O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Maquiavel. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Maquiavel. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Augusto de Franco sobre as democracias e as autocracias

Uma canja. Capítulo 33 do meu novo livro Como as democracias nascem

Augusto de Franco : 

Como Nascem as Democracias

A RAIZ DO REALISMO POLÍTICO

“A teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte… [é] um melhor guia para a compreensão da história do que a moralidade pessoal”.

O realista Kissinger (1994), em Diplomacy, interpretando o pensamento de Theodore Roosevelt, o seu admirado “estadista-guerreiro” (1).

O realismo político acabou virando uma vertente de política externa ou internacional. Não nasceu assim, porém. Nasceu como um pensamento antipolítico, para efeitos, na verdade, internos.

Há uma tradição autocrática no pensamento político. É essa tradição que constitui o chamado realismo político. Começa com Platão, passa por Maquiavel, Hobbes, pelo Cardeal Richelieu, por Clausewitz, pelos chamados “políticos do poder”, como Metternich e Bismarck e vários outros até chegar aos realistas modernos como Schmitt, Morgenthau e Carr e aos contemporâneos, como, para citar apenas alguns exemplos, Brzezinski, Genscher, Ross, Kissinger e o novo crush dos autocratas de direita e de esquerda chamado John Mearsheimer. Este capítulo é sobre isso. Mas não vai comentar exaustivamente as ideologias desses autocratas e sim apenas chamar a atenção para alguns padrões antidemocráticos que estão presentes nos seus pensamentos.

Platão

Podemos dizer – sem medo de errar – que o realismo político nasceu com Platão, quer dizer, tem a ver com os fundamentos dos regimes de Esparta, Creta e Siracusa, não com os fundamentos do regime que vigorou em Atenas nos séculos 5 e 4 a.C. Sua raiz é dória, não jônia. E as tentativas de atribuí-lo originalmente a Tucídides são inconsistências inventadas por acadêmicos americanos.

Platão, nas Leis (626a), escreveu que “na realidade, por questões de natureza (φύσις), todas as póleis vivem envolvidas em um estado de guerra velada”. Bem… aí com certeza começou, no plano teórico, o chamado realismo político. O primeiro problema dessa afirmação platônica não é constatar que as póleis (entendidas erroneamente como cidades-Estado) vivem em estado de guerra e sim achar que isso ocorre por algum tipo de deteminação natural, da phýsis, como qualidade ou propriedade constitutiva de todas as coisas ou sua maneira de ser. O segundo problema é não ver que a pólis, numa democracia (onde Platão vivia, embora a ela se contrapusesse), não é a cidade-Estado e sim a koinonia (comunidade) política. Como percebeu Hannah Arendt (1958), em A condição humana, “a pólis não era Atenas e sim os atenienses” (2).

Avancemos agora pouco mais de dois milênios para constatar como os padrões autocráticos se replicam em outras regiões do tempo. Hans Morgenthau (1948), um dos principais teóricos do realismo político, acreditava que “a política, como aliás a sociedade em geral, é governada por leis objetivas que deitam suas raízes na natureza humana”. Eis aí, desnudado, o pressuposto ideológico platônico antipolítico. Natureza humana é uma natureza (não, com perdão do neologismo, uma “socialeza”). Natureza, Deus ou História (tudo assim com maiúsculas) dá no mesmo. É uma instância extra-política determinando a política a despeito da interação propriamente política entre as pessoas. Se há algo infenso à política, determinando a política, não pode haver democracia.

Bastaria dizer isso. Mas partamos de uma definição, quase escolar, de realismo político antes de examinar os pensamentos de alguns realistas políticos.


Realismo político é guerra

Em poucas palavras e simplificando ao máximo (o que não é tão inadequado, pois suas construções intelectuais são simplórias), o realismo político parte da constatação de que, não havendo uma instância normativa no plano internacional (uma autoridade máxima à qual os Estados devam se submeter), cada Estado – sim, todo realismo é um estatismo: o sujeito é sempre o Estado, a sociedade é um dominium do Estado – deve garantir a sua própria segurança, agindo em nome de um interesse nacional.

Em nome desse interesse nacional, definido pelo próprio Estado, cada ator deve lutar para aumentar o seu poder (em geral traduzido como capacidade militar, mas não só), para impor sua vontade a Estados mais fracos. Cada Estado deve então decidir por si mesmo se e quando vai usar sua força para alcançar seus objetivos (ou realizar seus interesses).

A colaboração entre Estados, no limite, leva a abrir flancos perigosos, pois o aliado de hoje pode se tornar o inimigo de amanhã (o que é bem resumido na máxima autocrática: “os aliados lhe enfraquecem, os inimigos lhe fortalecem”).

Como não há democracia no plano internacional, não há lei (quer dizer, império da lei) ou critério ético-político a que um Estado deva se submeter. Logo, a única maneira de garantir a sobrevivência do Estado como entidade é organizar-se para se defender de um possível ataque de outros Estados.

Para garantir a paz (entendida como manutenção da integridade do Estado) é necessário se preparar para a guerra por meio da defesa (e por isso toda defesa é guerra preemptiva). E como o sistema é competitivo, a única maneira de evitar a guerra é alcançar um equilíbrio de forças que desestimule, por medo da retaliação, que um Estado faça guerra contra outro e o destrua.

Bem, trata-se de uma definição quase escolar, mas nem por isso incorreta. Pelo menos deixa claro que falar do realismo é falar de guerra. Não, não é falar de outra coisa. É o óbvio. Mas agora vem uma inferência não tão óbvia: toda guerra é interna. Este é o primeiro ponto a ser entendido. Para entendê-lo, porém, é preciso balançar algumas certezas.

Para começar, guerra não é o conflito. É um modo de regular o conflito. E guerra não é o conflito violento. Pode ser praticada sem violência (física), como guerra fria e como política adversarial (a política como continuação da guerra por outros meios).

Depois é preciso ver que guerra não é destruição de inimigos e sim, pelo contrário, construção e manutenção de inimigos (tanto faz se for a Eurásia ou a Lestásia, para lembrar o 1984 de Orwell).

