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quarta-feira, 15 de março de 2017

Roberto Campos: o democrata modernizador - Ricardo Velez-Rodriguez (OESP)

Aproveito a ocasião de postar este artigo de meu amigo Ricardo Velez-Rodríguez para informar que ele é um dos colaboradores ao livro que eu  organizei sobre a vida, a obra e o pensamento de Roberto Campos, intitulado O Homem que Pensou o Brasil (Curitiba: Editora Appris, em publicação próxima), com muitos outros artigos de colaboradores distinguidos.
Vou postar os dados desse volume neste espaço.
Paulo Roberto de Almeida


Roberto Campos (1917-2001)
Um democrata que sempre se empenhou na modernização das nossas instituições
RICARDO VÉLEZ RODRIGUEZ*
O Estado de S. Paulo, 15 Março 2017

Comemora-se este ano, no dia 17 de abril, o centenário de Roberto Campos.
A sua figura é importante no processo de redemocratização do Brasil, pois Campos conhecia em profundidade não apenas a natureza patrimonialista do Estado, como também as mudanças pelas quais o País enveredou no segundo pós-guerra, tendo participado dos esforços de modernização e democratização das nossas instituições.
Durante décadas o establishment do Itamaraty tentou riscar do mapa o embaixador Roberto Campos, porquanto representativa de um perigo para os que se haviam encastelado no regime de sesmarias ao redor de uma opção pelo “socialismo real”, após a derrota dos alemães na 2.ª Guerra Mundial. Quando nosso personagem optou por se habilitar em concurso para trabalhar no Ministério das Relações Exteriores em pleno Estado Novo, no ano de 1938, a maior parte dos diplomatas brasileiros se colocava no contexto dos interesses do Eixo. Mas quando as forças de Hitler começaram a ser derrotadas pelos Aliados na etapa final da 2.ª Grande Guerra, os diplomatas correram céleres para se arrumarem em torno dos representantes das democracias ditas “populares”, chefiadas pela antiga União Soviética. Guinada de 180 graus que, contudo, deixou intacto o dogmatismo e o gosto pelo “poder total”.
Entre os Aliados, os itamaratyanos fizeram a sua escolha: os russos, que representavam a nova força que se estabelecia no mundo, contrária aos americanos. A respeito do clima que se vivia no Ministério das Relações Exteriores no contexto dessa arrumação ideológica, escreve Roberto Campos: “O Itamaraty, situado na avenida Marechal Floriano (a antiga rua Larga de São Joaquim), era comumente apelidado de Butantã da rua Larga. São cobras, mas fingem que são minhocas – dizia-me de seus colegas o admirável Guimarães Rosa, que depois se tornaria o meu escritor preferido” (Roberto Campos, Lanterna na Popa – Memórias, Rio de Janeiro, Topbooks, 1994, pág. 31).
Roberto Campos e um grupo minoritário representaram a opção por um conceito de diplomacia afinado com a democracia ocidental e alheio à busca do “democratismo” que terminou vingando no mundo comunista. Como ele mesmo destacava, virou uma espécie de “profeta da liberdade”, à maneira, aliás, de Tocqueville, que se descrevia a si próprio como um “São João Batista que prega no deserto”. A respeito da opção liberal, frisa Roberto Campos na sua obra autobiográfica, A Lanterna na Popa: “Em nenhum momento consegui a grandeza. Em todos os momentos procurei escapar da mediocridade. Fui um pouco um apóstolo, sem a coragem de ser mártir. Lutei contra as marés do nacional-populismo, antecipando o refluxo da onda. Às vezes ousei profetizar, não por ver mais que os outros, mas por ver antes. Por muito tempo, ao defender o liberalismo econômico, fui considerado um herege imprudente. Os acontecimentos mundiais, na visão de alguns, me promoveram a profeta responsável”.
Talvez o traço mais marcante da personalidade intelectual de Roberto Campos tenha sido a capacidade de rir de si próprio, estabelecendo uma saudável relatividade nos seus pontos de vista. Definiu-se a si mesmo, no primeiro capítulo de sua autobiografia, como “analfabeto erudito”. Analfabeto em matéria de especialidades cartoriais que o habilitariam para um concurso público. Mas erudito por uma inegável formação humanística haurida no seminário, onde cursou os estudos completos de Filosofia e Teologia, além de ter recebido as ordens menores – hostiário, leitor, exorcista, acólito.
Assim, a passagem de Roberto Campos pela divisão de “secos e molhados” (nome jocoso dado pelo nosso autor à área de Assuntos Econômicos do Itamaraty) foi bastante profícua, tendo-o colocado, juntamente com Eugênio Gudin, na linha de frente da formulação das políticas econômicas, que se tornariam, após a Conferência de Bretton Woods, em 1944, a peça forte das relações diplomáticas. (Da mencionada conferência Roberto Campos participou como assessor da equipe brasileira chefiada pelo professor Gudin.)
Duas etapas podem ser reconhecidas na formação do liberalismo econômico no nosso autor: a primeira, em que a influência maior veio de Keynes, e a segunda, já derrubado o Muro de Berlim, com uma aproximação maior do pensamento da Escola Austríaca. Mas sempre mantendo atenta a vista na construção de instituições que conduzissem o Brasil ao pleno desenvolvimento econômico com preservação da liberdade.
Roberto Campos foi também um crítico do patrimonialismo. Ao meu ver, um crítico sistemático das práticas patrimonialistas com a tendência a fazer do Estado negócio familiar. Na sua última fala no Congresso Nacional, ao se despedir da vida pública, em 1999, frisou naquela bela página divulgada pelo Estadão: “ (...). Sempre achei que um dos mais graves problemas dos subdesenvolvidos é a sua incompetência na descoberta dos verdadeiros inimigos. Assim, por exemplo os responsáveis pela nossa pobreza não são o liberalismo, nem o capitalismo, em que somos noviços destreinados, e sim a inflação, a falta de educação básica e um assistencialismo governamental incompetente, que faz com que os assistentes passem melhor que os assistidos. Os inimigos do desenvolvimento não são os entreguistas, que, aliás, só poderiam entregar miséria e subdesenvolvimento, e sim os monopolistas, que cultivam ineficiências e criaram uma nova classe de privilegiados – os burgueses do Estado. Os promotores da inflação não são a ganância dos empresários ou a predação das multinacionais, e sim esse velho safado, que conosco convive desde o albor da República – o déficit do setor público” (A despedida de Roberto Campos, O Estado de S. Paulo, 31/1/1999, página A8).

