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sábado, 6 de janeiro de 2024

Biblioteca Oliveira Lima de Washington comemora cem anos em fevereiro de 2024


100 anos da instalação da Biblioteca Oliveira Lima na Universidade Católica da América, em Washington, coletando todos os seus livros espalhados em quatro ou cinco cidades diferentes, entre Europa e Brasil.



quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Dicionário brasileiro de relações internacionais: o Brasil no contexto mundial : projeto de livro - Paulo Roberto de Almeida

 Um projeto realizado parcialmente, que conviria retomar: 

Dicionário brasileiro de relações internacionais: o Brasil no contexto mundial 

Paulo Roberto de Almeida

 

Índice

 

Apresentação 3

Introdução: objetivos e organização do dicionário 7

 

Primeira Parte

Instituições, processos, eventos e conceitos de relações internacionais

1. A política mundial e as relações internacionais 13

2. A economia mundial e a interdependência econômica internacional

3. Equilíbrios regionais e questões estratégicas: a ONU e o fim da Guerra Fria

4. O Brasil no contexto regional: o Mercosul

5. Relações internacionais e política externa do Brasil

6. Ministério das relações exteriores: história, estrutura e atribuições

 

Segunda Parte

Verbetes de relações internacionais

As relações internacionais de A a Z

 

Terceira Parte

Informação sobre relações internacionais

Cronologia: Relações internacionais, política externa do Brasil, 1415-2001


Bibliografia

Índice remissivo

 


(Washington, 2001)

terça-feira, 10 de maio de 2022

Queremos eleições livres e justas no Brasil, diz subsecretária de Estado dos EUA - Mariana Sanches (BBC Brasil, Washington)

 Tomar lições de democracia de um país que sempre se vangloriou de ser a maior democracia estável do mundo, há mais de dois séculos, mas que atualmente enfrenta problemas com o seu próprio sistema político-eleitoral, contestado por uma imensa maioria do GOP, o partido Republicano, pode ser instrutivo, mas também pode ser humilhante para o Brasil, que possui uma democracia de menor qualidade, mas um sistema eleitoral dos mais seguros e efetivos do mundo.

Os americanos estão dizendo para confiarmos em nossos sistema. Não precisariam, se não fosse um chefe de Estado e de governo que se esforça, todos os dias, para lançar dúvidas sobre esse sistema que o elegeu muitas vezes, assim como toda a sua família, para cargos que talvez não mereçam...

Paulo Roberto de Almeida

Queremos eleições livres e justas no Brasil, diz subsecretária de Estado dos EUA

  • Mariana Sanches - @mariana_sanches
  • Da BBC News Brasil em Washington, 10/05/2022

Homens seguram bandeira onde está escrito 'intervenção militar'

Crédito, EPA - Legenda da foto: Militantes de direita pedem golpe militar na Avenida Paulista durante manifestações do 7 de setembro

No momento em que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) volta a lançar dúvidas sobre o processo eleitoral, sugerindo que os militares deveriam supervisionar a contagem de votos do pleito presidencial de 2022, a subsecretária de Estado dos Estados Unidos, Victoria Nuland, afirmou em entrevista exclusiva à BBC News Brasil que, no Brasil, "o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando as estruturas institucionais que já serviram bem a vocês (brasileiros) no passado".

Nuland, responsável por assuntos políticos na diplomacia americana comandada por Antony Blinken, esteve há poucas semanas no Brasil, junto a uma delegação americana de alto nível. Os diplomatas dos dois países trataram, entre outros temas, de cooperação na área de defesa e de agricultura. 

Na ocasião, os americanos voltaram a expressar "confiança na democracia brasileira". Segundo Nuland, no entanto, ela alertou o governo e a oposição sobre o risco de interferência russa nas eleições deste ano.

Na semana passada, a agência de notícias Reuters noticiou que, em julho de 2021, o diretor da agência de inteligência americana, a CIA, William Burns, teria advertido assessores diretos de Bolsonaro de que o presidente, que àquela altura já levantava dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, deveria deixar de questionar a integridade das eleições no país. 

Tanto Bolsonaro como o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que teria estado presente na conversa, negam que ela tenha acontecido. 

Victoria Nuland, subsecretária de Estado dos EUA

Crédito, Divulgação/Departamento de Estado; Legenda da foto: Victoria Nuland, subsecretária de Estado dos EUA

Questionada sobre o que os EUA fariam em caso de uma tentativa de golpe no país, Nuland afirmou: "Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e, particularmente, nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil". 

