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segunda-feira, 11 de março de 2024

A farsa eleitoral da ditadura venezuelana e a cumplicidade de Lula - Lourival Sant’Anna (OESP)

Lamentável essa confirmação de que o Brasil de Lula está totalmente conivente com o assalto continuado do regime chavista contra os direitos democráticos do povo venezuelano. Lula está sendo cúmplice devum CRIME POLÍTICO!

Na Venezuela, ditadura de Maduro prepara uma farsa eleitoral

Regime tenta dar ar de legitimidade ao precário processo eleitoral do país

Lourival Sant'Anna, O Estado de São Paulo, 09/03/2024

O regime venezuelano prepara mais uma farsa eleitoral. E o governo Lula participa alegremente dela. Até aí, nenhuma novidade. Dessa vez, porém,  a manobra vem acompanhada da ameaça de invasão de outro vizinho do  Brasil, a Guiana. Um aliado comum de Nicolás Maduro e de Lula, o ditador russo Vladimir Putin,  tem interesse nessa guerra. Lula trocou o apoio incondicional à ditadura venezuelana pelo adiamento do conflito. É um arranjo precário.

Os  partidos de oposição venezuelanos se uniram no ano passado para eleger  candidato único contra Maduro. A chamada Plataforma Unitária Democrática  pediu para o Conselho Nacional Eleitoral supervisionar o pleito. Para  negar legitimidade ao processo, os conselheiros obedientes ao regime,  que eram a maioria, renunciaram. Um novo Conselho, exclusivamente  chavista, foi nomeado, e o órgão público se recusou a cumprir a função  constitucional de fiscalizar a votação.

Apesar  das ameaças de represália do regime, 2,4 milhões de corajosos  venezuelanos participaram, e 92% votaram na ex-deputada María Corina  Machado, incontestável líder da oposição. Em 2015, Machado foi tornada  inelegível pela Justiça venezuelana, controlada pelo regime, por  supostas irregularidades em sua prestação de contas como deputada. Isso,  num país em que centenas de milhões de dólares são desviados por  integrantes do regime.

O  Tribunal Supremo de Justiça, 100% composto por chavistas, confirmou em  janeiro a inelegibilidade de Machado, até 2036.Machado é a terceira  líder de oposição competitiva excluída de disputas eleitorais com  Maduro, no rastro de Henrique Capriles e Leopoldo López, presos por  crimes sem provas. Segundo organismos independentes de defesa dos  direitos humanos, 1.400 venezuelanos perderam direitos políticos desde  2002. Há atualmente 288 presos políticos.

A  manobra viola o Acordo de Barbados, firmado cinco dias antes das  primárias da oposição. O governo venezuelano se comprometeu a realizar  eleições livres e justas, sem a exclusão de oposicionistas. O acordo  levou os EUA a suspender as sanções contra a Venezuela, que pode ter  vendido em torno de US$ 1 bilhão em petróleo, antes de a Casa Branca  concluir que foi enganada.

O  acordo incluiu também a libertação do colombiano Alex Saab, preso na  Flórida sob acusação de desvio de US$ 350 milhões dos cofres  venezuelanos. Segundo o FBI, parte desse dinheiro é destinada a Maduro,  do qual Saab é considerado testa-de-ferro. A trama envolve lavagem de  dinheiro do narcotráfico.

A  exclusão da oposição leva há uma década a população a boicotar  maciçamente as eleições promovidas pelo regime. Para fazer frente a  esses boicotes, que retiram a aparência de legitimidade dos pleitos, o  regime toma uma série de providências. Ao chegar às seções eleitorais,  os venezuelanos passam seu “cartão da pátria” em máquinas  estrategicamente instaladas ao lado dos equipamentos de identificação  dos eleitores. O registro do comparecimento garante a entrega mensal da  cesta básica pelo governo, da qual muitos venezuelanos dependem para  sobreviver: 90% estão abaixo da linha de pobreza e 68%, na extrema  pobreza.

Funcionários  públicos são obrigados a votar. Militantes chavistas remunerados pelo  governo nos bairros pobres exercem pressão para os moradores  comparecerem. Nada disso é suficiente. Eu cobri as eleições para a  Assembleia Constituinte de 2017, boicotadas pela oposição. As seções  eleitorais permaneceram semidesertas o dia todo, enquanto dezenas de  milhares de corajosos venezuelanos se manifestavam contra o regime, sob  forte repressão. Mesmo assim, o CNE anunciou comparecimento de 41%.

A  propósito, enquanto Lula se reunia com Maduro, há uma semana, em San  Vicente e Granadina, durante a cúpula da Celac, o Tribunal Penal  Internacional rejeitava em Haia apelação do regime chavista e levava  adiante a investigação da morte de 125 manifestantes durante as eleições  da Assembleia Constituinte. Eu presenciei algumas dessas mortes a  tiros, disparados contra a multidão.

Lula  tem longa história de interferência nos assuntos venezuelanos, ao lado  do autoritarismo e da corrupção do regime chavista. Em novembro de 2006,  Lula aproveitou a inauguração de uma ponte sobre o Rio Orinoco  construída pela Odebrecht com dinheiro do BNDES para pedir votos para Hugo Chávez, três semanas antes de mais uma de suas múltiplas reeleições.

Em  abril de 2013, logo depois da morte de Chávez, Lula gravou um vídeo  para pedir voto para Maduro: “Sempre foi visível sua profunda afinidade  com nosso querido e saudoso amigo Hugo Chávez.  Os dois compartilhavam as mesmas ideias sobre o destino do nosso  continente e os grandes problemas mundiais. Mais do que isso, Chávez e  Maduro tinham as mesmas concepções em relação aos desafios que a  Venezuela tinha pela frente: em defesa dos mais pobres”.

Por  isso, a oposição e a maioria da população da Venezuela não confiam em  Lula e ele não tem credenciais para intermediar uma distensão no país.  Isso fica provado mais uma vez agora. Depois que Maduro marcou a eleição  para 28 de julho, aniversário de Chávez, o presidente brasileiro  afirmou que “não se pode colocar dúvidas antes de as eleições  acontecerem”, em nome da “presunção de inocência”.

Assessores  do presidente têm dito que não gostam de Machado, porque ela fala em  punir os crimes do regime, e aprovam os nomes do governador de Zulia,  Manuel Rosales, e de Gerardo Blyde, coordenador da Plataforma Unitária  Democrática. Lula disse em fevereiro que não tem informações sobre o que  acontece na Venezuela, quando indagado sobre a expulsão de funcionários  do escritório de Direitos Humanos da ONU no país.

Só  isso explicaria as maquinações de seus assessores. Além do óbvio  absurdo de um governo querer triar candidatos à presidência de outro  país, Rosales é popular em Zulia mas não tem projeção nacional, enquanto  Blyde é leal ao processo das primárias e não se candidataria no lugar  de Machado, analisa Omar Lugo, editor do site independente de notícias  El Estímulo, de Caracas.

Na  antevéspera do Dia Internacional da Mulher, Lula sugeriu que a líder da  oposição não deveria ficar “chorando” e sim escolher um substituto,  como ele fez quando estava condenado e preso por corrupção, em 2018. O  presidente parece não saber também o que está acontecendo no Brasil, um  Estado democrático de direito que não pode ser comparado à ditadura  venezuelana. Sem contar o conteúdo grosseiro, misógino e injusto do  ataque: se tem uma coisa que não falta a Machado é coragem, ao percorrer  o país em campanha, enfrentando um regime sanguinário.

Depois  de duas décadas de abusos contra os direitos humanos na Venezuela e de  arbitrariedades para manter os chavistas no poder, a única inocência dos  envolvidos é a do próprio Lula. Se é que ele acredita no que diz. O  mais provável é que Lula tenha penhorado seu apoio a Maduro em troca de o  ditador recuar de sua decisão de invadir a Guiana para tomar a região  de Essequibo, rica em petróleo e outros minérios.

A  aventura não faria grande sentido econômico: a Venezuela tem as maiores  reservas de petróleo do mundo. O que lhe falta é competência para  explorá-lo. Em razão do sucatamento da estatal PDVSA, antes uma  respeitada petroleira, a exploração despencou de 3 milhões de barris  diários em 2002 para 800 mil.

