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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A Miséria da Oposição no Brasil - Da Falta de um Projeto de Poder à Irrelevância Política? (2011) - Paulo Roberto de Almeida (Revista Interesse Nacional)

A Miséria da Oposição no Brasil 

Da Falta de um Projeto de Poder 

à Irrelevância Política?


Revista Interesse Nacional (n. 13, abril-junho 2011, p. 28-36).

2242. “Um projeto de Governo: sobre a volta ao poder da ‘oposição’” (título original), Brasília, 1 fevereiro 2011, 8 p. Análise crítica da realidade política das forças não pertencentes ao bloco de poder. Revisto em 09/03, sob o título de “Miséria da ‘oposição’ no Brasil: da falta de um projeto de poder à irrelevância política?” (13 p.); publicado na revista Interesse Nacional (n. 13, abril-junho 2011, p. 28-36; link: link: https://interessenacional.com.br/a-miseria-da-oposicao-no-brasil-da-falta-de-um-projeto-de-poder-a-irrelevancia-politica/). Transcrito no blog Diplomatizzando(13/07/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/07/miseria-da-oposicao-no-brasil-artigo.html). Relação de Publicados n. 1029. 




        Chamada da revista: 

Paulo Roberto de Almeida adota uma postura bastante crítica em seu artigo. Para ele, “o que surpreende no processo político brasileiro não é tanto a capacidade do governo de alinhar em torno de suas posições as forças políticas dos mais variados horizontes, sobretudo no Congresso; a surpresa é constituída, antes, pela debilidade da ‘oposição’, derrotada, mas ainda não destruída, e sua incapacidade de reorganizar suas tropas, de redefinir suas bandeiras de luta e de exercer sua função institucional de oferecer uma alternativa às políticas do bloco no poder”. Tudo leva a crer que uma nova oposição precisa ser construída, ou que a atual “oposição” deva ser praticamente reinventada, para, finalmente, começar a existir, afirma.

PAULO ALMEIDA

É diplomata de carreira, professor de Economia Política nos programas de mestrado e doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e autor, entre outros livros, de Nunca Antes na Diplomacia: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014). Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com. Os argumentos e opiniões expressas neste trabalho são exclusivamente os de seu autor, não representando políticas ou posturas do governo brasileiro ou do Ministério das Relações Exteriores.

A “oposição” brasileira sem projeto de poder

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orgpralmeida@me.com) 

 

Resumo: Ensaio analítico-opinativo sobre a inexistência de uma oposição no atual cenário político brasileiro, sobre as tarefas da oposição em um moderno sistema político democrático e sobre a eventual reconstrução de uma oposição digna desse nome no Brasil.

Palavras-chave: Brasil. Sistema político. Oposição. Manutenção do poder.

 

 

Este texto trata da trajetória recente da atual “oposição” ao governo do PT – no poder desde 2003 –, supostamente empenhada, desde então, em criar as condições para reconquistar seu eleitorado e se configurar como alternativa viável de governo, no seguimento de uma hipotética vitória eleitoral em 2014. O termo “oposição” figura entre aspas pois o que se apresenta hoje, fora do arco governamental, não merece, legitimamente, essa designação, seja por deficiências intrínsecas, seja por fatores objetivos vinculados ao quadro político-eleitoral do Brasil. O presente texto estabelece, primeiro, um diagnóstico da situação política na presente conjuntura, para examinar em seguida as tarefas da oposição num sistema político democrático. Ele passa, então, a analisar as principais deficiências da “oposição” brasileira, para depois formular considerações sobre uma possível estratégia de reconquista do poder pela “oposição”, concluindo, finalmente, que o eventual sucesso dessa estratégia depende, em grande medida, lideranças esclarecidas, o que atualmente não parece ser o caso com o simulacro de “oposição” existente no Brasil.

 

1. O diagnóstico da situação política na presente conjuntura

É evidente que o atual bloco no poder – dominado majoritariamente pelo PT – conquistou legitimamente sua hegemonia política com base em hábil propaganda política, na manipulação das comunicações e em boa organização partidária, ainda que recorrendo diligentemente à propaganda enganosa, eventualmente a fraudes processuais e, de forma muito explícita, apoiando-se essencialmente no carisma político-eleitoral de sua principal liderança e figura de grande relevo no cenário político do Brasil. É também evidente que a mesma personalidade e o seu partido domesticado – mesmo se fracionado internamente – pretendem preservar a atual hegemonia pelo futuro previsível, com base nos mesmos elementos políticos, aplicando de maneira diligente as mesmas receitas que os habilitaram a dirigir o país nos últimos oito anos.

Ainda mais evidente, e visível, nesse período, foi o desaparecimento gradual e a virtual inoperância daquilo que se poderia chamar, com extrema generosidade, de “oposição”, na verdade um conglomerado de tênues lideranças políticas, fragmentado em projetos pessoais ou regionais e totalmente incapaz de oferecer alternativas credíveis ao eleitorado que não comunga das mesmas concepções de política, de economia e de sociedade do bloco no poder. Nunca se percebeu, desde 2003, um discurso coerente da “oposição”, alternativo e em oposição ao do bloco no poder. Este tampouco tinha um discurso coerente, mas soube implementar medidas de clara receptividade popular, sobretudo nas áreas sociais, com um enorme reforço de propaganda nas supostas virtudes do governo e apoiado no evidente carisma do seu líder político. Com base em virtudes próprias e nesse grande empenho publicitário, o líder em questão praticamente deixou a condição de carisma para firmar-se como novo mito do cenário político brasileiro, provando, mais uma vez, que mentiras bem articuladas podem, sim, criar, fatos políticos dotados de boa impregnação popular. 

Caso a evolução dos próximos anos confirme esse mesmo cenário, pode-se ter o afastamento da “oposição” – ou o que passa por ela – do governo durante mais de duas décadas, frustrando possivelmente metade do eleitorado brasileiro – das regiões mais desenvolvidas e majoritariamente de estratos mais esclarecidos – que não se reconhece no, e até recusa o, projeto de poder do bloco petista atualmente hegemônico. A percepção que emerge da atual situação brasileira é a de que a maior parte da população – embora não suas correntes mais esclarecidas – partilha das concepções econômicas, políticas e culturais do atual bloco no poder, que demonstrou ter praticado um “gramscismo” adaptado às condições de educação política do Brasil, configurando um cenário político que apresenta desafios para a consolidação de um sistema democrático no país, na medida em que as práticas políticas mobilizadas por esse bloco representam de fato um atraso relativo do ponto de vista da ética cidadã.

 

2. As tarefas da oposição num sistema político democrático

Em situações democráticas “normais” – isto é, com possibilidades reais de alternância no poder entre duas, ou mais, correntes majoritárias, geralmente uma de tendências social-democrática, ou socialista, outra mais centrista ou reformista moderada, por vezes também um setor conservador –, o grupo que perdeu as eleições em um dado país se recompõe politicamente – eventualmente mudando seus líderes – e se dedica à uma séria preparação para os novos embates eleitorais mais à frente.

A primeira tarefa, quando na oposição, é a de elaborar um diagnóstico – se possível consensual no partido – sobre as razões da derrota, analisando os fatores principais do insucesso e daí retirar as lições que se impõem, no que pode ser um simples episódio eleitoral momentâneo. Se a derrota é, porém, recorrente, ou mesmo “estrondosa”, o diagnóstico teria de ser amplo, alcançando inclusive as bases programáticas do partido (sua “carta” aos eleitores); nos casos menos graves, se deve atuar sobre os fatores de oportunidade, de mensagem política e de apresentação de propostas ao público eleitor. Feito o diagnóstico, retiradas as lições, deve-se preparar o terreno para as novas etapas que se apresentarão inevitavelmente à oposição.

Normalmente, uma oposição organizada tem, entre seus membros mais distinguidos e também no staff partidário, especialistas nas diversas políticas macroeconômicas e setoriais que devem compor a mensagem do partido para o seu eleitorado, tradicional e flutuante (pois a intenção é sempre a de conquistar maior apoio entre os eleitores). Esses especialistas devem fazer o seguimento das políticas correspondentes do bloco no poder, discutir suas implicações para o país e tentar oferecer suas propostas alternativas de políticas, que contemplem as expectativas de seu eleitorado e de franjas mais amplas da população. 

