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segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Declínio para a Rússia é problema para o mundo - Oliver Stuenkel (O Estado de S. Paulo)

 Declínio para a Rússia é problema para o mundo 

Oliver Stuenkel
O Estado de S. Paulo, 28/08/2023

Uma das principais fontes de instabilidade internacional são deslocamentos de poder. Um exemplo clássico disso são nações que se encontram em franca ascensão: confiantes, suas lideranças políticas muitas vezes buscam uma atuação internacional mais assertiva, investem em seu poder militar e acabam desafiando potências já estabelecidas. A ascensão dos EUA há cem anos e a da China ao longo das últimas décadas são exemplos clássicos de como a emergência de uma grande potência pode fragilizar o status quo. O atual caso da Rússia, porém, mostra que o declínio de um ator relevante também pode representar um risco, criando vácuos de poder em suas fronteiras ou deixando suas lideranças políticas mais agressivas para compensar os fracassos no âmbito doméstico. O atual declínio russo independe do desfecho da invasão russa à Ucrânia ou do destino político do presidente Vladimir Putin. Os problemas da nação de maior extensão do planeta são mais fundamentais e se refletem nos chocantes dados demográficos: por exemplo, um homem russo com 15 anos de idade hoje tem a mesma expectativa de vida de um homem no Haiti, país em estado de anarquia e há décadas o mais pobre das Américas. Trata-se de uma expectativa de vida mais baixa que a do Iêmen e a do Zimbábue, que figuram entre os países mais pobres do planeta. Na média, um homem russo morre 18 anos antes de um homem japonês. À primeira vista, poderia se presumir que o dado se deve ao elevado número de fatalidades de soldados russos na invasão à Ucrânia. Porém, trata-se de dados oficiais do governo russo, coletados antes do início da guerra. Desde a invasão russa à Ucrânia, a situação demográfica piorou ainda mais: estima-se que 120 mil soldados russos morreram nas batalhas, e aproximadamente 900 mil russos emigraram, muitos deles jovens, representando em torno de 1% da força laboral do país. De acordo com o ministério das Comunicações do governo russo, 10% de todos os profissionais da área de TI emigraram desde o início da guerra, verdadeira catástrofe econômica considerando a importância estratégica do setor. Uma consequência da baixa expectativa de vida dos homens, da guerra e da fuga ao exílio é o desequilíbrio de gênero. Hoje, na Rússia, há 10 milhões de mulheres a mais do que homens. Não se trata de um problema recente: entre 1993 e 2009, por exemplo, a população russa encolheu em quase seis milhões (dados oficiais mostram um aumento recente, que se deve à anexação da península ucraniana da Crimeia). Tudo isso é ainda mais notável porque a Rússia não é um país pobre. É urbanizado, possui indústrias altamente sofisticadas — sobretudo no setor bélico —, a maior quantidade de armas nucleares do mundo, uma produção cultural admirada mundo afora e uma taxa de alfabetização de quase 100%. Além disso, goza de grandes reservas de petróleo e gás, e é o maior exportador mundial de trigo — beneficiando-se, inclusive, das mudanças climáticas, que aumentam a quantidade de terras férteis. Vários outros países ao redor do mundo, sobretudo no Leste Asiático e na Europa, sofrem com crises demográficas. Nenhum deles, porém, sofre com uma baixa tão grande da expectativa de vida ou uma fuga de elites qualificadas tão expressiva. Diferentemente da Rússia, a Europa atrai, a cada ano, milhões de migrantes jovens e motivados. A crise demográfica russa e a emigração de pessoas qualificadas — produto de problemas profundos no país — são elementos-chave para compreender a constante glorificação por Vladimir Putin do “russki mir” (mundo russo), a retórica nostálgica de um passado mistificado, a demonização do Ocidente e a política externa mais agressiva, envolvendo guerras contra vizinhos menores como a Georgia e, mais recentemente, a Ucrânia, que ajudam promover o nacionalismo e a sensação permanente de estar sob ameaça externa. Como ficou evidente no último 23 de agosto, quando o avião de Yevgeny Prigozhin, chefe do grupo Wagner, caiu perto de Moscou, um conflito militar de grandes dimensões ajuda não apenas a desviar a atenção pública de outros problemas, como também para promover expurgos e eliminar opositores com mais facilidade — presumindo que, como acreditam numerosos analistas, o governo russo tenha ligação com a morte do mercenário. Por fim, um líder sabidamente preocupado com seu legado nos livros de história, como Putin, também sabe que, apesar de ter ajudado a estabilizar o país na virada do século, seu saldo desde então é, predominantemente, negativo, e difícil de ser revertido — a não ser que seja lembrado por ter liderado a expansão territorial da Rússia. Não por acaso, em conversa com um oligarca russo no início da invasão à Ucrânia, o chanceler russo Lavrov — que não havia sido informado com antecedência sobre a decisão do presidente, disse: “(Putin) tem três conselheiros: Ivã IV, Pedro o Grande e Catarina II” — todos lembrados por suas conquistas territoriais. 

domingo, 9 de julho de 2023

Bric-Brics e agora Brics+: onde está o interesse nacional brasileiro? - Paulo Roberto de Almeida e Oliver Stuenkel


O BRIC-BRICS SEMPRE FOI RUIM PARA O BRASIL: O BRICS+ SERÁ PIOR

Paulo Roberto de Almeida

 O BRIC (2006-2009) foi uma decisão equivocada, estrategicamente destruidora da autonomia em política externa, objetivo perseguido pela diplomacia brasileira desde sempre, adotada por um governo, o de Lula 1, claramente antiamericano e antiocidental, praticante de uma diplomacia partidária, sectária, enviesada e contrária aos interesses nacionais maiores do Brasil; já o ingresso da África do Sul (em 2011) representou uma imposição chinesa, que tende a se reproduzir agora na ampliação do BRICS, que só interessa à China e à Rússia. 

A decisão errada adotada entre 2006-2009, depois ampliada em 2011, agora ameaça de vez a pretensa autonomia da política externa do Brasil. O “bebê” acalentado de forma excessivamente otimista ao inicio, agora se transformou num “jovem” problemático, que serve a outros interesses que não os do Brasil. 