Ao citar observadores externos, Nuland toca indiretamente em mais um ponto sensível no atual debate político brasileiro. Depois que o TSE remeteu dezenas de convites para instituições estrangeiras acompanharem o pleito, em outubro, o Itamaraty reclamou do convite à União Europeia, e o TSE teve de recuar. Bolsonaro também disparou críticas públicas à presença dos observadores, que acompanham eleições brasileiras ao menos desde 1994. 

Brasil e EUA vivem uma "recalibragem" de suas relações, depois do mal-estar causado nos americanos pela visita do presidente brasileiro a Moscou em fevereiro, dias antes de o líder russo Vladimir Putin ordenar a invasão da vizinha Ucrânia. Entre diplomatas brasileiros existe a expectativa de que Bolsonaro e Biden se falem pela primeira vez pessoalmente em Los Angeles (EUA), em junho, durante a Cúpula das Américas. 

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza. 

BBC News Brasil - Os EUA mudaram recentemente de tom em relação à Rússia: falam em 'enfraquecer' o país, enviam altos funcionários e parlamentares (como a presidente da Câmara, Nancy Pelosi) a Kiev, estão treinando soldados ucranianos. Não existe o risco de que essa nova postura contribua para o discurso de Putin de que esta é uma guerra do Ocidente contra a Rússia e aumente as chances de uma guerra nuclear? O que há para os EUA ganharem com essa nova abordagem?

Victoria Nuland - Eu diria que nosso tom em relação à Rússia é uma resposta direta ao fato de que Putin e seus militares invadiram a Ucrânia e à agressão cruel que estão perpetrando no país, incluindo os tipos de crimes de guerra que temos visto em Bucha e Kramatorsk etc. E os Estados Unidos, junto com o Brasil e muitos outros países, 141 países, foram ao Conselho de Segurança da ONU e à Assembleia Geral da ONU e disseram 'não' à agressão da Rússia. 

Portanto, temos que chamar as coisas pelos seus nomes, e isso não é apenas uma guerra cruel contra a Ucrânia, mas uma violação de todos os princípios da carta da ONU e da soberania e integridade territorial dos países. Estamos defendendo o Estado de Direito, as regras globais que levaram à paz e à segurança por tantos anos e que a Rússia está violando flagrantemente agora.

Putin e Biden se cumprimentam

Crédito, Reuters Legenda da foto: Biden e Putin se reuniram em Genebra em meados de 2021, em uma que reunião durou menos do que era previsto e não impediu o início da guerra na Ucrânia em fevereiro de 2022

BBC News Brasil - O ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, favorito para vencer as eleições de 2022 segundo pesquisas eleitorais, deu uma entrevista recente à revista Time em que critica o presidente dos EUA Joe Biden por não ter embarcado em um avião para Moscou para tentar dissuadir o líder russo Vladimir Putin da guerra. Como os EUA recebem essa crítica?

Nuland - Bem, em primeiro lugar, o presidente Biden falou com o presidente Putin duas, três, quatro vezes antes desta guerra, argumentando com ele. Como você deve se lembrar, os EUA descobriram esses planos de guerra no final de outubro e começaram a alertar o mundo em novembro, dezembro, janeiro, fevereiro que Putin tinha esses planos. 

E durante esse período, o presidente Biden trabalhou muito para tentar convencer o presidente Putin a não ir à guerra, e em vez disso, seguir um caminho diplomático, trabalhar conosco, trabalhar com aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), trabalhar com a Ucrânia, negociar quaisquer preocupações que ele tinha sobre as visões de segurança russas na Ucrânia. E nos oferecemos para ajudar. Tivemos uma rodada de conversas. 

Enviamos uma proposta de dez páginas analisando todos os tipos de coisas, como preocupações (russas) com armas ocidentais, etc. Mas, em vez de vir à mesa diplomática, o presidente Putin optou por invadir e invadir de uma maneira muito, muito sangrenta. Portanto, não acreditamos que ele esteja ouvindo alguém. 

BBC News Brasil - O presidente brasileiro Bolsonaro sugeriu ao governo turco recentemente uma missão conjunta a Moscou para participar das negociações para o fim da guerra. Os EUA diriam que essa tentativa é bem-vinda?

