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sábado, 27 de julho de 2019

Preservar o Brasil, mesmo com um presidente despreparado e nefasto - Marco Aurelio Nogueira

Riscos desnecessários
ACIMA DE TUDO E DE TODOS, DEVE-SE EVITAR QUE O PAÍS DEGRINGOLE E FIQUE SEM OPÇÕES
Marco Aurélio Nogueira
O Estado de S.Paulo, 27 de julho de 2019

Falando sem parti pris, o problema político dos brasileiros não é termos um governo de direita ou extrema direita, nem ser Jair Bolsonaro um fundamentalista retrógrado. O problema é que o presidente não conhece o País, não respeita princípios democráticos básicos e não deseja governar. Estamos correndo riscos desnecessários.

Desde sua posse o País depende muito mais do empenho da Câmara dos Deputados que do Poder Executivo. Falam mal dos parlamentares, mas sem eles teríamos tido um semestre trágico, estaríamos mergulhados numa sequência de bravatas, provocações e ofensas promovidas por Bolsonaro e seu entorno, que parecem dispostos a tratar todos como inimigos.

Combater a esquerda e o PT é legítimo e aceitável, mas é uma patifaria quando feito na base de mentiras e agressões. A direita e a esquerda fazem parte da vida, o revezamento delas no governo dos países é normal, saudável e produtivo. Liberais, conservadores e socialistas são famílias políticas essenciais, filhos legítimos da modernidade e de suas transformações no correr do tempo. Querer eliminar um deles com argumentos de autoridade é ir contra a lógica das coisas e os parâmetros democráticos de civilidade.

Debochar de brasileiros do Nordeste, agredir ativistas, professores, artistas, intelectuais e jornalistas, ameaçar a cultura e a educação com a imposição de “filtros” que não passam de censura, tratar a ciência com desprezo, beneficiar o próprio filho – tudo isso, verbalizado com escárnio, faz a Presidência da República evaporar como instância de organização do País e se transforme numa trincheira de combate.

Agindo assim, o presidente prejudica o País e a população, além de criar dificuldades para si próprio. Sua guerra ideológica contra partidos, “velhos políticos” e sociedade civil exaspera os parlamentares, aumentando os custos da transação política na aprovação de medidas e propostas governamentais. Enfraquece as instituições e os órgãos públicos, varrendo-os para a margem. Suas ações não são “folclóricas”, inocentes, mas ferem princípios básicos e fazem o País andar para trás, na educação, na cultura, na política internacional, nos direitos, na saúde, no meio ambiente, na economia. Impactam negativamente a sociedade, fomentando divisões que não ajudam o País a enveredar por uma trilha de progresso, justiça e bem-estar.

Um presidente que se comporta como se fosse chefe de uma facção, não mede as palavras, confunde o público com o particular, move-se pela emoção imediata e por cálculos improvisados é uma tragédia anunciada. Poderá sobreviver ao mandato, e até prolongá-lo, mas de seu período governamental não sairá um País melhor, uma sociedade mais coesa ou um Estado administrativo mais eficiente.

Em vez de nos ajudar a superar a polarização fratricida que reinou nos últimos anos, ele a agrava, a esvazia de dignidade e a empurra para a violência explícita.

Jair Bolsonaro venceu as eleições de 2018 de forma inquestionável, cristalina. Mostrou senso de oportunidade ao endossar um figurino específico na hora mesma em que o eleitorado demonstrava estar cansado das ofertas políticas usuais. Suas proposições autoritárias, seu estilo informal, o uso abusivo que fez de valores religiosos e moralistas, sua habilidade em utilizar as redes sociais encontraram eco nos eleitores, que viram nele uma opção ou para derrotar o PT e virar a página, ou para depositar esperanças num líder de novo tipo.

Sua vitória, porém, também foi conseguida porque a esquerda petista se mediocrizou e a esquerda democrática não conseguiu abraçar o campo liberal-democrático e, junto com ele, virou farinha, que engrossou o pirão da extrema direita. Foi uma vitória do senso de oportunidade combinado com incompetência política. Sem isso o resultado teria sido diferente.