* RICARDO VÉLEZ RODRIGUEZ É COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS DA UFJF, PROFESSOR EMÉRITO DA ECEME, DOCENTE DA FACULDADE ARTHUR THOMAS, EM LONDRINA E-MAIL: RIVE2001@GMAIL.COM

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Roberto Campos: o profeta responsavel

Acabo de colocar um ponto (provavelmente não final) em um longo (140 p.) ensaio de história das ideias de Roberto Campos.
Abaixo apenas o "Índice" do ensaio.


Roberto Campos: uma trajetória intelectual no século 20

Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 28/02/2017, 140 p.)

1. Turgot e Campos: dois economistas, separados no tempo, unidos nas ideias
2. As ideias movem o mundo? Provavelmente sim, para Roberto Campos

Primeira Parte: No Estado, pelo Estado, com o Estado
3. O seminarista literário se torna um economista prático
4. Do economista improvisado ao administrador pragmático
5. A irresistível ascensão do diplomata tecnocrata
6. A economia brasileira guiada pela mão do Estado
7. A produção intelectual a favor do ativismo estatal
8. Dos bastidores ao palco: o homem público se torna um estadista
9. No olho do furacão: o estadista em ação, no planejamento estatal
10. O articulista erudito a serviço da razão de Estado

Segunda Parte: Fora do Estado, sem o Estado, contra o Estado
11. Do “executivo imaginoso” ao “pregador missionário”
12. O diplomata “herege”, do “outro lado da cerca”, nadando “contra a maré”
13. O “herege diplomata” em licença, e no limbo, do Itamaraty
14. A produção intelectual, entre a academia e a tecnocracia
15. De volta às lides diplomáticas, na Corte de Saint James
16. O “herege diplomata” é sabotado no caminho da ministrança
17. A produção intelectual na terra dos grandes economistas
18. De tecnocrata a político: a ética da convicção, num país anti-weberiano
19. Do fracasso na política ao sucesso como publicista erudito

20. À guisa de conclusão: o profeta do planejamento utópico do futuro

Referências bibliográficas

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Reescrevendo a historia: o fracasso monumental da Petrossauro - Roberto Campos

Preciso comentar? Acho que não. Só não sei porque ainda não se discute seriamente a questão da privatização completa desse ente deficitário e antro de corrupção que se chama Petrobras.
Paulo Roberto de Almeida

REESCREVENDO A HISTÓRIA...
Roberto Campos
Jornal do Comércio,  21/03/1999

Quando for escrita a história econômica do Brasil nos últimos 50 anos, várias coisas estranhas acontecerão. A política de autonomia tecnológica em informática, dos anos 70 e 80, aparecerá como uma solene estupidez, pois significou uma taxação da inteligência e uma subvenção à burrice dos nacionalistas e à safadeza de empresários cartoriais. Campanhas econômico-ideológicas como a do "o petróleo é nosso" deixarão de ser descritas como uma marcha de patriotas esclarecidos, para ser vistas como uma procissão de fetichistas anti-higiênicos, capazes de transformar um líquido fedorento num unguento sagrado. Foi uma "passeata da anti-razão" que criou sérias deformações culturais, inclusive a propensão funesta às "reservas de mercado".

A criação do monopólio estatal de 1953 foi um pecado contra a lógica econômica. Precisamente nesse momento, o ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, mendigava um empréstimo de US$ 300 milhões ao Eximbank, para cobertura de importações correntes (inclusive de petróleo). A ironia da situação era flagrante: de um lado, o país mendigava capitais de empréstimos que agravariam sua insolvência, de outro, pela proclamação do monopólio estatal, rejeitava capitais voluntários de risco. Ao invés de sócios complacentes (cuja fortuna dependeria do êxito do país), preferíamos credores implacáveis (que exigiriam pagamento, independentemente das crises internas). Esse absurdo ilogismo levou Eugene Black, presidente do Banco Mundial, a interromper financiamentos ao Brasil durante cerca de dez anos (com exceção do projeto hidrelétrico de Furnas, financiado em 1958). Houve outros subprodutos desfavoráveis.

Criou-se uma cultura de "reserva de mercado", hostil ao capitalismo competitivo. Surgiu uma poderosa burguesia estatal que, protegida da crítica e imune à concorrência, acumulou privilégios abusivos em termos de salários e aposentadorias. Criou-se uma falsa identificação entre interesse da empresa e interesse nacional, de sorte que a crítica de gestão e a busca de alternativas passaram a ser vistas como traição ou impatriotismo.  Vistos em retrospecto, os monopólios estatais de petróleo, que se expandiram no Terceiro Mundo nas décadas de 60 e 70, longe de representarem um ativo estratégico, tornaram-se um cacoete de países subdesenvolvidos na América Latina, África e Médio Oriente. Nenhum país rico ou estrategicamente importante, nem do Grupo dos 7 nem da OCDE, mantém hoje monopólios estatais, o que significa que os monopólios não são necessários nem para a riqueza nem para a segurança estratégica.

Essas considerações me vêm à mente ao perlustrar os últimos relatórios da Petrossauro. Ao contrário de suas congêneres terceiro-mundistas, que são vacas-leiteiras dos respectivos Tesouros, a Petrossauro sempre foi mesquinha no tratamento do acionista majoritário. Tradicionalmente, a remuneração média anual do Tesouro, sob a forma de dividendos líquidos, não chegou a 1% sobre o capital aplicado. Após a extinção de jure do monopólio, em 1995 (ele continua de facto), e em virtude da crítica de gestão e da pressão do Tesouro falido, os dividendos melhoraram um pouco, ma non troppo. Muito mais generoso é o tratamento dado pela Petrossauro à Fundação Petros, que representa patrimônio privado dos funcionários.

A empresa é dessarte muito mais um instituto de previdência, que trabalha para os funcionários, do que uma indústria lucrativa, que trabalha para os acionistas. Aliás, é duvidoso que a Petrossauro seja uma empresa lucrativa. Lucro é o resultado gerado em condições competitivas. No caso de monopólios, é melhor falar em resultados. Quanto à Petrossauro, se fosse obrigada a pagar os variados tributos que pagam as multinacionais aos países hospedeiros-bônus de assinatura, royalties polpudos, participação na produção, Imposto de Renda e importação - teria que registrar prejuízos constantes, pois é alto seu custo de produção e baixa sua eficiência, quer medida em barris/dia por empregado, quer em venda anual por empregado.