Nuland - Não temos dificuldade com nenhum líder global tentando convencer Putin a acabar com esta guerra. E vários já tentaram. O presidente Putin não está ouvindo. Esse é o problema. Então, torna-se uma questão de, se ao ir a Moscou você não for muito cuidadoso, parece estar dando apoio à guerra de Putin, especialmente visto que ele não mostrou nenhuma evidência de mudança de rumo com telefonemas e visitas recentes.

BBC News Brasil - Cerca de uma semana antes do início da guerra na Ucrânia, dois grandes líderes da América Latina, os presidentes da Angentina e do Brasil, foram a Moscou para se encontrar com Putin. O que isso diz sobre as relações dos EUA com esses países da região?

Nuland - Sabíamos que essas visitas iriam acontecer. Exortamos tanto o Brasil quanto a Argentina a darem a Putin a mesma mensagem que o presidente Biden estava enviando a ele e aos funcionários russos em todos os níveis, pública e privadamente, de que esta guerra seria um desastre, não apenas para a Ucrânia, mas para a Rússia, para a liderança de Putin e para sua economia e sua posição militar. E nosso entendimento é que em ambas as visitas, ambos os líderes, tentaram argumentar com Putin, mas ele não estava ouvindo. Então este é o problema, Putin não está ouvindo ninguém.

BBC News Brasil - Teremos eleições presidenciais este ano no Brasil. Os EUA têm alguma preocupação ou motivo para acreditar que os russos tentarão interferir ou se intrometer no processo?

Nuland - Obviamente, temos preocupações. Vimos a Rússia se intrometer em eleições em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos e na América Latina. Por isso, em minha recente visita ao Brasil, exortei o governo a ser extremamente vigilante, e a oposição também, para garantir que forças externas não estejam manipulando seu ambiente eleitoral de forma alguma. Isso precisa ser uma eleição de brasileiros para brasileiros, sobre seu próprio futuro.

Bolsonaro e Trump

Crédito, Reuters Legenda da foto: Assim como aconteceu com Trump 2020 nos EUA, o presidente Bolsonaro está lançando dúvidas sobre o processo eleitoral no Brasil antes do pleito

BBC News Brasil - Assim como aconteceu em 2020 nos EUA, Bolsonaro está lançando dúvidas sobre o processo eleitoral no Brasil de antemão, exigindo a participação do Exército na apuração dos votos e dizendo que pode não reconhecer os resultados. Como os EUA veem esse tipo de declaração?

Nuland - Acreditamos que o Brasil tem um dos sistemas eleitorais mais fortes da América Latina. Vocês têm instituições fortes, salvaguardas fortes, uma base legal forte. Então, o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando suas estruturas institucionais que já serviram bem a vocês no passado. Temos confiança no seu sistema eleitoral. Os brasileiros também precisam ter confiança.

BBC News Brasil - O que os EUA fariam caso alguma tentativa de subversão dos resultados eleitorais acontecesse no país?

Nuland - Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e particularmente nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil. Vocês têm uma longa tradição nisso. E isso é o mais importante para manter a força do Brasil daqui para frente.

BBC News Brasil - Os fertilizantes são um suprimento crítico para a produção de alimentos e o Brasil enfrenta a falta do produto, importado principalmente da Rússia. Os EUA apoiariam a criação de algum corredor seguro ou um salvo-conduto para navios russos carregados de fertilizantes para o Brasil, como o presidente brasileiro solicitou recentemente à diretora da Organização Mundial do Comércio?

Nuland - O fato de haver uma escassez global de fertilizantes - e uma escassez no Brasil - é resultado direto da decisão de Putin de lançar essa guerra. No meu entendimento, a única coisa que impede o fertilizante russo de chegar ao mercado é a guerra que Putin lançou. 

Então, o que os Estados Unidos estão tentando fazer é trabalhar com países como o Brasil. E o secretário Blinken terá uma reunião, para a qual o Brasil está convidado, em algumas semanas sobre alimentação, segurança e fertilizantes etc., para ajudar países como o Brasil que precisam de fertilizantes. E então, com fertilizantes, podemos ajudar a alimentar o mundo, porque também temos muitos países com insegurança alimentar que dependem de grãos vindos da Ucrânia. 

Quando eu estive no Brasil, nós trabalhamos em um projeto do Departamento de Agricultura dos EUA, para ver como vocês usam os fertilizantes nas lavouras (brasileiras). Estamos tentando aumentar a produção de fertilizantes nos EUA. 