Não sei como Oliver Stuenkel ainda não percebeu isso. Meu livro sobre A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira (Kindle Amazon, 2022) aprofunda esse debate. 

Paulo Roberto de Almeida

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AMPLIAR O BRICS É RUIM PARA O BRASIL!

Oliver Stuenkel

Analista político e professor de relações internacionais da FGV em São Paulo

 O Estado de S. Paulo, 3/07/2023

No próximo dia 22 de agosto, os líderes do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul se reunirão em Joanesburgo para a 15ª cúpula do Brics. Por vários motivos, será o encontro mais importante da história do bloco, que se transformou em um grupo geopolítico em 2009, ano de sua primeira cúpula.

Em primeiro lugar, o anfitrião precisa lidar com uma situação diplomática delicada: como signatária do Tribunal Penal Internacional (TPI), a África do Sul tem a obrigação de prender o presidente russo se ele comparecer à reunião, pois o TPI emitiu, em março, mandado de prisão contra Vladimir Putin pela deportação ilegal de crianças ucranianas para a Rússia.

Nos últimos meses, o governo sul-africano até considerou transferir a cúpula para a China – que não é signatária do TPI. Afinal, como o ex-presidente sul-africano Thabo Mbeki apontou recentemente: “Não podemos dizer ao presidente Putin, ‘por favor, venha para a África do Sul’ e depois prendê-lo. Ao mesmo tempo, não podemos dizer ‘venha para a África do Sul’ e não o prender – porque estamos violando nossa própria lei”.

Porém, ao que tudo indica, é justamente isso que o governo sul-africano fará, atitude que não apenas representaria um triunfo diplomático para Putin, mas também fortaleceria o grupo Brics: afinal, o país se mostraria disposto a violar sua própria legislação para preservar a tradição diplomática das cúpulas do Brics, às quais até hoje nenhum presidente deixou de comparecer.

Em segundo lugar, em Joanesburgo o grupo estará diante da decisão mais importante de sua história: criar ou não um processo formal para admitir novos integrantes. Em 2010, a China conseguiu convencer o Brasil, a Rússia e a Índia a agregar a África do Sul, argumentando que incluir um país africano dava ao Brics mais legitimidade para falar em nome do mundo em desenvolvimento.

Parte da motivação, porém, provavelmente foi o desejo chinês de tornar supérfluo o IBAS – grupo criado em 2003 composto por Índia, Brasil e África do Sul – pois a consolidação de um agrupamento de três grandes democracias no Sul Global não era do interesse de Pequim. De fato, em 2013, o IBAS, uma das principais inovações da política externa do primeiro mandato Lula, perdeu relevância.

Desde 2017, a China promove sua visão de um Brics ampliado, e perto de 20 países – entre eles o Egito, o Irã, a Argentina e a Arábia Saudita – sinalizaram o interesse em aderir. Como a China, cujo PIB é maior do que de todos os outros integrantes somados, sempre será vista como líder do grupo, a expansão faz sentido para Pequim, e um Brics com dez ou vinte integrantes pode ajudar a formalizar a enorme influência econômica e política que a China já exerce globalmente. Para a Rússia, a expansão também faz sentido para se proteger do crescente isolamento diplomático.

Para a Índia e o Brasil, porém, ampliar o grupo teria um custo estratégico significativo: um Brics diluído dificilmente traria o mesmo prestígio, status e exclusividade que oferece hoje. É em parte graças ao Brics que o Brasil ainda é visto como uma potência em ascensão, apesar de estar em estagnação há uma década. Enquanto Nova Deli e Brasília têm a capacidade de vetar decisões em um agrupamento de cinco países, é bem mais difícil exercer a mesma influência em uma aliança de dez ou vinte, onde o maior objetivo dos novos integrantes é fortalecer laços econômicos com a China.

Além disso, é importante lembrar que vários dos países que buscam aderir ao grupo adotam uma estratégia explicitamente anti-ocidental, contrária à estratégia brasileira e indiana de articular uma postura de não-alinhamento no contexto das crescentes tensões entre os EUA e a China. Um Brics que inclua a Venezuela, o Irã e a Síria dificultaria garantir que as declarações finais das cúpulas tenham um tom moderado.

A participação brasileira do grupo Brics, do jeito que está, produz vantagens concretas para o Brasil, trazendo prestígio diplomático e facilitando o diálogo com quatro atores-chave no sistema internacional com os quais o País não tinha relação estreita há apenas duas décadas. Aceitar um Brics ampliado equivaleria a abrir mão desses benefícios.


segunda-feira, 5 de junho de 2023

Política externa brasileira sofre de excesso de diplomacia presidencial - Oliver Stuenkel (Estadão)

Tenho um capítulo sobre os péssimos efeitos da diplomacia presidencial em meu livro Apogeu e demolição da política externa (Appris, 2021). 



Política externa brasileira sofre de excesso de diplomacia presidencial

Por Oliver Stuenkel
04/06/2023 | 22h00

Ao longo dos primeiros cinco meses de governo, o presidente brasileiro obteve uma série de êxitos notáveis na política externa. Em meio a um alívio generalizado com a saída de Jair Bolsonaro em capitais mundo afora, a mensagem de Lula de que o Brasil “está de volta”, articulada durante a COP-27 no Egito em novembro do ano passado, surtiu efeito: o governo brasileiro conseguiu normalizar suas relações com seus os principais parceiros e ainda obteve promessas de importantes aportes financeiros para apoiar o país no combate ao desmatamento da Amazônia. Mesmo sendo conquistas relativamente fáceis – conhecidas no jargão diplomático como “low-hanging fruit” (algo de fácil alcance), é inegável que Lula, uma das lideranças políticas mais conhecidas do mundo, teve papel importante no processo de consolidar a narrativa da normalização para o público global.

