baiano de Salvador, Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu no dia 21 de junho de 1830. “Filho de uma africana livre, Luiza Mahin, foi vendido como escravo aos 10 anos de idade pelo pai branco, aparentemente arruinado pelo jogo, e permaneceu assim até os 17, quando conquistou a sua própria liberdade”, conta Ligia.

Busto de Luiz Gama instalado no Largo do Arouche, em São Paulo – Foto: Mube Virtual

Na introdução de Lições de Resistência, a pesquisadora narra detalhes da vida de Luiz Gama e apresenta trechos de seus artigos, oferecendo ao leitor reflexões para compor fatos ignorados da história do Brasil. “É preciso lembrar que, no contexto em que viveu, um negro que pensa, escreve e através da escrita questiona e desafia o status quo escravista representa uma façanha histórica, um gesto político, uma mensagem para a posteridade, um exemplo que todos os brasileiros deveriam conhecer”, comenta Ligia. “Luiz Gama dissecou igualmente, em narrativas destinadas a comover o público, como funcionava a justiça para negros e a justiça para brancos. Enquanto nos jornais se anunciavam fugas e ‘crimes’ cometidos pelos escravizados, o jornalista que conheceu o cativeiro mostrava o outro lado da moeda, ou seja, o crime dos senhores que dispunham do corpo, da alma e da vida de seus escravos a seu bel-prazer.”

A leitura de seus escritos, segundo a professora, é de surpreendente atualidade. “Há 150 anos, denunciou o racismo institucional, pregando valores antirracistas pelos quais hoje boa parte do mundo inteiro se mobiliza”, afirma. Ligia acredita que, aos poucos, Luiz Gama começa a encontrar um lugar na historiografia literária e nas ideias jurídicas no Brasil. “Agora parece-me fundamental dar visibilidade à sua atuação num campo ao qual se dedicou com ardor e paixão, e estruturador de uma identidade profunda, e preencher, assim, uma lacuna na história da imprensa brasileira. É a contribuição que espera dar este novo livro, dedicado a Luiz Gama que, pouco depois de sua morte, foi saudado por seus pares como um trabalhador incansável do jornalismo.”

Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro é uma referência para a reflexão dos movimentos contra o racismo que estão acontecendo em diversos países. Mas a sua publicação não previu estar no contexto da realidade atual.

“Foi uma coincidência o livro sair exatamente neste momento”, diz Ligia Ferreira. “Acredito que, se estivesse vivo hoje, o jornalista e ativista Luiz Gama estaria na linha de frente de movimentos como Vidas Negras Importam e Vidas Importam, da defesa dos direitos humanos e, como filho de uma ‘estrangeira’ que foi deportada, sua atenção se voltaria igualmente para a situação de imigrantes e refugiados no Brasil.”

Importante também destacar que o jornalista dedicou um cuidado especial ao trabalho e à honra das mulheres negras. “Certamente tocado pela lembrança da figura materna, o filho da quitandeira africana Luiza Mahin defendeu quitandeiras libertas que, expulsas do centro da cidade onde exerciam tradicionalmente seu ofício, reivindicavam o direito de para lá retornar e poder trabalhar.” Ligia conta que o advogado moveu processos para obter alforria de mulheres escravas que os senhores obrigavam a se prostituir.

Luiz Gama viveu em São Paulo por 42 anos, onde morreu no dia 24 de agosto de 1882. “Nenhuma situação irregular relativa à vida dos negros parece ter escapado a Luiz Gama. Membro da maçonaria, na qual teve posições de liderança, ele contou com a aliança de muitos companheiros brancos que, ao seu lado, abraçavam suas lutas e, juntos, pregavam os valores antirracistas.”

Ilustração publicada no livro Lições de Resistência – Foto: Reprodução

Lições de Resistência é prefaciado pelo historiador Luiz Felipe Alencastro. “É uma grande honra para mim, pois o professor Alencastro ocupava a cadeira de História do Brasil na Universidade de Paris 4, e nessa qualidade foi membro da banca de defesa de meu doutorado.”

Luiz Gama, como ele costumava comentar, deixa uma esperança no horizonte. “Cem anos antes de Martin Luther King, ele dizia ter um sonho sublime: as terras do Cruzeiro, sem reis e sem escravos”, afirma Ligia Fonseca Ferreira.