O  sentido da ameaça é político: o velho expediente, aliás usado por  Putin, de criar um inimigo comum para justificar a perpetuação no poder,  como único “protetor da nação”. E geopolítico: servir ao interesse  russo de criar uma distração para os Estados Unidos na América Latina. A  guerra de Gaza, provocada por outro aliado da Rússia, o Irã,  patrocinador do Hamas, divide as energias dos Estados Unidos e  enfraquece seu apoio à Ucrânia. Numa escala menor, o apoio americano à  Guiana teria o mesmo efeito.

Dois  dias antes de os russos invadirem a Ucrânia, em fevereiro de 2022,  Maduro declarou: “A Venezuela está com Putin, está com a Rússia, está  com as causas valentes e justas do mundo”. Cinco dias depois da invasão,  o ditador venezuelano ligou para o russo. “Nicolás Maduro expressou seu  forte apoio às ações-chave da Rússia, condenando a atividade  desestabilizadora dos Estados Unidos e da Otan e enfatizando a  importância de combater a campanha de mentiras e desinformação lançada  pelos países ocidentais”, relatou o Kremlin.

Lula também culpa os EUA e a Europa pelo fato de a Rússia ter invadido a Ucrânia.

Chávez  já havia apoiado a invasão da Geórgia pela Rússia em 2008. Assim, a  anexação do Essequibo pareceria algo legítimo dentro do repertório moral  do chavismo. Na época, a Venezuela ainda conseguia produzir petróleo em  grande quantidade, e usava o dinheiro para comprar armas russas, como  sofisticados caças Sukhoi-30, baterias antiaéreas S-300, tanques,  navios, artilharia e fuzis kalashnikov.

Essa  tensão interessa às ditaduras venezuelana e russa, e não ao Brasil, que  tem 2.199 km de fronteira com a Venezuela e 1.605 km com a Guiana, no  delicado território amazônico. Além disso, ao menos 262 mil imigrantes e  refugiados da Venezuela vivem no Brasil, por causa do flagelo no país  vizinho. Portanto, enquanto subsistir o regime chavista, o Brasil não estará seguro.


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Comércio Exterior de 1 trihão de dólares - Rubens Barbosa (OESP)

                     COMÉRCIO EXTERIOR DE 1 TRILHÃO DE DÓLARES

Rubens Barbosa, 

O Estado de S. Paulo, 27/02/2024

 

O comércio exterior brasileiro ultrapassou meio trilhão de dólares em 2023. A notícia foi saudada com um grande sucesso do comércio brasileiro no mundo. A corrente de comércio subiu a mais de US$ 580 bilhões, com US$339,7 bilhões de exportação, com um aumento de 1,7% em relação a 2022, e US$ 240,8 bilhões de importação, com queda de 11,7, em relação a 2022. O superavit recorde chegou a US$ 98,8 bi. crescimento de 60% em relação a 2022 (mais da metade com um único país, China). O Brasil se consolidou como um dos maiores exportadores mundiais de alimentos e minério com mais de 18% e 26% das exportações totais do país respectivamente. Cresceu o número de empresas exportadoras, que hoje chegam a 28.500. Acentuou-se a importância do mercado asiático (mais de 50% das exportações totais), em especial o da China, Hong Kong e Macau, que representaram US$ 105,75 bi, mais de 30% das exportações totais brasileiras.

 

O comércio exterior se beneficiou de medidas tomadas pelo governo em 2022 para desburocratizar procedimentos e reduzir custos das transações. O BNDES voltou a apoiar as exportações aumentando a competitividade dos produtos nacionais. A promoção comercial e a cultura exportadora foram fortalecidas por ações da APEX e SEBRAE. Acordos de comércio, como o assinado com Singapura, e o de liberalização e simplificação com os EUA, inclusive com o fim da sobretaxa as exportações brasileiras de aço, foram positivas. A reforma tributária contribuirá para a melhoria da competitividade.

 

Como disse o Vice-Presidente e Ministro do MDICS, Geraldo Alkmin, “os resultados nos desafiam a fazer mais para abrir novos mercados e melhorar a competitividade e incluir produtos de maior valor agregado”.

 

Os desafios para o comércio exterior brasileiro vão além do que corretamente mencionou o ministro Alckmin. Os números realmente impressionantes geraram um sentimento ufanista (Brasil celeiro do mundo), mas escondem vulnerabilidades que um país do porte do Brasil (9ª. Economia global) não poderia aceitar, em função das incertezas geradas pelas transformações da economia e da geopolítica global.

 

A dependência do agronegócio para o sucesso econômico do país preocupa pelo fato de o setor agrícola se ter tornado o motor da economia. Os EUA e a Europa também são grandes produtores agrícolas, mas o setor industrial tem sua força própria, ao contrário do que ocorre no Brasil.

 

A concentração no comércio exterior brasileiro de poucos produtos (soja, petróleo e minério de ferro representam 37% das exportações, 5 produtos (incluindo açúcar e milho), 46% e 8 produtos, 2/3 do total exportado) e poucos mercados (Asia, Oriente Médio e Norte da África, representam 65% do total exportado) expõe o crescimento da economia, caso haja desaceleração do mercado externo (em especial o da China) e redução da produção agrícola nacional por fatores climáticos, como está ocorrendo este ano. A China concentra 75% das exportações da soja nacional.

 

As transformações da nova economia global criam outros tipos de vulnerabilidade, em consequência da ênfase em políticas industriais nos países desenvolvidos e crescentes restrições externas para garantir autonomia soberana em virtude das mudanças geopolíticas e para atender as novas prioridades de políticas ambientais, como as medidas tomadas na Europa para eliminar as importações de produtos agrícolas provenientes de áreas desmatadas e as taxas de carbono (CBAN).

 

A crescente perda de importância do setor industrial, em termos de PIB, (que chegou a ser 28% do PIB e que agora, na indústria de transformação, pouco passa de 10%) fez cair o nível de investimento interno e as importações se reduziram significativamente (11%). A participação de produtos manufaturados brasileiros no mercado internacional está pouco acima de 0,5%).

 

Vulnerabilidade adicional da área externa é a ausência de um instrumento de financiamento das exportações. Como todos os principais países, urge a criação de um Eximbank para apoiar uma politica de ampliação dos mercados na América Latina e na África, inclusive com a criação de cadeias regionais de produção de valor e com o necessário respaldo para os produtos da indústria de Defesa.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  

 

O governo divulgou as linhas gerais de um programa de política industrial para fortalecer o setor e torná-lo mais competitivo no mercado externo. Com metas até 2033, o plano dá grande ênfase ao papel do governo, como estão fazendo os EUA e países europeus. Subsídios e conteúdo local aparecem ao lado de incentivos, linhas de crédito e compras governamentais em seis setores, entre os quais saúde, defesa, infraestrutura, saneamento, mobilidade. Transformação digital da indústria, bioeconomia, descarbonização e transição energética são prioridades para a modernização do setor.

 

Com maior valor agregado, o aumento das exportações dos produtos industriais reduziria a dependência da economia do setor das commodities, agrícolas, minerais e energéticas. Dado o potencial de crescimento do comércio exterior em função do dinamismo do agronegócio e da recuperação gradual da competitividade industrial, caso as vulnerabilidades sejam reduzidas, será possível colocar como meta de US$ 1 trilhão nos próximos 5 anos, com a coordenação entre governo e setor privado.

 

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comercio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras

 

 

 

domingo, 17 de dezembro de 2023

Alberto da Costa e Silva (1931-2023) - Celso Lafer (OESP)

Grande Alberto da Costa e Silva, homenageado por um outro grande.

 

Carmen Lícia

ESPAÇO ABERTO

Celso Lafer

Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto


Alberto da Costa e Silva (1931-2023)

O diplomata alargou os horizontes da política externa brasileira ao elaborar na sua prática e na sua reflexão o papel de uma diplomacia de cultura e de conhecimento

Por Celso Lafer

17/12/2023 | 03h00

 

A perspectiva é um dos componentes organizadores da realidade, indicativa da circunstância do lugar em que estamos e nele nos localizamos para adquirir a mobilidade transformadora da razão e da sensibilidade.

Recordo essa lição de Ortega y Gasset porque ela tem grande pertinência para pensar a política externa como um ponto de vista sobre o funcionamento do mundo e a sua incidência num país. Um país operacionaliza seu ponto de vista no trato oficial com outros países por meio de seu corpo diplomático.

Alberto da Costa e Silva, na sua condição de diplomata na operacionalização deste ponto de vista, foi um paradigma de tato, inteligência e zelo, que o tornaram um dos grandes quadros do Itamaraty.