Normalmente esse trabalho é conduzido no parlamento, mas o partido também pode ter apoios extensivos na sociedade, como são aqueles vinculados a movimentos sindicais e de interesses setoriais. Na tradição inglesa, se tem a prática do “shadow cabinet”, ou seja, um “ministério” alternativo que faz o acompanhamento das políticas em curso, elabora a crítica das medidas implementadas e faz um oferecimento público de suas próprias alternativas de políticas. Este é o principal dever da oposição. 

Na prática, as coisas são mais complicadas, pois mesmo nos partidos mais modernos e institucionalizados, muito depende dos líderes do momento, do carisma e atração que estes possam exercer sobre o eleitorado, e também das disputas entre as lideranças desse partido, que podem descambar para o regionalismo ou caciquismo, em ambos os casos com consequências nefastas para a imagem da oposição. Mais grave ainda é quando essa oposição perde o contato com a realidade e com as expectativas de seu próprio eleitorado, para não dizer da maioria da nação. Surgem nesse caso dissidências que vão para outros partidos ou constituem os seus próprios.

Em qualquer hipótese, qualquer governo – de esquerda, de direita ou de centro  – suporta o inevitável desgaste da governança, já que políticas “anti-populares” sempre precisam ser implementadas em algum momento, seja para corrigir exageros de tipo social-democrático (distributivismo fiscalmente irresponsável, déficits orçamentários, desalinhamentos cambiais, etc.), seja na vertente oposta (percepções de que os centristas ou conservadores se ocupam mais dos ricos do que dos pobres), ou por razões diversas (problemas de segurança, desemprego, etc.). A própria dinâmica econômica e conjunturas adversas impõem limites a quem exerce o poder. 

Assim, quando o eleitorado decide tentar outros remédios, outras soluções, a oposição, qualquer que seja ela, precisa estar pronta para implementar suas receitas, seus remédios. A oposição precisa ter um programa de governo. Para isso ela precisa ter um projeto de poder, ou seja, ter consciência do que precisa ser feito, dizer como pretende fazer, e demonstrar credibilidade nesse tipo de empreendimento.

 

3. A “oposição” brasileira e suas principais deficiências

Não é preciso ser um analista político de qualquer envergadura para constatar que a “oposição” brasileira – que, na verdade, vinha de oito anos, ou mais, de exercício do poder – falhou miseravelmente em sua missão oposicionista. Dizer que ela foi inepta, ineficiente, incompetente, no limite patética, seria até ser generoso com as principais forças que foram agrupadas nessa classificação de “oposição”. Basta dizer que simplesmente não existiu oposição durante todo o governo Lula: as forças que deveriam, até precisavam, ser oposição, simplesmente se auto-anularam para um exercício que é uma das tarefas mais legítimas em todos os regimes democráticos. 

Em sua defesa, pode-se dizer que os petistas, seu líder em especial, foram extremamente competentes – descontando-se, claro, as mistificações criadas para tal efeito – na construção de uma versão peculiar do processo político, da própria história recente do Brasil, o que deixou as forças potencialmente oposicionistas num estado psicologicamente defensivo, até de “vergonha assumida”, por supostos erros e injustiças cometidas ao longo do chamado neoliberalismo do tucanato. Poucas vezes, no cenário político brasileiro, a versão deformada da história, em vários aspectos até mentirosa, conseguiu tal impregnação no imaginário popular, a ponto de anular discursos e ações de cunho oposicionista.

Muito se deve, obviamente, às qualidades de “prestigitador” político do presidente popular, suas mistificações propagandistas, mas também às boas condições da economia internacional, durante a maior parte de seus dois mandatos, e a uma gestão razoavelmente responsável na frente econômica. Mas deve-se reconhecer, também, que a “oposição” se auto-anulou durante todo esse tempo, jamais tendo conseguido articular um discurso coerente, sequer esclarecedor, sobre o cenário de mentiras criado pelo bloco no poder. Quais as razões desse suicídio político?

Todo e qualquer ato político é encarnado por personagens políticos, príncipes e conselheiros do príncipe, que se conjugam na missão de conduzir homens e partidos ao pináculo do poder, ao comando do Estado. Devemos então concluir que à “oposição” brasileira faltaram as virtudes e qualidades que, segundo o florentino, devem estar presentes nas pessoas que pretendem deter esse comando. Não que o presidente do bloco no poder fosse um estadista, mas certamente se tratava de um “animal político” extremamente competente. Pode-se dizer, nesse sentido, que à “oposição” – ou o que passa por ela – faltaram “animais políticos” de verdade, pessoas que tivessem as virtudes ou a fortuna – para permanecer nos termos do florentino – para representar uma pequena chance de alternância na disputa de poder. 

Por certo que se trata de uma incapacidade de se organizar, com bases reais na sociedade, para, a partir daí, conceber e exibir um discurso coerente, compatível com as aspirações de largos estratos sociais, sobretudo nas classes médias. Mais grave ainda, pode-se dizer que à “oposição” brasileira faltaram sobretudo ideias claras sobre como apresentar e “vender” seu programa, se é presumível que, de fato, ela pudesse ter algo assimilável a um programa para oferecer à metade da população – na verdade estratos cambiantes – que não aceita e nunca aceitou a propaganda política que lhe foi servida sob disfarce de “política nacional” pelo bloco no poder. Sem conseguir ver claro no cenário político, dividida pelo caciquismo de seus líderes regionais, a “oposição” não soube sequer explorar as inconsistências e mazelas do bloco no poder, tão evidentes aos olhos de estratos médios de eleitores basicamente comprometidos com a ética e a moralidade no trato da coisa pública. 

Pode-se aventar a hipótese de que a qualidade dos homens públicos que se colocam numa oposição de princípio ao bloco no poder – não por razões puramente instrumentais, de conquista do poder pelo poder, mas quer se acreditar que por razões de filosofia política – precisaria melhorar dramaticamente para que eles possam integrar algo suscetível de ser chamado de oposição. Talvez seja inclusive necessário novas lideranças políticas, que obviamente tenham “princípios” compatíveis com uma oposição digna desse nome.  Tal “reinvenção” depende de vários fatores dentro os quais podem ser citados: a reeducação dos próprios integrantes do que é hoje uma oposição de araque; a reorganização de suas bases partidárias; a revisão do seu modo de “funcionamento” no Congresso; mudanças nos parâmetros mentais que orientam o discurso político e que comandam suas ações no plano prático; transparência aos olhos dos eleitores e, sobretudo, distinção clara com “tudo isso que está aí”, atualmente, e que visivelmente não agrada ao eleitorado instruído. Tudo leva a crer que uma nova oposição precisa ser construída, ou que a atual “oposição” deva ser praticamente reinventada, para, finalmente, começar a existir. Vejamos como.

 

4. Observações sobre uma possível estratégia de reconquista do poder

A oposição a ser construída – a verdadeira, não o simulacro que hoje existe –  já parte de uma formidável base real e potencial. Os dados eleitorais estão disponíveis no site do TSE, mas se podem extrair algumas conclusões adicionais a partir deles. A base total do eleitorado brasileiro situava-se, em 2010, em quase 136 milhões de pessoas, provavelmente atingindo 145 milhões em 2014. A abstenção em 2010 foi excepcional, alcançando quase 30 milhões de eleitores, aos quais se juntaram 4,6 milhões que anularam seus votos e 2,5 milhões que se abstiveram de qualquer escolha. Os “excluídos” representaram, portanto, um quarto do eleitorado; pode-se, em toda legitimidade, imaginar que eles possam ser reduzidos à metade, em condições normais de disputa política, o que, infelizmente, não ocorreu em 2010. 

Imaginamos, também, que os votos dados à “oposição”, em torno de 43 milhões, sejam realmente de oposição ao presente estado de coisas, especificamente ao “Estado do PT”. Pode-se razoavelmente conceber que uma oposição – qualquer oposição – no Brasil, possa reunir metade do eleitorado, admitindo-se, inclusive, que a educação política, de um lado, e o desgaste do poder petista, de outro, contribuam para uma pequena maioria potencial, numa situação em que o mito carismático ainda estará ativo e trabalhando para consolidar o poder petista. Não existe, portanto, numa abordagem prosaicamente matemática, garantia de vitória, ou certeza de derrota, para qualquer um dos lados, pois os “flutuantes”, os “indiferentes” e os “desalentados” são em número suficiente para alterar a balança para qualquer dos lados.