Em seguida é necessário entender que a guerra não tem como objetivo principal derrotar um país estrangeiro a não ser na medida em que isso puder ser usado para instalar internamente um ‘estado de guerra’ (não adianta derrotar um inimigo externo se não se derrotar os inimigos internos, quer dizer, se a força política que está no poder de Estado não continuar estabelecendo sua supremacia). O objetivo da guerra – para quem a faz (e como dizia Maturana, “a guerra não acontece, nós a fazemos”) – é instalar um estado de guerra que enseje, permita e justifique a ereção de estruturas hierárquicas regidas por modos autocráticos. Ou seja, a guerra é um engendramento para possibilitar uma reorganização do cosmo social. Em outras palavras, para impor uma ordem preconcebida em vez de deixar que diversas ordens emerjam da interação, o que acontece toda vez que tomamos a liberdade como sentido da política (e não a ordem). Este ponto é fundamental, porque a democracia é apenas a política que não tem uma ordem pronta (preconcebida) para colocar no lugar de outra, mesmo que essa ordem seja avaliada como a mais perfeita e justa do universo.

Aqui é preciso entender, para resumir, que não é apenas que autocracias façam guerras: a guerra já é a autocracia. E toda autocracia é sempre uma guerra contra um inimigo interno (ainda que um inimigo externo possa existir objetivamente).

Voltemos agora aos pensadores realistas para corroborar essas primeiras impressões.


Schmitt

O jurista e estudioso político alemão Carl Schmitt, publicou, em 1932, um famoso livro intitulado O conceito do político, que provocou grande controvérsia sobre um suposto militarismo ou belicismo presente nas suas concepções. Sua posição foi encarada como realista, pelo fato de ele admitir (mesmo sem desejar, ou propor) que a guerra é o pressuposto sempre presente como possibilidade real em qualquer relação política. De qualquer modo, não há como negar que, para conceituar o político, Schmitt insiste demais nas noções de guerra e de inimigo, deixando de tratar, com a mesma atenção – e isso não pode ser por acaso –, dos conceitos de paz e de amigo.

Não cabe aqui entrar na controvérsia nos termos em que ela foi colocada. Talvez seja necessário dizer apenas que, para Carl Schmitt, “a diferença especificamente política… é a diferença entre amigo e inimigo”. Ainda que ele tente fazer uma distinção entre inimicus em seu sentido lato (o concorrente comercial, “o adversário particular que odiamos por sentimentos de antipatia”) e hostis (o inimigo público, o combatente que usa armas para destruir meu contexto vital, enfim, o inimigo político), parece claro que Schmitt não via diferença de natureza entre guerra e política. Tanto é assim que ele afirma que “a guerra, enquanto o meio político mais extremo, revela a possibilidade subjacente a toda concepção política, desta distinção entre amigo e inimigo” (3). Quer dizer que, para ele, conquanto seja um “meio extremo”, a guerra é um meio político. Do contrário ele deveria ter afirmado que a política pode levar à guerra, deixando de ser o que é (mudando, portanto, sua natureza) e não que a guerra é um meio político, pois que, assim, ao fazer guerra, ainda estamos fazendo política.


Pode-se perceber em Carl Schmitt um viés realista da chamada realpolitik. Contrapondo-se ao idealismo, o realismo político é uma política baseada no “equilíbrio do poder”, na linha do pensamento e da prática do Cardeal Richelieu – com sua “razão de Estado” (“raison d’état”) colocada acima de qualquer princípio moral – e dos chamados “políticos do poder”, como os já citados Metternich, Bismarck e, mais recentemente, Kissinger (1994), segundo a qual – e ele escreveu isso interpretando o pensamento do presidente Theodore Roosevelt, o seu admirado “estadista-guerreiro” – “a teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte… [é] um melhor guia para a compreensão da história do que a moralidade pessoal” (4).

O ponto da discussão é o seguinte: se pode haver guerra como meio político, então devemos ser realistas o suficiente para praticar a política como quem conta com tal possibilidade (e se prepara para isso, o que acaba, quase sempre, sendo a mesma coisa que praticar a política como “arte da guerra”). Ao proceder desse modo, separando os amigos políticos dos inimigos políticos (os que podem nos combater), cristalizamos aquela relação de inimizade que pode levar à guerra (e que, de qualquer modo, leva à prática da política como uma “arte da guerra”).

O problema é que isso não vale apenas para a relação entre Estados soberanos, mas acaba deslizando – inevitavelmente – para todas as relações políticas (Richelieu usava a “lógica” da tal “razão de Estado” para manter o seu poder internamente e não apenas nas relações internacionais da França). Amigo, então, passa a ser todo aquele que está de acordo com nosso projeto e inimigo todo aquele que discorda do nosso projeto. Ora, se quero afirmar o meu projeto, então devo derrotar ou destruir (na verdade, incapacitar) aqueles que podem inviabilizar a sua realização e isso deve ser feito, inclusive, preventivamente, antes que eles (os outros, os inimigos) consigam inviabilizar meu projeto ou substituí-lo pelos projetos deles. Preempção.

Há uma linha divisória muito fina entre derrotar e destruir o projeto do outro e derrotar e destruir o outro como ator político, quer dizer, como alguém que pode apresentar um projeto diferente (que não é o meu). Assim, basta alguém não estar de acordo com meu projeto (político), para poder ser classificado como inimigo (político), pelo menos em potencial.

Esse ponto de vista, portanto, não cogita muito da possibilidade de transformar o inimigo político em amigo político, convencendo-o, ganhando-o para o nosso projeto ou adotando outro projeto, um terceiro projeto, que contemple ambos os projetos (o nosso e o dele). O realismo indica que isso não ocorrerá, pelo simples fato de ele (o outro), para usar o pensamento de Carl Schmitt, não ser um eu-mesmo – o que significa, paradoxalmente, convenhamos, uma construção ideal do inimigo, aquele que deve ser desconstituído como ser político enquanto ameaçar a realização do meu projeto. Não podendo ser destruído de pronto, tal inimigo, pelo menos, deverá ficar em seu canto, respeitando meu espaço, caso contrário será destruído mais tarde ou a qualquer momento: a isso se chama “equilíbrio de poder”. Configura-se assim uma situação de luta permanente, levando a uma política adversarial ou geradora de inimizade. Porque o outro, em vez de ser considerado como um possível parceiro, um aliado ou colaborador, é visto, antes de qualquer coisa, como um potencial inimigo.