Alberto observou que “o diplomata, como o poeta, trabalha com as palavras”. No seu caso, verificou-se uma dialética de fecunda complementaridade entre as duas palavras, pois a sua experiência diplomática alentou, sem cisões, a criatividade da sua grande obra de intelectual. Por isso, integrou com alta envergadura a Academia Brasileira de Letras.

Alberto organizou o volume O Itamaraty na Cultura Brasileira, publicado em 2001 na minha gestão no Ministério das Relações Exteriores. Como ele diz na apresentação do volume, na prática do ofício o diplomata “é o que se representa”.

A representação não se circunscreve à articulação e à negociação de interesses. Tem um componente de exprimir o potencial da vis atractiva do que um país pode significar para os demais numa dada conjuntura histórica. Por isso, um diplomata deve conhecer bem o seu país para poder bem representá-lo. Cabe, também, a um diplomata promover relações amistosas com o país no qual está acreditado e, assim, na medida do possível, transformar fronteiras-separação em fronteiras-cooperação.

O tato e a inteligência com que Alberto exerceu o ofício a que se dedicou acabaram sendo poderoso estímulo para a criatividade de sua obra de grande intelectual. Adensou, para o benefício de todos, o seu entendimento do nosso país. Alargou os horizontes da política externa brasileira ao elaborar na sua prática e na sua reflexão o papel de uma diplomacia de cultura e de conhecimento.

A dedicação à África foi um tema recorrente do seu percurso de diplomata.

Da experiência de embaixador na Nigéria e no Benin, não só guardou, como dizia, “gratidão enternecida”. Foi um estímulo para aprofundar o seu interesse pela África e a sua percepção de que era necessário conhecer os africanos para melhor entender o Brasil, nas palavras da historiadora Marina de Mello e Souza.

Do que ele chamou “o vício da África” resultou uma excepcional obra de historiador que descortinou com rigor e paixão a história da África, a África no Brasil, o Brasil na África e a dinâmica do circuito da escravidão. Alberto, com o impacto de sua obra, trouxe a África como campo próprio de estudo em nosso país.

A obra de Alberto abre a nossa sensibilidade às memórias provenientes da África, que se somam, como ele diz, a outros enredos da vida brasileira – aos europeus que sempre estiveram nos currículos de nossas escolas e aos ameríndios que nelas deveriam estar.

Alberto dominava igualmente o papel do enredo europeu na vida brasileira.

“Temos a Europa dentro de nós.” É nossa herança, mas, como ele diz, “somos livres para escolher dela o que se ajusta à nossa geografia e o que responde à nossa intuição de destino”.

Serviu em Portugal, país que “de certa forma e ao seu jeito inventou para a Europa os oceanos”. A sua diplomacia de cultura intensificou e ampliou o diálogo Portugal-Brasil. Nesta empreitada, esclareceu com larga visada as características da herança e da presença de Portugal no Brasil e do significado dos fluxos migratórios lusitanos para a construção da múltipla identidade do nosso país. Soube destacar a relevância do idioma comum e do papel da Língua Portuguesa em Portugal e no Brasil, que nos singulariza e aproxima.

Alargou este horizonte para alcançar cinco países africanos que vivem as realidades das suas especificidades para descortinar o potencial de concertação diplomático-cultural que amplia, com um toque próprio, o espaço do Brasil e de Portugal no mundo.

As limitações de espaço não me permitem aflorar a amplitude dos caminhos intelectuais de Alberto. Não posso, no entanto, finalizar sem realçar que as suas memórias são um dos pontos mais altos da memorialística brasileira que de maneira discreta revela a sua estatura humana.

Espelho do Príncipe, cujo subtítulo é ficções da memória, não é propriamente uma autobiografia. Refaz liricamente as vivas lembranças do seu passado de criança. É, como o qualificou Da. Gilda de Mello e Souza, “um solilóquio da infância” que ela toma como um ritual de passagem, uma travessia da infância à idade adulta na qual Alberto, com pequenos toques, de maneira única, vai “impondo uma visão nova das coisas, da sensibilidade da relação com as pessoas, do escoar do tempo”.

Corresponde ao que disse na abertura de seu poema Hoje: gaiola sem paisagem: “Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino”.

*

PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

 

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Guerra Israel e Hamas tem bem mais de dois lados Thomas Friedman (OESP)

 Guerra Israel e Hamas tem bem mais de dois lados 

Thomas Friedman 

O Estado de S. Paulo, 24/11/2023

Relações de palestinos e israelenses é complexa e vai além de extremismos de ambos os lados; veja histórias de coexistência após o 7 de outubro 


 THE NEW YORK TIMES – Confesso que, enquanto observador de longa data do conflito árabe-israelense, eu evito agressivamente tanto os ativistas “Do rio até o mar” da esquerda pró-palestinos quanto os similarmente fanáticos partidários da extrema direita sionista que defendem a “Grande Israel” — e não apenas porque considero abomináveis suas visões exclusivistas para o futuro, mas também porque o repórter dentro de mim percebe sua cegueira para as complexidades do presente. Eles não pensam na mãe judia que me contou em Jerusalém de um único fôlego que havia acabado de conseguir uma licença para portar armas de fogo para proteger seus filhos do Hamas; e então como ela confiava no professor palestino-árabe de seus filhos, que levou as crianças para o abrigo antibombas da escola durante um ataque aéreo recente do Hamas.

 Eles não pensam em Alaa Amara, o comerciante árabe-israelense de Taibe que doou 50 bicicletas de sua loja para crianças judias que sobreviveram ao ataque do Hamas contra suas comunidades fronteiriças, em 7 de outubro, teve seu comércio incendiado dias depois aparentemente por jovens árabes-israelenses nacionalistas linha-dura e viu uma campanha de crowdfunding organizada em hebraico e inglês levantar mais de US$ 200 mil para ajudá-lo a reconstruir aquela mesma loja dias depois. Ao longo dos últimos 50 anos, eu vi palestinos e israelenses fazerem coisas terríveis uns aos outros. Mas este episódio que começou com o ataque selvagem do Hamas contra israelenses, incluindo mulheres, crianças pequenas e soldados, em comunidades na região vizinha à fronteira de Gaza e a retaliação israelense contra os combatentes do Hamas com base em Gaza que também matou, feriu e deslocou tantos milhares de civis palestinos — de recém-nascidos a idosos — é certamente o pior desde os tempos do Plano de Partilha da Palestina proposto pela ONU em 1947. Mas defensores de todos os lados que leem esta coluna sabem que eu não estou aqui para anotar o placar. Meu foco sempre foi encontrar uma saída para que esse show de horror olho por olho, dente por dente acabe antes que todos fiquem cegos e desdentados. 

 Com esse objetivo, eu gastei bastante tempo da minha viagem an Israel e Cisjordânia este mês observando e investigando as verdadeiras interações cotidianas entre árabes e judeus israelenses. Essas experiências são sempre complexas, certas vezes surpreendentes, ocasionalmente deprimentes e, com mais frequência do que alguém possa pensar, inspiradoras. Porque revelam sementes de coexistência espalhadas por todo lado e suficientes para que ainda possamos sonhar o sonho impossível: que algum dia possa haver uma solução de dois Estados para os israelenses e os palestinos que vivem entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão. 

 Portanto, nesta semana da Ação de Graças, eu lhes peço para reservar alguns instantes aqui comigo, para refletirmos sobre essas pessoas e alguns atos extraordinários de resgate que elas praticaram em 7 de outubro — que lhes darão mais fé na humanidade que as manchetes em torno desta história jamais sugeririam. Para colocar de outra maneira, um amigo certa vez descreveu minha visão de mundo como um cruzamento entre Thomas Hobbes e Walter Mondale. Por vários dias durante a minha viagem, eu permiti ao Mondale dentro de mim perseguir lampejos de esperança irradiando na escuridão. Esse processo começou assim que cheguei em Tel-Aviv, quando me sentei para conversar com Mansour Abbas, provavelmente o líder político israelense mais corajoso da atualidade. Abbas é um árabe-palestino e cidadão de Israel que calha de ser muçulmano e membro do Parlamento israelense, onde ele lidera o importante partido Lista Árabe Unida. 

A voz de Abbas é ainda mais vital neste momento porque ele não respondeu ao terrorismo do Hamas com silêncio. Abbas entende que, mesmo que seja correto ultrajar-se com a dor que Israel inflige nos civis de Gaza, reservar toda a nossa indignação para a dor de Gaza cria suspeições entre judeus de Israel e de todo o mundo, que notam quando nenhuma palavra é pronunciada a respeito das atrocidades do Hamas que desencadearam esta guerra. A primeira coisa que Abbas me disse a respeito do massacre do Hamas foi: “Ninguém pode aceitar o que aconteceu naquele dia. E nós não podemos condenar este ato e dizer ‘mas’ — esta palavra, ‘mas’, tornou-se imoral.” (Pesquisas recentes mostram uma condenação esmagadora da comunidade árabe-israelense ao ataque do Hamas.) 