Ao longo do mês passado, porém, o presidente gerou vários desgastes desnecessários que apontam os riscos da diplomacia presidencial. Afinal, com apenas uma frase, um chefe de Estado pode desfazer o trabalho de meses de sua equipe diplomática. O caso da Ucrânia é emblemático. A ideia de Lula de que o Brasil poderia participar de uma possível mediação no conflito em decorrência da invasão russa não é problemática em si. Porém, vem causando fricção a forma errática como o presidente brasileiro tem conduzido a política externa em relação ao conflito. Em vez de promover o diálogo a portas fechadas e testar diferentes ideias nos bastidores, Lula fez inúmeras declarações públicas que causaram consternação no Ocidente – e particularmente em Kiev. Por exemplo: ao sugerir publicamente que a Ucrânia ceda a Crimeia aos russos para negociar a paz – sem averiguar primeiro, a portas fechadas, como a proposta seria recebida –, prejudicou sua própria imagem, reduziu as chances de o Brasil ser aceito por Kiev como mediador e gerou tensões facilmente evitáveis com os EUA e vários países europeus. O presidente turco Recep Erdogan, por outro lado, atuou de forma muito mais discreta, porém com um papel-chave, na negociação entre Kiev e Moscou, de um acordo que permite a exportação de grãos ucranianos.

Outro desgaste desnecessário se deu na semana passada, quando uma série de comentários desastrados de Lula sobre a situação na Venezuela – inclusive exaltando a “legitimidade democrática” de Maduro – contaminou a cúpula dos líderes sul-americanos e obrigou os presidentes do Uruguai e do Chile a se distanciarem publicamente da visão do presidente brasileiro. O anfitrião, que havia organizado o encontro justamente para reconstruir pontes e fortalecer a convergência, fez com que a reunião fosse lembrada pela falta de consenso.

Agora que a lua de mel diplomática do governo brasileiro acabou, os próximos desafios externos serão bem mais complexos – e o custo de errar aumentará. No âmbito dos Brics, o Brasil sofrerá pressão imensa por parte da China e da Rússia, interessadas em ampliar o grupo para formar uma aliança anti-ocidental, algo que não é do interesse brasileiro. Declarações favoráveis à adesão da Venezuela aos Brics, feitas por Lula no calor do momento, terão um custo estratégico alto se ocorrerem no âmbito da cúpula do grupo, pois vão contra os esforços do Itamaraty de manter a exclusividade do grupo. Para o Brasil, fazer parte de um Brics diluído com integrantes menos relevantes – virando uma espécie de G77 – representaria imensa perda de prestígio.

Com as eleições argentinas se aproximando, assessores diplomáticos do presidente Lula terão que fazer de tudo para convencê-lo a não repetir os erros de Jair Bolsonaro e fazer comentários públicos a favor ou contra os candidatos no país vizinho, pois pode estragar a relação com quem quer que vença o pleito, mesmo antes da posse.

Tradicionalmente, desafios políticos internos atrapalham a condução da política externa, pois demandam muita dedicação e energia dos mandatários. No caso do governo Lula, porém, as recentes tensões entre o Planalto e o Congresso podem, paradoxalmente, ter um impacto positivo: com o presidente mais ocupado em Brasília, aumenta a chance de o chanceler Mauro Vieira ter mais controle sobre a condução da política externa e reduzir o risco de desgastes desnecessários. Um dos diplomatas mais experientes de sua geração, Vieira é conhecido por seu profissionalismo e sua discrição, atributos altamente relevantes para a política externa brasileira neste momento.


domingo, 28 de maio de 2023

O não-alinhamento alinhado com equívocos de uma outra era, e que continua desalinhado com a realidade - Foreign Policy, Paulo Roberto de Almeida

 A Foreign Policy dedica o seu número de 28 de maio de 2023 (sumário abaixo), ao tal de não-alinhamento (sobretudo do Brasil e da África do Sul), que eu já critiquei acerbamente neste meu texto: 

4328. “Não ao inaceitável “Não Alinhamento Ativo”, que só significa um Desalinhamento Passivo e Inativo”, Brasília, 26 fevereiro 2023, 1 p. Nota sobre a postura proposta ao fantasmagórico Sul Global de Não Alinhamento Ativo em relação ao conflito da Ucrânia. Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/02/nao-ao-inaceitavel-nao-alinhamento.html).

Não creio que eu precise acrescentar mais críticas e justificativas a esse equívoco.

A Ucrânia não merece isso. Em todo caso, aqui estão alguns artigos sobre essa coisa.


Flash Points: Is nonalignment nonsensical?

Foreign PolicyMay 28, 2023


terça-feira, 31 de janeiro de 2023

O difícil caminho do não alinhamento do Brasil - Oliver Stuenkel; A miragem dos Brics - Paulo Roberto de Almeida


  Acadêmicos receberam com grande entusiasmo a formação do grupo Brics, achando que seria finalmente a via para escapar do "hegemonismo ocidental". Eu sempre critiquei essa aliança contra natureza, essa ilusão descabida, um grande erro estratégico da diplomacia lulopetista. Muitos não gostaram, na diplomacia, mas não tenho por que esconder minha total desconformidade com essa miragem, como demonstrei por este livro publicado no ano passado: 

Paulo Roberto de Almeida: A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira (Brasília: Diplomatizzando, 2022, 187 p.; Kindle book; ISBN: 978-65-00-46587-7; ASIN: B0B3WC59F4; Apresentação link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/06/meu-proximo-kindle-sobre-miragem-dos.html). 

O difícil caminho do não alinhamento do Brasil

Por Oliver Stuenkel
O Estado de S. Paulo, 30/01/2023

Com a decisão do Ocidente de fornecer mais de cem tanques à Ucrânia e o debate crescente sobre uma possível tentativa de reconquistar a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, o conflito na Europa entra em nova fase. Depois de o governo Biden ter fornecido quase US$ 30 bilhões em ajuda militar aos ucranianos desde o início do conflito, uma derrota ucraniana seria um desastre político dificilmente aceitável para o presidente americano, que já está se preparando para sua campanha de reeleição.

Da mesma forma, uma conquista russa de Kiev – o que parece ser a meta da contraofensiva militar que o Kremlin prepara – causaria um terremoto político na Europa, onde o premiê alemão Olaf Scholz, depois de muita hesitação, decidiu aprovar o envio de tanques à Ucrânia, país a menos de 700 quilômetros da fronteira alemã. Há pouca dúvida de que avanços decisivos russos aumentariam a probabilidade de o Ocidente fornecer caças à Ucrânia, algo inimaginável no início do conflito.