Na verdade, o inimigo como construção ideal passa a ser uma peça funcional do nosso esquema de poder, quer dizer, da nossa política (ou antipolítica). Sem o inimigo, desconstitui-se a realpolitik e o tipo de poder que ela visa sustentar, em geral baseado na necessidade de preservação de uma determinada ordem que precisa ser mantida contra o perigo representado pelo inimigo. É para manter essa ordem que se instaura então, internamente, o “estado de guerra” que consiste em uma preparação para a guerra externa (que pode vir ou não, pouco importa) mas sempre em nome da paz (pois que só alguém preparado para a guerra pode manter a paz). E o mais grave é que esse “estado de guerra” interna pode se referir tanto ao âmbito de um país diante de outros países, como ao de uma organização em conflito real ou potencial com outras organizações, como, por exemplo, ao de um governo confrontado por partidos de oposição. O raciocínio, como se vê, é uma perversão, mas o fato de ele ser aceito tão amplamente indica que as tendências de autocratização da democracia ainda estão na ofensiva em relação às tendências de democratização da democracia.

Toda política que admite a guerra como um de seus meios acaba sendo uma política adversarial, baseada na luta constante para destruir o inimigo ou para manter o “equilíbrio de forças” (e deve-se notar que, aqui, a política já começa a se constituir sob o signo da força e não do poder – uma distinção tão cara à Johanna Arendt). Para a realpolitik, a única realidade política – inexorável – é a da interação de forças e, assim, o único critério político deve ser o da correlação de forças. Devo, sempre, fazer tudo o que for possível para alterar a correlação de forças a favor do meu projeto (ou a meu favor, quando se trata de um projeto pessoal, de uma agenda própria – como, aliás, sempre acontece). A política passa a ser uma luta constante para atingir tal objetivo, quando não deveria ser; ou seja, como escreveu Michelangelo Bovero (1988) em Ética e política: entre maquiavelismo e kantismo, a política não deveria ser luta e sim impedir a luta: não combater por si próprio, mas resolver e superar o conflito antagônico e impedir que volte a surgir (5).

Não são apenas as teorias políticas que estão, em sua maioria, contaminadas pela visão perversa do clausewitzianismo invertido (a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). A chamada sabedoria política tradicional também se baseia, totalmente, nas regras da luta política como “arte da guerra” ou na prática da ‘política como uma continuação da guerra por outros meios’, pois parece claro que, na maioria dos casos, essa sabedoria não se refere à guerra propriamente dita, aquela em que ocorre a violência física: aqui estamos tratando do ânimo adversarial, que tanto está por trás da guerra quanto da política adversarial ou competitiva.


De Hobbes a Clausewitz

Thomas Hobbes (1651) – que era autocrático, mas não desprovido de inteligência – já havia percebido que “a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal…” (6).

Conquanto acumule uma grande dose de sabedoria, a tradição política é autocrática, não democrática. Essa sabedoria dos grandes chefes e articuladores políticos, tão admirada pelos políticos tradicionais e pelas almas impressionáveis, tem pouco a ver com a democracia.

Sabedoria não significa democracia nem constitui um requisito para a boa prática democrática. A democracia não é uma tradição: é um acaso; é um erro no script da Matrix, uma falha no software dos sistemas autocráticos.

O conjunto dos ensinamentos oriundos da sabedoria política tradicional induz a um comportamento que gera inimizade e que, consequentemente, exige a prática da política como “arte da guerra”. Tudo está baseado, no fundo, em vencer o adversário, desarmar seu projeto político, ou seja: desorganizar suas forças e, sobretudo, impedir que se reúnam os meios necessários à sua existência como ator político.

Do ponto de vista da democracia – não há como negar – isso tudo é uma perversão. Se existe uma ética da política e essa ética é – ou só pode ser – a democratização, então o recurso da guerra (no sentido da prática da política como “arte da guerra”) deve ser visto como violador dessa ética e, assim, como o comportamento a ser evitado.

Em política, a guerra (quer dizer, a política pervertida como “arte da guerra”) não acontece em função da existência objetiva do inimigo, mas em função de nossas opções de encarar o outro como inimigo e de tentar destruí-lo (mas, na verdade, mantê-lo como impotente para nos destruir). Tais opções só são feitas se estivermos montando ou mantendo um sistema autocrático de poder, que exige o inimigo para a sua ereção ou para o seu funcionamento como tal (quer dizer, como um sistema não-democrático de organização e resolução de conflitos).

Clausewitz (1832) tinha razão, segundo certo ponto de vista, quando dizia que a guerra é uma continuação da política por outros meios: se ficar claro que essa continuação não é mais política e que a política capaz de ter tal continuação é uma política praticada como “arte da guerra”. A chamada “fórmula inversa” (a ‘política como continuação da guerra por outros meios’) é que é perversa, pois a guerra não pode levar à política a menos que queiramos estabelecer a impossibilidade da democracia. Políticas que conduzem à guerra são autocráticas. Coletividades que praticam a democracia não guerreiam entre si (na exata medida em que a praticam).

Há um fundamento hobbesiano na visão da política como continuação da guerra por outros meios. No famoso capítulo XIII do Leviatã, Hobbes (1651) decreta que “os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de intimidar a todos”. É claro que ele não está falando apenas de política, mas também revelando os pressupostos antropológico-sociais que condicionam sua maneira de ver a política. Segundo ele, “na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” – ou seja, essas manifestações de egoísmo não seriam culturais, não emanariam da forma como a sociedade se organiza, mas intrínsecas. Essa inclinação “genética” para o mal explicaria por que, “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo tempo restante é de paz” (7).

Mas, segundo Hobbes, “tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Em uma tal condição [de falta de um poder que domestique ou apazigue os homens]… não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta” (8).