A vitória eleitoral, no entanto, não deu a Bolsonaro o direito de se comportar como o tirano platônico que se deixa dominar pelos desejos mais baixos e por seus demônios internos, postos em movimento pela paixão que aguça a imoderação. Numa República democrática o presidente deve ser um agente da moderação, um construtor de consensos, um promotor do diálogo coletivo. Tem suas preferências, seu credo e seu mapa de navegação, mas não está autorizado a agir por impulso, conforme uma rotina passional que só produz caos e confusão.

A conduta errática e acrimoniosa de Bolsonaro ainda não levou a sociedade à convulsão. Em parte porque só se passaram seis meses, em parte porque a população tem conseguido manter alguma coesão, em parte porque o Congresso tem governado o País, construindo consensos e tomando decisões estratégicas.

Faltam entrar em cena os partidos, os movimentos cívicos e os cidadãos ativos perfilados no campo democrático progressista. Até agora, eles parecem trabalhar nos bastidores, em silêncio, dando até mesmo a impressão de estarem a hibernar A oposição que orbita o PT não consegue produzir propostas e entendimentos, limita-se a mimetizar com sinal trocado a conduta presidencial, valendo-se de uma retórica igualmente passional, que divide e inflama a população. Em vez de se lançar com coragem no mar aberto da renovação procedimental e discursiva, aferra-se a mitos e atitudes defensivas, refratárias ao moderno que se renova em direções inesperadas, surpreendentes e desafiadoras.

Temos de girar a chave e abrir novas portas. Buscar maior interlocução, abandonar projetos parciais de poder e cálculos eleitorais de curto prazo. Pode ser que se tenha de ajudar o governo a governar, a cometer menos erros e a causar menores prejuízos. Não há por que ter preconceito contra isso. Acima de tudo e de todos deve estar a preocupação de evitar que o País degringole e fique sem opções. Resistir é preciso, mas sem medo de olhar para a frente e ousar, correndo riscos que valham a pena.

*PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADOR DONÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIONAIS DA UNESP

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Oliveiros da Silva Ferreira: um intelectual completo - Marco Aurelio Nogueira

 Oliveiros S. Ferreira (1929-2017), um intelectual completo
Marco Aurélio Nogueira
O Estado de S. Paulo, 21 Outubro 2017 | 19h40

Quando, por volta de 1974-75, comecei a me perguntar sobre o caminho a seguir na pós-graduação, eu vivia uma espécie de impasse. Não eram grandes as exigências universitárias em termos de titulação posterior ao bacharelado. Eu já havia dado aulas na PUC, no Instituto Fláquer de Santo André, sem qualquer titulo adicional. E estava seduzido pelo jornalismo. Escrevia regularmente para o semanário Opinião, fazia traduções e chegara mesmo a redigir um pequeno livro para a Editora Três sobre Yasser Arafat, líder da OLP, a Organização para a Libertação da Palestina. Não sabia bem que estrada seguir.
Mas eu intuía que precisava me tornar pós-graduado. Colegas da universidade e amigos reforçavam isso e me incentivavam. E a USP era o principal objetivo. Quando ingressei na UNESP, em 1976, isso se consolidou, ainda que eu tenha permanecido como Auxiliar de Ensino (um Bacharel) durante longos 8 anos.
Como muitos daquele período, eu me inquietava com o pensamento militar que havia impregnado o Estado brasileiro. Vivia me perguntando a respeito das bases teóricas, ideológicas e doutrinárias que haviam dado sustentação ao papel político desempenhado pelas Forças Armadas ao longo do tempo, e que a meu ver se mostravam claramente na retórica política dos militares que governavam o país.
Oliveiros Ferreira era professor de Ciência Política da USP e um grande especialista em assuntos militares e Forças Armadas. Fiz um pequeno projeto voltado para pesquisar a influência do positivismo no pensamento político do Exército, inscrevi-me no processo seletivo da FFLCH da USP e fui entrevistado por Oliveiros, que acabou concordando em me orientar.