Examinados os balanços de 1995 a 1998, verifica-se que o somatório dos dividendos ao Tesouro (pagos ou propostos) alcançam R$ 1,606 bilhão enquanto que as doações à Petros atingiram 2,054 bilhões.

Considerando que o Tesouro representa 160 milhões de habitantes e vários milhões de contribuintes, enquanto que a burguesia do Estado da Petrossauro é inferior a 40 mil pessoas, verifica-se que é o contribuinte que está a serviço da estatal e não vice- versa.

Nota-se hoje no Governo uma perigosa tendência de postergação das privatizações seja na área de petróleo, seja na área financeira, seja na eletricidade. É um erro grave, que põe em dúvida nosso sentido de urgência na solução da crise e nossa percepção dos remédios necessários. A privatização não é uma opção acidental nem coisa postergável, como pensam políticos irrealistas e burocratas corporativistas. É uma imposição do realismo financeiro. Há duas tarefas de saneamento imprescindíveis. A primeira consiste em deter-se o "fluxo" do endividamento (o objeto mínimo seria estabilizar-se a relação endividamento/PIB). Essa é a tarefa a ser cumprida pelo ajuste "fiscal".  A segunda consiste em reduzir-se o estoque da dívida. Esse o objetivo da reforma "patrimonial", ou seja, a "privatização".

Não se deve subestimar a contribuição potencial da reforma patrimonial para a solução de nosso impasse financeiro. Tomemos um exemplo simplificado.

Apesar da crise das Bolsas, a venda do complexo Petrossauro-BR Distribuidora poderia gerar uma receita estimada em R$ 20 bilhões. Considerando-se que a rolagem da dívida está custando ao Tesouro 40% ao ano, uma redução do estoque em R$ 20 bilhões, representaria uma economia em curto prazo de R$ 8 bilhões. Isso equivale a aproximadamente 20 anos dos dividendos pagos ao Tesouro pela Petrossauro na média do período 1995-1998 (a média anual foi de R$ 401,7 milhões).

Se aplicarmos o mesmo raciocínio à privatização de bancos estatais e empresas de eletricidade, verificaremos que a solvência brasileira dificilmente será restaurada pela simples reforma fiscal. Terá que ser complementada pela reforma patrimonial.  É perigosa complacência a atitude governamental de que a reforma fiscal é urgente e a reforma patrimonial postergável. É dessas complacências e meias medidas que se compõe nossa lamentável, repetitiva e humilhante crise existencial.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Ainda Roberto Campos, com Marx e Hayek, discutindo a politica companheira - Paulo Roberto de Almeida

Este artigo é também sobre Roberto Campos, no terceiro ano de sua morte, batendo um papinho sobre as políticas econômicas companheiras com dois colegas economistas:


1333. “O que Roberto Campos estaria pensando da política econômica?”, Brasília, 30 setembro 2004, 4 p. Ensaio colocando RC em conversa com Keynes, Hayek e Marx, no limbo, a propósito do terceiro ano de sua morte. Preparada versão reduzida, sob o título de “O que Roberto Campos pensaria da política econômica”, publicada no O Estado de São Paulo (sábado, 9/10/2004, caderno Econômico, p. B2). Reproduzido in totum no site do jornalista Diego Casagrande (Porto Alegre: 8/11/2004) e no site do Ministério do Planejamento. Relação de Publicados n. 498.


O que Roberto Campos estaria pensando da política econômica?

Paulo Roberto de Almeida
Preparada versão reduzida, sob o título
“O que Roberto Campos pensaria da política econômica”,
publicada no caderno econômico d’O Estado de São Paulo
(Sábado, 9 de outubro de 2004, p. B2;
Relação de Publicados nº 471.