Números, porém, são um componente talvez objetivo, mas insuficiente para determinar resultados eleitorais. Mais importante é a predisposição do eleitorado para “acolher” uma definição clara quanto aos problemas mais angustiantes da conjuntura. A situação econômica pode até ser decisiva numa escolha eleitoral, mas as percepções sobre quem conduz a política econômica e sobre como ela é conduzida pelos responsáveis também são relevantes. Questões como emprego, segurança pessoal, disponibilidade de serviços públicos – saneamento, saúde e educação, etc. – e temas pontuais, de interesse setorial ou regional podem fazer pender a balança eleitoral.

Não importa quais sejam as alternativas de políticas oferecidas ao público eleitor por uma oposição efetiva e confiável, é preciso que esta seja precisamente isso: confiável. Ora, não é surpresa para nenhum eleitor medianamente bem informado que a classe política, de maneira geral, fez tudo o que era possível para se desqualificar moralmente, para se rebaixar no plano da ética, para deteriorar completamente a instituição parlamentar e outro tanto no plano dos executivos locais, estaduais e até o federal. Qualquer que seja a qualidade da nova mensagem política de oposição, se ela um dia existir, sua credibilidade, intrínseca e extrínseca, depende essencialmente da regeneração moral de suas lideranças, que deveriam operar aquilo que os italianos – escaldados por anos e anos de corrupção política – chamam de rientro morale, ou seja, uma profunda recomposição da ética na vida política do país. 

A julgar por exemplos recentes – e a questão das aposentadorias pornográficas dos governadores é mais um caso eloquente de completo descompasso entre as expectativas da população e a atitude das “oposições” – o Brasil não está sequer próximo de uma recomposição da classe política para fora da atual degradação das instituições de representação; nisso, a suposta “oposição” não se diferencia em nada das perversões morais alimentadas pelo próprio bloco no poder. Aparentemente, a “oposição” atual ainda não está pronta a empreender essa passagem; ela não quer enfrentar sua própria regeneração moral (talvez não possa, ou não tenha coragem). 

Uma vez aceita e internalizada essa decisão pela “moralização” da oposição – que se situa no centro de toda e qualquer regeneração oposicionista, cabe lembrar – começa então a tarefa de organizá-la em função do objetivo da reconquista do poder. Tal tarefa implica, em primeiro lugar, uma definição clara de um programa político de escopo nacional e setorial, ou seja, uma plataforma explícita tocando em todos e cada um dos principais problemas nacionais, sobretudo na esfera institucional, no terreno econômico e nas diversas áreas de maior impacto no plano das políticas públicas (social, cultural, regional, etc.). 

Não é simples montar um programa e uma plataforma de ação com tal amplitude, o que certamente exigirá seminários e grupos de trabalho em cada uma dessas vertentes abertas à ação partidária. Mas um partido, ou uma oposição, que pretenda aspirar a ser uma real alternativa de poder não pode ser econômico nem em definições programáticas, nem em propostas político-econômicas relativamente detalhadas. Basta arregaçar as mangas e colocar o cérebro para pensar.

 

5. Conclusões não definitivas: tudo depende de lideranças esclarecidas

Não parece haver dúvida, visto o panorama da planície – isto é, do ponto de vista dos cidadãos eleitores – de que o Brasil não conta com uma classe política à altura de suas novas responsabilidades enquanto potência emergente, desejosa de assumir um papel relevante na cena internacional. Mas nenhum dos problemas atuais enfrentados pelo Brasil tem a ver com impactos negativos do ambiente externo: o mundo tem sido muito “generoso” com o Brasil, oferecendo mercados e provendo investimentos de todos os tipos para sustentar seu crescimento do período recente.

Todos os problemas brasileiros, sem exceção, são “made in Brazil”, e devem receber aqui sua solução; seu equacionamento passa por um conjunto de reformas que deveria estar no centro de qualquer programa credível de proposta política geral de um movimento oposicionista aspirando legitimamente conquistar o poder para implementar, a partir daí, essas reformas. A oposição não conseguirá chegar a ocupar esse espaço alternativo de candidata ao poder se não trabalhar intensamente no diagnóstico dos problemas brasileiros, no oferecimento de respostas sólidas aos mesmos problemas, e na sua própria organização interna, colocando-se numa posição de governo “virtual”, ou potencial, com base em propostas aceitáveis para uma maioria de brasileiros, sem ceder a populismos ou à demagogia habitual nesses meios.

Uma das condições essenciais para que essa oposição seja construída parece ser a existência de lideranças dotadas de credibilidade intrínseca e de capacidade política para, em primeiro lugar, reformar profundamente a “oposição” atual e, num segundo momento, presidir à elaboração temática e organizacional de um “governo” alternativo ao atual bloco no poder. Não existe nenhum obstáculo “técnico”, nenhuma força externa à própria “oposição”, nenhum impedimento estrutural, ou nacional, de caráter político, a que essas tarefas sejam empreendidas.

Tudo depende da disposição de figuras políticas que pretendam aspirar ao papel de alternativa ao poder atual: a “fortuna” do quadro político pode ser favorável a uma oposição renovada, como parcialmente revelado nas eleições de 2010, mas o fator mais importante ainda é, sempre é, constituído pelas “virtudes” dos condutores de cidadãos.                                


  [2 de março de 2011]

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Lula, PT, África do Sul, CIJ, diplomacia brasileira e a questão do "genocídio" de Israel em Gaza (matérias de imprensa)

 Os improvisos não são do Itamaraty, com certeza...

Posição do Brasil contra Israel, política e sem valor prático, traz efeitos internos e externos 


Há duas explicações sobre manifestação brasilieira: o massacre de palestino na reação de Israel aos atos terroristas e a posição ideológica do governo e do PT Por que, afinal, o presidente Lula decidiu atrair mais chuvas e trovoadas, dentro e fora do País, ao anunciar oficialmente apoio ao julgamento de Israel, por genocídio, na Corte Internacional de Justiça de Haia? Não precisava. 

Países não votam na Corte e não interferem no resultado. Bastava acompanhar de perto e ver no que daria, como fizeram China e Rússia, os dois principais integrantes dos Brics. A explicação nos bastidores, ou melhor, nos palácios, é a tragédia humanitária em Gaza, transformada num gigantesco cemitério de crianças depois que Israel reagiu ao ataque terrorista do Hamas despejando sua ira e sua força na faixa que abriga(va) os palestinos. Mas, fora dos gabinetes envidraçados de Oscar Niemeyer, a interpretação é outra: a posição ideológica de Lula e do PT contra Israel. 

 Depois de notas do Instituto Brasil-Israel e da Confederação Israelita do Brasil (Conib), cobrando a tradição de “equilíbrio e moderação” da política externa brasileira, veio a carta, igualmente dura, mas em formato erudito, do ex-chanceler Celso Lafer, de família judia da Lituânia, professor emérito da Faculdade de Direito da USP e especialista em Direito Internacional. Endereçada ao chanceler Mauro Vieira, mas distribuída publicamente, a carta rebate à luz do direito a acusação de “genocídio” e acusa a África do Sul, autora da petição à Corte de Justiça, de tentar deslegitimar o Estado de Israel e aumentar o antissemitismo mundial, “em sintonia com os que almejam minar o direito à existência de Israel”. “É um deslize conceitual de má-fé valer-se da imputação de genocídio para discutir as controvérsias jurídicas relacionadas à aplicação do direito humanitário e aos problemas humanitários em Gaza”, ensina Lafer, acusando a posição do governo de falta de consistência, coerência e obediência às regras do Direito Internacional. 

 Na véspera, a ONG Human Rights Watch (HRW) divulgara seu relatório de 2023, criticando o Brasil por falhas no combate à violência policial e também em quatro conflitos internacionais: “declarações controversas” de Lula sobre a invasão da Rússia na Ucrânia, defesa de Nicolás Maduro na Venezuela e omissão em relação às violações na Nicarágua e aos crimes da China contra os Uigures. Não há, porém, referências ao Brasil em relação à Guerra de Israel. Talvez porque o foco da HRW, pelo óbvio, é em direitos humanos, não em política externa e direito formal internacional. Mas a HRW é uma ONG, o Brasil é um País. Uma coisa é a opinião de organizações independentes, outra é o posicionamento oficial de um Estado num conflito que, como sempre, tem dois lados. 