 Abbas percebe as complexidades experimentadas por aquela mãe judia de Jerusalém que nunca perdeu a confiança no professor árabe-israelense de seus filhos e aquele dono de loja de bicicletas que imediatamente estendeu a mão para aliviar a dor de crianças judias que não conhecia. Ao mesmo tempo, contudo, Abbas falou a respeito da dor excruciante que árabes-palestinos e beduínos israelenses sentem ao ver parentes seus castigados e mortos em Gaza. “Uma das coisas mais difíceis hoje é ser árabe-israelense”, disse-me Abbas. “O árabe-israelense sente a dor duas vezes — uma como árabe, outra como israelense.” Há uma peculiaridade nessa vizinhança: se a gente olha somente para um ou outro grupo através de um microscópio, dá vontade de chorar — o massacre brutal de judeus, a maneira terrível que os colonos supremacistas judeus tratam os palestinos; a lista é infinita. Mas se olhamos para essas histórias através de um caleidoscópio, observando a complexidade de suas interações, é possível ver a esperança. 

Se você quiser noticiar de maneira correta a realidade de israelenses e palestinos, sempre leve um caleidoscópio no bolso. O que me traz às histórias dos árabes beduínos israelenses e o 7 de Outubro. Cerca de uma semana após o início da minha viagem, eu recebi um telefonema do meu amigo Avrum Burg, ex-presidente da Knesset israelense, cujo avô era rabino-chefe de Hebron em 1929. Ele me contou que seu amigo Talab el-Sana — um árabe beduíno israelense que serviu com ele na Knesset e deu o voto de Minerva que formou a maioria que permitiu a Yitzhak Rabin fazer o acordo de paz de Oslo — queria me levar para conhecer alguns “beduínos virtuosos”; cidadãos de Israel de língua árabe, muçulmanos, mas fluentes em hebraico, que tinham desempenhado papéis heróicos salvando judeus do ataque do Hamas. Se você quiser noticiar de maneira correta a realidade de israelenses e palestinos, sempre leve um caleidoscópio no bolso.

Os beduínos israelenses são uma comunidade nômade que reside principalmente no Deserto do Negev e formam parte da minoria árabe-israelense — 21% da população do país — que se espalham por cidades e vilarejos de Israel. Atualmente aproximadamente 320 mil beduínos vivem em Israel, cerca de 200 mil em comunidades reorganizadas pelo governo e outros 120 mil em favelas improvisadas e não reconhecidas. Muitos beduínos serviram ao Exército israelense, com frequência como rastreadores, em razão de seu profundo conhecimento da geografia decorrente de gerações vagueando pelo deserto. Bem, acontece que alguns beduínos israelenses que viviam próximo da fronteira ou trabalhavam em comunidades da região atacada pelo Hamas ajudaram a resgatar judeus; alguns beduínos foram sequestrados pelo Hamas junto com judeus e outros foram assassinados pelo Hamas porque o grupo terrorista optou por tratar todos que vivessem ou trabalhassem nos kibutzim israelenses e falassem hebraico como “judeus” — merecendo ser mortos.

 E depois de 7 de outubro, alguns desses beduínos que salvaram judeus israelenses passaram a notar olhares hostis e insultos em voz baixa de judeus israelenses assumindo automaticamente que eles seriam simpatizantes do Hamas. E todo esse tempo vítimas judias e beduínas do Hamas foram tratadas juntas em hospitais israelenses, onde quase a metade dos novos médicos é hoje árabe-israelense ou drusa, assim como 24% dos enfermeiros e aproximadamente 50% dos farmacêuticos. Sim, um árabe beduíno israelense pode salvar um judeu israelense na fronteira de Gaza de manhã, ser discriminado por judeus nas ruas de Beersheba de tarde e gabar-se por sua filha — médica formada numa faculdade israelense — ter passado a noite em claro cuidando de pacientes judeus e árabes no Hospital Hadassah. É complicado. 

 Conserto de abrigos El-Sana e Burg levaram-me a dois vilarejos beduínos para me apresentar rapazes que tinham salvado judeus. Acompanhou-nos o urbanista israelense Ran Wolf, especialista na construção de espaços compartilhados — centros de inovação, centros culturais e mercados — para uso de judeus e árabes palestinos israelenses. Nós paramos na residência de Wolf em Tel-Aviv, no caminho, para pegar umas garrafas de água, onde ele me contou a seguinte história: Após os foguetes do Hamas começarem a cair em Tel-Aviv em 7 de outubro, Wolf telefonou para o empreiteiro com que trabalha regularmente, Emad, um árabe-israelense de Jaffa, para lhe dizer que a porta do abrigo antibombas no porão de sua casa não fechava. 

“Esse problema estava acontecendo em muitos abrigos, e depois de 7 de outubro todos quiseram consertar”, afirmou Wolf. E quando perceberam que um pedreiro estava na vizinhança, seus vizinhos também lhe pediram para consertar suas portas. Emad é um bom amigo e se recusou a aceitar qualquer dinheiro por dois dias de trabalho”, afirmou Wolf. Tenha em mente, acrescentou ele, que Emad vive em Jaffa, ao sul de Tel-Aviv. Na guerra de 1948, o pai de Emad ficou em Jaffa e seu tio fugiu para Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza. “Então ele foi criado em Israel, mas metade da sua família vive hoje em Gaza”, afirmou Wolf. “E viu um míssil do Hamas cair a 200 metros da sua casa em Jaffa outro dia”, acrescentou. 

 Usem o caleidoscópio: hoje, refugiados palestinos de Jaffa que vivem sob o governo do Hamas em Gaza disparam foguetes contra palestinos de Jaffa que são cidadãos israelenses; e um deles consertou os abrigos antifoguetes de seus amigos em Tel-Aviv — de graça. Quando nós chegamos a Rahat, a maior cidade beduína em Israel, no Deserto do Negev, El-Sana, sentado no banco de trás do carro, conseguiu contar uma história ainda mais marcante. El-Sana contou que algumas das primeiras vítimas israelenses dos ataques de foguete do Hamas em 7 de outubro foram beduínos, muitos deles moradores de povoados não reconhecidos no Negev que não aparecem em mapas digitais. (O governo israelense não acompanhou seu crescimento populacional da mesma forma que na maioria das cidades judaicas.) 

 Essas localidades não têm abrigos antibombas públicos nem sirenes de alerta para proteger seus moradores quando os foguetes do Hamas começam a cair, mas — e é impossível inventar isso — El-Sana explicou que, quando o Hamas lança um foguete, o sistema antimísseis israelense Domo de Ferro traça imediatamente sua trajetória para determinar se o projétil de Gaza aterrissará num espaço povoado em Israel e matará pessoas ou em um lugar vazio ou no mar. Se o foguete rumar para algum ponto despovoado ou para o mar, o Domo de Ferro não desperdiça seus foguetes caros para interceptar projéteis baratos do Hamas. Seis beduínos foram mortos por um foguete do Hamas que caiu no vilarejo de Al Bat — entre eles, dois irmãos, de 11 e 12 anos — porque o povoado beduíno não figura em nenhum mapa oficial de Israel presente na base de dados do Domo de Ferro, explicou El-Sana. 

 Enquanto isso, outros oito beduínos que trabalhavam em comunidades judaicas próximas a Gaza foram assassinados pelo Hamas e pelo menos sete beduínos, todos cidadãos israelenses, foram, acredita-se, sequestrados e levados para Gaza. E dias depois alguns desses mesmos beduínos não hesitaram em ajudar a resgatar judeus israelenses juntamente com seus primos. Resgate de judeus El-Sana tinha me marcado uma entrevista no vilarejo de Al Zayada, um assentamento beduíno não reconhecido no Deserto do Negev, no lar não reconhecido de Youssef Ziadna, de 47 anos, um motorista de ônibus beduíno reconhecido por resgatar judeus em 7 de outubro.