O mesmo fundamento hobbesiano para a visão da política como continuação da guerra por outros meios – ao assumir que não pode haver sociedade (civil) sem Estado – conspira contra os pressupostos da democracia.

Enfim, a luta política como “arte da guerra”, cria a guerra e obstrui a democracia. Lembrando novamente do que disse certa vez Maturana, a guerra não acontece: nós a fazemos (9). E como a fazemos? Ora, praticando a “arte” de operar as relações sociais com base no critério amigo x inimigo. Toda vez que fazemos isso estamos, caso se possa falar assim, armando ou fazendo guerra. Não necessariamente a guerra tradicional, “quente” e declarada, entre países ou grupos dentro de um país, a guerra com derramamento de sangue, mas também aquelas formas de guerra “fria” e não instalada: a “guerra sem derramamento de sangue” (como Mao definia a política), a “guerra sem mortes” (como George Orwell definia o esporte competitivo), a paz dos impérios (lato sensu, quer dizer, a paz estabelecida pelo domínio) e a paz como preparação para a guerra, o “estado de guerra” (interno) instalado em função da guerra (externa) ou de sua ameaça (ou, ainda, da avaliação, subjetiva, da sua possibilidade); enfim, a prática da política como “arte da guerra” que compreende: os modos de regulação de conflitos em que a produção permanente de vencedores e vencidos gera inimizade política, os padrões de organização compatíveis com esses modos de regulação de conflitos e o clima adversarial que se instala consequentemente nos coletivos humanos que os praticam.

Para captar os conceitos (na verdade os preconceitos) fundantes é ocioso passear pelos demais realistas. Aí acima estão os principais fundamentos do realismo político e por que eles são incompatíveis com os fundamentos da democracia (um modo pazeante – não-guerreante – de regulação de conflitos). Mas é preciso dizer algo a mais para chegar à conclusões aplicáveis aos tempos que correm.

O que aprendemos sobre o realismo político

São três os principais aprendizados decorrentes da análise democrática do realismo político:

1 – O realismo político é uma ideologia.

2 – O realismo político é um culto ao Estado.

3 – O contrário do realismo político é a democracia.


Examinemos cada um desses aprendizados.

O credo realista. O realismo é uma ideologia que se escuda em uma suposta ciência (às vezes chamada de geopolítica) para não se reconhecer como tal (como uma ideologia). Da constatação de que o mundo está assim, ele passa de contrabando a ideia que o mundo é assim. Como disse John Mearsheimer, respondendo a um jornalista do New Yorker que lhe perguntava se não devemos pensar em tentar criar um mundo onde nem os EUA nem a Rússia se comportem de maneira intervencionista: “Não é assim que o mundo funciona” (10).

As crenças em que se baseia a ideologia realista são, basicamente, as seguintes: a) o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo; b) as pessoas sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação de seus próprios interesses ou preferências (ao fim e ao cabo egotistas); c) sem líderes destacados não é possível mobilizar e organizar a ação coletiva; e d) nada pode funcionar sem hierarquia. Infelizmente extravasa o escopo deste capítulo mostrar que essas crenças estão presentes no subsolo das concepções realistas da política. Mas talvez nem seja tão necessário fazer isso (para os propósitos do presente escrito): estes são fundamentos hobbesianos ou decorrentes do hobbesianismo, como o darwinismo social.

O culto ao Estado. O protótipo de qualquer hierarquia (stricto sensu, como poder sacerdotal) é o Estado (e sua forma histórica inaugural, que é o Estado-Templo mesopotâmico).

O realismo é um culto ao Estado. Poder é poder de Estado (degenerado como força). Os Estados são os únicos atores que contam. Para quem adota o realismo político (como uma espécie de religião laica, pois é isso que ele é) não faz nenhum sentido continuar defendendo a democracia. A democracia não se baseia nos interesses dos Estados e sim nos desejos das pessoas. Desejos? Pessoas? Tudo isso é irrelevante para a realpolitik, para a política do poder (como exercício ou ameaça do exercício da força – o que é, a rigor, uma antipolítica).

Não existe a sociedade como forma de agenciamento autônoma. Como já foi dito anteriormente, a sociedade é um dominium do Estado (na acepção feudal mesmo do termo).

Continua...

domingo, 23 de fevereiro de 2020

11 livros selecionados pelo New York Times - John Williams

O do Patrick Boucheron sobre Maquiavel, vou procurar ler na edição original em francês. Os outros ficam a critério dos meus seguidores neste blog.
A Amazon.fr tem pelo menos OITO páginas de referências a livros de, ou co-organizados por esse grande professor do Collège de France, amigo de vários outros grandes historiadores: 
https://www.amazon.fr/s?k=Patrick+Boucheron&i=stripbooks&__mk_fr_FR=ÅMÅŽÕÑ&qid=1582497784&ref=sr_pg_1
Paulo Roberto de Almeida

11 New Books We Recommend This Week

Editors’ Choice
Machiavelli certainly knew about seduction of a sort, the kind that can be used to seize and maintain power. An energetic new book by Patrick Boucheron offers a knowing guide to the Renaissance statesman and writer’s life and work. Clement Knox’s “Seduction” is a wide-ranging look at how the art has influenced politics, literature and social movements. “It turns out that we were just as conflicted about seduction centuries ago as we are now,” our reviewer Alex Kuczynski writes. “Depending on whom you ask and when, the seducer is either a manipulative villain exploiting innocents or a heroic figure of sexual liberation.”
Lots of fiction to choose from on this week’s list, including Isabel Allende’s new novel, which revisits the aftermath of the Spanish Civil War, and a novella by Lily Tuck that reimagines “Wuthering Heights.” Other new works of fiction feature a medieval Frenchwoman, an undocumented Sri Lankan immigrant in Australia, a woman whose life changes for the better (or so she thinks), capitalism’s exploitative structures and a dystopia set in the distant past.
There are two visual treats as well: “Return to Romance!” collects comics about love from the early 1960s by an unsung master, and “The Cursed Hermit” is a graphic novel about strange doings at a secluded school.
John Williams
Daily Books Editor and Staff Writer

AMNESTY, by Aravind Adiga. (Scribner, $26.) In Adiga’s latest novel, an undocumented Sri Lankan immigrant in Australia believes he knows who committed a murder, but isn’t sure what to do with the information. “Adiga is a startlingly fine observer, and a complicator, in the manner of V.S. Naipaul,” our critic Dwight Garner writes. “No one in his novels is simple to understand. Adiga may not agree with everything that gets said or thought, but there is no gauze on his mental windshield. Nice people are often skewered, as if on kabobs. Reading him you get a sense of having your finger on the planet’s pulse.” You come to this novel, Garner adds, “for its author’s authority, wit and feeling on the subject of immigrants’ lives.”