O apoio do governo Lula à acusação de genocídio contra Israel no tribunal de Haia deve ter lá algum cálculo, mas seja qual for, é equivocado. 

Ainda que o núcleo do Palácio possa estar convicto de que se trata de um genocídio em curso, o que é pelo menos discutível, a acusação é demasiadamente grave para ser proclamada em nome do Brasil assim da noite para o dia, em apoio a um jogo de cena de um país secundário como a África do Sul. Não há dúvida de que Netanyahu tem que ser expelido e que sua política é inaceitável. 

A reação ao ataque terrorista do Hamas ultrapassou todos os limites humanitários. O Brasil deve condenar, como tem condenado, a resposta indiscriminada que mata civis e crianças. A hipótese de crime de guerra tem fundamento, mas daí a sustentar a tese de genocídio e apregoá-la publicamente vai um caminho. Por "café com leite" que seja o tribunal, que não tem poder impositivo, a decisão rompe com a tradição de equilíbrio e discrição do Itamaraty. Tem ares de terceiro-mundismo juvenil animado pelas novas movimentações do Sul Global. A tese é escorregadiça do ponto de vista jurídico, instrumentaliza Haia como palanque anti-Israel e é uma atitude de confrontação. Se um país considera que outro pratica genocídio… o que mais falta para endossar uma guerra?

 O assustador é que a possibilidade de uma guerra de maiores proporções vem aumentando. O gesto brasileiro se inscreve nesse contexto. A ampliação do conflito para a região já é um fato. Como observou o jornal The New York Times, a questão não é mais saber se vai ser ampliado, mas como pode ser contido. O mundo, não custa repetir, caminha para um "turning point". Uma nova ordem mundial se anuncia. Velhas convicções e argumentos estão em crise. Relações de força se redefinem. São momentos perigosos em que de uma hora para outra tudo pode se precipitar. 

 No meio desse tiroteiro, o governo brasileiro abandona a sobriedade na articulação de soluções pacíficas e resolve esticar a corda. Faz isso quando os EUA, com seu ethos belicista, piora as coisas com bombardeios no Iêmen em companhia do Reino Unido. Lula tem sido um defensor da paz, mas desta vez preferiu acirrar os ânimos. A decisão além de tudo é um erro político no plano doméstico, que contribui para aprofundar cisões entre brasileiros. Nada tem a ver com o discurso marqueteiro do Papai Noel da conciliação. 



sábado, 6 de janeiro de 2024

O PT QUER FATURAR COM O 8 DE JANEIRO - Augusto de Franco

 O PT QUER FATURAR COM O 8 DE JANEIRO

Augusto de Franco

6/01/2024

O ato para explorar politicamente o 8 de janeiro de 2023 tem uma clara motivação partidária com objetivos eleitorais. O PT quer faturar com o 8 de janeiro dizendo que só ele pode defender a democracia e que, portanto, deve continuar no poder para evitar que aconteça um golpe semelhante no futuro.

1 - Criar uma narrativa de que houve alguma coisa tão grave como o holocausto em 8 de janeiro de 2023 não concorre para a pacificação da sociedade e a diminuição da polarização. Antes, investe na política como continuação da guerra por outros meios e acirra a polarização.

2 - O governo populista-autoritário de Jair Bolsonaro contribuiu para erodir a democracia brasileira (sem, entretanto, conseguir abolí-la), mas isso não aconteceu em 8 de janeiro e sim ao longo do seu infeliz mandato: ao deslegitimar as instituições mantendo uma retórica golpista, ao aparelhar o governo com militares, ao tentar aliciar as forças armadas e policiais para seus propósitos golpistas, ao se aproximar de milícias e protegê-las da lei, ao querer armar a população para resistir pela força ao Estado democrático de direito quando avaliasse que seus interesses seriam contrariados, ao violar diariamente as regras não-escritas da democracia transformando a política numa guerra contra um suposto inimigo interno (comunista) instalando uma guerra das pessoas de bem contra as pessoas do mal.

3 - O que houve realmente em 8 de janeiro? Houve uma horrível manifestação golpista de vândalos que depredaram propriedades públicas. Em termos simbólicos foi um ataque às instituições do Estado democrático de direito. Mas só em termos simbólicos, porque as instituições não são as suas sedes físicas, seus prédios, seus móveis, seus objetos, sua papelada. Mesmo que os manifestantes ocupassem as sedes dos três poderes e lá ficassem sem ser expulsos, as instituições executivas, judiciárias e parlamentares continuariam funcionando em outros lugares (inclusive virtualmente).

4 - Só teria havido uma ruptura com a ordem democrática se as instituições fossem impedidas de funcionar autonomamente, de qualquer lugar (inclusive no ciberespaço). Ou se suas decisões deixassem de ser acatadas - sobretudo pelas forças armadas e policiais e pelos demais órgãos de controle. Para isso seria preciso que a Constituição e as leis (não os papeis onde estão escritas) fossem rasgadas.

5 - Houve golpe de Estado? Não houve. Houve tentativa de golpe. Mas essa tentativa de golpe não era crível. E não era crível porque não havia, por parte dos manifestantes e de seus orientadores e instigadores, força político-militar para tanto. Se houvesse, teria havido um golpe (bem ou mal-sucedido).

6 - Houve insurreição popular generalizada contra os poderes democráticos? Não houve. A mobilização envolveu não mais do que 4 mil pessoas periféricas, das quais 1/4 acabaram presas sem oferecer resistência. Não houve caos nas cidades, nas zonas rurais, nas estradas, nos portos e aeroportos, nem pane na oferta de água, energia, alimentos e medicamentos.

7 - Por isso o 8 de janeiro foi um ato simbólico, demonstrativo de inconformidade de uma parcela do eleitorado com as instituições da democracia tal como estavam funcionando. Mas foi mais um cosplay do 6 de janeiro de 2021 no Capitólio. Porque em Brasília: os manifestantes estavam desarmados; invadiram sedes dos poderes vazias, num domingo; não agrediram fisicamente nenhuma autoridade; não houve feridos, nem mortos (ao contrário do que ocorreu no original americano); não havia gancho institucional para impedir o chefe de governo eleito de governar: ao contrário do ato americano, em que o presidente Biden ainda não havia sido certificado pelo parlamento, Lula já estava empossado e governando.

8 - Foi crime? Foi. Os responsáveis diretos e indiretos devem ser processados de acordo com a lei (como estão sendo, ao menos a ralé teleguiada).

9 - Foi terrorismo? Não foi. Por qualquer lei vigente em uma democracia, inclusive pela lei brasileira. E por isso as acusações contra os manifestantes nunca incluem terrorismo.

10 - Querer esticar o 8 de janeiro como uma ameaça permanente à democracia brasileira é um truque solerte para manter o PT no poder indefinidamente e evitar que surja uma oposição democrática no Brasil (que passará a ser acusada de golpismo, mesmo que nada tenha a ver com bolsonarismo). Bolsonaro não governa mais e está inelegível. Não há qualquer risco de golpe de Estado por parte dos bolsonaristas. Não há ameaças vindas das forças armadas e policiais. As ruas não estão conflagradas e assim permanecerão por muito tempo. Não há grupos significativos planejando ou executando ações ilegais contra o regime democrático; ou seja, não há ações subversivas da ordem democrática em curso.


segunda-feira, 25 de setembro de 2023

A diplomacia do PT: Muito mais do que hipocrisia - Augusto de Franco

 PT, Lula, lulopetistas: a hipérbole da falta de caráter, o pleonasmo da calhordice moral, a redundância do grotesco ético.

MUITO MAIS DO QUE HIPOCRISIA

Augusto de Franco, 24/09/2023

Talvez tenham falado muito baixo ou, quem sabe, eu esteja com problemas de audição, mas não consegui ouvir os protestos das feministas do PT contra o endurecimento da repressão às mulheres no Irã (que agora podem pegar até 10 anos de cadeia se mostrarem os antebraços nus ou usarem roupas apertadas). Aliás, não ouvi dessas feministas nem mesmo uma crítica contundente ao patriarcalismo do Talibã e de outros países islâmicos do Sul Global que perseguem e reprimem suas mulheres.