A alegria por ter sido aceito combinou-se com a insegurança e o medo. Afinal, Oliveiros já era um dos grandes, dono de um pensamento marcante, conhecido por seu rigor e malvisto por parcela das esquerdas, que o consideravam conservador demais, amigo dos militares e, portanto, suspeito. Além do mais, estava vinculado ao Estadão, jornal em que faria carreira e no qual permaneceria até 1999, quando se aposentou.
Acontece que, ao mesmo tempo em que era visto com desconfiança pela esquerda, Oliveiros não era persona grata para o regime militar. Viam-no como “trotskista”, “comunista” e “luxemburguista”, o que jamais foi. Em sua trajetória biográfica consta certa militância e alguma simpatia intelectual pela Vanguarda Socialista — jornal não partidário fundado por Mário Pedrosa em 1945, reunindo dissidentes do Partido Comunista e intelectuais socialistas opositores do stalinismo — e, depois, pela Esquerda Democrática, que mais tarde convergiu para o Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Em suma, quando o conheci Oliveiros já era um peso-pesado como intelectual. Continuou assim até o fim.
Foi professor da USP desde 1953. Em anos mais recentes, passou a dar aulas também na PUC-SP e no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/PUC/Unicamp). Trabalhou em O Estado de S. Paulo por quase meio século, como editorialista, redator-chefe e diretor. Reunia o erudito ao analista político minucioso, os grandes quadros interpretativos aos fatos cotidianos muitas vezes apagados pela valorização unilateral das estruturas, compondo uma figura rara de intelectual público.
Em 1976, já como aluno da pós-graduação, frequentei seu curso “O conceito de hegemonia em Teoria Política”, que segui com grande interesse, sem perder uma aula sequer. Oliveiros era um professor cativante, que sabia ensinar e provocar, um “heterodoxo” que mexia com as convicções mais rígidas dos estudantes. Ainda hoje me valho de sua “teoria das posses” (das almas, dos corpos, do poder, do território, da propriedade), na qual Oliveiros baseava sua teoria política e sua concepção de Estado. Nela havia influências aparentemente díspares para mim (que me via como um “ortodoxo”), vindas de Durkheim, Weber, Ortega y Gasset, Rosa Luxemburgo, Trotsky e Gramsci. Foi impactante, e me ajudou tanto a organizar os cursos que passei a ministrar como a me aproximar de Oliveiros.
Não foi difícil me simpatizar com ele. Oliveiros era uma pessoa que seduzia. Pelo porte, pelo gestual, pela voz e pelas provocações. Dava aulas em pé, caminhando de uma ponta a outra da sala e usando intensamente o quadro negro. Não perdia uma piada, ria de si próprio e demolia as ideias com que não concordava, sem contudo entrar em atrito com os interlocutores. Fazia intervalos a cada 60 minutos, para água e café. O curso era espetacular.
Com o passar dos anos, minha pesquisa não avançava. Conversava com Oliveiros a esse respeito e em algum momento do caminho chegamos à conclusão de que meu tema de pesquisa era complexo demais para as circunstâncias políticas brasileiras. De certo modo, eu iria mexer num vespeiro, teria dificuldades para acessar algumas fontes básicas e mais dificuldades ainda para entrevistas pessoas. Concluímos que seria melhor alterar o tema, e acabei migrando para a investigação da trajetória política de Joaquim Nabuco, com o intuito de compreender a transição da Monarquia para a República e o papel que nela teve o liberalismo. Oliveiros aceitou com entusiasmo.