MACHIAVELLI: The Art of Teaching People What to Fear, by Patrick Boucheron. Translated by Willard Wood. (Other Press, $14.99.) Boucheron’s energetic little book, which started out as a series of talks for French public radio in 2016, offers a knowing guide to Machiavelli’s life and work. He presents his subject as “an inveterate dramatist and irrepressible trickster,” according to our critic Jennifer Szalai: “It’s not so much the content of ‘The Prince’ as its approach, with its ‘theatrical energy’ and ‘sure and rapid pace,’ that offers a way to think about politics not as static and immutable but as stubbornly contingent. Cultivating republican institutions and the rule of law requires certain techniques; sheer political survival requires others.”

SEDUCTION: A History From the Enlightenment to the Present, by Clement Knox. (Pegasus, $28.95.) Like an R-rated version of “A Christmas Carol,” Knox’s history whisks readers away to meet enticers past, from Casanova to the flappers of the 1920s, showing how the art of seduction has influenced politics and power, literature and social movements. It turns out we have long been conflicted about this art: Is it villainy or sexual liberation? Knox also discusses the book on a recent episode of the Book Review’s podcast.

THE CONVERT, by Stefan Hertmans. Translated by David McKay. (Pantheon, $27.95.) In both “The Convert” and his previous novel, the highly praised “War and Turpentine,” the Belgian novelist Stefan Hertmans habitually treats the reader to his process. Weaving research and personal travel with his fiction writer’s historical imagination, in “The Convert” he reconstructs the life of a medieval Frenchwoman, Sarah Hamoutal Todros (née Vigdis Adelais Gudbrandr), who defied her aristocratic Christian family to marry a Jewish yeshiva student from another town. Our reviewer Valerie Martin writes that this novel is “an imaginative flight, full of darkness and light, lively characters, life-altering conflicts, violence and kindness, birth, death and, oddly, a lot of snakes.”

INDELICACY, by Amina Cain. (Farrar, Straus & Giroux, $25.) An aspiring writer marries a man she meets while mopping the floor at the museum where she works. He seems like the ticket to the life she wants — and yet. “You’re a little bit jealous of this woman until you realize how miserable she is,” writes Elisabeth Egan, who chose Cain’s novel for Group Text, the Book Review’s monthly column for readers and book clubs. “She has exactly what she thought she wanted, but the next phase of her life unfolds hypnotically as ‘Indelicacy’ morphs from a modern ‘Pygmalion’ into a fable infused with an old-fashioned moral: Be careful what you wish for.” Cain’s small but mighty novel reads like a ghost story and packs the punch of a feminist classic.

RETURN TO ROMANCE! The Strange Love Stories of Ogden Whitney, edited by Dan Nadel and Frank Santoro. (New York Review Comics, $19.95.) The cartoonist Liana Finck introduces this collection of delirious, daftly satisfying love comics from the early 1960s by an unsung master. “These stories are ridiculous,” she writes. They’re also unexpected and complicated. “At first glance, the collection’s title is a misnomer,” our reviewer Ed Park writes. “There’s hardly anything strange about attractive (white, cis) men and women overcoming obstacles — psychological and otherwise — and finding their way to each other at last. Yet even the most hackneyed plots reveal a perverse fascination with fate, and perhaps a witty critique of the entire business of love.”

THE CURSED HERMIT, by Kris Bertin and Alexander Forbes. (Conundrum, $20.) In the second of the graphic novel series Hobtown Mystery Stories, a pair of teenage sleuths are thrown into a loopy adventure at Knotty Pines, a vast and secluded boarding school, thick with bad mojo and elaborate wallpaper, where Lovecraftian evil lurks. Picture Nancy Drew but darker, and watch the creepiness go off the charts.

A LONG PETAL OF THE SEA, by Isabel Allende. Translated by Nick Caistor and Amanda Hopkinson. (Ballantine, $28.) Spanning generations and continents, Allende’s 17th novel follows a couple after they escape the ugly aftermath of the Spanish Civil War on the poet Pablo Neruda’s “ship of hope,” a cargo ship that carried over 2,000 refugees who sought political asylum. Our reviewer Paula McLain writes that Allende “has deftly woven fact and fiction, history and memory, to create one of the most richly imagined portrayals of the Spanish Civil War to date, and one of the strongest and most affecting works in her long career.”

HEATHCLIFF REDUX: A Novella and Stories, by Lily Tuck. (Atlantic Monthly, $23.) In the novella that anchors this collection, Tuck uses the same flat, fragmentary style of her most recent novel, “Sisters,” to reimagine Emily Brontë’s 1847 novel “Wuthering Heights” as a tale of self-delusion and internal conflict in 1960s Virginia. The story is written in a series of short, clipped sections, sometimes a couple of paragraphs, others no more than a line or two per page. The “restrained but remarkably arresting” result, our reviewer Lucy Scholes writes, is “a master class in digression as a narrative device.”

THE RECIPE FOR REVOLUTION, by Carolyn Chute. (Grove, $30.) This sprawling novel about capitalist exploitation and the delusions of growth features a wide-ranging cast, including militia groups, media figures, cultists, callous entrepreneurs, economic outcasts and Republican wives. “The events of the novel take place circa-Y2K, but Chute’s concerns seem very 2020: how reality is named, created, fragmented, trolled, distorted,” our reviewer Nathan Hill writes.