No dia 9 de outubro se estará ultrapassando a marca dos três primeiros anos do falecimento, em 2001, do diplomata, economista, administrador público, político e pensador Roberto Campos, que foi também um comentarista cáustico e voluntariamente impiedoso de nossas (ir)realidades quotidianas e bizarrices institucionais. Infelizmente para nós (mas talvez felizmente para os seus adversários “filosóficos”), ele não viveu o suficiente para assistir, a partir de 2002, a uma das mais formidáveis revoluções intelectuais já registradas em toda a história do Brasil: nada mais, nada menos do que a incrível conversão da água em vinho, isto é, a transformação do antigo partido adepto das rupturas econômicas – e propenso a fazer passar as “prioridades sociais” antes do respeito aos contratos da dívida – em um grupo comprometido com a responsabilidade fiscal, com a boa gestão das contas públicas e, surpresa das surpresas, com a aceitação decidida e consentida, não só da renovação do acordo de assistência financeira com o FMI, como também das condicionalidades associadas ao seu “menu” de política econômica (mais parecido a um regime de emagrecimento do que a uma churrascaria rodízio).
O que estaria pensando de tudo isso o iconoclasta, irônico e irreverente Roberto Campos? O que estaria escrevendo a respeito da atual política econômica o mais arguto dos polemistas brasileiros contemporâneos, o homem a quem seus inimigos políticos teimavam em chamar de “Bob Fields”, como se ele fosse menos patriota ou menos comprometido com o interesse nacional do que aqueles que o provocavam com slogans mal concebidos, mas que hesitavam em (ou simplesmente evitavam) enfrentá-lo num debate aberto e responsável sobre esses temas candentes da atualidade econômica?
Onde quer que ele possa estar no presente momento – e eu o imagino no limbo econômico das soluções imperfeitas, como compete a todos os partidários da disciplina da escassez, esses adeptos realistas da “ciência lúgubre”, sentado confortavelmente à esquerda de Hayek e à direita de Keynes –, ele deve estar soltando gostosas gargalhadas, comentando com seus incrédulos parceiros essa verdadeira “reversão de expectativas” a que o Brasil assistiu nos últimos dois anos e meio. Vamos imaginar um possível diálogo entre os três, com algumas rápidas incursões por parte de Marx (também, e mais do que nunca, no limbo) e uma única e breve intervenção do seu discípulo russo, Vladimir Ulianov, em férias de paragens mais quentes.
Roberto Campos, que nasceu no mesmo ano da revolução bolchevique, não teria perdido a oportunidade para, em primeiro lugar, espicaçar este último e provocar o filósofo alemão, cujas doutrinas serviram de inspiração para a mais desastrada tentativa de superar os limites estreitos da escassez econômica em nome de uma suposta gestão socialista das forças produtivas. “O que você está achando da ‘nova política econômica’ Vladimir?”, perguntaria ele, para ouvir o outro resmungar ressabiado: “Os companheiros assumiram numa situação de verdadeira guerra econômica, pois os especuladores de Wall Street e os sabotadores internos queriam a derrocada imediata do novo governo. Eles precisaram, temporariamente, compor com as forças do mercado e com os banqueiros gananciosos, mas ainda guardam munição para combater a exploração capitalista e a opressão burguesa. Espere para ver.”
Sem esperar pelo resto, Roberto Campos dirigiu-se de maneira não menos provocadora ao autor do Capital,: “Você acha mesmo, Karl, que nossos amigos saberão construir a sociedade ideal, na qual cada um contribuirá na medida de suas capacidades e cuja distribuição se fará segundo as necessidades de cada um de seus membros?” “Mas isto não é para agora, seu capitalista utópico”, respondeu o filósofo da mais valia, “e sim para a etapa comunista da revolução brasileira, isto é, para a última e derradeira fase da construção socialista. Por enquanto, até eu recomendaria uma política de transição e uma acomodação com os mercadores do templo, isto é, os donos do capital. De toda forma, ainda estamos no começo: não se esqueça que no Manifesto de 1848 eu preconizava primeiro o aprofundamento da globalização capitalista. Estou satisfeito com o que estou vendo: o novo governo caminha a passos rápidos no processo de internacionalização das empresas brasileiras, contribuindo com a missão histórica da rápida universalização do modo capitalista de produção. O socialismo está ao alcance da mão.”
Marx recebeu a surpreendente adesão do liberal Hayek, que também achava que o governo tinha tomado o caminho da servidão, construindo as bases da mesma economia coletivista que um dia tragou sua querida Áustria, sob a forma do dirigismo nazista, assim como a Rússia, sob a economia totalmente estatizada dos bolchevistas. “E o senhor, Herr Campos, não está preocupado ao ver a atual orientação do Brasilianische economik Regierung?”, indagou ele, com o semblante carregado. “De fato, meu caro Friedrich”, comentou Campos, “vários dos membros da nomenklatura tropical padecem de incurável nostalgia em relação aos antigos tempos revolucionários. Mas isso justamente não ocorre com das Finanz Ministerium de Herr Palocci: sua Realeconomik não causaria nenhum tipo de constrangimento ao seu amigo Friedman, de Chicago. Ele até agora se guiou pelo mais retos princípios do Ideal Liberalismus e estou certo de que ouviria com prazer algumas de suas receitas práticas sobre como escapar da servidão, hoje representada por um Estado economicamente opressor da liberdade de empreender, tão bem defendida em sua obra.”
Enquanto Hayek se deleitava ao ouvir essas palavras, Keynes fazia tilintar de impaciência o gelo de seu legítimo scotch, atacando sem mais esperar: “Mas esse doutor em medicina poderia ter evitado o amargo purgante de uma tão inútil quanto cruel recessão, se tivesse seguido uma das receitas da Teoria Geral, que recomendava injeções fiscais anti-cíclicas para poupar os Brazilian workers do desemprego e da perda do poder de compra. Ele precisava ter assegurado a demanda agregada, bem como o nível das despesas públicas, e deveria ter reintroduzido os controles de capitais, evitando a todo custo cair nas mãos daqueles fundamentalistas do FMI”.
“Você está mal informado, Maynard”, retrucou Campos, que tinha intimidade suficiente com o inglês para chamá-lo pelo seu nome do meio. “O Estado brasileiro não consegue sequer assegurar um dedal orçamentário para a recuperação das esburacadas estradas federais, quanto mais essa injeção fiscal que você recomenda para estimular a demanda agregada. O que ele faz, de um lado, é uma oferta desagregada de promessas insustentáveis de crescimento, ao mesmo tempo em que retira, por outro lado, as poucas poupanças da sociedade, pela mão de uma máquina de arrecadação mais ameaçadora do que um dreadnought britânico.” Antes que Keynes formulasse novas recomendações de política econômica a partir das idéias de algum economista morto, Campos completou, com a mais fina ironia britânica: “As conseqüências econômicas de mister Palocci são, em todo caso, menos perigosas do que as recomendações bizarras dos seus discípulos no Brasil, que pretendem dar cabo de algo que nunca existiu em meu país: o liberalismo econômico. Francamente, Maynard, eles estão completamente out of touch! Passe o gelo, por favor, e se puder a sua garrafa também.”
Virando-se novamente para Hayek, Campos aduziu com um sorriso maroto: “Não aconteceu em minha vida, mas eu ainda vou assistir, no Brasil, aqui do alto, à mais incrível revolução capitalista que se poderia esperar de um antigo líder socialista radical.” Tendo Marx justificado que isso talvez representasse alguma necessidade histórica da fase de transição para o capitalismo globalizado – que, afinal de contas, tinha tido sua marcha interrompida por setenta anos de tropeços socialistas –, Campos concluiu, rendendo uma homenagem à prosa barroca do Manifesto: “Eu também acho Karl: os seus amigos ex-socialistas, hoje neocapitalistas, não têm mais nada a perder, senão os grilhões mentais que os prendem às velhas soluções estatizantes de um passado tão mítico quanto, hoje em dia, inexeqüível. Esses grilhões mentais precisam ser rompidos e eles serão rompidos”. E dirigindo-se a ambos: “Vamos brindar com um gole de Schnaps a esta revolução burguesa tropical?”

Paulo Roberto de Almeida é doutor em ciências sociais, mestre em planejamento econômico e professor universitário.
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)


Versão publicada:

O Estado de São Paulo, Sábado, 9 de outubro de 2004
O que Roberto Campos pensaria da política econômica?
ENTRE HAYEK E KEYNES, HERR CAMPOS ESTARIA RINDO DA REVERSÃO DE EXPECTATIVAS VISTA NO BRASIL

(Subtítulo da edição impressa do jornal: “Diálogo de mortos: de Marx, Keynes, Hayek e Campos sobre o Brasil de Lula)