O problema é que o prazo para a defesa da dissertação de Mestrado, que era de 4 anos, estava chegando ao fim, e eu mal havia assentado os alicerces da pesquisa. Oliveiros sugeriu que eu passasse direto para o Doutorado, o que me daria mais 4 anos de prazo. Era preciso encaminhar uma solicitação ao Departamento e me submeter a um exame perante uma junta de professores. Fui aprovado e respirei. Em 1983 defendi a tese “As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco, a Monarquia e a República”, que foi aprovada por uma banca presidida por Oliveiros e composta por Raymundo Faoro, Oracy Nogueira, Francisco Weffort e José Augusto Guilhon de Albuquerque.
Devo muito a Oliveiros pelo sucesso que obtive em meu doutorado. Especialmente na fase de redação, ele foi um verdadeiro orientador. Recebia-me regularmente em sua casa no Ibirapuera e algumas poucas vezes no Estadão. Foi intransigente na questão do prazo: a cada 15 dias eu era obrigado a entregar um capítulo da Tese, que ele lia e comentava. Foi um contrato de trabalho, que funcionou e sem o qual eu não teria concluído o texto. Faltava-me uma dose adicional de foco, pois eu continuava dividido, agora entre a universidade e a militância política no PCB, sobre a qual discuti várias vezes com Oliveiros, que sempre a respeitou. Meses antes do prazo final para a entrega da Tese, fui preso e tive de responder a um processo. Oliveiros acompanhou tudo, dando apoio e ponderando.
Jamais impôs suas preferências ou opiniões, deixou-me livre, corrigindo o que havia de imperfeição no texto e me sugerindo importantes modificações. Dos contatos e conversas que mantivemos durante os anos de orientação, um alerta de Oliveiros calou forte: “Nenhum problema em você se valer do marxismo em sua pesquisa. Mas isso desde que você seja um bom marxista, não um mero repetidor”. Carrego isso comigo até hoje, como uma medalha.
Depois da Tese, fui para a Itália em um programa de pós-doc. Na volta, em 1976, o processo militar ainda estava aberto e tive de comparecer ao Tribunal, levando comigo algumas testemunhas. Oliveiros foi uma delas e foi emocionante, para mim, vê-lo, do alto de sua importância como professor e jornalista, argumentar para os cinco juízes militares que ele sempre me conhecera como marxista, não como comunista, lembrando que na Universidade o marxismo era admitido com tranquilidade.
Mais tarde, participei de seminários sobre as concepções de Oliveiros, escrevi sobre elas e pude compreendê-las melhor. Nunca cheguei a aceitar por inteiro as posições teóricas e políticas de Oliveiros. Isso, aliás, jamais foi cogitado. O “meu” Gramsci era diferente do Gramsci de Oliveiros, por exemplo, mas tanto eu quanto ele valorizávamos o modo gramsciano de pensar a política e o Estado. Os 40 Cavaleiros Húngaros, título que Oliveiros deu à sua tese de Livre-docência, é um texto que revela um leitor cuidadoso e rigoroso dos Cadernos do Cárcere, ainda que fora dos cânones predominantes entre os gramscianos.