THE ILLNESS LESSON, by Clare Beams. (Doubleday, $26.95.) Much of the feminist dystopian fiction published over the last few years takes place in the future, in worlds uncomfortably similar to our own. “The Illness Lesson,” however, proves that books can fit squarely within that genre even when set in the past — in this case, small-town Massachusetts in 1871. “Think ‘City Upon a Hill’ ideals and ‘The Scarlet Letter’-style misogyny and you’ll have a pretty good idea of this sly debut novel,” our reviewer Siobhan Jones writes, “which scarily hints that, since the 19th century, perhaps not a whole lot has changed.”

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Maquiavel era maquiavélico? - Livro de Patrick Boucheron (traduzido do francês)

A New Book Asks: Just How Machiavellian Was Machiavelli?

The term “Orwellian” has always struck me as curiously Orwellian — a mild example of doublespeak that ties an author’s good name to the dystopia he so memorably depicted. (See also “Dickensian” and “Kafkaesque.”) Instead of referring to George Orwell’s crisp prose or moral clarity, “Orwellian” is like the doctor’s name that ends up anointing the terrible disease he discovered, forever yoked to the affliction he abhorred.
“Machiavellian” is another shorthand that inverts its namesake, even if the Renaissance statesman and writer Niccolò Machiavelli still gets cast in the popular imagination as a cynical proponent of ruthless power politics. In “Machiavelli: The Art of Teaching People What to Fear,” the French historian Patrick Boucheron joins an estimable list of scholars who have been trying to debunk the crude stereotype of Machiavelli as a fascist enabler and tyrant whisperer.
This energetic little book started out as a series of talks for French public radio in 2016, and it offers a knowing guide to Machiavelli’s life and work. The tone, in Willard Wood’s translation, is playfully conspiratorial. Boucheron invites us to think through how Machiavelli became synonymous with unscrupulous despotism when the real man suffered for his republican allegiances.
Boucheron’s breezy use of the first-person plural keeps his argument humming amiably along, though some English-language readers might feel buffeted by the occasional gusts of cultural presumption. “We are familiar with Guy Debord’s prophetic 1967 work ‘The Society of the Spectacle,’” Boucheron declares in passing. (We are?) “We have therefore been warned about the pernicious effects of commodity fetishism and the frenzied acclamation it generates.”
What Boucheron is talking about is the Florence of Machiavelli’s birth in 1469 — a republic in name only, “swollen with pride” and “gradually settling into oligarchy,” where officials were elected to office every two months, thereby ensuring the de facto rule of wealthy families like the Medicis. In 1498, after a coup and a strange, four-year reign by the Dominican friar Savonarola, the 29-year-old Machiavelli ascended to a government post that put him in charge of Florence’s foreign affairs.
Over the next 14 years, Machiavelli gained political experience, observing up close how power worked. As the envoy from a tiny state who met with both adversaries and allies, he was sometimes subject to contempt and humiliation, and accordingly learned certain lessons. Boucheron makes a clever case that travel was “an exercise in disorientation,” allowing Machiavelli to see Florence and its position in the world anew: “Is this not what the painters of the Renaissance called perspective?”
When the Medicis returned in 1512, due not to popular demand but to foreign support, they had Machiavelli arrested and imprisoned, stringing him up by a pulley to force him to scream out a confession of wrongdoing, which he didn’t do. A year later, Machiavelli was living in exile on his farm, writing “Of Principalities,” the book that would become better known as “The Prince.”
Never officially published in his lifetime, “The Prince” would become his most popular work, and the one most likely to be misread. It’s an irony that wouldn’t have been lost on Machiavelli, whom Boucheron deems an inveterate dramatist and irrepressible trickster. The standard reading of “The Prince” views it as Machiavelli’s attempt to ingratiate himself to the returning Medicis by offering them what amounted to a book-length job application: a treatise filled with underhanded tactics for seizing and maintaining power.
“It is much safer to be feared than loved”; “people should either be caressed or crushed”; “the new ruler must determine all the injuries that he will need to inflict,” and “must inflict them once and for all.” This is the Machiavellian Machiavelli: amoral, conniving and cruel, responding to whatever the situation demands. A 16th-century Catholic cardinal was so horrified by “The Prince” that he said it was written by “the finger of Satan.”
But it has always been hard to square such a literal reading with the facts of Machiavelli’s life, and with the republican theories he developed in books like “Discourses.” Some critics have insisted that Machiavelli’s advice was so brutal and outlandish that the depraved ruler who actually dared to put his precepts into practice would make his people hate him and inevitably bring about his own ruin; this was “The Prince” as Trojan horse or poison pill, crafted by a former political prisoner intent on bringing down the Medici clan. Still others decided Machiavelli was a satirist, while Rousseau read “The Prince” as a warning: Machiavelli, by dissecting the mechanics of power, was telling people what they ought to fear.
“Machiavelli is the master of disillusioning,” Boucheron writes. “That’s why, all through history, he’s been a trusted ally in evil times.” It’s not so much the content of “The Prince” as its approach, with its “theatrical energy” and “sure and rapid pace,” that offers a way to think about politics not as static and immutable but as stubbornly contingent. Cultivating republican institutions and the rule of law requires certain techniques; sheer political survival requires others. In a capricious world, Boucheron writes, intentions only count for so much: “He lets us see how the social energy of political configurations always spills out of the neat constructs in which it’s meant to stay put.”