   

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Luiz Gama: um intelectual negro no Brasil escravagista - Ligia FonsecaFerreira (Pesquisa Fapesp)

HUMANIDADESEscravo e abolicionista
Depois de ter sido vendido pelo pai, Luiz Gama transformou seu drama pessoal em luta pela Abolição e pela República
EDUARDO NUNOMURA |
Pesquisa Fapesp,  Edição 219 - Maio de 2014

Luiz Gama foi um personagem tão extraordinário quanto complexo, a começar por suas qualificações: abolicionista, republicano, poeta, advogado, jornalista e maçom. Pertenceu a uma geração que preparou a derrocada do Segundo Império no Brasil, no século XIX. Com a pena e a oratória, embrenhou-se na luta contra os conflitos da época, tais como as relações entre Igreja e Estado, Monarquia e República, raça e nação. Tomava o partido das causas libertárias e havia um sentido pessoal nessa escolha: Gama foi escravo, que tinha sido vendido por seu pai quando criança. Quase adulto, conseguiu conquistar a liberdade. Autodidata, extraiu de sua dramática e épica história de vida força e obstinação para libertar mais de 500 escravos.
Esse personagem batiza logradouros por todo o país, sobretudo em São Paulo, onde foi maior a sua atuação, mas ainda é pouco conhecido. Conhecê-lo, estudá-lo e iluminá-lo tem sido uma tarefa de pesquisadores como Ligia Fonseca Ferreira, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Autora de uma tese de doutorado sobre a vida e obra do ex-escravo defendida na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle, Ligia é negra e assume a responsabilidade de estudar um personagem com quem guarda relações mais complexas que a de um pesquisador neutro diante de seu objeto. “Às vezes, minimiza-se, quando não se invisibiliza, o trabalho dos pesquisadores negros a respeito de personagens históricas negras que afirmaram esta condição”, afirma.
A contribuição de Ligia para a compreensão de Luiz Gama é ímpar. Ela organizou a reedição crítica das Primeiras trovas burlescas & outros poemas de Luiz Gama(Martins Fontes, 2000) e Com a palavra, Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011). De formação em letras, com ênfase na área de língua e literatura francesa, Ligia tomou conhecimento do abolicionista quando realizava pesquisa na Sorbonne sobre a literatura negra no Brasil entre 1987 e 1988. Gama era ninguém menos que o pioneiro. Mas diante da fragmentada documentação sobre o poeta, e já mirando um doutorado, a solução foi percorrer bibliotecas, centros de estudos e até sebos de livros. O que encontrou não foi pouco.
As Primeiras trovas burlescas de Getulino foram publicadas em 1859, em São Paulo, àquela altura uma província de poucos leitores, escassos escritores e parcas tipografias e livrarias. O livro continha 22 poemas de sua autoria e três do político e professor de direito José Bonifácio, o Moço. A escolha do pseudônimo “Getulino”, derivado de “Getúlia”, território do norte da África, já indicava o posicionamento de um autor de origem africana, adentrando o restrito círculo de letrados, privilégio de brancos. Dois anos mais tarde, ele reedita a obra no Rio, na mesma gráfica que imprimia romances de José de Alencar. Na segunda edição, “correcta e augmentada”, publicou 39 poemas, dos quais 20 inéditos.
No Brasil escravocrata, escrever e ser lido eram duas formas de se manter próximo do poder. Procure se colocar no lugar de um ex-escravo, no início dos anos 1860. Imagine então usar seus escritos para satirizar os políticos e os costumes, parodiar as instituições arcaicas, criticar os “doutores” e trazer à tona os temas da corrupção, do preconceito racial, do embranquecimento dos mulatos que renegavam as raízes e do anticlericalismo. Segundo a pesquisadora, Luiz Gama fez isso com essa obra. Ao publicar em 2000 uma versão compilada com a produção poética integral do abolicionista, Ligia abriu um frutífero campo de estudos.


No periódico Cabrião, Luiz Gama empunha a bandeira dos liberais dissidentes que não aceitam a República sem o fim da escravidão; no destaque
Luiz Gama nasceu em 21 de junho de 1830 em Salvador, filho de uma africana livre, a “altiva” Luiza Mahin, e de um fidalgo de origem portuguesa e membro de uma importante família baiana. O abolicionista jamais revelou o nome do pai que o vendeu como escravo. Foi entregue ao negociante e contrabandista Antônio Pereira Cardoso, que, sem conseguir revendê-lo, acabou ficando com o garoto de 10 anos. Gama aprendeu a ser copeiro, sapateiro, a lavar e engomar, e a costurar. Sete anos mais tarde, conviveu com o estudante Antônio Rodrigues do Prado Junior, que lhe ensinou as primeiras letras. Em 1848, “havendo obtido de forma ardilosa e secretamente provas inconcussas de sua liberdade”, segundo seu próprio relato, foge da casa de Cardoso.
Apenas dois anos antes de sua morte, em 25 de julho de 1880, Luiz Gama envia carta a Lúcio de Mendonça, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, revelando fatos inéditos de sua biografia. Ligia encontrou esse documento na Biblioteca Nacional, no Rio. “É um dos poucos relatos da vida de um ex-escravo no Brasil. Na história dos negros e das letras brasileiras, não há equivalentes das memórias de escravos, tão frequentes nos Estados Unidos”, diz. Esse texto é fundamental para compreender como Gama se tornou uma voz influente nos movimentos abolicionista e republicano.
A esse documento se soma uma carta anterior, de 26 de novembro de 1870, também na Biblioteca Nacional e publicada por Ligia no livro Com a palavra, Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas – obra que traz uma seleção de mais de 40 textos de Gama, vários inéditos, e também cerca de 30 ilustrações, além de seis ensaios da autora. O destinatário da carta era José Carlos Rodrigues, fundador de O Novo Mundo, primeiro periódico em português publicado nos Estados Unidos. O abolicionista fala sobre o movimento republicano no Brasil e sobre a loja maçônica América, fundada por ele e um grupo de liberais que contava, entre seus membros notáveis, com Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. “Asseguro-te que o partido republicano, graças à divina inépcia do sr. D. Pedro II, organiza-se seriamente em todo o império”, escreveu. Mas, segundo Ligia, defendia que a instauração de uma República deveria vir acompanhada da Abolição. A convicção era tamanha que ele abandonou a Convenção de Itu (1873), ao encontrar cafeicultores contrários à emancipação dos escravos na fundação do Partido Republicano Paulista.