Um pensamento vigoroso

O pensamento de Oliveiros ramificou-se pela teoria social, pelas relações internacionais, pela história e pela política externa do Brasil – ramos estes que se mantiveram sempre em permanente articulação, como que para salientar que não pode haver teoria política sem uma poderosa sociologia na base, que o “nacional” é sempre parte intrínseca do “global” e que os fatos políticos devem ser compreendidos “à luz do Espaço e do Tempo em que se dão”, à luz da “densidade e do volume dos grupos sociais em presença” e das relações de dominação e subordinação que tais grupos mantém entre si.
Em sua concepção, cruzaram-se influências de autores tão díspares quanto Durkheim e Gramsci, Weber e Trotsky, Ortega y Gasset, Unamuno e Marx. Era uma combinação de heterodoxia com ecletismo bem compreendido: dever-se-ia aceitar aquilo que favoreça a argumentação e impulsione a compreensão dos nexos que dão sentido à ação dos homens. O resultado desse esforço, em Oliveiros, foi um texto denso, repleto de referências e metáforas eloquentes, hábil em surpreender o leitor com esclarecimentos inusitados, provocativos.
Oliveiros Ferreira não foi autor de “achados” ou preso a modas e consensos fáceis. Sua vigorosa interpretação do Brasil apoiou-se na reiteração coerente de algumas cláusulas pétreas: o Estado, a necessidade da ordem, o poder como posse de almas, mentes e recursos materiais, a dimensão psicossocial dos fatos políticos, o valor da ação organizada, o projeto nacional. Foi acima de tudo um “estatista”, um intelectual preocupado em encontrar no Estado um articulador efetivo da sociedade, um defensor de seu território e de seu patrimônio histórico, cultural. Pensou a política a partir desse registro.
Sua teorização dedicou-se a compreender as relações entre subordinados e dirigentes, os motivos que levam o “grande número” a aceitar a prevalência do “pequeno número”. Para ele, a dominação é a essência mesma do processo social. Os aparelhos coativos revestem-se de importância decisiva para a compreensão da lógica do poder, que se afirma sobre um território e sobre pessoas. Por isso, a dominação só pode se manter pela organização e depende categoricamente de uma ação com vistas à hegemonia, ou seja, à afirmação de uma concepção do mundo, de uma cultura, como Oliveiros sustentou em Os 45 cavaleiros húngaros. Uma leitura dos Cadernos de Gramsci, publicado em livro no ano de 1986.
Para ele, na história brasileira, por não terem podido se organizar com autonomia e coerência, as classes sociais não uniram o País. Transferiram ao Estado as tarefas típicas que lhes deveriam caber – a organização dos consensos, a construção da hegemonia, a modelagem da administração pública, o planejamento do desenvolvimento, a defesa da soberania, em suma, tudo o que poderia configurar um projeto nacional. Pagou-se alto preço pelas “servidões da infraestrutura”, que dificultaram a comunicação entre os grupos sociais. Abriu-se um vazio político e ideológico, causa de um pesadelo permanente: o da ditadura, das guinadas autoritárias, da democracia imperfeita, da hipertrofia dos vértices em detrimento das bases. Com isso, uma parte da estrutura estatal – os “Militares”, mais bem organizados – terminou por agir com maior desenvoltura política.
Esta a principal razão que levou Oliveiros a se dedicar sistematicamente ao estudo das intervenções militares no Brasil, de que o melhor exemplo é seu livro Os elos partidos (2007).
Com a democratização dos anos 1980, os militares voltaram à caserna, a Federação perdeu importância, graças ao avanço da crise fiscal que também corroeu a União. Houve a globalização, o capitalismo se reorganizou, a sociedade se diferenciou e aprofundou a falta de coordenação. O País enveredou por trilhas inquietantes. Na conclusão de seu livro de 2007, Oliveiros escreverá: “não havendo estruturas que impulsionem o processo social, a Política feneceu. O Mercado, novo deus fenício a cobrar sacrifícios, impôs-se como senhor de baraço e cutelo”. Na medida em que desapareceu a “Grande Política, as Ideias”, passou-se a discutir as pessoas, as personalidades.
É onde nos encontramos. Três décadas depois da redemocratização, ainda falta ao Brasil a solução de seu enigma fundacional, o da organização autônoma da sociedade e da articulação entre Estado e mundo da vida social. Continuamos sem sujeitos capazes de promover “políticas dirigidas para o futuro” e sem projetos nacionais. Poderemos vir a tê-los no capitalismo globalizado, na modernidade líquida e radicalizada em que nos encontramos? É uma questão em aberto.
Oliveiros S. Ferreira cumpriu sua função como intelectual. Ajudou-nos a melhorar nossa capacidade de explicar o mundo em que vivemos. Foi um grande personagem, uma referência para os cientistas sociais, para os que se dedicam à ciência política e às relações internacionais de modo abrangente, sem especialismos e esquemas atrofiadores.
Fará uma falta enorme nos tempos complicados que teremos pela frente.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Uma socialdemocracia requalificada por um academico socialdemocrata - Marco Aurelio Nogueira