Boucheron thinks the United States is currently grappling with what the historian J.G.A. Pocock called the “Machiavellian moment,” when instability puts the future of a republic at stake. A resurgence of Machiavelli suggests something has gone awfully awry. “If we’re reading him today,” Boucheron writes, “it means we should be worried.”
But just as his subject had a “taste for paradox,” Boucheron refuses to leave it at that. If we’re reading Machiavelli today, we might also learn something from his “lucidity, the weapon of the despairing.” In other words, there’s still some hope.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Maquiavel: o primeiro realista da política - Arnaldo Godoy

Maquiavel, entre a astúcia, a hipocrisia e a crueldade

Nicolau Maquiavel (1469-1527) afastou da teorização política a invenção da realidade. Não expôs nenhuma utopia. Mas também não legou nenhuma premonição de um mundo distópico. O futuro não é sombrio, e nem nirvânico, nem infernal, e também não é um paraíso. É apenas o resultado de nossa ação, pautado por nossos cálculos, e também influenciado por eventos externos, que fogem de nosso controle. A principal preocupação de Maquiavel consistia no esforço em influenciar a condução dos negócios públicos. Era um prático. Não teorizava. Intervinha na realidade. 
Nasceu em Florença. Seu pai chamava-se Bernardo; sua mãe, Bartolomea. O pai era advogado. Pouco conhecido, teria exercido a profissão sem nenhum brilho. Acrescentava aos poucos ganhos algum recurso que ganhava na administração de seus escassos bens. Parece também que Bernardo foi um rígido pai. Estudou latim, gramática e cálculo. Em 1497, com 28 anos, Maquiavel esteve em Roma. No fim daquele ano, 1498, foi nomeado secretário na Segunda Chancelaria de sua cidade de nascimento.
Maquiavel defendeu a república florentina e a ordem estabelecida. Inspecionava pessoalmente as fortalezas da cidade. Em 1500 partiu para a França em missão diplomática. Casou-se em 1501 com Marietta di Luigi Corsini. Teve seis filhos. Em 1504 esteve novamente na França. Em 1506 acompanhou os aliados do Papa Júlio II em Perúgia e em Bolonha. Em 1510 teria mediado uma disputa entre o Papado e o Rei da França.
Com a queda da república florentina em 1512 Maquiavel viveu seu inferno. Em 1513 foi preso e torturado. Tinha 44 anos. Retornou aos negócios públicos de Florença somente em 1519. Em 1521 teve de abandonar a vida pública. Dedicou-se a literatura. Morreu em 21 de junho de 1527, aos 58 anos. Estava empobrecido e não exercia nenhuma influência política.
Maquiavel é personagem emblemática do Renascimento, época que se opunha ao misticismo, ao coletivismo, ao antinaturalismo, ao teocentrismo e ao geocentrismo. O Renascimento foi marcado por intensa defesa do racionalismo, do individualismo, do antropocentrismo, do heliocentrismo. O humanismo foi também um dos traços definidores daquele tempo, centrado na retomada dos valores greco-romanos, circunstância muito característica na obra de Maquiavel.
O Príncipe, segundo Jacob  Burckhardt, um dos maiores historiadores da Renascença, “representa a objetividade renascentista e a ideia de Estado como obra de arte”. O Príncipe não é um trabalho de ideologia e de proselitismo, é um livro de conselhos práticos. E embora nos pareça que Maquiavel tenha rompido com toda a tradição de pensamento político que o precedia, há também fortes motivos para supor que tenha retomado uma linhagem romana. Maquiavel seria o restaurador de uma tradição esquecida.
Realista, Maquiavel procurou explicar com exemplos suas conjeturas. Continuou uma tradição de historiografia que remontava a Cícero, e que via a história como mestra da vida. A história foi por Maquiavel utilizada como recurso retórico para compreensão do presente; trata-se de uma sabedoria de onisciência quase divina, secularizada em favor de uma causa.
Maquiavel seguia os preceitos literários dos autores clássicos: inculcava lições morais por meio de um estilo recorrentemente exemplificativo. No Príncipe há várias personagens da antiguidade greco-romana e oriental, que buscou em Tito Lívio, Plutarco e nas Escrituras. Há também um desfile de contemporâneos de Maquiavel, ou de personagens muito próximos de seu tempo. Seu método é histórico e comparativo. É inegável a influência de Cícero nos humanistas florentinos; e Maquiavel é da afirmação a prova mais eloquente. Nesse ponto Maquiavel é renascentista até a medula: retomou com reverência a grandeza do passado romano.
A recepção de Maquiavel decorre também da capacidade de apreensão e das necessidades dos leitores que encontrou. E porque o destino dos livros depende da capacidade de seus leitores; não se pode negar que a acusação de que Maquiavel justificaria todas as tiranias depende menos dele mesmo do que dos tiranos que o aplicaram, sem jamais terem estudado sua obra.
Na tradição ocidental Maquiavel é a própria encarnação da astúcia, da hipocrisia, da crueldade; é lugar comum lembrar que o substantivo próprio se transformou em adjetivo cheio de antropologia negativa. O substantivo próprio – Maquiavel - desdobrou-se num substantivo comum, maquiavelismo, e num adjetivo, maquiavélico.
Maquiavel é o ponto de inflexão de uma época, o Renascimento; de uma nação, a Itália; de uma cidade, Florença; de uma missão: o bom funcionário florentino. Há Maquiavel para todos os gostos, projetos e regimes políticos; há quem impute a Maquiavel a culpa de tentar conduzir a humanidade para a perdição; e há quem acuse Maquiavel de tentar conduzir a humanidade para a salvação.
A razão de Estado não é certamente uma invenção sua. A ação política, porém, em seu sentido utilitário, é uma originalidade de seu pensamento. Sua doutrina é relativamente simples: as circunstâncias da vida tornam inaceitável para a vida prática o moralismo político das teorias clássicas. Maquiavel não especulava. Enfrentava as divisões internas que enfraqueciam a Itália, tornando-a presa fácil de potências estrangeiras. A Itália da época de Maquiavel era dividida em mais de uma dúzia de reinados independentes, ducados, feudos, cidades-estado e repúblicas.
Maquiavel deixou de fabulizar a realidade política, como o fizeram Platão e Morus. Preocupou-se com a vida real, a única que nos permite algum espaço de ação prática. Menos do que as prosaicas e úteis instruções deixadas no Príncipe, talvez o maior legado de Maquiavel seja o próprio exemplo, no sentido de que entendamos que a vida nos exige muita ação e muita energia.
“Matai os inimigos, e se necessário, os amigos também”, “Fazei o mal, mas fingi fazer o bem”, “Sede bruto”, “Sede miserável”, “Se apunhalar o inimigo, que o faça pelas costas”, são frases aladas talvez equivocadamente atribuídas a Maquiavel, cujo pensamento foi correta (ou falsamente) resumido na expressão de que os fins justificariam os meios, o que traduziria um projeto político e não necessariamente uma citação literal. Aplica-se a Maquiavel, e à glória que envolve seu nome, passagem de um de nossos maiores críticos literários (Carpeaux): “a glória, já se disse, é um conjunto de mal entendidos que se criam em torno de um nome”. 

Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2020, 8h00

===========

Permito-me remeter aqui a um dos meus livros: 

O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos (Hartford, 8 Setembro 2013, 226 p.) Publicado em formato Kindle (disponível: http://www.amazon.com/dp/B00F2AC146). (Academia.edu, link: https://www.academia.edu/5547603/20_O_Principe_revisitado_Maquiavel_para_os_contemporaneos_2013_Kindle_edition). 

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Maquiavel e companhia _ Carlos Henrique Cardim (IHG-DF, 7/19, 19h30)

Aproveito a informação renovada sobre a palestra do professor Carlos Henrique Cardim esta noite, sobre Maquiavel:

para renovar uma chamada antiga de livro meu sobre o ilustre florentino:

O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos (2013; Kindle edition)
O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos, 2013
Paulo Roberto  de Almeida









 Kindle edition: http://www.amazon.com/dp/B00F2AC146 

Sumário:
Prefácio 
Dedicatória 
1. Dos regimes políticos: os democráticos e os outros 
2. Das velhas oligarquias e do estado de direito 
3. Da variedade de estados capitalistas 
4. Do governo pelos homens e do governo pelas leis 
5. Da transição política nos regimes democráticos 
6. Da conquista do poder: a liderança política 
7. Da eficácia do comando e da manutenção do poder 
8. Da ilegitimidade política: da demagogia e da força 
9. Das repúblicas democráticas e sua base econômica 
10. Das forças armadas e das alianças militares 
11. Do estado laico e da força das religiões 
12. Da profissionalização das forças militares 
13. Dos gastos com defesa e da soberania política 
14. Da preparação estratégica do líder político 
15. Do exercício da autoridade 
16. Da administração econômica da prosperidade 
17. Do uso da força em política 
18. Da mentira e da sinceridade em política 
19. Da dissimulação como forma de arte 
20. Da dissuasão e da defesa do estado 
21. Da construção da imagem: verdade e propaganda 
22. Dos ministros e secretários de estado 
23. Dos aduladores e dos verdadeiros conselheiros 
24. Da arte pouco nobre de arruinar um estado 
25. Do acaso e da necessidade em política 
26. Da defesa do estado contra os novos bárbaros 
Carta a Niccolò Machiavelli 
Apêndice: O que nos separa de Maquiavel? 
Recomendações de leituras 
Outros livros de Paulo Roberto de Almeida 

Se, por alguma fortuna histórica, Maquiavel retornasse, hoje, ao nosso convívio, com as suas virtudes de pensador prático, quase meio milênio depois de redigida sua obra mais famosa, como reescreveria ele o seu manual hiperrealista de governança política? 
Seriam os Estados modernos muito diversos dos principados do final da Idade Média? Provavelmente não; certo já não se manda mais apunhalar os inimigos políticos na missa dominical, mas traições e golpes escusos ainda fazem parte do cardápio dos candidatos a condottieri. 
Este Maquiavel revisitado, voltado para a política contemporânea, dialoga com o genial pensador florentino, segue seus passos naquelas recomendações que continuam aparentemente válidas para a política atual, mas não hesita em oferecer novas respostas para velhos problemas de administração dos homens. 
Se na época do diplomata florentino, a tarefa básica do príncipe era a construção de um Estado moderno, a missão principal dos estadistas contemporâneos consiste em defender os direitos dos cidadãos, justamente contra a intrusão e a prepotência dos Estados.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Maquiavel: nascimento de um genio da politica

Mais um registro atrasado, mas esse eu não poderia deixar de fazer: o nascimento, em 3 de maio de 1469, ou seja, 550 anos atrás, de um dos mais argutos pensadores da ciência política.
Permito-me, a esse propósito, registrar que reescrevi sua obra magna, com uma visão contemporânea dos mesmos problemas:
O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado), versão impressa: edições do Senado Federal volume 147: Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010, 195 p.; ISBN: 978-85-7018-343-9; disponível: http://www.senado.gov.br/publicacoes/conselho/asp/publicacao.asp?COD_PUBLICACAO=1209). 

Paulo Roberto de Almeida

Nasce Nicolau Maquiavel

No dia 3 de maio de 1469, nasce Nicolau Maquiavel, pensador político italiano autor de 'O Príncipe'  (leia mais)



Nasce Nicolau Maquiavel

Nasce Nicolau Maquiavel
Maquiavel começou sua carreira política no governo da república de Florença (Foto: Wikimedia)
O termo ‘maquiavélico’ é ligado a pessoas inescrupulosas que fazem de tudo para alcançar seus objetivos. A palavra é referência ao nome de Nicolau Maquiavel, um político e estudioso italiano que nasceu no dia 3 de maio de 1469.
A mais famosa obra de Maquiavel foi “O Príncipe” e foi por ela que nasceu o adjetivo. Em seu texto, Maquiavel inovou no estudo político ao tratar a ética como um item separado, abandonando a antiga concepção de política.
Nascido em Florença em uma família decadente e antiga da Itália, Maquiavel recebeu educação clássica. Seu primeiro trabalho com política foi no governo da República de Florença. Fez visitas diplomáticas à França e à Alemanha.
Foi exilado de seu país em 1513, quando a família Médici retornou ao poder. Nos oito anos que se seguiram, praticamente concluiu a sua mais famosa obra, publicada apenas 19 anos depois.
Voltou a Florença em 1520, quando conseguiu resolver suas diferenças com Lourenço de Médici, tornando-se historiador oficial da cidade-estado. Desenvolveu outras obras literárias e teatrais que não se relacionavam com seu pensamento político. Maquiavel morreu no dia 21 de junho de 1527.