 Ziadna contou que na sexta-feira, 6 de outubro, foi contratado para levar um grupo de jovens judeus para o festival ao ar livre de música trance Supernova Sukkot Gathering, em celebração ao feriado de Sucot, adjacente ao Kibutz Re’im, que é adjacente à fronteira com Gaza. “Quando os deixei, nós combinamos que eu voltaria no sábado às 18h para pegá-los”, disse-me Ziadna. Mas no início da manhã do sábado, “eu recebi um telefonema de um deles, Amit”, que lhe pedia para ir buscá-los imediatamente, afirmou. “Eles estavam sendo atacados, ouvia-se tiros por todo lado.” Ziadna disse que rumou imediatamente para a cena e, conforme se aproximou, viu “uma barragem de foguetes e muitos carros na direção contrária — escapando — piscando os faróis para que eu fizesse a volta. Algumas pessoas que tinham parado e saído do carro disseram que havia terroristas em Be’eri, então ‘vá embora daqui’. Eu saí do meu carro e me escondi na beira da estrada. 

Toda vez que eu levantava a cabeça atiravam em mim. Mas eu tinha prometido buscar essas pessoas, e estava a um quilômetro de distância”. Ziadna afirmou que quando o ritmo dos disparos diminuiu um pouco, ele conseguiu voltar para seu miniônibus e usar o celular para se encontrar Amit e seus amigos — e qualquer outra pessoa que ele pudesse resgatar. Em vez de voltar pela estrada, onde “eu sabia que eles nos matariam”, afirmou Ziadna, “eu fui pelos campos”. Como beduíno, Ziadna conhece intimamente o terreno que acabou salvando a todos.

 Ele conseguiu encontrar um atalho em meio aos campos e evitou a estrada principal, onde os terroristas do Hamas emboscavam quem fugia do festival musical. Muitos outros carros em fuga também deixaram a estrada principal e seguiram o miniônibus de Ziadna pelos campos, afirmou ele. O motorista contou para o Times of Israel, que publicou seu perfil, que levou cerca de 30 pessoas em seu veículo, cuja lotação máxima é de 14 passageiros. Ziadna disse que, alguns dias depois, recebeu um telefonema de um número que não reconheceu, mas que acreditou ser de Gaza, e uma voz lhe disse em árabe: “Você é Youssef Ziadna? Você salvou vidas de judeus? Nós vamos matar você”. Ele relatou a ligação para a polícia israelense. 

Esta é apenas uma das razões, afirmou o motorista, para ele ainda precisar de telefonemas diários com um psicólogo para tentar superar o trauma de 7 de outubro. Outro familiar em nosso encontro, Daham Ziadna, de 35 anos, afirmou que teve quatro parentes sequestrados pelo Hamas; um certamente foi morto e outros três ainda estão desaparecidos. Dois foram vistos pela última vez deitados no chão, num vídeo publicado pelo Hamas no TikTok, com dois combatentes armados ao lado. Para o Hamas, disse Daham, “todos que vivem em Israel são judeus”. Daham disse-me que alguns dias antes tinha ido ao banco sacar dinheiro no caixa eletrônico e cruzou dois judeus israelenses na calçada. “Um tinha sotaque russo. 

Quando eles se aproximaram, o russo falou, ‘Eis aqui outro árabe’. Eu lhe disse: ‘Esses “árabes” de que você fala estavam na fronteira de Gaza em 7 de outubro lutando pelo o Estado israelense — defendendo judeus e árabes. E são pessoas como você que destroem o país, destilando veneno’.” Árabes-israelenses vivem um cotidiano difícil, acrescentou ele: “Muitos judeus olham para nós como se todos fôssemos do Hamas, e quem apoia o Hamas olha para nós como se fôssemos judeus”. A alguns quilômetros de lá, em Rahat, El-Sana me apresentou para a família Al-Qrinawi, cujos integrantes tinham sua própria história marcante para contar. O porta-voz da família, Ismail, relatou-me o drama sentado com seus primos diante de um prato gigante de arroz, frango e grão de bico. Na manhã de 7 de outubro, conforme a notícia do ataque do Hamas se espalhou, eles souberam pelo grupo de WhatsApp da família que três primos que trabalhavam no refeitório do Kibutz Be’eri tinham sido sequestrados. 

Por volta das 10h, um familiar recebeu uma ligação de um número desconhecido, do telefone de uma mulher israelense chamada Aya Medan. Ela tinha encontrado um de seus primos desaparecidos, Hisham, e ambos estavam se escondendo juntos dos terroristas do Hamas no mesmo campo desértico próximo a Be’eri. Hisham usou o celular dela para pedir ajudar ao seu clã beduíno. Os outros dois primos tinham fugido em outra direção. Seu tio, o patriarca do clã, ordenou que quatro sobrinhos fossem resgatar os parentes no Land Cruiser da família, já que normalmente leva 30 minutos para chegar à região onde eles estavam — mas não naquele dia. 

Eles pegaram duas pistolas e saíram a toda. Quando nos aproximamos, descobrimos que todas as estradas estavam fechadas”, disse-me Ismail. “Então nós fomos pelos campos e atravessamos um vale profundo para conseguir desviar. Nosso carro quase virou.” Primeiro, “encontramos pessoas fugindo da festa”, afirmou ele. “Nós emprestamos nossos telefones para elas ligarem para os pais e garantimos que entrassem em outros carros, conduzidos por israelenses. Nós conseguimos resgatar 30 ou 40 pessoas da festa. Mas eu fiquei o tempo todo conversando com Aya, tentando localizar onde ela se escondia com Hisham”. 

 Estava demorando demais. Depois de duas horas e meia desviando de tiros e foguetes do Hamas, afirmou Ismail, eles conseguiram encontrar Aya e Hisham escondidos atrás de arbustos, bem próximo do Kibutz Be’eri. Eles tinham mandado uma foto de celular da área em que estavam se escondendo para facilitar sua localização. Minutos depois, relatou Aya ao Times of Israel, Hisham a tocou e disse, “Aya, eles estão aqui, eles estão aqui sim”. Os primos abriram as portas do carro, Aya e Hisham entraram, e o clã beduíno valeu-se novamente de suas habilidades off-road para levá-los à segurança. Ou quase. 

 O momento mais assustador do dia, disse-me Ismail, ocorreu quando eles voltaram para a estrada principal. Eles foram parados em um posto de controle improvisado pelo Exército israelense, por soldados assustados, incapazes de distinguir à distância entre amigo e algoz. “Os soldados israelenses cercaram nosso carro, todos apontando armas contra nós. Eu gritei: ‘Nós somos cidadãos de Israel! Não atirem!’.” Aya disse ao Times of Israel que um soldado israelense lhe perguntou se ela estava sendo sequestrada. “Não, eu sou de Be’eri, e eles vieram de Rahat nos resgatar”, disse ela. 

 Beduínos salvando judeus israelenses do Hamas sendo salvos por uma mulher judia de serem baleados pelo Exército israelense depois de resgatá-la… caleidoscópico. Enquanto eu entrevistava o clã Al-Qrinawi, a família me apresentou Shir Nosatzki, uma das cofundadoras do grupo israelense Você Tem Olhado para o Horizonte Ultimamente?, que promove parcerias entre judeus e árabes. Imediatamente após saber de seu resgate, seu marido, Regev Contes, gravou um vídeo de 7 minutos em hebraico para contar a história da equipe beduína de resgate para os israelenses. Segundo o relado, o vídeo teve centenas de milhares de visualizações em Israel. Eu perguntei a Nosatzki por que eles gravaram o vídeo.

 “Para mostrar que o 7 de Outubro não foi uma guerra entre judeus e árabes, mas entre a luz e a escuridão”, afirmou ela. Antes de voltarmos para Tel-Aviv, El-Sana insistiu que fôssemos ao seu restaurante de kebab favorito em Rahat. Sentados à mesa: um beduíno israelense que tinha servido na Knesset, o neto do ex-rabino-chefe de Hebron e um colunista judeu do New York Times, de Minnesota, que trabalhou como correspondente em Beirute e Jerusalém nos anos 70 e 80 — compartilhando reflexões em uma mistura maluca de hebraico, árabe e inglês. Entre os espetinhos de cordeiro e os pratos de hummus, nós chegamos à mesma conclusão: mesmo neste momento sombrio, nós tínhamos acabado de testemunhar algo enormemente importante — “sementes de coexistência na morte e na vida”, conforme colocou Burg, sementes que o Hamas se dedica a destruir. Essas sementes, acrescentou El-Sana, “deveriam nos dar esperança de que conseguiremos construir um futuro em comum com base em valores comuns que atravessam as fronteiras da etnicidade entre judeus e árabes”. Eles estão certos. 