Também ainda não consegui ouvir os ativistas petistas dos direitos humanos protestando contra o tratamento dado a dissidentes políticos e população LGBTQIA+ em Cuba, na Venezuela, na Nicarágua e na maioria dos países do BRICS: na China, no Irã, nos Emirados Árabes Unidos, na Arábia Saudita, no Egito, na Etiópia.

Aliás, acho que nunca ouvi os defensores petistas da democracia criticarem organizações autocráticas (e terroristas) como o Hamas e o Hezbollah. Nem os defensores da liberdade de crença e da autonomia das etnias protestando contra a perseguição aos islâmicos na Índia e aos uigures na China.

O que será que está acontecendo? Alguém poderia chamar isso de hipocrisia. 

Mas é muito mais do que hipocrisia. É alinhamento. O PT se alinha a qualquer país que não seja uma democracia liberal ou um regime eleitoral não parasitado por populismos (ou seja, que tenha chances de entrar em transição para uma democracia liberal). Esse é o critério básico.

Para ser aliado preferencial do PT, o importante é ser contra o imperalismo norte-americano e o neocolonialismo europeu. Não importa se jogam gays do alto de edifícios, se apedrejam mulheres acusadas de adúlteras, se extirpam o clitóris de jovens, se criminalizam as oposições, se prendem e torturam quem diverge do governo, se proibem a organização de partidos que não sejam capachos do partido oficial, se envenenam ou defenestram opositores, se obrigam as mulheres a esconder a face e o corpo tratando-as como seres inferiores, se fecham e expropriam igrejas e até organizações humanitárias. 

Tá valendo tudo desde que seja contra o grande Satã e seus aliados demoníacos (que vêm a ser nada menos do que as mais bem colocadas democracias do planeta em todos os rankings internacionais). Vale até acusar de nazista - suprema indignidade - a resistência ucraniana à invasão militar do ditador expansionista Vladimir Putin.

Agora pergunto. Dá para admitir que um partido cujos dirigentes e militantes se comportam desse jeito seja democrático? Estou entendendo tudo errado quando ouço os discursos de Lula e as falas do camarada Teixeira e do camarada Marinho e do camarada Pimenta e do camarada Dirceu? Ou, além de surdo, estou quase cego quando não consigo ler direito os posts diários dos militantes petistas nas mídias sociais?


domingo, 23 de abril de 2023

More of the same, all over again… - Paulo Roberto de Almeida

 More of the same, all over again…

A integração regional e a inserção do Brasil na economia mundial não vão avançar muito sob Lula 3: ele continua preferindo a velha substituição de importações e o tradicional mercantilismo protecionista, que convém mais à FIESP e aos sindicatos de trabalhadores, do que ao conjunto dos consumidores, especialmente os mais pobres. 

Ou seja, teremos mais do mesmo, talvez até de forma acentuada, como o provam declarações e negociações recentes. Não esperem, portanto, resultados diferentes do que aquela conhecida retórica vazia, sobre nossas fábricas e nossa soberania e emprego, como das vezes anteriores.

Ocorreu algum avanço na integração, além de palanques políticos, com peronistas e chavistas sob Lula 1 e 2? Dona Dilma ainda agravou o quadro da integração ao enfiar (ilegalmente) a Venezuela chavista no Mercosul, quando ela não possuía as mínimas condições (não por ser uma ditadura, que isso não importava, mas por não preencher nenhum dos requisitos técnicos) para integrar o bloco, que já é uma peneira furada e uma colcha de retalhos esfarrapada.

O comércio exterior do Brasil, a despeito de avançar em volume e valor, saiu de menos de 1,3% do comércio mundial que exibimos persistentemente há 60 anos? E sua composição escapou das commodities? Ao contrário, só aprofundou a tendência…

Alguma expectativa de mudança desta vez? Claramente não: Lula 3 quer renegociar o acordo Mercosul-UE, para “proteger nossas indústrias”, e continua a recusar, com Celso Amorim, qualquer aproximação à OCDE.

O PT pode até ser um partido, na prática, social-democrata, não socialista, interessado em reduzir a pobreza e proteger os mais pobres, mas suas concepções econômicas são anacrônicas e suas preferências diplomáticas ainda vão, tristemente, para ditaduras execráveis.

Os petistas gostariam de me desmentir?

Por favor…

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 23/04/2023

O PT não fez sua conversão à economia de mercado - Maílson da Nóbrega (FSP)

 O PT não fez sua conversão à economia de mercado

Maílson da Nóbrega

Ex-ministro da Fazenda (1988-1990, governo Sarney) e sócio da Tendências Consultoria

[RESUMO] O PT, que desde a sua fundação se orienta pela defesa da democracia representativa e do Estado de bem-estar social, não foi capaz de abandonar ideias econômicas ultrapassadas, como o apego a empresas estatais e a rejeição da independência formal do Banco Central, afirma autor. Em sua avaliação, a ênfase nesse programa e a perspectiva de baixo crescimento nos próximos anos tornam provável uma derrota eleitoral, que poderia ser uma oportunidade para o partido modernizar suas orientações no campo da economia, o que traria grandes benefícios ao país.

Folha de S.Paulo, 23/04/2023

O PT (Partido dos Trabalhadores) foi fundado em 1980, quando a grande maioria dos partidos de esquerda da Europa havia abandonado ideias marxistas como a ditadura do proletariado e a propriedade estatal dos meios de produção. A democracia representativa passou a fazer parte de seu ideário, assim como a economia de mercado, associada a um Estado de bem-estar social.

Sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva, o PT se firmou como única agremiação de esquerda brasileira capaz de ganhar eleições presidenciais. No campo político, tal qual seus congêneres europeus, adotou a democracia representativa como meio de alcançar o poder, em vez da revolução.

Não deu, contudo, o passo seguinte: a aceitação plena da economia de mercado. O PT continuou aferrado ao intervencionismo na economia, ao protecionismo industrial, ao apego a empresas estatais, ao gasto público como alavanca da prosperidade e à rejeição da ideia de independência formal do Banco Central, consagrada no mundo há pelo menos 50 anos.

No campo social, mais que qualquer outro partido, o PT comprometeu-se com os ideais da redução das desigualdades sociais, do combate à pobreza e da fé na democracia. Apesar da admiração a Fidel Castro, Cuba nunca foi o modelo que inspiraria a ação do partido.Segundo o sociólogo Celso Rocha de Barros, autor do excelente "PT, Uma História" , suas ideias receberam influência da esquerda católica adepta da Teologia da Libertação. Para ele, "tanto o catolicismo de esquerda quanto os sobreviventes da luta armada produziram quadros e ideias para o Partido dos Trabalhadores. Mas, dos dois, só o catolicismo social produziu movimentos" (grifo do original).

Ao contrário de partidos europeus, caso do Partido Socialista Operário Espanhol, o PT nunca inscreveu em seus estatutos o objetivo de controle estatal dos meios de produção nem da abolição da propriedade privada.

José Dirceu, que se tornaria um dos principais quadros do PT, foi um dos fundadores da Articulação, corrente que viria a ser a mais importante fonte de moderação e de caminhada rumo à social-democracia. Segundo Rocha de Barros, a corrente "consolidou a influência de Lula e do setor sindical da legenda". Apesar do apoio a líderes autoritários de Cuba, Venezuela e Nicarágua, Lula e outros dirigentes do PT inscreveram a democracia nos princípios fundamentais do partido.

Em questões econômicas, todavia, as ideias ultrapassadas do PT resistem ao tempo. Não se percebe que empresas estatais são um fenômeno do século 19, justificado pela ausência de capacidade gerencial e financeira do setor privado para operar setores essenciais ao desenvolvimento, como o financeiro e os de infraestrutura de transporte, energia e comunicações.

À medida que o setor privado e os mercados de capitais se fortalecem, como tem sido o caso no Brasil, desaparece a justificativa de manutenção de tais empresas. O Japão privatizou a maioria de suas estatais no fim do século 19, e a Europa, nos anos 1980 e 1990.

O preconceito contra credores externos —outra das características originais do partido— levou o PT a aliar-se à proposta de auditoria da dívida externa apresentada pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que promoveu um "plebiscito" em setembro de 2000 para questionar empréstimos concedidos por países, organizações multilaterais e bancos estrangeiros. Na ocasião, se votaria também sobre o descumprimento do acordo então vigente com o FMI. O pagamento da dívida somente poderia ser admitido depois de uma auditoria.