Do lado russo, também aumentaram muito as apostas: com uma onda nacionalista varrendo o país, Vladimir Putin sabe que uma derrota militar na Ucrânia representaria grave ameaça política. Tudo indica que o presidente russo está disposto a fazer o máximo possível – inclusive uma mobilização geral, que implicaria o envio de centenas de milhares de soldados para o front – para vencer o conflito. O Kremlin admitiu que tomou a decisão pouco usual de recrutar presidiários, como mercenários do Grupo Wagner, 40 mil dos quais, segundo estimativas, estão lutando na Ucrânia.

Com a guerra cada vez mais intensa, tudo leva a crer que o conflito contaminará a geopolítica ainda mais do que no ano passado, tornando-se um dos temas prioritários a ser discutidos nas principais plataformas multilaterais, como o G-7, o G-20, e o grupo Brics. Essa é uma notícia ruim para o Brasil, que deve participar de reunião dos três grupos, afinal, enquanto o País tem como brilhar na questão climática – tema que pode ajudar a reconquistar o status de ator indispensável no sistema internacional –, o conflito na Ucrânia dificulta a estratégia de não-alinhamento, pilar da política externa brasileira.

Tanto no encontro do G-7 quanto na cúpula do Brics, o Brasil estará em uma posição pouco confortável. Situações como a do recente pedido do governo alemão para o envio de munição brasileira – feito dias antes da visita do premiê a Brasília e declinado pelo presidente Lula – se tornarão mais comuns. Enquanto o G-7 fará uma declaração condenando a Rússia nos termos mais explícitos e buscará intensificar o isolamento econômico de Moscou – algo que o governo brasileiro não apoia –, o Brasil terá de se empenhar para evitar que a declaração final do grupo Brics vire um manifesto pró-Rússia. Afinal, com a postura cada vez mais pró-Moscou da África do Sul, o Brasil é o integrante que mais tem a perder com um posicionamento anti-ocidental do bloco.

Essa tensão intra-Brics não é nova: certa vez, em reunião preparatória para a cúpula do grupo em Moscou, um participante russo afirmou em discurso que o Brics deveria se posicionar como “bloco anti-ocidental”, ideia prontamente criticada por um representante brasileiro, o qual lembrou que o Brasil também faz parte do Ocidente e, portanto, rejeita a caracterização.

Com os dois lados dobrando as apostas na guerra, o Brasil precisa se preparar para o cenário de uma conversa global cada vez mais monotemática, a qual deverá levar a uma intensificação das sanções econômicas contra a Rússia, a mais volatilidade dos preços de alimentos e a espaço cada vez mais estreito para construir acordos em outras áreas. As negociações para se chegar a um acordo nuclear com o Irã são o melhor exemplo: com o regime em Teerã fornecendo drones à Rússia, é pouca a disposição ocidental de negociar com o país.

É impossível prever o percurso da guerra, mas tanto a queda de Kiev aos russos – forçando Zelenski a fugir – quanto a reconquista ucraniana da Crimeia, que provavelmente levaria a uma queda de Putin – são possibilidades reais ao longo dos próximos anos. Ambos produziriam transformações significativas no sistema internacional: uma derrota russa na Ucrânia aumentaria as chances de instabilidade na Ásia Central, antigo quintal de Moscou, além de um possível atrito na sucessão presidencial russa. A queda de Zelenski poderia causar uma onda de refugiados ucranianos com profundas consequências para a Europa. Todos os cenários teriam consequências amplas para a economia brasileira e sua inserção internacional.

* É ANALISTA POLÍTICO E PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV EM SÃO PAULO


segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Os desafios do novo chanceler - Oliver Stuenkel (O Estado de S. Paulo)

 Os desafios do novo chanceler

Por Oliver Stuenkel
O Estado de S. Paulo, 02/01/2023 | 05h00

Com mais de 40 anos de experiência no Itamaraty, Mauro Vieira destoa dos principais nomes a ocuparem o Ministério das Relações Exteriores nos últimos anos. Ao contrário de José Serra, ele não recebeu a pasta como prêmio de consolação por não ter conseguido o cargo que ambicionava. Diferentemente de Ernesto Araújo, sua função não é usar o Itamaraty para satisfazer segmentos radicalizados da coalizão eleitoral do presidente e causar furor em grupos de Telegram.

A escolha de Lula por um nome técnico e experiente emite um sinal importante: mostra que a prioridade é colocar a política externa de volta ao trilho. Para isso, nomeou um diplomata que já ocupou cargos relevantes da carreira, tendo sido embaixador em Buenos Aires (2004 – 2010) e Washington (2010 – 2015) e representante permanente junto à ONU em Nova York (2016 – 2019). Vieira também foi chanceler do segundo governo Dilma (2015 – 2016), quando tentou equilibrar os pratos do Itamaraty em meio a cortes orçamentários e à falta de interesse da presidente pela pasta.

Quando as nuvens do impeachment começaram a se formar, ele atuou mais como servidor de Estado do que como político. Tentou blindar o ministério contra a crescente polarização e evitou dar grandes declarações públicas de apoio à presidente. Após a deposição de Dilma, fez questão de discursar na cerimônia de transmissão do cargo para José Serra, irritando a base petista, que considerou sua atitude desleal. Em 2018, Ernesto Araújo tentou humilhá-lo com uma remoção para a Croácia – posto considerado pouco relevante e incompatível com o status de um ex-ministro. Em vez de optar pela aposentadoria, Vieira aceitou o cargo sem dar um pio, permanecendo na capital Zagreb até o fim do ano passado.

Agora, seu desafio é liderar a restauração da diplomacia brasileira após o período mais vergonhoso da história do Itamaraty. Convencer o mundo de que o Brasil está de volta ao jogo diplomático deve ser a parte mais fácil da tarefa.

Após quatro anos de caos, os principais atores internacionais estão ansiosos por retomar relações amistosas com o País, e há uma verdadeira fila de presidentes e primeiros-ministros querendo marcar encontros com Lula. Dentro do Itamaraty, o clima também é de alívio pelo retorno da normalidade, e Araújo não parece ter tido sucesso em sua tentativa de doutrinar uma nova geração de diplomatas olavistas.