Essas sementes, por menores que possam ser, nunca foram mais importantes do que neste momento. Por quê? Porque esta guerra Israel-Hamas, acabe quando acabar, já foi tão traumática para todos que desencadeará o maior debate desde o plano de partilha da ONU, de 1947, a respeito da forma que as relações e as fronteiras entre israelenses e palestinos devem se constituir. Eu tenho certeza disso — porque menos que isso significará guerra permanente. Eu já posso lhes dizer que haverá muitas vozes destrutivas nessa discussão: apologistas do Hamas, palestinos e árabes, que têm negado ou minimizado as atrocidades do grupo; colonos judeus supremacistas, ávidos para expandir sua presença não apenas na Cisjordânia, mas também, loucamente, até Gaza, e que não mostram nenhuma preocupação com o sofrimento devastador dos civis palestinos mortos na retaliação israelense; Binyamin Netanyahu, que sacrificará o futuro de Israel para permanecer no cargo e ficar fora da cadeia; e os idiotas úteis do Hamas no Ocidente, principalmente nas universidades, onde estudantes denunciam Israel e todo seu território como um empreendimento colonial enquanto entoam, “Do rio até o mar, a Palestina será livre”.

 (Poupem-me da explicação segundo a qual esta frase seria um apelo à coexistência: eu estava em Beirute nos anos 70 quando ela se tornou popular e posso lhes assegurar que não se tratava de um chamado por dois Estados para dois povos. E se você tem um mantra que requer 15 minutos de explicação, você precisa de outro mantra.) Com todas essas equipes de demolição esperando para trabalhar, nós precisaremos mais que nunca elevar as vozes autênticas da coexistência — líderes com a integridade desses beduínos israelenses prontos para fazer e dizer o que é certo não apenas quando a coisa não está fácil, mas também diante do perigo. O que me traz de volta à Lista Árabe Unida, de Mansour Abbas. 

 Vozes de coexistência Seu partido, falando amplamente, vem do mesmo braço da Irmandade Muçulmana na política palestina que o Hamas — mas em vez da violência e exclusão pregadas pelo Hamas, Abbas defende não violência e inclusão. Abbas foi um intermediador de poder importante para ajudar o ex-primeiro-ministro Naftali Bennett e o ex-ministro das Relações Exteriores Yair Lapid a forjar o governo israelense de unidade nacional em 2021. Netanyahu, sempre desagregador, derrubou aquele governo em parte com retóricas antiárabes e anti-islâmicas direcionadas a Abbas. Abbas entende que coexistir significa dizer o que é certo — não apenas quando é difícil politicamente, mas também quando é perigoso. Depois de ver os vídeos do ataque do Hamas, na Knesset, ele declarou à emissora de rádio árabe Al-Nas: “Eu vi um pai com dois filhos entrar no abrigo antibombas ao lado de sua casa, e jogaram uma granada dentro. 

O pai saltou sobre a granada e foi morto, e as duas crianças se feriram, mas sobreviveram. O massacre contraria tudo que acreditamos, nossa religião, nosso Islã, nossa nacionalidade, nossa humanidade”. As ações do Hamas “não representam nossa sociedade árabe, nem nosso povo palestino, nem nossa nação palestina”. Durante nossa entrevista, Abbas disse-me que nós precisamos de “uma nova retórica política” e não podemos ser atraídos para as jogadas do passado. “Essa narrativa ‘do rio ao mar’ não ajuda”, afirmou ele. “Isso é um erro. Se querem ajudar os palestinos, discutam uma solução de dois Estados e paz e segurança para todas as pessoas.” É por este motivo, acrescentou Abbas, que “eu estou trabalhando em um plano que começa com o fim da guerra atual e termina com a criação de um Estado palestino contíguo an Israel”. Abbas conhece bem as dificuldades do caminho adiante. Eu também não tenho ilusões. 

E concluo minha recente jornada com duas lições. A primeira é que esta guerra em Gaza está longe de terminar. Israel acredita que não haverá paz em Gaza enquanto o Hamas estiver no poder por lá. Mas a segunda é que, da mesma forma que a Guerra do Yom Kippur produziu o alvorecer do tratado de Camp David e da mesma forma que a desumanidade da Primeira Intifada e da reação israelense levou aos Acordos de Oslo, dos horrores do 7 de Outubro algum dia surgirá outra tentativa de construir dois Estados para estes dois povos autóctones. De outra forma, esse canto do mundo se tornará inabitável para qualquer pessoa em sã consciência. Hoje há gente demais com armas poderosas demais. E quando esse dia chegar, será necessário um construtor de pontes como Mansour Abbas — que entende a verdadeira natureza caleidoscópica dessa terra e a conexão autêntica de ambas as comunidades a ela — para germinar as sementes da coexistência que ainda estão por lá, apesar de enterradas mais profundamente que jamais estiveram. Abbas, Youssef Ziadna, a família Al-Qrinawi, Aya Medan, meus amigos Avrum, Talab e Wolf serão os resgatistas. 

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO 

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Diplomatas criticam forma de promoção no Itamaraty - Monica Gugliano (OESP)

 Diplomatas criticam forma de promoção no Itamaraty

O Estado de S. Paulo | Política
22 de novembro de 2023

MONICA GUGLIANO

Um grupo de diplomatas cada vez maior tem reclamado dos critérios de promoções e de ascensão na carreira no Itamaraty. As queixas já não dizem mais respeito apenas ao número reduzido de mulheres que atingem osaltos postos. Mas ganharam corpo e se ampliaram atingindo, em especial, os preceitos e normas que determinam a trajetória de cada um.

Há menos de um mês, a insatisfação chegou à mesa da secreária-geral da Casa, Maria Laura da Rocha, em um documento de cinco páginas que arrola discordâncias. "A carreira de diplomata, em sua atual configuração, apresenta distorções no reconhecimento do mérito individual de seus integrantes que prejudicam o desempenho profissional", diz o texto.

A Assembleia-Geral da Associação e Sindicato dos Diplomatas Brasileiros (ADB), organização que conta com mais de 1,6 mil associados, endossou o documento "Fluxo e Reforma da Carreira de Diplomata".



300 diplomatas assinam documento com críticas à gestão do  Itamaraty  e que pede previsibilidade para as promoções diretriz a ser seguida em futuras negociações. Propõe maior transparência das decisões tomadas pela Comissão de Promoções, além de adoção de uma reforma estrutural da carreira, como progressão funcional "previsível, transparente e equânime",ea criação de mecanismos para combater o desequilíbrio de gênero e de raça, entre outras.

Os mais de 300 diplomatas queassinam o documento acreditam que, se houve melhora em relação ao período do chanceler Ernesto Araújo - durante o qual ocorreram perseguições ideológicas -, por outro lado, distorções de diferente natureza passaram a atingir os degraus mais baixos da carreira.

Outros documentos têm circulado argumentando que, apesar de expectativas da classe de que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pudesse revalorizar o Itamaraty, os dois ciclos de promoções de 2023 representaram uma ducha de água fria.



"DIÁLOGO". 


Procurado, o Ministério das Relações Exteriores comentou as críticas aos mecanismos de promoção: "Manifestações e sugestões de mudanças fazem parte de um diálogo institucional iniciado pela atual administração em janeiro deste ano e fazem parte de uma reflexão coletiva sobre oa carreira diplomática e a lei que rege o serviço exterior brasileiro". 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A diplomacia ultra pessoal de Lula é um problema para a diplomacia profissional: Lula e o clube dos autoritários - Lourival Sant’Anna (OESP)

Introdução PRA:

A antiga diplomacia lulopetista (2003-2010) também tinha uma grande carga de personalismo de quem se acreditava o melhor de todos os diplomatas, com seus improvisos que frequentemente desprezavam os discursos burocraticamente bem escritos pelo Itamaraty. Mas ela conseguia preservar certo equilíbrio de racionalidade ideológica entre os três grandes formuladores e executores: Lula, Amorim e Marco Aurélio Garcia.

O que temos atualmente é personalismo em estado puro, sem qualquer controle de seres mais racionais, uma altíssima dose de histrionismo à base do “eu sei, eu faço”, que beira a loucura nos improvisos destrambelhados, o que prejudica enormemente a diplomacia profissional, o que era mais raro nos dois mandatos anteriores. O touro está solto e investe contra suas miragens e obsessões pessoais. Ainda não percebeu que prejufica a si próprio, ao país, e ninguém tem coragem para lhe dizer na cara: “Pare com as invectivas improvisadas!” Vai ser triste.