Na campanha presidencial de 2002, que daria a primeira vitória a Lula, o PT emitiu sinais de reversão dessas ideias. A Carta ao Povo Brasileiro, redigida pelos petistas Antonio Palocci e Luiz Gushiken, dois ex-militantes trotskistas, e pelo jornalista Edmundo Machado de Oliveira, sinalizou o abandono de propostas econômicas radicais, visando influenciar positivamente o mercado financeiro.

Era uma posição sensata e corajosa, pois contradizia o programa do partido, que assustava até no título: Uma Ruptura Necessária. A carta defendia o cumprimento de contratos e a responsabilidade fiscal, incluindo a geração de superávits primários "o quanto bastasse". Prometia, implicitamente, pagar a dívida interna e externa.

Lula surpreendeu ao manter a política econômica de FHC, o chamado tripé macroeconômico (metas de inflação, austeridade fiscal e câmbio flutuante). Convidou um presidente de banco estrangeiro, Henrique Meirelles, para comandar o Banco Central. Aprovou os nomes de três economistas liberais (Murilo Portugal, Joaquim Levy e Marcos Lisboa) para assessorar o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. O decorrente equilíbrio macroeconômico permitiu que o país e Lula se beneficiassem dos efeitos do ciclo de commodities resultante da entrada da China no comércio global. A isso, se deve grande parte do êxito do primeiro mandato.

A partir do segundo mandato, iniciou-se o retorno gradativo às ideias antigas do PT, indicando que a moderação nas crenças econômicas não estava consolidada. Anunciou-se a criação da Nova Matriz Econômica, que prometia, mediante expansão fiscal e crescente intervenção na economia, preservar o ritmo de crescimento dos tempos do ciclo de commodities, que se havia encerrado.

No governo Dilma Rousseff, a virada da política econômica se acentuou. Buscou-se estimular a atividade econômica por meio do apoio a "campeões nacionais". O Tesouro Nacional transferiu cerca de 10% do PIB ao BNDES para a concessão de crédito subsidiado a empresas com capacidade de acessar os mercados de capitais do Brasil e do exterior. Estudos mostraram o efeito limitado ou nulo desse programa nos investimentos.

A terceira vitória presidencial de Lula ocorreu sob a expectativa de repetição do pragmatismo responsável do primeiro mandato, mas o presidente tem contrariado tal esperança. Já no discurso de posse, sinalizou o retorno do intervencionismo estatal, do protecionismo (substituir importação de aeronaves, microprocessadores e plataformas submarinas) e dos subsídios do BNDES.

O início do mandato se caracterizou também por ações positivas como a reinstituição do programa Bolsa Família e medidas associadas ao meio ambiente. Antes da posse, Lula compareceu à COP27, no Egito, onde pronunciou discurso muito bem-recebido no país e no exterior, em que defendeu ações ambientais avançadas e uma política de desmatamento zero na Amazônia.

A visita a Buenos Aires, na terceira semana do governo, teve grande efeito simbólico. Jair Bolsonaro (PL) não havia comparecido à posse do presidente argentino, Alberto Fernández, gesto indelicado que dedicou a outros presidentes de esquerda latino-americanos. Com essas e outras iniciativas, Lula começou a reconstruir o prestígio do país no exterior. Lembre-se que o ministro de Relações Exteriores de Bolsonaro, Ernesto Araújo, se jactou da posição de pária que então se atribuía ao Brasil.

O retorno a ideias antiquadas se expressou no questionamento do teto de gastos ("uma ideia estúpida"), no ataque à independência formal do Banco Central ("uma bobagem"), na sugestão de elevar a meta de inflação ("como nos 4,5% do nosso tempo") e na condenação da taxa Selic de 13,75% ("sem qualquer justificativa"). Prometeu avaliar a lei de independência do Banco Central tão logo expirasse o mandato de Roberto Campos Neto em 2024.

A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, tornou-se crítica ácida e frequente de Campos, considerando-o uma presença bolsonarista que conspira contra o êxito do governo. O líder do PT na Câmara, José Guimarães, disse que "as autoridades monetárias também têm que contribuir com aquilo que saiu das urnas", como se o BC fosse um órgão de governo que devesse atrelar a política monetária aos programas eleitorais dos vencedores.

Na economia, dificilmente Lula cumprirá a promessa de retorno a taxas altas de crescimento, que tem reiterado desde que tomou posse do cargo. Vários estudos mostram que o potencial de crescimento do PIB pode ficar abaixo de 2% durante seu governo. Isso pode afetar sua popularidade e inibir a competitividade do PT nas eleições presidenciais de 2026.

Caso derrotado, o PT deixará de contar, nos pleitos seguintes, com um candidato com o carisma e o poder eleitoral de Lula, sem paralelo na história do país.

Dois cenários para o futuro do PT podem ocorrer caso o partido fique por muito tempo ausente do poder. No primeiro cenário, seus líderes não perceberiam que o fracasso eleitoral teria a ver com os efeitos negativos da adoção de ideias econômicas ultrapassadas.

O PT seguiria o destino do PCF (Partido Comunista da França), que quase ganhou as eleições gerais logo após o fim da Segunda Guerra, mas não se renovou. Continuou leal a Stálin e apoiou a invasão da Hungria e da Tchecoslováquia por tropas soviéticas. O PCF perdeu apoio popular e, hoje, elege apenas 1% a 2% dos membros do Parlamento francês.

A meu ver, essa não seria a hipótese mais provável. O PT goza de solidez sem igual no sistema político. Dispõe de amplo apoio social e de numerosa militância, principalmente dos sindicatos de trabalhadores. Dificilmente minguaria.

No segundo cenário, para mim o mais provável, as derrotas eleitorais exerceriam efeito didático que induziria os líderes do partido a promover corajosa reflexão interna, cujo desfecho seria o abandono de ideias econômicas fora do lugar. O PT repetiria a modernização dos trabalhistas britânicos, influenciados pelos seguidos fracassos eleitorais nas disputas contra os conservadores, que começaram com a vitória acachapante de Margaret Thatcher em 1979.

Sob a liderança de Tony Blair, o ideário econômico do partido foi revisto com o objetivo de conquistar o eleitor cansado de políticas estatizantes. Mudou-se o artigo 4º dos estatutos, visto como compromisso com o controle estatal dos meios de produção. Com votação expressiva, os trabalhistas venceram as eleições gerais de 1997.

Como primeiro-ministro, Blair deu continuidade à política econômica dos conservadores —incluindo a privatização de empresas estatais— e a medidas liberalizantes. Uma de suas primeiras ações foi a concessão de independência formal ao Banco da Inglaterra, o Banco Central do país. O Partido Trabalhista ficou à frente do governo por 13 anos.

Mais recentemente, o Reino Unido assistiu a uma desastrosa escolha de um político de extrema esquerda, Jeremy Corbyn, para liderar o Partido Trabalhista, mas ele acabou sendo destituído. Hoje, o país vive um grande consenso político entre conservadores e trabalhistas, que abarca a imigração, a política externa e o futuro do país.

O atual ministro da Fazenda, Jeremy Hunt, e a parlamentar trabalhista Rachel Reeves, a ministra "sombra" do mesmo cargo, professam visões semelhantes sobre o tamanho do Estado. Para a revista The Economist, em texto de 2013, "os parâmetros do debate político estão firmemente estabelecidos". "O que parecem diferenças em políticas públicas são frequentemente mera questão de ênfase."

Caso o PT passe por semelhante transformação, os benefícios para o partido, para a economia e para a sociedade seriam imensos. Nesse segundo cenário, o partido não conseguiria superar o desafio da ausência de Lula nas eleições, direta ou indiretamente. Depois de longo período fora do poder, o PT modernizaria suas ideias e renovaria sua liderança, provavelmente após uma mudança geracional.

Se assim for, o partido recuperaria a competividade eleitoral e reassumiria o comando do país. Em uma visão otimista, estariam dadas as condições para que o Brasil retomasse a trajetória que poderia levá-lo a fazer parte das nações desenvolvidas.

Viveríamos, desse modo, uma das características básicas dos países bem-sucedidos. Neles, segundo o economista britânico Stefan Dercon, um elemento crucial do processo de desenvolvimento é a continuidade das políticas públicas básicas quando há mudança de governo.