Bem, não tenho muito a comentar sobre este artigo, senão que ele me parece sensato, mas também típico do pensamento gramsciano (mas de qualidade) que permeia todo o universo acadêmico brasileiro. Acho que tem alguns equívocos sobre o PT e também sobre o PSDB, mas não vou negar que também se distancia do gramscismo rastaquera que infesta boa parte do ambiente universitário no Brasil.
Eu sempre reproduzo o que me parece inteligente e relevante para o debate.
Não tenho maiores observações criticas ou apreciativas a fazer sobre o artigo, pois, como disse, considero que ele se situa no centro do pensamento acadêmico não medíocre da universidade.
Paulo Roberto de Almeida

A hipotese socialdemocrática
por Marco A. Nogueira, professor titular da UNESP
13/10/2014

Muitas pessoas como eu – ativistas sociais, intelectuais, profissionais, cidadãos que se enxergam como integrantes, por ideias, ideais e conduta, da esquerda democrática –, que nunca de empolgaram com a dicotomia PT vs. PSDB, devem estar hoje fazendo a mesma reflexão: a política apodreceu e precisamos começar a reconstruí-la e a requalificá-la pela raiz, ao mesmo tempo em que uma importante disputa política e eleitoral parece grávida de futuro.
Não se trata somente de eleições, candidatos e debates, mas de tudo: há falcatruas e corrupção demais, o discurso político é indigente, os partidos estão exauridos, já não há mais regras claras e limites éticos para a competição política, candidatos se anunciam em nome de feitos do passado e sem dizer à população o que pretendem de fato fazer, promessas e demagogia saem de todas as bocas com enorme facilidade, o marketing modela e pasteuriza tudo, os políticos parecem retidos numa órbita estranha à Terra... É um cenário desolador. Para contrabalançá-lo, há as pessoas, os cidadãos, a cada dia mais bem informados e dinâmicos, postos na vida como fatores de pressão e de exigência constante de inovação.
Muitos destes cidadãos, eu incluído, pensamos numa terceira via como meio de injetar seiva nova no processo e despolarizar a política mediante um movimento de superação que ultrapasse o monopólio exercido por PT e PSDB. Não deu certo, por vários motivos. A opção, agora, é ajudar a que um destes dois polos se desfaça e agir para que o polo vencedor se recomponha e altere seu perfil, tendo a grandeza e a visão estratégica de se despolarizar a si mesmo, articular uma aliança de novo tipo e agregar novas forças e novas ideias.
O PSDB reúne mais chances para ser este polo vencedor hoje, concretamente. Não tanto por méritos seus, mas muito por demérito do polo adversário. Aécio Neves e os peessedebistas têm quadros e ideias, mas também integram o sistema e o mesmo ambiente de deterioração e exaustão política. Tiveram a sorte de frequentá-lo como oposição e de estarem fora do governo federal há 12 anos, fato que os preservaram de certos custos operacionais pesados, que caíram todos nas costas do PT e de suas administrações. E o PT, por sua vez, não soube lidar bem com isto: se descaracterizou como partido de esquerda, saiu das ruas, deixou-se levar pela lógica do acúmulo incessante de poder, em nome da qual fez alianças demais com o diabo e perdeu a cultura política que havia acumulado em sua primeira e heroica fase de vida.
Hoje, pelos caminhos tortuosos e imprevisíveis da política, a socialdemocracia à brasileira depende da capacidade que tiver o PSDB de sair de si, sacudir seus andrajos e agregar, em torno de seu vitorioso candidato no primeiro turno, as forças, ideias e pessoas que poderão ajudá-lo a recuperar a intenção socialdemocrata original, que esmaeceu e perdeu a cor ao longo do tempo.
A socialdemocracia que se pode ter hoje, no Brasil, passa pelo PSDB, mas não avançará nem ganhará corpo se não for além dele: se ele não se abrir e não ampliar seu repertório. Se uma articulação socialdemocrática se afirmar no curtíssimo prazo, terá boas chances de vencer as eleições. Se somente o fizer no médio prazo, estará tinindo nas eleições de 2018.