Lourival Sant’Anna demonstra cabalmente como Lula está fazendo mal a si próprio e ao pais. E isso começou lá atrás, ainda na campanha, no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. Pode continuar de maneira dramática para nós no caso de uma guerra de agressão da Venezuela contra a Guiana. Lula não têm conhecimento, nem estatura de estadista para conduzir a diplomacia da nação: ele está destruindo a sua reputação e credibilidade, a da diplomacia (ele nunca as teve, a não ser pelas mentiras populistas e altamente demagógicas, servidas e apoiadas por um bando de cortesãos mediocres e temerosos).

Paulo Roberto de Almeida 

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Lula ainda não percebeu que o mundo já se deu conta de sua minúscula estatura internacional, um ‘anão diplomático’, nas palavras de um porta-voz da chancelaria israelense em 2014. Uma das consequências disso foi a longa espera dos 34 brasileiros para sair da Faixa de Gaza, enfim encerrada hoje.

PS: o artigo foi publicado antes das notícias da saída deles esta manhã. (Walmir Buzzatto)

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Lula e o clube dos autoritários

Lourival Sant’Anna

O Estado de S. Paulo, 

12 de nov. de 2023

As manifestações de simpatia do presidente Lula pelos regimes do Irã, Rússia, China e Venezuela podem colocar em risco a segurança de cidadãos brasileiros e a reputação do País. Isso ficou claro mais uma vez na forma como os brasileiros ficaram no fim da fila de autorizações de saída da Faixa de Gaza e na revelação da Polícia Federal de que o Hezbollah poderia estar tramando ataques no Brasil.

Dez dias depois das atrocidades cometidas pelo Hamas em Israel, Lula telefonou para o presidente iraniano, Ebrahim Raisi, para discutir a crise e a autorização para a saída dos 34 brasileiros e parentes. O Irã patrocina o Hamas e o Hezbollah. É o principal inimigo de Israel e adversário também do Egito, os dois países que têm a chave do posto de fronteira de Rafah.

SIGILO. A principal inimiga da ditadura militar egípcia, a Irmandade Muçulmana, inspirou a criação do Hamas, em 1987, e é sua aliada, com presença estratégica na Península do Sinai, que liga o Egito à Faixa de Gaza.

Se o presidente acreditava que essa gestão era absolutamente imprescindível para obter do Hamas a liberação dos brasileiros, ele deveria ter mantido a conversa em sigilo. Entretanto, como tem feito também em relação a outros governantes que desafiam o status quo e o direito internacionais, Lula fez alarde sobre a aproximação.

Aparentemente, o propósito era demonstrar sua estatura internacional e capacidade de articulação. Além disso, em uma live inflamada, Lula chamou de “insanidade” o bombardeio israelense à Faixa de Gaza. Para completar, o assessor do presidente para assuntos internacionais, Celso Amorim, acusou Israel de “genocídio”, em conferência internacional em Paris, na quinta-feira.

CRIMES. A discussão aqui não é isentar um dos lados do conflito. Como disse Volker Türk, comissário da ONU para os direitos humanos, tanto o Hamas quanto Israel cometeram crimes de guerra no mês que passou. É melhor deixar isso na boca de um especialista como ele. E, definitivamente, evitar palavras com uma grande carga de acusação.

No auge da crise nuclear iraniana, Lula tratava o então presidente Mahmoud Ahmadinejad como amigo. Junto com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, outro autocrata violador de direitos humanos, Lula negociou uma suposta solução para a crise que só atendia aos interesses iranianos.

Em 2014, durante uma das cinco guerras que o Hamas provocou com Israel, a então presidente Dilma Rousseff convocou seu embaixador de volta de Tel-Aviv, por considerar os bombardeios israelenses à Faixa de Gaza desproporcionais. Um porta-voz da chancelaria de Israel chamou o Brasil de “anão diplomático”.

O histórico de atritos entre Israel e os governos petistas contrasta com o período róseo do governo de Jair Bolsonaro,

interessado em agradar sua base evangélica. Essa corrente se identifica com o Velho Testamento, que define os judeus como povo escolhido, e profetiza que, quando eles construírem o Terceiro Templo em Jerusalém, o Messias voltará para o Juízo Final.

A exemplo de Donald Trump, Bolsonaro prometeu transferir a embaixada de TelAviv para Jerusalém, o que viola a lei internacional. Segundo inúmeras resoluções da ONU, Israel ocupa Jerusalém ilegalmente e o status final da cidade será negociado junto com a criação de um Estado palestino. Bolsonaro recuou por causa da reação negativa do mundo árabe, importante destino das exportações brasileiras.

PREFERÊNCIA. A predileção de Israel por Bolsonaro foi explicitada pelo encontro, na terça-feira, do embaixador israelense Daniel Zohar Zonshine com o ex-presidente e deputados de direita na Câmara, aonde ele foi mostrar vídeos dos ataques do Hamas. O encontro violou a etiqueta diplomática e azedou de vez as relações entre os dois governos.

Com cerca de 7 mil palestinos com dupla nacionalidade desesperados para deixar a Faixa de Gaza bombardeada há mais de um mês, Israel e Egito priorizaram os cidadãos de países amigos, ou pelo menos que não sejam gratuitamente hostis. Funcionários israelenses garantiram publicamente que Israel não interferia na seleção dos cidadãos. Tanto não era verdade que foi o chanceler de Israel, Eli Cohen, que comunicou o do Brasil, Mauro Vieira, que os brasileiros tinham sido finalmente autorizados a sair. O órgão israelense encarregado dessa tarefa é a Coordenação das Atividades do Governo nos Territórios (Cogat).

ATENTADOS. O Hezbollah é acusado de ter cometido, com apoio de agentes iranianos, dois atentados a bomba nos anos 90 em Buenos Aires, contra a Embaixada de Israel e a Associação Mutual Israelita Argentina, que deixaram um total de 115 mortos.

Alberto Nisman, um dos procuradores do caso, acusou em 2015 a então presidente Cristina Kirchner de tentar acobertar o envolvimento do Irã. Horas antes de apresentar evidências disso ao Congresso argentino, ele foi morto com um tiro na cabeça em seu apartamento.

Lula é muito próximo de Kirchner, além do próprio Irã e de seus principais aliados: China, Rússia e Venezuela. Isso poderia servir de incentivo para Hezbollah e Irã agirem no Brasil, com a expectativa, mesmo que injustificada, de contar com a complacência do governo. Reputação é algo muito importante, e indissociável da segurança. •

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Referendo venezuelano para anexar metade da Guiana: um desafio para o Brasil - Marcelo Godoy (OESP)

A ameaça bélica que vem da Venezuela e vira dor de cabeça para os EUA e para Lula 

Marcelo Godoy

O Estado de S. Paulo, 8/11/2023

Regime de Maduro convoca referendo para população votar sobre anexação de mais de metade da Guiana; generais venezuelanos apoiam ação São cinco perguntas.


 Elas serão respondidas no dia 3 de dezembro pelos venezuelanos no referendo convocado pelo regime de Maduro para saber se o país deve anexar pouco mais da metade da vizinha Guiana. No momento em que o mundo vive as guerras da Ucrânia e de Gaza e assiste à ameaça chinesa a Taiwan, a Venezuela leva adiante o plano de tomar o território de Essequibo, uma área de 159 mil km² rica em petróleo e minérios. 

 Trata-se de uma disputa territorial que tem origem no século 19, quando a Inglaterra reclamou a região como parte de sua Guiana. Uma arbitragem internacional patrocinada pelos EUA lhe deu razão. O resultado foi contestado pela Venezuela e nova discussão ocorreu em 1966, quando a Guiana se tornou independente. Tudo foi retomado agora por Nicolás Maduro. Como resposta ao referendo do vizinho, a Guiana apelou à Corte Internacional de Justiça de Haia, a fim de que ação venezuelana seja declarada ilegal. A Corte se reunirá para examinar o caso no dia 14. 

O problema é que a disputa deixou de ser entre uma potência colonial e uma nação sul-americana para envolver dois países da América do Sul. Enquanto isso, o ministro da Defesa da Venezuela, general Vladimir Padrino, manifesta-se diariamente pela anexação do território entre os Rios Cuyuni e Essequibo. O general, um dos homens fortes do regime, disse no dia 25 de outubro: “Nós nos somamos ao poder eleitoral nessa consulta popular para a defesa da Guiana Essequiba, um dever das e dos venezuelano. 