Estamos trabalhando com o Canadá e outros países que podem ajudar, para acelerar isso, para que vocês tenham uma safra muito forte, para poder alimentar a si mesmos e seus parceiros de exportação habituais, mas também possa ajudar a alimentar o mundo, (para o Brasil) ser generoso com alimentos, como já foi com o petróleo, com o aumento da produção brasileira de petróleo neste momento de necessidade para o mundo.


terça-feira, 6 de abril de 2021

Brasil deve considerar fazer lockdown, diz Anthony Fauci - Entrevista exclusiva a Mariana Sanches (BBC-Brasil, de Washington)

 EXCLUSIVO 1) Líder do combate à covid-19 nos EUA, o médico Anthony Fauci me disse hoje q situação de pandemia do Brasil é 'mto grave' e se espalha pela América do Sul. País precisa acelerar vacinação e adotar medidas como 'lockdown'.

bbc.com

Exclusivo: Brasil deve considerar seriamente fazer lockdown, diz Anthony Fauci

  • Mariana Sanches - @mariana_sanches
  • Da BBC News Brasil em Washington

Enquanto grande parte do mundo vê uma diminuição no número de casos e mortes por covid-19, o Brasil vive seu maior pico na pandemia e responde hoje por um em cada três mortos pelo novo coronavírus no mundo. 

"Todos reconhecem que há uma situação muito grave no Brasil", afirmou o médico americano Anthony Fauci em entrevista exclusiva à BBC News Brasil.

Fauci é um dos olhares preocupados que a situação sanitária do país atraiu. Líder da força-tarefa contra a pandemia nos Estados Unidos, o médico ganhou proeminência global ao contrariar publicamente as declarações do então presidente americano Donald Trump, que minimizou a gravidade da pandemia e atuou contra medidas de distanciamento social e a favor de tratamentos sem eficácia comprovada contra a covid, como a hidroxicloroquina. 

Fauci prefere não tratar o Brasil como "ameaça", termo corrente na imprensa internacional diante da onda de contágio brasileira, mas reconhece que a grave situação do Brasil está se espalhando pela América do Sul e que, para contê-la, serão necessárias duas medidas: aumento na vacinação e adoção de medidas como lockdowns

"Não há dúvida de que medidas severas de saúde pública, incluindo lockdowns, têm se mostrado muito bem-sucedidas em diminuir a expansão dos casos. Então, essa é uma das coisas que o Brasil deveria pensar e considerar seriamente dado o período tão difícil que está passando", argumentou Fauci. 

Há três dias, no entanto, o ministro da Saúde do Brasil, Marcelo Queiroga, praticamente descartou essa medida ao dizer que "a ordem é evitar lockdown". 

Na outra frente, a das vacinas, a situação também não é confortável: apenas 20 milhões de brasileiros (pouco mais de 9% da população) já receberam ao menos uma dose de imunizante, e no ritmo atual não chegaria à metade da população neste semestre. 

Depois de recusar ofertas de vacinas da Pfizer, ameaçar boicotar a CoronVvac e não buscar outros fornecedores além da AstraZeneca-Oxford, cuja fabricação pela Fiocruz vem sofrendo sucessivos atrasos, o governo Bolsonaro se viu sem muitas opções para acelerar a chegada das vacinas aos braços brasileiros. 

Desde março deste ano, o governo federal tenta negociar a compra de alguns milhões de doses da vacina AstraZeneca-Oxford que estão sem uso nos Estados Unidos atualmente e não devem ser necessárias ao país, que conta com estoques de Pfizer, Moderna e Janssen suficientes para a população.

Fauci, no entanto, indica que os Estados Unidos não devem repassar essas doses ao Brasil em uma negociação bilateral. 

"Os Estados Unidos já desempenham um papel importante na tentativa de levar vacinas para outros países que precisam. Nós retornamos à Organização Mundial de Saúde (OMS), estamos nos juntando ao Covax", afirmou Fauci, em referêcia ao consórcio de países lderado pela OMS para distribuir vacinas aos países mais pobres.

O médico completou: "E já deixamos bem claro que assim que levarmos as vacinas para a esmagadora maioria das pessoas nos EUA, além de termos o suficiente para reforços, colocaremos o excesso de vacina à disposição dos países em todo o mundo que precisarem". 

Segundo ele, isso seria feito via Covax, que, no entanto, não deve trazer grande alívio à condição do Brasil, já que o governo federal optou por participar da iniciativa apenas com a cota mínima, de 42 milhões de doses (e até agora só recebeu 1 milhão delas).