Mas o desafio de Vieira não se resume a ser melhor do que Araújo. A diplomacia brasileira precisa se adaptar a um contexto internacional bem mais complexo do que aquele do pré-bolsonarismo. No âmbito global, Rússia e China mantêm relações cada vez piores com o Ocidente, e o grande desafio do Brasil será manter laços frutíferos com ambos os lados.

Se até a eleição de Trump o sistema internacional vinha sendo estruturado pelo binômio cooperação e liberalização comercial, hoje o que impera é a competição geopolítica e a desglobalização. Essa dinâmica vem corroendo as bases de estruturas como a ONU, a OMC, o G-20 e o Brics, que eram justamente os palcos onde a diplomacia brasileira costumava brilhar. Foi por meio dessas instituições e de seus fóruns que o País conseguiu feitos como liderar uma complexa missão de paz no Haiti e se colocar como ator-chave nos debates sobre a intervenção militar na Líbia de Kadafi.

No plano regional, as coisas também não estão fáceis. Embora a grande maioria das nações da América do Sul atualmente sejam governadas por líderes de esquerda, esse cenário deve mudar em 2023. Na Argentina, por exemplo, é provável que Alberto Fernández seja desbancado por um opositor de direita – ou de extrema direita – em outubro. Vários outros vizinhos enfrentam um cenário de baixo crescimento econômico e altos níveis de descontentamento popular, que fazem com que as lideranças priorizem sua sobrevivência em vez da cooperação internacional.

Embora a nomeação de Vieira seja uma boa notícia, ela não será capaz de recompor o mundo pré-Bolsonaro, e é ilusório achar que o Brasil facilmente voltará a exercer o papel internacional que desempenhou há uma década. Com um palco mundial em frangalhos e condições internas bem mais incertas do que aquelas dos dois primeiros mandatos de Lula, a tarefa de Vieira é mais árdua do que glamourosa, e inclui restaurar o Itamaraty e formar uma nova geração de diplomatas capaz de reinventar a atuação brasileira no mundo.


terça-feira, 4 de outubro de 2022

Adeus política externa ativa? - Oliver Stuenkel (Estadão)

 Resultado das eleições torna menos plausível política externa assertiva do Brasil

Oliver Stuenkel
04/10/2022 | 10h00
Estadão

As numerosas vitórias de candidaturas bolsonaristas nas corridas para Senado, Câmara Federal e governos estaduais terão um profundo impacto na política externa brasileira ao longo dos próximos anos. Quem acreditava que a possível eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva permitiria que o Brasil pudesse simplesmente retomar uma agenda externa ambiciosa verá suas expectativas frustradas.

O ativismo externo do Brasil entre 1995 e 2013 só foi possível devido a um raro período de estabilidade política doméstica e consolidação democrática que começou com o Plano Real e terminou com a onda de manifestações de junho de 2013. A atuação internacional da época, que viu o Brasil liderar uma negociação de paz entre Peru e Equador em 1995, evitar um golpe no Paraguai em 1996, chefiar uma missão de paz no Haiti em 2004 e virar membro fundador do grupo Brics nos anos seguintes, só foi possível porque os presidentes podiam dar-se ao luxo de não se preocupar permanentemente com as tensões políticas internas que viraram regra ao longo da última década. Sem estabilidade política doméstica, nenhum presidente brasileiro tem como assumir a liderança no plano internacional.

Se Lula for eleito em 30 de outubro, é provável que enfrente uma resistência política enorme do Legislativo desde seu primeiro dia de mandato, demandando atenção redobrada ao cenário político interno. Liderar grandes iniciativas globais – seja no âmbito da saúde global, seja da crise de refúgio na Venezuela, seja qualquer outra área que requeira diplomacia presidencial – será bem mais difícil.

Da mesma forma, o forte desempenho de candidatos como Ricardo Salles, um dos deputados mais votados no Estado de São Paulo, dificultará as tentativas de um possível governo Lula de tornar o Brasil em um dos atores globais no combate ao desmatamento. Não passou despercebido no exterior que Salles, ex-ministro do Meio Ambiente, persona non grata em Washington, Berlim e Oslo, ganhou muitos mais votos do que Marina Silva, ícone mundial no combate às mudanças climáticas, e que outros candidatos ambientalistas, como a deputada Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita para a Câmara, não conseguiram se reeleger. Ricardo Galvão, ambientalista conhecido no exterior, também não se elegeu.

Se Bolsonaro conseguir a reeleição, mesmo um cenário político interno estável não levará a grandes iniciativas internacionais: tanto como o trumpismo, o bolsonarismo não vê nos fóruns multilaterais uma oportunidade para defender o interesse nacional brasileiro. Pelo contrário: na leitura do presidente, instituições como a ONU representam uma ameaça à soberania brasileira, o que explica o Brasil ter abraçado uma posição antimultilateral, levando a uma perda inédita da influência brasileira no âmbito externo.


terça-feira, 9 de agosto de 2022

Eleições brasileiras de 2022: desimportância do Brasil no contexto da crise geopolítica mundial - Oliver Stuenkel (OESP)

 O mundo não vai ficar olhando para o Brasil, golpe ou não golpe, pois existem problemas mais dramáticos na agenda das grandes potências.


Eleições no Brasil perdem visibilidade por causa da crise geopolítica global

Guerra na Ucrânia, tensão sobre Taiwan e eleições nos EUA e na Itália tiram pleito brasileiro da lista de prioridades nas capitais internacionais

Estadão, 09/08/2022 | 10h05
Coluna
Oliver Stuenkel

O mundo vive hoje a mais séria crise geopolítica desde o colapso da União Soviética há mais de trinta anos. Tanto a guerra na Ucrânia quanto a tensão envolvendo Taiwan, China e Estados Unidos não terão solução simples e devem elevar o nível de instabilidade global por tempo indeterminado. Além disso, as eleições gerais na Itália em setembro e as parlamentares nos Estados Unidos em novembro absorvem a atenção de diplomatas mundo afora, haja vista o impacto que os resultados desses pleitos terão para além de suas respectivas fronteiras. Se a aliança da direita nacionalista obtiver maioria parlamentar em Roma, como as pesquisas sugerem atualmente, a Itália poderá minar a união ocidental em torno das sanções econômicas contra a Rússia. Se o Partido Republicano conseguir retomar a maioria das cadeiras na Câmara e no Senado dos EUA, o governo Biden ficará praticamente paralisado até o fim de seu mandato, e aumentará a preocupação europeia com o possível retorno de um trumpista à Casa Branca – afinal, como relata John Bolton, ex-assessor do presidente Trump, o ex-presidente republicano planejava tirar os EUA da OTAN no segundo mandato, passo que produziria verdadeiro cataclismo geopolítico mundial.