Nos vemos no dia 3 de dezembro!” O general Domingo Hernández Lárez, comandante estratégico-operacional das Forças Armadas da Venezuela, também fez publicações apoiando o referendo: “O Essequibo é da Venezuela!”. Vídeos com deslocamento de tropas para a “frente de Essequibo”, próxima a Roraima, foram publicados, como o do vice-almirante Ashraf Abdel Hadi Suleimán Gutiérrez, que disse à tropa formada: “Esse território, por sua história, pela lei e pela tradição é da Venezuela”. Em seguida, ouve-se os “urras” de seu soldados. 

O próprio Maduro publicou imagens de desfiles militares com a palavras de ordens sobre Essequibo. Diante da escalada, pode-se perguntar: além do direito internacional, de quais meios de dissuasão a Guiana dispõe? O maior é o Comando Sul, dos EUA, país cujos recursos já estão ocupados em se opor ao Irã, à Rússia e à China. Os marines se exercitaram em Georgetown em julho. A um ano do voto, Biden vê surgir nova ameaça. E o que o Itamaraty tem a dizer sobre a crise que se avizinha? Tudo pode ser só mais uma bravata de Maduro. Mas, se há dúvida, quem vai garantir a integridade da Guiana até Haia se manifestar? Ou Lula vai pedir a paz só depois de um novo fato consumado? 

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Resposta do governo Lula a atentados terroristas do Hamas expõe influência de Celso Amorim no Itamaraty - Felipe Frazão (OESP)

Resposta do governo Lula a atentados terroristas do Hamas expõe influência de Celso Amorim no Itamaraty

Felipe Frazão

O Estado de S. Paulo11 de outubro de 2023 | 20:30

A reação do governo aos atentados terroristas do Hamas contra Israel e às mortes de dois cidadãos brasileiros nos ataques se tornou nos últimos dias alvo de críticas nas redes sociais e em círculos políticos e diplomáticos em virtude da hesitação em condenar o grupo terrorista palestino. As notas de pesar divulgadas pelo Itamaraty sobre as mortes de Ranani Nidejelski Glazer e Bruna Valeanu, ambos de 24 anos, também provocaram ruído por um tom considerado frio e insensível.

Diplomatas e especialistas consultados pelo Estadão apontam que as posições ideológicas do assessor de assuntos internacionais Celso Amorim sobre política externa e diplomacia muitas vezes se sobrepõem à linha mais técnica do Itamaraty em muitas questões. É o caso da Guerra da Ucrânia, do alinhamento ocasional do Brasil ao eixo Rússia-China e, agora, da crise em Gaza. No caso do Oriente Médio, sobretudo, Amorim já demostrou publicamente, em diversas ocasiões, uma simpatia pelo lado palestino no conflito.

Segundo um embaixador que acompanha as discussões internas do Itamaraty, e pediu para não ter o nome divulgado, houve uma involução no posicionamento da chancelaria desde o início da crise em Israel no sábado, 7.

“ Tínhamos que ter uma posição mais firme. O Itamaraty decidiu condenar os ataques (na nota de 7 de outubro) e depois eles voltaram atrás, provavelmente sob pressão do PT e outras agremiações de esquerda”, disse a fonte. “Neste caso tem de condenar e transmitir apoio, apesar do histórico de equidistância. O Hamas sempre desejou impedir o processo de paz”.

O Itamaraty e Amorim foram procurados, mas até a última atualização desta reportagem não enviaram resposta. O espaço está aberto.

‘Antiamericanismo infantil’

Amorim participou de uma reunião no Palácio do Itamaraty no domingo, 7, com o ministro da Defesa, José Múcio, e a chanceler interina, Maria Laura da Rocha, para discutir os atentados do Hamas e a situação dos brasileiros na região.

Após os atentados, Celso Amorim condenou os ataques, mas disse que eles eram consequências da violência de Israel contra o povo palestino. “O atual conflito não é um fato isolado. Vem depois de anos e anos de tratamento discriminatório, de violências, não só na própria Faixa de Gaza, mas também na Cisjordânia”, disse o assessor, que foi chanceler durante os primeiros mandatos de Lula.

Para o ex-embaixador Paulo Roberto de Almeida, que serviu em Genebra, Paris e no Leste Europeu, a visão de Lula, Amorim e do PT se sobrepõe à do Itamaraty e, hoje, resulta na execução de uma política externa que contesta a liderança dos Estados Unidos no cenário global.

“Lula, Amorim e o PT consideram essa liderança contrária aos interesses de longo prazo do Brasil”, disse. “Eles padecem de um anti-imperialismo anacrônico e de um antiamericano infantil”.

Na avaliação do diplomata, a atuação da chancelaria na crise em Gaza é reflexo dessa influência de Amorim sobre a política externa. “O Itamaraty, parte submissa dessa coalizão primariamente esquerdista, tem de se submeter à vontade de seus controladores, e tem feito um papel lamentável tanto na emissão de declarações externas, quanto na publicação de notas patéticas, nas quais o principal objetivo é escamotear a realidade”, completa.

Condenação x cautela

Na terça-feira, o chanceler Mauro Vieira voltou a defender um fim da violência em Gaza, mais uma vez sem condenar o terrorismo do Hamas. “A posição do Brasil é a de que os atos violentos devem ser interrompidos e deve haver cessação de hostilidades. Evidente que condenamos a violência e o derramamento de sangue, mas achamos que, sobretudo com o Brasil na presidência do Conselho de segurança, precisamos trabalhar para o fim das hostilidades e uma negociação de paz”, disse o chanceler à Voz Brasil.

Diplomatas reconhecem que a posição histórica de equidistância do Brasil em relação ao conflito no Oriente Médio, aliada ao fato de o País estar no comando temporário do Conselho de Segurança da ONU aumentam a necessidade de a chancelaria se manifestar com cautela. Ao mesmo tempo, a morte de cidadãos brasileiros nos atentados e a possibilidade de haver reféns nascidos no País nas mãos do Hamas exigem uma condenação mais firme.

Críticas

“Uma nota do Itamaraty chega ao ridículo de falar do “falecimento” de brasileiro em Israel, o que é uma ofensa à família e um atentado à verdade objetiva dos fatos”, lembra Paulo Roberto de Almeida. “O que vale para a comunidade internacional são as notas do Itamaraty, que significam posição de governo, e estas até agora têm descurado completamente as expressões terrorismo e Hamas”.

André Lajst , cientista político e presidente-executivo da StandWithUs Brasil, uma ONG pró-Israel, defende que o governo precisa ser mais enérgico, especialmente com relação a morte de brasileiros. E citar nominalmente o Hamas, que atacou Israel, ao condenar o terrorismo.

“Por algum motivo, que a gente ainda não sabe qual é, o governo brasileiro insistentemente prefere não mencionar o Hamas, fala em ataque, fala em terrorismo, se solidariza com as vítimas de ambos os lados”, aponta Lajst. “Sem querer — ou querendo — faz uma equivalência de solidariedade e, claro que deve haver solidariedade a todas as vítimas civis, mas a situação não é equilibrada. Tem um país que está se defendendo e um grupo terrorista que está atacando”.

A posição de Lula

No dia dos atentados, no entanto, o petista condenou os ataques do Hamas. “Fiquei chocado com os ataques terroristas realizados hoje contra civis em Israel, que causaram numerosas vítimas. Ao expressar minhas condolências aos familiares das vítimas, reafirmo meu repúdio ao terrorismo em qualquer de suas formas”, disse o presidente.

Nesta quarta, Lula fez um apelo direcionado para ao secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, e para a comunidade internacional, pedindo a liberação de crianças palestinas e israelenses sequestradas e mantidas como reféns durante o confronto entre Hamas e Israel.

Amorim e os palestinos

Quando comandava o Itamaraty, em 2010, Amorim foi um dos entusiastas do reconhecimento da independência da Palestina como independente pelo Estado brasileiro, atendendo a um pedido do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas.

Na apresentação da edição brasileira do livro Engajando o mundo: a construção da política externa do Hamas, escrito pelo pesquisador britânico Daud Abdullah, Amorim chegou a elogiar o grupo terrorista palestino.

“Como firme defensor dos direitos palestinos e defensor de uma solução por meios pacíficos, fiquei muito encorajado com as palavras finais do autor: através de maiores esforços diplomáticos e alianças globais, ‘o Hamas pode desempenhar um papel central na restauração dos direitos palestinos’”, diz o assessor na apresentação do livro, publicado no começo deste ano.

Felipe Frazão/Luiz Raatz/Estadão