Fauci, que chefia o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID) desde 1984, não quis comentar sobre a responsabilidade de Bolsonaro no agravamento da pandemia. 

Ele disse, no entanto, que o exemplo dos Estados Unidos, onde mais de 550 mil morreram de covid-19, mostra ao Brasil que "negar a gravidade do surto nunca ajuda. Na verdade, muitas vezes piora a situação". 

"Para controlar uma epidemia, você precisa admitir que tem um problema sério. Depois de admitir que tem um problema sério, você pode começar a fazer as coisas para resolvê-lo", afirmou Fauci. 

Para ele, os países que tiveram mais eficiência em lidar com a covid-19, como Austrália e Nova Zelândia, devem seu sucesso ao acerto de um comando central que contou com a cooperação da população. "Quando você tem conflitos, sejam eles políticos ou não, isso sempre diminui a eficácia do controle do vírus."

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Anthony Fauci à BBC News Brasil.

BBC News Brasil - Um em cada três mortos por covid-19 no mundo hoje é do Brasil. No país, as pessoas estão morrendo sem acessos a UTIs, há falta de oxigênio e sedativos em hospitais e uma desproporção no número de mortes de jovens. Como avalia o que está acontecendo? 

Anthony Fauci - O Brasil está passando por uma situação muito infeliz. A variante P1, que parece estar dominando o país, tem a característica de ser muito eficiente na propagação de pessoa para pessoa. Não temos certeza se causa uma doença mais séria (do que o vírus da covid-19 original), mas muito provavelmente pode. 

E, dado de que o Brasil ainda não vacinou uma grande proporção de sua população, é bastante compreensível que o sistema de saúde no Brasil esteja sobrecarregado. Está tendo um grande aumento de casos que teve um impacto muito negativo sobre o sistema de saúde, que, em muitos aspectos, não tem sido capaz de lidar com o fluxo de pacientes que chega agora. Então, todos reconhecem que é uma situação muito grave no Brasil.

BBC News Brasil - A vacinação contra covid-19 no Brasil segue em ritmo lento por falta de doses, e o presidente brasileiro foi à Justiça lutar contra a adoção de lockdown, que ele diz que não funciona. Considerando isso, que medidas o Brasil poderia tomar para combater a pandemia? 

Fauci - Não há dúvida de que medidas severas de saúde pública, incluindo lockdowns, têm se mostrado muito bem-sucedidas em diminuir a expansão dos casos. Você não precisa fazer um lockdown sem prazo pra acabar, mas, se restringir a circulação e garantir que todos usem máscara, você não terá pessoas se reunindo em ambientes fechados como em restaurantes e bares, e isso diminui o número de casos.

Portanto, acho importante ressaltar que esses tipos de restrições de saúde pública são cruciais para se obter controle sobre epidemias. Vimos em muitos outros países onde houve uma grande quantidade de casos que, quando as medidas de saúde pública foram implementadas, o número de casos diminuiu drasticamente. Então, essa é uma das coisas que o Brasil deveria pensar e considerar seriamente dado o período tão difícil que está passando.

BBC News Brasil - O jornal americano The Washington Post mostrou que a variante P1, surgida no Brasil, se espalhou pela América do Sul. Ela já foi identificada em 25 países. O mesmo jornal afirmou que a pandemia no Brasil faz do país uma ameaça global. O senhor vê o Brasil como ameaça, não só pela P1 como pela possibilidade de surgimento de outras variantes?

Fauci - Não vou fazer uma declaração de que o Brasil é uma ameaça, porque isso poderia ser tirado do contexto e seria uma frase de efeito infeliz. O que estou dizendo é que o Brasil está em uma situação grave que está se espalhando para outros países da América do Sul, o que é lamentável. E esse é um dos motivos pelos quais é muito importante para a América do Sul e o Brasil, em particular, tentar vacinar o máximo de pessoas o mais rápido possível.

Funcionários de hospitais em Manaus estão trabalhando sem recursos para salvar vidas

Crédito, Reuters

Legenda da foto, 

Fauci aponta que o Brasil passa por uma situação muito 'infeliz'

BBC News Brasil - Existem doses extras da vacina AstraZeneca-Oxford nos Estados Unidos que não estão sendo usadas. Alguns cientistas do país argumentam que as doses devem ser enviadas ao Brasil o mais rápido possível. Qual sua opinião?