Anúncio em que Luiz Gama oferece sua mão de obra
Naquele momento, Luiz Gama já era uma personalidade. Em 1864, havia fundado, ao lado do caricaturista italiano Angelo Agostini, o Diabo Coxo, primeiro periódico humorístico ilustrado da capital paulista. Dois anos depois, colaborou no semanário Cabrião, também com Agostini e Américo de Campos. Em polêmicos artigos, criticava com veemência o regime escravocrata e passava a sofrer perseguições políticas. Sua ira se voltava contra o uso abusivo do Poder Moderador e o próprio imperador dom Pedro II, cuja imagem havia sido abalada na Guerra do Paraguai (1864-1870).
Em 1869, Luiz Gama obteve autorização para exercer a profissão de advogado em primeira instância, mesmo ano em que funda o Clube Radical Paulistano com outros membros da Loja América. Com sólidos argumentos, Gama revela a fragilidade do sistema judiciário. De acordo com a pesquisadora, além das críticas, tratou de inovar no plano jurídico, como quando desenterrou a Lei de 7 de novembro de 1831, que extinguiu o tráfico negreiro, para conseguir libertar africanos comercializados depois dessa data. Em um processo de 1869, entrou em choque com um dos principais juízes da capital, Rego Freitas, a quem exigiu que “respeita[sse] o direito e cumpri[sse] seu dever, para o que é pago com o suor da nação”. O discurso de Gama continua atualíssimo.
Foi também proprietário e redator do semanário político e satírico O Polichinelo(1876). A imprensa e a maçonaria foram fundamentais para o ativismo de Gama, porque lhe franquearam espaço para defender os ideais republicanos e o apoiaram na libertação dos escravos. No século XIX havia outros negros abolicionistas, como os jornalistas Ferreira de Menezes e José do Patrocínio ou o engenheiro André Rebouças, mas nenhum deles vivenciou o drama da escravidão. Pode-se comparar o brasileiro só a abolicionistas americanos, como os ativistas Frederick Douglass, autor de The life of an american slave (1845), ou Booker T. Washington, autor de Up from slavery (1901).
Gama manifestava admiração pelos Estados Unidos, para ele “o farol da democracia universal”. Um modelo exemplar: república federativa, de cidadãos livres e iguais, e ancorada nos ideais iluministas da liberdade, igualdade e fraternidade. Incomodava ao abolicionista o fato de que o Brasil se mantinha como única monarquia das Américas e última nação escravagista do Ocidente. A pesquisadora não deixa de questionar, no artigo “Representações da América nos escritos de Luiz Gama”, a ser publicado na Revista de Estudos Afroasiáticos, a ausência de alusões por parte de Gama aos conflitos raciais e à segregação dos negros nos Estados Unidos pós-escravista.
Ligia chama atenção para o fato de ele jamais ter mencionado Joaquim Nabuco em seus escritos, numa recíproca quase verdadeira. Isso decorreria do fato de que o também líder na luta antiescravista era filho de Nabuco de Araújo, ex-presidente da província de São Paulo e denunciado por Gama por sua conivência com a escravização ilegal de africanos. Gama, provavelmente cansado de esperar pela libertação dos africanos, defendia a incitação de um movimento popular, já que, para ele, se a insurreição é um “crime”, a “resistência” afigura-se como “virtude cívica”. Já Joaquim Nabuco estava convencido de que a Abolição deveria ser feita pela via parlamentar.
Luiz Gama morreu em 1882, antes de testemunhar a libertação dos escravos e o fim do Império. Para a pesquisadora, ele foi poupado de ver a República nascer de um golpe militar, constatar que os ideais de igualdade entre os homens não foram aplicados e que a campanha imigrantista tinha, entre seus propósitos, embranquecer o Brasil para eliminar os traços da estigmatizada e incômoda presença africana no país.
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