Um bom exemplo atual é o da Alemanha. O atual chanceler, Olaf Scholz, é filiado a uma agremiação de esquerda, o Partido Social-Democrata (SPD, na sigla alemã), mas os pilares básicos, como o equilíbrio macroeconômico, continuam os mesmos do governo anterior liderado pela conservadora Angela Merkel. Poderíamos ter situação parecida no Brasil.

Este artigo se baseou em ensaio publicado pela Tendências Consultoria.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/04/pt-resiste-a-abracar-economia-de-mercado.shtml

segunda-feira, 27 de março de 2023

A longa marcha do PT para a social-democracia- Paulo Roberto de Almeida (2003)

 Um texto de 20 anos atrás, nas acho que o PT ainda não chegou lá : ainda hesita entre o coração e a razão.


A LONGA MARCHA DO PT PARA A SOCIAL-DEMOCRACIA*

 

 

Paulo Roberto de Almeida**

 

 

O PT, quem diria?, acabou na social-democracia. Pois é, depois de anos e anos criticando a própria (ou seja, os herdeiros da Segunda Internacional), recusando qualquer aproximação com seus herdeiros heterodoxos da Terceira Via, depois de denegrir, por anos a fio, a opção daqueles grupos, partidos ou personalidades que já tinha feito, consciente e voluntariamente, o caminho para o reformismo democrático e para a administração sensata do capitalismo realmente existente, o PT, por sua vez e finalmente, se junta ao cordão dos convertidos, pelo menos em intenção e de forma meio encabulada.

Com efeito, o processo de adesão do PT – ou, pelo menos, de algumas de suas lideranças mais importantes – aos preceitos e princípios do reformismo moderado e do realismo econômico tem tudo para aparecer, até agora, como sendo uma conversão inconfessada e envergonhada. Isto foi feito provavelmente para não provocar a ira das hostes de true believers e de seguidores “religiosos” de um partido que fez do radicalismo naïf sua marca registrada durante a maior parte de uma trajetória política extremamente bem sucedida, para os padrões brasileiros, em termos de desempenho eleitoral e alcance social. O PT ficou devendo à sociedade, portanto, uma explicação e uma justificação desse não tão tresloucado gesto, muito pelo contrário.

Pode-se datar essa “ruptura epistemológica” do maior partido brasileiro e, com toda certeza, do atual maior partido do Ocidente? Para fins de cronologia estritamente conjuntural, digamos que o abandono dos velhos ritos e manuais e a conseqüente conversão às novas crenças – ainda não oficializada, diga-se desde logo – tenham sido feitos entre o encontro nacional de Olinda, em dezembro de 2001 (e seu cartapácio de “resoluções” conservadoras, isto é conforme os velhos cânones) e o anúncio da “carta ao povo brasileiro”, em junho de 2002, no início da fase decisiva da campanha presidencial. A “grande mudança” – sempre da forma mais discreta possível – foi confirmada logo em seguida através do programa de governo e definitivamente consagrada na carta de aceitação do acordo do Brasil com o FMI, em agosto de 2002, ainda que, repitamos, em nenhum momento o PT avisou a freguesia – sua própria clientela eleitoral, seus militantes mais aguerridos e sobretudo os populares de modo geral – que ele estava empreendendo essa longa marcha, a passos lépidos, em direção da social democracia. Foi portanto uma rápida mudança, que levou algo como três ou quatro meses, se tanto, entre as primeiras conversas dos principais formuladores dos textos e programas e os ajustes finais com os porta-vozes e “discursadores” oficiais do PT, a começar pela pequena nomenklatura do quartel-general.

Mas, esta foi apenas a “conjuntura histórica de transformação”, para usarmos uma terminologia labroussiana, pois que o processo, na verdade, vem de longe, talvez desde uns cinco ou dez anos de “acumulação primitiva” de novas idéias e de novos princípios para a ação do PT. Tratou-se, provavelmente, de uma longa evolução, que deve ter torturado as mentes e corações desses dirigentes partidários durante noites e noites mal dormidas e incontáveis conversas de “pé de ouvido” com outros líderes igualmente convencidos, depois de muitas frustrações e choques com a realidade, de que algo precisaria ser feito para remediar o coquetel de ilusões econômicas servido durante anos aos militantes da causa e contornar a perspectiva de novas derrotas eleitorais se algo não fosse feito para mudar o curso de um partido que funcionou sempre à base de entusiasmo militante mas que ainda não tinha convencido a classe média – que é, finalmente, quem decide eleições no Brasil – de que o partido estava finalmente preparado para “empolgar” o poder. 

O PT, se de fato pretendia algum dia governar o País, tinha de romper os grilhões que o amarravam a um discurso inconvincente e a fórmulas salvacionistas nos quais nem mesmo os militantes mais esclarecidos aparentavam mais acreditar. Esses grilhões foram rompidos e nessa ruptura paradigmática o PT nem sequer perdeu a única coisa que tinha a perder nesse assalto ao céu do “poder burguês” e ao “templo dos mercadores e agiotas” do capitalismo velho de guerra: a aparente pureza de suas posições radicais e suas eternas promessas de “mudar tudo isto que está aí”. O PT ganhou um mundo novo e nem sequer gabou-se do “novo manifesto” no qual sustenta suas novas posições social-democráticas.

Como isto foi possível? De fato, o “Bad Godesberg” do PT, isto é, sua ida a Canossa, foi clandestino e inconfessado, aliás até agora não assumido e não declarado, daí a raiva incontida e a frustração compreensível de muitos dos true believers e dos acadêmicos idealistas que ainda fazem o grosso de suas tropas de mobilização (mas não de ocupação). Com razão, um punhado de representantes políticos e muitos apoiadores acadêmicos reclamam da contradição entre o velho discurso – ainda não rejeitado em concílio formal – e as novas práticas, todas elas desabridamente social-democráticas, despudoradamente reformistas, inconfessadamente capitalistas e quase “neoliberais”, quanto aos resultados, senão em intenções (aqui com alguma licença poética).

Não pretendo retomar, neste curto texto dissertativo, a análise dessa “grande transformação” a que se submeteu o PT, trabalho já efetuado em meu livro A Grande Mudança (publicado no início de 2003, mas quase todo ele escrito ainda antes das eleições, em meados de 2002). Apenas desejo destacar que essa ruptura do PT com seus velhos demônios de um passado irrequieto e radicalmente juvenil era já esperada e mesmo historicamente necessária. Sou tanto mais insuspeito para afirmá-lo que, sendo simpático à maior parte das causas que defende o PT, eu estava aguardando há anos que ele fizesse essa conversão para que o partido pudesse, finalmente, compatibilizar missão histórica com discurso político, responsabilidades governativas e bom senso, adequação de objetivos e clareza quanto aos meios e métodos, enfim, que ele se assumisse como o partido reformista e capitalista que ele sempre foi (ou que pelo menos deveria ser) e o agente hegeliano, a partir de agora, da verdadeira mudança social e política de que o Brasil necessita.

Também não hesito em confessar que, sendo marxista (ainda que de uma tendência algo anarquista ou libertária), eu acho absolutamente natural que o PT caminhe para um modo superior de produção de idéias e conceitos, para uma etapa mais avançada do desenvolvimento de suas forças produtivas mentais, trajetória que fará, finalmente, com que ele escape da camisa de força ideológica que o manteve aprisionado durante muito tempo a falsas ilusões transformistas e a várias receitas equivocadas de administração da “coisa” econômica para enveredar pelo caminho sensato, certamente mais modesto e limitado, das pequenas mudanças graduais e das aproximações progressivas à justiça social e à incorporação de todos os oprimidos. Esta é a sua missão histórica e para ela, e com ela – mesmo não sendo militante do partido –, pretendo colaborar na extensão de minha limitada habilidade profissional e eventual competência intelectual. 

Como, entretanto, acredito que ainda não se desfizeram todas as névoas e brumas que cercam o ideário do partido, justamente porque ele ainda não convocou o conclave no qual os novos dogmas serão oficializados, ofereço, a título de colaboração, uma simples tabela de velhas e novas idéias que convém certamente discutir, com o fito de aposentar antigos manuais e começar a elaborar os novos cadernos de viagem, numa trajetória que terá os seus solavancos e surpresas de beira de estada, mas será certamente coroada de sucesso como convém a um partido decididamente democrático e agora social-democrático.