Digo sem dificuldade: este é um prognóstico analítico, uma tentativa de análise prospectiva de conjuntura. Mas é também um desejo, uma torcida. Feita em nome da convicção de que a esquerda democrática pode ser uma efetiva força de transformação social no Brasil desde que se recrie e se unifique.
Recriar, aqui, não significa de modo algum começar do zero ou fazer terra arrasada daquilo que existe. Ao contrário. O reformismo democrático tem história e tradições entre nós, que são referências seja no que têm de capacidade de identificação, seja no que têm de capilarização, ou seja, de difusão e enraizamento sociocultural. Os partidos que hoje se coligam – o PSDB, o PSB, o PPS, o PV – têm sido, todos eles, protagonistas desta história. Dela faz parte, também, e em lugar de destaque, o próprio PT, o PDT e o trabalhismo histórico, o comunismo, a esquerda católica, o liberalsocialismo, além de outros inúmeros atores não propriamente partidários: o universo da sociedade civil.
Partidos importantes, mas pequenos, como o PSB, o PPS e o PV, ou correntes históricas como o trabalhismo e o comunismo, que estão hoje dispersos e sem identidade clara, ganham força para viabilizar suas propostas quando se articulam entre si e operam como cunhas progressistas. Em vez de se combaterem uns aos outros, buscam o que os aproxima. Largam pela estrada alguns de seus vícios e ideias fixas, abrindo-se para uma agenda mais atualizada. Aumentam assim sua contribuição ao reformismo e à democracia.
Partidos de centro-esquerda, como o PSDB, ganham em coerência e em pujança reformadora quando se abrem para alianças substantivas com partidos e tradições que estão mais à sua esquerda e que podem auxiliá-lo a evitar acomodações improdutivas.  União, aproximações e entendimentos, aqui, se feitos em nome de itens programáticos densos e não de uma somatória de interesses imediatos, têm a vantagem de facilitar a formação de articulações unitárias que forjem governos progressistas. No caso concreto, podem auxiliar o PSDB a extrair, de dentro de si mesmo, o melhor da ideia socialdemocrática que nele repousa.
O mesmo pode ser dito do PT e dos pequenos partidos que estão à sua esquerda e o orbitam. Articulações entre eles ajudariam sobremaneira a dar melhor perfil e poder de fogo aos que se sentem como integrando uma corrente política “não-reformista”.
Em suma, parece ser razoável afirmar que a recriação da ideia socialdemocrática ganhará sentido e musculatura se souber se abrir, com generosidade e inteligência estratégica, para um conjunto de forças, ideias e atores que nem sempre atuam em conjunto, ou de modo articulado.
Há um quê de wishfull thinking nesta argumentação. Mas o que seria da política sem um toque de sonho, desejo e fantasia, ou sem utopias?
A construção de alternativas políticas é sempre um conjunto de operações complicadas. Precisa passar por disponibilidades pessoais e coletivas, por estoques de ideias, por recursos e ferramentas de atuação política. Hoje, tal construção é um desafio. Em boa medida, porque a sociedade atual tem demandas plurais e crescentes, e elas nem sempre se acomodam em nichos políticos claros. Isto explica o fato de os partidos políticos terem se tornado tão genéricos e enfrentarem tantas dificuldades de afirmação. E sem partidos bem posicionados, qualquer operação de unidade política torna-se problemática.
A principal voz da política está agora ainda mais claramente posta na sociedade civil. Os cidadãos precisam se organizar mais para aparecerem como protagonistas coletivos de proposições políticas. Este é o norte. Não dispensa os partidos, muito ao contrário. Funciona, na verdade, como um vetor de reorganização partidária, algo que retira os partidos do terreno exclusivo do sistema político e os faz retornarem ao chão social de onde nasceram e encontram sua razão de ser. A época exige, pois, que se recupere a política como atividade coletiva. A sociedade civil (onde também moram os partidos, diga-se de passagem) pode ser o fator que fará a reforma da política e pressionará para que os que nos representam honrem seus mandatos. Para isto, ela precisa ser mais do que “terceiro setor”, ou seja, pôr-se claramente no terreno do Estado.