PAULO ROBERTO DE ALMEIDA


No dia 9 de outubro se completam três anos do falecimento, em 2001, do diplomata, economista, administrador público, político e pensador Roberto Campos, que foi também um comentarista cáustico e impiedoso de nossas bizarrices institucionais. O que estaria pensando o iconoclasta, irônico e irreverente Roberto Campos a respeito da política econômica do atual governo?
Onde estará ele no presente momento? Eu o imagino no limbo econômico das soluções imperfeitas, no purgatório da disciplina da escassez, na companhia de adeptos da "ciência lúgubre", sentado à esquerda de Hayek e à direita de Keynes, soltando gargalhadas a propósito da "reversão de expectativas" a que o Brasil assistiu nos últimos dois anos.
Roberto Campos não perderia a oportunidade para provocar o filósofo alemão cujas doutrinas serviram de inspiração para os propositores de uma "nova política econômica": "Você acha, Karl, que nossos amigos saberão construir a sociedade ideal, na qual cada um contribuirá na medida de suas capacidades e cuja distribuição se fará segundo as necessidades de cada um de seus membros?" "Isto não é para agora, seu capitalista utópico", responde o filósofo da mais-valia, "e sim para a etapa comunista, para a última fase da construção socialista. Por enquanto, até eu recomendo uma política de transição e uma acomodação com os donos do capital. No Manifesto de 1848 eu preconizava primeiro o aprofundamento da globalização capitalista. Estou satisfeito com o novo governo: ele promove a internacionalização das empresas brasileiras, ajudando na missão histórica da rápida universalização do modo capitalista de produção. O socialismo está ao alcance da mão."
Marx recebeu a surpreendente adesão do liberal Hayek, que também achava que o governo tinha tomado o caminho da servidão. "E o senhor, Herr Campos, não está preocupado com a orientação do Brasilianische economik Regierung?", indagou com o semblante carregado. "De fato, meu caro Friedrich", comentou Campos, "vários dos membros deste governo padecem de nostalgia em relação aos tempos revolucionários. Mas isso não ocorre com das Finanz Ministerium de Herr Palocci: sua Realeconomik não causaria nenhum constrangimento ao seu amigo Milton Friedman. Ele até agora se guiou pelos retos princípios do Ideal Liberalismus e estou certo de que ouviria com prazer suas receitas sobre como escapar da servidão, hoje representada por um Estado economicamente opressor da liberdade de empreender."
Enquanto Hayek se deleitava ao ouvi-lo, Keynes fazia tilintar o gelo de seu scotch, atacando sem mais esperar: "Mas esse doutor em Medicina poderia ter evitado o purgante de uma cruel recessão, se tivesse seguido as receitas da Teoria Geral, que recomenda injeções fiscais anticíclicas para poupar os Brazilian workers do desemprego. Ele precisa assegurar a demanda agregada e o nível das despesas públicas, além de controlar os capitais, evitando cair nas mãos dos fundamentalistas do FMI."
"Você está mal informado, Maynard", retrucou Campos, que tinha intimidade com o inglês para chamá-lo pelo nome do meio. "O Estado brasileiro não consegue sequer manter as estradas federais, quanto mais fazer essa injeção fiscal para estimular a demanda agregada. O que ele faz é uma oferta desagregada de promessas insustentáveis de crescimento, ao mesmo tempo em que retira a poupança da sociedade, usando uma máquina de arrecadação mais ameaçadora do que um dreadnought britânico." Antes que Keynes formulasse novas recomendações de política econômica a partir das idéias de algum economista morto, Campos completou, com a mais fina ironia britânica: "As conseqüências econômicas de mister Palocci são, em todo caso, menos perigosas do que as recomendações bizarras dos seus discípulos no Brasil, que pretendem dar cabo de algo que nunca existiu em meu país: o liberalismo econômico. Francamente, Maynard, eles estão completamente out of touch!
Passe o gelo, por favor, e a garrafa também."
Virando-se para Hayek, Campos aduziu com um sorriso maroto: "Não aconteceu em minha vida, mas ainda vou assistir, no Brasil, à mais incrível revolução capitalista que se poderia esperar de um antigo líder socialista." Tendo Marx justificado que isso era uma necessidade histórica da transição para o capitalismo globalizado - que tinha tido sua marcha interrompida por 70 anos de tropeços socialistas -, Campos concluiu, rendendo uma homenagem à prosa barroca do Manifesto: "Eu também acho Karl. Os seus amigos ex-socialistas, hoje neocapitalistas, não têm mais nada a perder, senão os grilhões mentais que os prendem às velhas soluções estatizantes de um passado tão mítico quanto, hoje em dia, inexeqüível. Esses grilhões mentais precisam ser rompidos e eles serão rompidos." E dirigindo-se a ambos: "Vamos brindar com um gole de Schnaps a esta revolução burguesa tropical?"

E por falar em Roberto Campos: fazendo falta no debate de ideias - Paulo Roberto de Almeida

Dois anos depois do falecimento de Roberto Campos, eu publicava um artigo em sua homenagem:

1128. “Roberto Campos: dois anos sem bons combates de ideias”, Washington, 2 outubro 2003, 3 p. Artigo em homenagem a Roberto Campos, por ocasião da passagem do segundo aniversário de sua morte, em 9/10/2001. Publicado no Jornal do Brasil (6.10.2003, Seção Opinião). Relação de Publicados n. 448.


Roberto Campos: dois anos sem bons combates de idéias

Paulo Roberto de Almeida
Jornal do Brasil (6.10.2003, Seção Opinião)