Diante de tantos focos de instabilidade, agravados pela expectativa de uma onda de calotes no mundo em desenvolvimento e uma possível crise de fome por causa da guerra na Ucrânia, o pleito brasileiro em outubro não aparece hoje na lista dos principais desafios geopolíticos. Para empresas multinacionais, por exemplo, a possibilidade de uma aproximação diplomática da Itália com a Rússia pode ter mais impacto nos mercados do que um “6 de janeiro à brasileira”.

Mesmo para governos latino-americanos, o resultado das ‘midterms’ norte-americanas pode ter consequências mais amplas do que as eleições brasileiras, devido, entre outros fatores, ao papel cada vez mais tímido do Brasil na arena internacional ao longo dos últimos anos. De fato, é difícil lembrar qual foi a mais recente iniciativa diplomática brasileira na América Latina, no G20, no grupo BRICS ou em qualquer outro fórum multilateral. Diante da provável piora na relação entre o Ocidente e a Rússia e a crescente tensão envolvendo Taiwan, futuros governos brasileiros terão cada vez mais dificuldade em pautar a agenda global.

Isso não quer dizer que observadores internacionais não estejam de olho no cenário eleitoral brasileiro. Não há dúvida, porém, de que o tempo e a atenção que a imprensa e outros formadores de opinião mundo afora reservarão às eleições brasileiras em outubro serão mais limitados. Na prática, essa situação também reduz a disposição de governos no exterior de tomarem a dianteira diplomática se houver qualquer tipo de instabilidade pós-eleitoral no Brasil – por exemplo, pressionando o candidato derrotado a reconhecer logo o resultado das urnas caso demonstre resistência a fazê-lo. Afinal, se há um consenso nas chancelarias mundo afora é o de que a humanidade não precisa de mais uma crise geopolítica.

https://www.estadao.com.br/politica/instabilidade-geopolitica-global-reduz-atencao-internacional-as-eleicoes-brasileiras/

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Sem Ernesto Araújo, Itamaraty retorna à discrição e ensaia moderação - Renato Vasconcelos (OESP)

Sem Ernesto Araújo, Itamaraty retorna à discrição e ensaia moderação

Grande desafio da gestão de Carlos Alberto França é equilibrar interesses do Brasil no duelo EUA-China, em meio à retórica 'antiglobalista' de Bolsonaro

O Estado de S.Paulo
Renato Vasconcelos
07/07/2021, 05:00

Cem dias após a saída de Ernesto Araújo, o Itamaraty ainda tenta recuperar o pragmatismo e a moderação de outrora, características esquecidas durante a gestão do ex-ministro. Sob a liderança do novo chanceler, Carlos Alberto França, a diplomacia brasileira vem trabalhando com discrição , na avaliação de ex-embaixadores e especialistas em política internacional ouvidos pelo Estadão , mas questões de política interna ainda travam mudanças mais significativas na condução da diplomacia brasileira. Apesar disso, a tensão interna no Itamaraty, que marcou os dias turbulentos vividos na gestão Araújo, ficou para trás.

"Não se podia esperar transformações em profundidade, porque o ministro é um auxiliar do presidente da República, e as linhas gerais de política externa são dadas por aquele que ganhou as eleições. Carlos França trouxe uma mudança de estilo, que é completamente oposto ao de Ernesto Araújo. Ele não é um militante político, alguém que faz parte do esquema de poder do presidente, mas sim um funcionário do Estado", afirmou o ex-embaixador brasileiro em Washington e ex-ministro da Fazendo, Rubens Ricupero.

A mudança de estilo foi notada pelo também ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Rubens Barbosa. "Mudou o estilo, mudou a retórica e outra grande diferença é a disposição de reconstruir pontes, que foram dinamitadas pelo Ernesto Araújo, em restabelecer canais de comunicação”, analisou.

Carlos Alberto França assumiu o ministério das Relações Exteriores no dia 6 de abril, oito dias depois de Ernesto Araújo ser demitido do cargo. Promovido ao topo da carreira diplomática em 2019, França nunca chefiou um posto no serviço exterior, mas tem familiaridade com o poder: trabalhou no Planalto nos governos Fernando Henrique Cardoso, Dilma Rousseff e Michel Temer, sempre na área do Cerimonial.

Apesar da presumida falta de experiência do chanceler, a simples mudança de comando já foi suficiente para gerar um alívio nas pressões internas do Itamaraty, de acordo com o professor Oliver Stuenkel, coordenador do programa de pós-graduação da Escola de Relações Internacionais da FGV.

"Parte da missão do governo Bolsonaro, inicialmente, foi o desmonte do Itamaraty, que é mais difícil de ser politizado, em função de seu quadro altamente técnico, e a missão do Ernesto Araújo foi basicamente erudir o que a família Bolsonaro chamava de resistência globalista. O novo chanceler, aparentemente, não tem essa missão e trouxe um grau de normalidade à instituição", disse Stuenkel.

Ainda segundo o professor, o novo ministro demonstrou habilidade ao retirar a política externa do embate político interno. "Você não vê o chanceler radicalizando ainda mais o discurso, trazendo teorias da conspiração. Ele atua muito nos bastidores e busca desinflamar os temas de política externa."

Mas a postura não foi a única coisa que mudou no Itamaraty após a troca de comando. Dentro de suas atribuições - imerso na política externa estabelecida pelo governo Bolsonaro - a nova gestão já conseguiu atenuar posicionamentos do Planalto em temas internacionais, entre eles vacinação e clima, ambos destacados por França em seu discurso de posse.

"No tema da covid-19, voltamos a uma linha de sensatez, após a postura de Ernesto Araújo, que chegou a ser negacionista da pandemia. Agora temos uma linha mais positiva em relação à Organização Mundial de Saúde e à Covax Facility" disse Ricupero.