A tabela que apresento a seguir, retirada de meu já citado livro A Grande Mudança – e que constitui, precisamente, o único texto pós-eleitoral dessa obra – tem a pretensão exclusiva de separar algumas velhas idéias “malucas” de alguns novos conceitos – alguns talvez surpreendentes para certas “almas cândidas”, como diria Raymond Aron – que podem ajudar a ver um pouco mais claro nesta nova trajetória cheia de surpresas que agora empreende o mais novo (e provavelmente o maior) partido social-democrático do Ocidente.

Dotada de um certo tom iconoclástico e provocador, essa minha “tabela periódica das novas partículas elementares” pretende apresentar, em três colunas correlacionadas, um conjunto de idéias vencedoras, outras idéias derrotadas (ou em vias de sê-lo) e outros tantos conceitos vagos e esperanças ainda indefinidas na presente conjuntura de transformação. Dispensável dizer que a distribuição que eu mesmo efetuei dessas idéias que considero bem sucedidas – a própria social-democracia, a globalização, o bom senso econômico, enfim –, assim como de outras de menor desempenho relativo em nossos tempos de neoliberalismo disfarçado, não corresponde àquela repartição de “boas e más” idéias que parecia derivar dos antigos manuais de economia política adotados pelo maior partido brasileiro. 

Se ouso fazer uma síntese das novas idéias e dos novos compromissos que se espera venham agora corresponder à ação prática e governativa da nova maioria política, eu diria simplesmente o seguinte: do PT a sociedade espera que ele se guie, a partir de agora, menos por Antonio Gramsci e mais por Peter Drucker, ou seja, que ele afaste os véus ideológicos de um passado não muito distante e adote, doravante, uma nítida feição de administração para resultados. Vejamos, em todo caso, como poderia se apresentar este comércio de idéias entre o novo centro político e a sociedade que o cerca: 

 

Tabela periódica das novas partículas elementares

(Atenção: os materiais podem ser misturados entre si, mas em doses muito bem medidas)

Idéias vencedoras

Idéias derrotadas

Ainda indefinidas

Conceitos abstratos e tipos ideais de boa governança

Milton Friedman

Karl Marx

Antonio Gramsci

Karl Kautsky

Vladimir Ilich

Edward Bernstein

Paul Samuelson

Oskar Lange

Celso Furtado 

Pragmatismo

Ideologia

Princípios fundadores

Empirismo

Materialismo dialético

Socialismo utópico

Capitalismo

Forte papel do Estado

Economia solidária

Liberalismo social

Socialismo liberal

Neoliberalismo

Analista de Bagé ã

Bispo da CNBB

Jornalista progressista

Programa de governo

Plataforma maximalista

Projeto nacional

Reformas econômicas

Modelo alternativo

Determinação do governo

Tecnocracia estatal

Intelligentsia genérica

Intelectual “público”

American dream

Cartorialismo português

Jeitinho brasileiro

A prática concreta das relações econômicas internacionais

Globalização

Autonomia nacional

Um novo mundo possível

Consenso de Washington

Gastança keynesiana

Investimentos sociais

Interdependência

Não à “subordinação”

Administração da abertura

FMI

ATTAC

Foro Social

Abertura a capitais externos

Não aos fluxos “voláteis”

Controles seletivos

Complementaridade

Desnacionalização

Cadeias produtivas

Comércio de duas mãos

Mercantilismo

Incentivos às exportações

Agricultura de mercado

Subvenções às exportações 

Alguns subsídios internos

Multinacionais brasileiras

Monopólios internacionais

Alianças estratégicas

Acordos de liberalização

Anexação comercial

Barganha negociadora

Câmbio flutuante

Intervenções dirigidas

Flutuação + ou - “suja”

Conversibilidade gradual

Centralização do câmbio

Papel do Banco Central

Entendimento com credores

Reestruturação unilateral

Risco aceitável

Respeito aos contratos

Moratória soberana

Auditoria da dívida

Tarifas regulatórias

Impostos proibitivos

Papel da política comercial

Menor custo de captação 

Tobin Tax

Quarentena ou imposto?

Alguns novos princípios para a economia doméstica

Responsabilidade fiscal

Orçamento elástico

+ Receita vs. - Despesa

Forças de mercado

Projeto estratégico nacional

Soft planning

Metas de inflação

Crescimento máximo

Limites do trade-off

Fluxos, antes dos estoques

Redistribuição patrimonial

Desconcentração da renda

Participação estrangeira

Reversão das privatizações

Continuidade dos leilões

Demanda ampliada

Mercado interno

Consumo de massas

Patenteamento ampliado

Autonomia tecnológica

Geração endógena

Juros de mercado

Limitação constitucional

Autonomia do Copom

Agribusiness

Multifuncionalidade

Créditos subsidiados

Agricultura familiar

Reforma agrária milagre

Cooperativas populares

Ajuste fiscal

Despoupança estatal

Poupança doméstica

Indução horizontal

Política industrial ativa

Pesquisa e desenvolvimento

Flexibilização laboral

Novos direitos sociais

Reforma da CLT

Bolsa-escola

Renda-cidadã

Fontes de financiamento

Normas prudenciais

Não ao oligopólio bancário

Reforma financeira

Salário mínimo mínimo

Salário mínimo máximo

Pressão sobre a Previdência

Alunos do primário público

Elite universitária “pública”

Qualidade do ensino básico

Velhinha de Taubaté ã

Burguesia nacional

Industrial da FIESP

Fonte: Paulo Roberto de Almeida, A Grande Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil. São Paulo: Editora Códex, 2003; (com a contribuição involuntária de Luís Fernando Veríssimo: ãAnalista de Bagé e Velhinha de Taubaté).

 

Se me permitem, agora, uma última digressão final sobre o próprio título desta mesa, “Por onde tem ido e por onde irá o governo Lula?”, eu diria o seguinte. O grupo que hoje controla o partido e o governo – o que não quer dizer, obviamente, o conjunto do partido e sequer a massa de seus seguidores políticos ou eventuais apoiadores eleitorais – veio, em grande medida, da coluna do meio, com alguns matizes inevitáveis em função da origem político-partidária ou social desses dirigentes principais. A nomenklatura ainda não absorveu totalmente, nem pretende fazê-lo abertamente, as novas idéias e conceitos para uma boa governança à la Drucker, alinhados – como convém – à esquerda da tabela, mas ela tem absoluta certeza de que o caminho gramsciano oferece muito poucas alternativas de sucesso administrativo, social ou econômico. Ela recusa, em todo caso, a maior parte das velhas promessas de outros tempos, o que é um bom sinal de gestão responsável e uma promessa de ação comprometida com resultados seguros de crescimento com preservação da estabilidade macroeconômica (um ideal tipicamente social-democrático).

Resta, portanto, o grande objetivo da justiça social, que alguns ainda identificam com o distributivismo semi-populista. Tenho certeza de que se caminhará em direção dessa meta histórica, com total preservação da democracia e de uma sociedade aberta aos talentos e aos méritos individuais. Como fazê-lo, sem desregular a máquina econômica, parece ser o desafio principal desta conjuntura de pouco mais de três anos à frente. Creio que alguns dos conceitos que poderiam ser mobilizados para essa tarefa se situam, sem qualquer conotação ideológica, na coluna da direita – mas ele ali estão de forma algo ambígua e com um desempenho pouco claro quanto à efetividade das idéias ali alinhadas para a consecução dos objetivos do novo centro político do Brasil. Uma coisa, porém, me parece certa, a partir de agora, no sempre mutável sistema político-partidário brasileiro: o PT chegou finalmente à social-democracia e nela vai ancorar o seu grande veleiro de torneios políticos e de cruzeiros sociais. Que bons ventos o levem ao continente de seus sonhos, assim como, suponho, dos sonhos da maioria dos brasileiros. Em todo caso, bem vindo à realidade!

 

* Trabalho concluído em Washington em  10 de outubro de 2003 e  apresentado na sessão “Por onde tem ido e por onde irá o governo Lula?”, realizada em 22.10.03, no Congresso da ANPOCS, em Caxambu / MG.

 

** Paulo Roberto de Almeida. Diplomata. Professor e Doutor em Ciências Sociais.  pralmeida@mac.comwww.pralmeida.org

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