Dia 9 de outubro marca a passagem do falecimento, em 2001, de Roberto Campos, seminarista, diplomata, economista teórico, burocrata, economista prático – dirigente do primeiro órgão público de planejamento econômico no Brasil, o BNDE –, professor, empresário, embaixador, ministro de Estado, diretor de banco de investimento, articulista, embaixador, político, parlamentarista monarquista e aposentado, nessa ordem. Se não bastassem todas essas atividades públicas, e não considerando seu apego a alguns dos prazeres da vida, ele ainda seria um dos mais importantes representantes de uma espécie em desaparecimento no Brasil: o tecnocrata de alto coturno, não apenas um técnico, mas um verdadeiro conselheiro do Príncipe, um insigne pensador e formulador de políticas, um tomador de decisões, um reformista radical, um hábil articulista, um polemista, enfim, um sábio.
São poucos os que podem ser igualados a esse genial “policrata”, uma mistura de político e tecnocrata, como ele mesmo se definia, que ademais de todas as suas muitas qualidades sabia também ser um frasista e um humorista sem igual, inventando “leis” que tinham, em alguns casos, alcance universal, mas que no mais das vezes eram o resultado obrigatório de suas conclusões lógicas a partir de uma realidade econômica e política brasileira propriamente surrealista. Com todo o seu espírito crítico, sua pena afiada e suas reações rápidas e desconcertantes, ele conseguia ser mais inovador e criativo do que essa mesma realidade de um Brasil sempre surpreendente, tanto para o mais pacato dos economistas, como para o mais afoito dos revolucionários. De fato, Roberto Campos, popularmente conhecido como “Bob Fields” durante minha juventude, nunca perdeu um debate para ninguém, mas ele devia se confessar uma frustração: perdeu para o Brasil, esse gigante desengonçado que desarma o mais agudo espírito cartesiano.
Roberto Campos atravessou por inteiro um breve século XX que começou com o fim do laissez-faire e o começo do socialismo real – nasceu durante a Primeira Grande Guerra, no ano da revolução bolchevique – e terminou com o fim do mesmo sistema que interrompeu, por um “breve” período de apenas setenta anos, o processo de globalização capitalista que já tinha sido analisado por Marx no Manifesto de 1848. Ele assistiu à derrota ideológica, econômica e prática de um sistema que, como ele mesmo alertou ainda em sua fase triunfante, tentou distribuir riquezas com uma incompetência ímpar, quando comparado a todos os outros modos de produção. Ele só não assistiu à vitória do bom senso, em favor do qual ele clamou durante três ou quatro repúblicas brasileiras e mais de uma dúzia de governos, aos quais ele serviu, criticou e tentou ajudar.
Roberto Campos deve ter descoberto que o bom senso é a coisa mais difícil de ser alcançada, num mundo que só conheceu o fim das ideologias, das religiões ou da própria história nos escritos dos intelectuais. Fundamentalismos de todos os gêneros, sobretudo econômicos e políticos, se encarregam de enterrar as ilusões de todos aqueles que, como ele, acreditaram ser possível, um dia, fundar as políticas públicas sobre um modesto conjunto de regras simples e auto-evidentes: a escassez dos recursos, o caráter inelástico dos orçamentos, a necessidade de fazer as escolhas dotadas de maior liberdade e de concorrência em mercados semi-livres, os limites do distributivismo, do emissionismo e da regressividade, a preferência pelo multiplicador, em lugar do divisor (daí a insistência no controle de natalidade), enfim, umas poucas verdades que deveriam ser de ampla aceitação entre pessoas medianamente bem informadas como são os políticos, mas que padecem terrivelmente nas mãos de “planejadores sociais” animados do desejo de “fazer o bem” com o dinheiro dos outros.
Parece incrível que com toda a sua prolífica produção de textos, idéias, aforismas, artigos polêmicos e estudos sérios, Roberto Campos só tenha sido objeto de dois livros algo desiguais: um estudo muito bem embasado sobre o seu “pensamento político” (por Reginaldo Teixeira Perez; Editora FGV) e um outro sobre sua própria vida e “tiradas” geniais (o “retrato” de Olavo Luz; Editora Campus), além de exposições e análises em obras de caráter geral (como em Bielschowsky). Talvez as suas volumosas memórias tenham intimidado eventuais candidatos, mas nada justifica que ele permaneça sem um livro de depoimentos e um outro de excertos de suas obras (como se fez recentemente para Mário Henrique Simonsen, por exemplo).
Num país que possui mais editoras do que livrarias, não deveria portanto ser difícil de encontrar um editor inteligente – a começar pelo que “obrigou” Roberto Campos a terminar suas memórias – que se dispusesse a editar um volume de testemunhos e estudos analíticos sobre sua obra e um outro de textos escolhidos dentre as dezenas de escritos inteligentes que ele produziu ao longo de uma vida útil que se estende do começo da ditadura Vargas até o final de uma ditadura ainda mais ampla, a das falsas idéias. Nem todas ele conseguiu eliminar com sua pena acerada e língua rápida, mas ele pelo menos forneceu princípios claros e raciocínios diretos a todos aqueles dispostos a aprender a partir da experiência pessoal, de alguma matemática elementar e da simples observação da realidade ambiente, como aliás este que aqui escreve. Roberto Campos foi provavelmente mais atacado do que incensado, num país que ainda ostenta economistas macunaímicos, como talvez ele dissesse, com sua irreverência sempre em riste.
Sim, confesso que fui um daqueles muitos que, no frescor da militância juvenil, se compraziam em chamá-lo de “Bob Fields” e em considerá-lo um “entreguista” a serviço de uma ditadura militar comprometida com o grande capital monopolista internacional. Quanta bobagem podia se abrigar nas mentes e escritos de “solucionistas” ideológicos, como éramos todos aqueles que pretendiamos escapar da aridez pouco complacente da “ciência lúgubre”, em favor de duas ou três receitas de “desenvolvimentismo acelerado”. Aliás, ainda pode. Mas, confesso também que, entre a leitura árida do PAEG, nos meus dezesseis anos incompletos, e o sabor de seus artigos cortantes no Estadão, eu aprendi muito rapidamente a respeitar um “adversário” que me ensinou os primeiros rudimentos de economia (e de lógica “sociológica”). Por isso mesmo, o retorno a alguns dos textos desse humanista tecnocrático e humorístico talvez nos ajudasse a atravessar, sem muitos desgastes, uma nova fase de transição entre algumas poucas verdades incertas de um passado ainda recente e um presente animado por algumas grandes certezas de um passado não muito remoto, mas que não quer passar.
A racionalidade iconoclástica de Roberto Campos anda fazendo falta. Onde está o editor que poderia trazer de volta uma nova lufada de brisa inteligente ao atual pântano (ou deserto, como queiram) de idéias curtas e soluções rápidas? Que venha o Festschrift, o Mélanges, um In praise of Roberto Campos, com todas as orientações econômicas e políticas a que ele teria direito em vida: ele adoraria assistir a mais algumas polêmicas em torno de suas idéias: E provavelmente continuaria corrigindo admiradores e adversários com seus argumentos de puro bom senso, como só cabe aos grandes pensadores.