"A política ambiental também foi atenuada. Houve a carta ao presidente americano Joe Biden, a presença de Bolsonaro na Conferência do Clima... Agora vamos ver como o novo Ministro e o Itamaraty vão definir a posição do Brasil no Acordo de Paris", disse Barbosa.

Apesar da tentativa de mudança na narrativa da questão ambiental, Ricupero explica se tratar da linha mais frágil entre as agendas prioritárias do Itamaraty, por depender de mudanças reais no governo. "O papel (do MRE) tem sido tentar negar evidências. Isso diminui o poder de convencimento".

Foi na gestão França que o Itamaraty modulou o voto do Brasil sobre as sanções americanas a Cuba na ONU - enquanto o País se alinhou a Estados Unidos e Israel ao votar contra a retirada dos embargos, neste ano o País se absteve, deixando o bloco opositor.

Os analistas apontam que a nova fase do Itamaraty deve ser marcada por um maior pragmatismo, principalmente no que diz respeito à disputa por protagonismo entre Estados Unidos e China na América do Sul. Ao contrário do que aconteceu no começo do governo Bolsonaro, quando houve um alinhamento quase integral ao governo de Donald Trump.

O alinhamento não ocorreu apenas por causa da gestão de Ernesto Araújo. Ricupero aponta que a própria inclinação do presidente e do filho dele, Eduardo Bolsonaro, aos EUA acabaram por definir este papel, o que fez o Itamaraty se omitir de buscar o melhor posicionamento para o Brasil, uma vez que a derrota do ex-presidente americano na eleição do ano passado deixar o Brasil em uma situação em que é alvo de desconfiança tanto da China quanto do governo Biden.

Não bastasse a desconfiança, o Brasil mantém relações estreitas e importantes tanto com China quanto com Estados Unidos, sendo dependente de ambos em temas estratégicos. O antagonismo com a China - acentuado em alguns momentos - colocou em risco alguns dos principais setores econômicos do país, como o mercado de soja, cujo maior comprador é a China, e os EUA um dos nossos maiores concorrentes.

"Esse lado desapareceu (com a saída de Araújo), mas desapareceu também da parte do presidente. Talvez ele tenha aprendio a lição", diz Ricupero. "O que vai acabar acontecendo é que nós vamos ter uma relação pragmática. Caso a caso, vai se ver o interesse do Brasil".

O pensamento é endossado por Barbosa, que projeta uma posição de independência do Brasil em relação aos dois países. "Não tem como a gente prever, mas eu acho que o chanceler Carlos França vai continuar fazendo o possível para ser o fator de moderação na política externa brasileira".

Assim como Araújo não é o único responsável pelas omissões do Itamaraty na questão envolvendo a política externa da vacina e o alinhamento aos EUA, a troca no comando por si só não resolve a perda de credibilidade da diplomacia brasileira nos últimos anos, que transformou o Brasil em pária internacional.

"A essência do projeto bolsonarista - de ser antiglobalista, questionar o multilateralismo, de não buscar a liderança e a cooperação regional - é o que explica essa situação. Para uma superação do que aconteceu nos últimos dois anos, só se houver uma guinada da política interna", afirma Stuenkel.

Carlos Poggio, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), explica que a deterioração da imagem da diplomacia brasileira não é algo que se supere facilmente. "Não é uma questão de dias ou de meses, é uma questão de anos até uma recuperação completa da imagem do Brasil", disse. E completa: "É um alívio (a troca de comando), é um respiro e uma esperança de um retorno a alguma normalidade no Itamaraty, mas é algo que ainda talvez demore para se reconstruir totalmente, não no curto ou no médio prazo".

"É um processo de reconstrução. Esse é apenas 'o começo do início', porque o principal dano é o que vem do próprio Bolsonaro, na figura dele e do governo dele. O conjunto da obra do governo dele. O que Carlos França fez muito bem foi eliminar o componente que era agregado pelo Ernesto Araújo, mas isso talvez não fosse nem 10% do total. Todo mundo sabe que o papel dele é limitado", afirma Ricupero.

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,cem-dias-sem-ernesto-o-que-mudou-no-itamaraty-sob-nova-direcao,70003770570

 

sábado, 14 de novembro de 2020

Trump Drove Latin America Into China’s Arms - Oliver Stuenkel (Foreign Affairs)

Oliver Stuenkel mostra como a política de Trump para a AL backfired, por incompetente, ideológica e puramente aventureira, como se espera de bestas quadradas...

Paulo Roberto de Almeida 

 

Foreign AffairsNovember/December 2020

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Trump Drove Latin America Into China’s Arms

Biden Has a Chance to Wrest It Back

By Oliver Stuenkel

November 13, 2020

 

The administration of U.S. President Donald Trump took an aggressive approach to Latin America that has spectacularly backfired. Two years ago, John Bolton, who was then the U.S. national security adviser, dubbed the autocratic regimes of Venezuela, Cuba, and Nicaragua the “Troika of Tyranny” and confronted the three countries with crippling sanctions and menacing rhetoric. “Today, we proudly proclaim for all to hear: the Monroe Doctrine is alive and well,” Bolton said in April 2019, referring to the principle behind the long and traumatic history of U.S. interventions in Latin America.

The result was to unite Latin American governments of all stripes against the United States. Regional leaders, concerned about the precedent that U.S. intervention in Venezuela could set, reluctantly sided with the country’s dictator, Nicolás Maduro. Even those strongly critical of Venezuela, such as Colombia, rejected all talk of military intervention, and Brazilian President Jair Bolsonaro, who had made radical alignment with the United States the centerpiece of his foreign policy, found himself overruled by the country’s armed forces, which categorically oppose the presence of foreign troops in neighboring countries. The autocratic leaders of Venezuela, Nicaragua, and Cuba are still in power—in part because U.S. pressure created a rally-round-the-flag effect and helped them deflect blame onto Washington for internal woes.

Even as it failed to achieve its primary objective, the Trump administration’s policy undermined broader U.S. strategy in Latin America by strengthening China’s hand in the region. Indeed, the aggressive U.S. stance has left Latin American policymakers scrambling for partners who can balance Washington’s influence—a role that Beijing has been only too willing to play. In Venezuela, sanctions have sidelined U.S. firms, creating an ideal opening for Chinese companies to expand their influence. If the Maduro regime were to collapse, Beijing would be well positioned to assume a dominant role in the country’s reconstruction.