Paulo Roberto de Almeida, sociólogo, diplomata.
(www.pralmeida.org)
 

Roberto Campos: receita para desenvolver um país - Paulo Roberto de Almeida


Roberto Campos: receita para desenvolver um país

Paulo Roberto de Almeida

Roberto Campos não foi provavelmente o primeiro, ou o único, membro do Serviço Exterior brasileiro dotado de formação econômica que tivesse desempenhado funções importantes na burocracia pública, ao longo da República de 1946, e depois sob o regime militar, assim como na redemocratização. Mas foi certamente um dos poucos, senão o único, economista de formação que tenha se beneficiado de suas atividades de diplomata para moldar suas ações e decisões de cunho econômico enquanto exercia funções públicas de relevo, ao longo desses diferentes regimes políticos, que se estendem de meados dos anos 1940 até o final do século 20. Mais do que isso, ele foi um verdadeiro intelectual humanista, alguém que se poderia chamar de renascentista.
Combinando um conhecimento profundo em economia com a vasta experiência adquirida no envolvimento direto nas conferências que moldaram a ordem econômica mundial contemporânea – a de Bretton Woods e a do sistema multilateral de comércio –, ele exerceu seus talentos na burocracia pública com o brilho invulgar que sempre o caracterizou, e que o marcou como um dos homens públicos que mais influência tiveram sobre o ambiente regulatório brasileiro do pós-guerra e sobre o próprio debate público na área econômica e política do Brasil na segunda metade do século.
Roberto Campos teve a rara chance de, começando sua carreira diplomática pela embaixada em Washington e pela delegação em Nova York, integrar a delegação à conferência de Bretton Woods, em julho de 1944, e de ter assistido ao momento definidor da ordem econômica mundial do pós-guerra. Depois, ele integrou a representação brasileira à Conferência das Nações Unidas sobre comércio e emprego, realizada em Havana, de novembro de 1947 a março de 1948, e que, na sequência das primeiras negociações do Gatt, em Genebra, definiu algumas das grandes linhas do sistema multilateral de comércio que ainda é o nosso. Parafraseando o ex-secretário de Estado americano Dean Acheson, em suas memórias, Roberto Campos esteve “presente na criação” das mais importantes organizações do multilateralismo contemporâneo.
Suas atividades governamentais e diplomáticas, numa primeira fase, estiveram concentradas, por um lado, no BNDE, criado em 1953 sob recomendação do relatório da Comissão Mista Brasil-EUA, e que teve papel importante na montagem do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek em meados dessa década; por outro, na de embaixador do Brasil junto aos Estados Unidos, nos governos Jânio Quadros e João Goulart, numa das conjunturas mais dramáticas da história política, e econômica, do Brasil moderno, quando processos inflacionários e estrangulamentos cambiais impactaram o ambiente político e econômico, culminando no golpe militar de 1964.
Com seu currículo teórico e um conhecimento prático da economia brasileira e mundial, foi naturalmente convidado a participar do novo governo, o que fez na condição de ministro do Planejamento, dando início, com o ministro da Fazenda, Octavio Gouvêa de Bulhões, ao mais importante ciclo de reformas econômicas jamais feitas no Brasil. Não obstante seu credo liberal e pragmático, contribuiu para reforçar o papel do Estado na vida econômica da nação, resultado que depois viria a receber sua declarada oposição, em vista das disfunções acumuladas ao longo do processo. Mais adiante, voltou a exercer uma chefia de missão diplomática, como embaixador junto ao Reino Unido, entre 1974 e 1982, ingressando logo em seguida, por 16 anos, na vida pública, no curso da qual expressou diversas vezes sua frustração com a baixa qualidade da maior parte dos integrantes da classe política e dos próprios dirigentes do país.
Com base em sua vasta obra de intelectual publicista, acumulada desde o início dos anos 1950 e exercida praticamente até os momentos finais de sua vida, a maior parte reunida em duas dezenas de livros, além das centenas, senão milhares, de artigos publicados nos mais importantes jornais do país desde o início dos anos 1960, é possível extrair um conjunto de cinco regras relevantes para a definição de um processo sustentado de crescimento econômico que, combinado a transformações de ordem estrutural no sistema produtivo e a políticas redistributivas de renda naturalmente exercidas pelo livre jogo dos mercados, bem mais do que pela ação estatal, poderia levar um país como o Brasil, dotado de vastos recursos naturais e relativamente inclinado a organizar-se enquanto democracia de mercado, a consolidar um processo inclusivo de desenvolvimento econômico e social. Estas cinco linhas de ação, não exclusivamente econômicas, poderiam ser sintetizadas por Roberto Campos nas diretivas seguintes de reformas sistêmicas e de políticas públicas transformadoras:
1) Estabilidade macroeconômica: antes de mais nada um ambiente econômico estável – ou seja, sem mudanças abruptas das principais regras do jogo pelo governo – e aberto ao empreendedorismo privado, com o Estado garantindo a manutenção de contratos e da propriedade; política monetária neutra, não expansionista, mas acompanhando naturalmente o crescimento da atividade econômica, sem concentração do crédito nas mãos do governo, ainda que este possa criar mecanismos carreadores da poupança privada para o investimento produtivo, via mercado de capitais funcionando essencialmente em bases competitivas, num país dotado de pouca propensão à poupança como é o Brasil; política cambial ligeiramente competitiva, sem indução a mecanismos automáticos de desvalorização, que podem alimentar a inflação e reduzir a indução a ganhos de produtividade por parte do setor exportador; os juros devem situar-se num patamar o mais próximo possível do equilíbrio de mercado, sem qualquer viés artificial por parte do Estado; a política fiscal deve ser obviamente equilibrada, evitando-se uma carga fiscal excessiva e uma dívida pública exagerada.
2) Competitividade microeconômica: evitar a concentração industrial, como em qualquer outro ramo econômico, combatendo carteis e monopólios, especialmente os estatais; favorecer um ambiente aberto ao ingresso da concorrência estrangeira, inclusive nos setores ditos estratégicos, como finanças, telecomunicações, produtos intermediários e bens de capital. Simplificação da regulação sobre o empreendedorismo.
3) Boa governança: Diminuir os custos de transação associados, por exemplo, ao funcionamento do Judiciário; eliminar a “justiça” trabalhista (causadora de litígios em excesso); diminuir a burocracia e reduzir o peso do aparelho estatal.
4) Alta qualidade do capital humano: concentrar recursos e ação pública na educação fundamental, compulsória, e abrir as universidades a uma gestão responsável, baseada na plena autonomia, mas com cobrança de resultados; alinhar os padrões do ensino básico do Brasil a métodos e mecanismos já testados amplamente no plano internacional; eliminar o isonomismo mediocrizante e introduzir sistemas de mérito na remuneração de um corpo professoral bem treinado, focado igualmente em metas a serem alcançadas pelo conjunto dos estudantes.
5) Abertura ao capital estrangeiro e ao comércio internacional: Não existe melhor fórmula para a modernização tecnológica e a prosperidade do que a plena inserção nos diversos tipos de intercâmbio de uma economia mundial interdependente; os investimentos diretos estrangeiros são a via mais direta para a competitividade nos mercados internacionais. O Brasil é um país notoriamente protecionista, praticamente mercantilista, em pleno século 21, e ganharia enormemente praticando um tipo de abertura unilateral, sem qualquer tipo de barganha, pois os ganhadores seremos nós.

Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira e diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag/MRE.

Texto destinado a um livro em homenagem ao diplomata-economista, estadista brasileiro, no ano em que completaria 100 anos, em 17 de abril próximo.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Roberto Campos: O violinista do campo de concentracao (1993)

Comentário inicial de quem me enviou este artigo: 


Da  série: “parada obrigatória para pensar”


Este artigo foi escrito  10 anos antes de o PT chegar ao Poder,  O experimento custou caríssimo ao país. Será que, finalmente, aprendemos alguma coisa?
Ricardo Bergamini


Violinista do campo de concentração


Deputado Roberto Campos
O Globo, 18 de abril de 1993



Lembro-me vagamente de um filme de Claude Lelouch em que músicos judeus se enfileiravam para tocar na orquestra do campo de concentração. Com um pouco -de Mozart e Beethoven e -oh! suprema humilhação! - umas árias do antissemita Wagner, escapavam temporariamente à câmara de gás. E talvez conseguissem uma sopa reforçada.

Essa imagem me veio à mente ao saber dos jantares oferecidos a Lula por empresários paulistas. Certamente fantasiam que o sindicalista selvagem possa se transformar no capitalista domesticado. Não se trata, obviamente, de uma conversão na estrada de Damasco, mas talvez de um desvio eleitoral na estrada de Garanhuns. Esperam não apenas ser poupados, mas até arranjar um pequeno cartório. Afinal de contas, o PT apoiou os cartórios de informática e agora parece inclinado a proteger a pirataria das patentes.

Hoje acredito que os únicos esquerdistas que entendem a economia de mercado são aqueles que experimentaram, na carne, a cruel ineficiência do "socialismo real". Não os nossos socialistas de bar, de púlpito ou de palanque.

O sonho presidencial de Lula é um pesadelo para os que sonham com a modernização do Brasil. Seu partido é excludente, pois prega o conflito de classes, coisa obsoleta nas modernas sociedades integrativas. De seu nome, "Partido dos Trabalhadores", infere-se que os outros são partidos de vagabundos...

A modernização brasileira passa pela renúncia dos "ismos": nacionalismo, populismo, estruturalismo e estatismo doenças que no PT têm a irreversibilidade da Aids. As curas são conhecidas: desinflação, privatização, desregulamentação, destributação, liberalização comercial e reinserção no sistema financeiro internacional.

A ideologia petista está seguramente desequipada para todas essas tarefas. Em matéria de inflação, sua propensão é atribuí-la não aos desmandos do Governo e sim à ganância dos empresários. Dificilmente resistiriam à tentação de controlar preços, pelo menos os dos oligopólios e da cesta básica. A privatização é relutantemente aceita como um modismo liberal a ser estudado. "Estamos interessados", diz Lula, "em discutir os setores estratégicos que deverão continuar subordinados ao Estado". Lula, aparentemente, ignora que o que se chama no Brasil de “setores estratégicos” como petróleo, eletricidade e telecomunicações; sempre foram privados (ou estão sendo privatizados) nas sete economias mais poderosas do mundo...

Não é de admirar, aliás, que Lula não-entenda a essencialidade da privatização, quer para a cura da inflação, quer para a retomada do crescimento. O PT é cada vez menos um partido de operários e cada vez mais um partido de funcionários. E estes estão incrustados nas estatais, como carrapatos burocráticos. Para a CUT, a privatização não significa-melhoria da eficiência e redução da corrupção. Veem-na apenas como um ''harakiri" do corporativismo! Também não se pode esperar de Lula o apostolado da desregulamentação. Basta lembrar o apoio do PT à máfia portuária, no caso da extinção do monopólio dos sindicatos.

Pouco se pode esperar, outrossim, em matéria de destributação. Isso pressuporia a redução do tamanho e funções do Estado e o reconhecimento realista de que "não se consegue enriquecer os pobres empobrecendo os ricos" (para lembrar a expressão do líder trabalhista inglês, Hugh Dalton, que aprendeu na década de 50 o que os nossos trabalhistas ainda não aprenderam).

Pouco se poderia esperar também em termos de abertura comercial. É um caso em que empresários e trabalhadores se irmanam na proteção de empregos nas indústrias ineficientes, esquecendo-se da alternativa melhor de geração de empregos por exportadores eficientes. Quanto à reinserção no mercado financeiro internacional, nem é bom falar! O PT sempre foi favorável à moratória e tem muito menos entendimento das funções do FMI do que russos e chineses, os quais deixaram de considerá-lo apenas como o “comitê executivo do capitalismo”, para nele ver uma fonte de recursos e de assistência técnica para a estabilização dos preços.

Não há sinais, outrossim, de que o PT se tenha convencido de que a decretação, como o fizemos na Constituição de 1988, de amplas "conquistas sociais", não elimina a lei da oferta e da procura no mercado. Para trágico desapontamento-da população brasileira, depois das "conquistas sociais", nunca o salário mínimo real foi tão baixo, nunca o nível de desemprego foi tão alto, nunca pior a distribuição de renda. 

À parte Brizola, cujo relógio mental parou há 30 anos, não parece haver, não galeria de presidenciáveis, ninguém mais despreparado que Lula para a responsabilidade presidencial. Brizola dá-lhe um conselho prudente: administrar  primeiro pelo menos uma prefeiturazinha. Talvez no ABC paulista hoje ameaçadas de  desindustrialização, pela fuga" de empresas intimidadas por experiências recentes de sindicalismo selvagem.

Com sua conhecida delicadeza de sentimentos, Brizola mimoseou seu contendor com o apelido de "sapo barbudo''. Isso cria incertezas para os investidores, sobretudo os estrangeiros, que desconhecem as sutilezas de nossa linguagem política. É que não se sabe se se trata de um sapo útil, dos que comem insetos (Bufo terrestris americanus), ou daqueles sapos amazônicos que emitem borrifos venenosos (dendrobotidae). Enquanto isso os investidores suspenderão suas decisões de investimento, prolongando nossa estagflação.

Consta que os empresários paulistas, que tomaram a iniciativa de banquetear Lula, são da indústria de brinquedos. Talvez a esperança deles seja que Lula aprenda a brincar de capitalismo. O mais provável é que estejam desempenhando o papel dos violinistas do campo de concentração.



O conselho de Deng Xiaoping aos chineses é: “Enriquecei-vos”. O conselho de Lula aos brasileiros é: "Sindicalizai-vos e contribuais para a CUT". É o fim da picada ...