During the Trump presidency, China has grown more influential and more powerful in Latin America in virtually every dimension. Brazil is perhaps the most remarkable example: despite Bolsonaro’s anti-China rhetoric and his efforts to strengthen ties to Washington, Brazil’s trade with the United States has fallen to its lowest level in 11 years, while trade with China is booming. Fully 34 percent of Brazilian exports go to China, and China’s relatively quick economic recovery from the coronavirus pandemic will likely lead that figure to grow.

Latin American heads of state watched closely as Trump repeatedly humiliated Bolsonaro—surprising him with tariffs on Brazilian products, for example. The lesson they drew was simple: a partnership with Washington entailed significant economic and political risk. They looked to Beijing instead: Chile’s president sought to make his country the region’s main interlocutor with China, and Argentina welcomed a Chinese military-run space station, which began operating in 2018. Of seven countries that shifted ties from Taipei to Beijing during the Trump presidency, three—the Dominican Republic, El Salvador, and Panama—are in Latin America. Paraguay faces growing pressure to join them. Many Latin American countries are likely to adopt Huawei’s 5G infrastructure, despite U.S. threats of unspecified “economic consequences” for those that do.

President-elect Joe Biden has an opportunity to take a more constructive approach to Beijing’s growing influence in Latin America. Doing so will require the new administration to avoid antagonizing the region’s leaders and to emphasize shared interests instead. Washington will have to counteract an ugly impression that the Trump administration has created—one that suggests the United States is driven largely by the desire to contain China rather than support the region’s economic development.

DAY ONE

The less threatening the United States appears from a Latin American perspective, the less of an urge the region’s leaders will feel to balance its influence with China’s. Trump administration officials, including former and current Secretaries of State Rex Tillerson and Mike Pompeo, have made frequent reference to the Monroe Doctrine. The incoming U.S. administration must explicitly distance itself from this language. Such talk was a gift to the Chinese, who defend the principle of nonintervention—a principle that Latin American governments strongly support.

Badmouthing China makes Washington look desperate to dominate and afraid to compete.

The Biden administration should make clear from day one that military intervention in Venezuela is off the table, and it should put an end to broad sanctions that immiserate the country’s citizens. Even Venezuelans who despise Maduro largely oppose the U.S. sanctions, which have caused vast human suffering in a region where millions of people are already sliding back into poverty because of the pandemic. The United States should calibrate sanctions to hurt only those who assure Maduro’s hold on power. It should do the same in Nicaragua and Cuba, because whatever Latin Americans may think about the regime in Havana, broad sanctions fuel anti-Americanism in the region and make China’s life easier.

A POSITIVE AGENDA

Latin American policymakers are far more likely to be influenced by constructive U.S. policies toward their countries than by negative U.S. rhetoric about China. Trade with China has had many positive economic consequences for Latin America over the past two decades, and the United States sounds patronizing and dishonest when it seeks to dissuade the region’s leaders from sustaining these relations. Such meddling is counterproductive—even when the United States has genuinely relevant concerns, such as those about the inequality of a trade relationship that has Latin America mainly selling commodities to China and buying value-added goods in return, or about the risks that Huawei telecommunications infrastructure may pose to privacy.

The Biden administration should instruct its ambassadors and officials not to speak about Chinese–Latin American relations in public at all. Badmouthing China, rather than promoting U.S. strengths, makes Washington look desperate to dominate and afraid to compete. A Central American diplomat once privately told me that when U.S. officials complain about China in Latin America, “they sound like a jealous ex-boyfriend.”

The United States should instead lay out a positive agenda on matters of common concern across the region. Some of these pertain to other regions as well: the United States under Biden should of course return to the World Health Organization and adopt more generous policies to help poor countries gain access to masks, ventilators, and vaccines against COVID-19. Such measures will go a long way in countering China’s growing influence in Latin America.

Biden will need particular diplomatic skill to deal with Bolsonaro.

In Latin America in particular, Washington should emphasize and deepen its work with local partners to promote human rights, protect the environment, and strengthen civil society. It should be an ally in the region’s fight against corruption and a source of economic aid at the current moment of profound crisis. A constructively engaged United States can convene regional discussions to help tackle drug trafficking and transnational crime, which victimizes hundreds of thousands of young Latin Americans every year.

PRESIDENTIAL DIPLOMACY

U.S. presidential diplomacy could go a long way toward overcoming the region’s polarities, and Biden may be particularly well suited for such an enterprise. He is unusually knowledgeable about Latin America for a U.S. president-elect, and his moderate, pragmatic style may allow him to establish a meaningful rapport with leaders from the left (Bolivia, Mexico, Argentina), through the center-right (Colombia, Chile, Uruguay), to the far right (Brazil). Dialogue in the region has all but broken down in recent years: President Bolsonaro has so far refused to speak to his Argentine counterpart, and Mexico’s president, Andrés Manuel López Obrador, has yet to visit a single Latin American country. Only if and when these leaders resume a constructive dialogue will the region be able to address its most urgent problems, such as migration from Venezuela and Central America, environmental degradation in Brazil, transnational crime, and a poverty rate nearing 40 percent.

Biden will need particular diplomatic skill to deal with Bolsonaro. The self-styled “Trump of the Tropics” repeatedly attacked the Democratic candidate during the campaign because of his comments about deforestation in the Amazon. Biden’s task will be to get Brazil to adopt more stringent environmental rules—but to do so without pushing it into the arms of China, which is careful never to criticize Brazil’s controversial environmental policies, and without issuing public threats, which Bolsonaro uses to mobilize his radical followers.

No matter how much U.S. diplomacy improves under Biden, trade between China and Latin America is almost certain to continue growing, and China will therefore consolidate some influence on the continent. Economic ties to China may help to mitigate the worst of the coming recession in Latin America, even if it can’t be staved off altogether. Nonetheless, Washington has an opportunity to become a far more trusted and influential partner to Latin America than it has been under President Trump. The new administration should seize the moment as the region charts its geopolitical course.