Fauci - Os Estados Unidos já desempenham um papel importante na tentativa de levar vacinas para outros países que precisam. Como você provavelmente sabe, nós retornamos à Organização Mundial de Saúde, estamos nos juntando ao Covax, que é um consórcio de organizações e países cuja finalidade é levar doses de vacina para aquelas partes do mundo que não têm acesso às vacinas. Demos ou já prometemos US$ 4 bilhões (R$ 22,4 bilhões) em recursos para fazer isso. E já deixamos bem claro que assim que levarmos as vacinas para a esmagadora maioria das pessoas nos Estados Unidos, além de termos o suficiente para reforços, colocaremos o excesso de vacina à disposição dos países em todo o mundo que precisam delas.

BBC News Brasil - E isso vai ser feito por meio do Covax?

Fauci - Sim, por meio do Covax.

BBC News Brasil - Os Estados Unidos parecem já ter deixado para trás o maior pico de infecções. Que lições o Brasil pode tirar da experiência dos americanos?

Fauci - Acho que a lição é sempre seguir a ciência da maneira que venho tentando dizer há mais de um ano, porque, se você seguir a ciência, provavelmente terá um melhor controle sobre o vírus e será capaz de seguir as evidências que surgirem. 

Às vezes, é necessário impor restrições mais duras que são diretrizes de saúde pública para controlar a epidemia. Negar a gravidade do surto nunca ajuda. Na verdade, muitas vezes piora a situação. Para controlar um surto, você precisa admitir que tem um problema sério.

Depois de admitir que tem um problema sério, você pode começar a fazer as coisas para resolvê-lo.

O novo ministro da saúde, Marcelo Queiroga

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, 

Fauci se reuniu recentemente com Marcelo Queiroga, o quarto ministro da saúde do Brasil durante a pandemia

BBC News Brasil - É possível determinar o que faz de um país um exemplo de sucesso na pandemia? Poderia dar bons e maus exemplos disso e explicar o porquê? 

Fauci - Não vou dar maus exemplos. Vou te dar bons exemplos. Uma das coisas que é importante é que um país tem que se unir, e as pessoas têm que agir de forma uniforme, reconhecendo que o inimigo comum é o vírus e não ter conflitos sobre qual é a melhor abordagem. É preciso ter uma direção e garantir que a população seja cooperativa no cumprimento das ordens do poder central. 

Vemos em países como Austrália, Nova Zelândia, Taiwan e Cingapura, nos quais uma das decisões tomada foi a de fazer lockdown, e o país seguiu isso e entrou em lockdown. Quando foi a hora de abrir, houve a reabertura. Mas quando se tomou essa decisão de restringir certas coisas, todos cooperaram. 

É realmente uma situação em que é importante que haja cooperação, que as pessoas tenham o objetivo comum de combater o vírus. Quando você tem conflitos, sejam eles políticos ou não, isso sempre diminui a eficácia do controle do vírus.

Enfermeira vacina outra profissional da saúde contra a covid

Crédito, Reuters

Legenda da foto, 

A melhora da pandemia está diretamente relacionada com o avanço da vacinação, defende Fauci

BBC News Brasil - Deveríamos já ter uma vacina focada especificamente na variante P1?

Fauci - As vacinas funcionam muito bem contra a maioria das variantes. Acho que o importante é levar a vacina ao povo brasileiro o mais rápido possível. Não precisa ser específica contra a P1. A P1 diminui um pouco a eficácia (dos imunizantes), mas não a elimina. Portanto, é possível obter um grande benefício com a vacina padrão.

BBC News Brasil - O senhor vê dias difíceis pela frente para o Brasil?

Fauci - Acho que se você levar as vacinas ao povo brasileiro, as coisas vão melhorar com certeza. Isso é o que importa. Você tem que conseguir controlar (o contágio) com medidas de saúde pública, além de levar o máximo de vacina o mais rápido possível para o povo brasileiro.

BBC News Brasil - Existe uma disputa no Brasil agora porque as pessoas querem ir à igreja. Nós vimos isso nos Estados Unidos. O que diria sobre isso nesse momento difícil da pandemia?

Fauci - Diria que as pessoas precisam evitar ambientes fechados e cheios de gente. Sei que todo mundo quer ir à igreja, e isso é muito importante, mas é preciso ter cuidado ao lidar com lugares lotados. Geralmente, é um local de disseminação do vírus.

Minha mensagem ao povo brasileiro é tentar ao máximo evitar aquelas coisas que levam à propagação do vírus, usar máscaras, evitar ir a ambientes lotados, manter distância física, lavar as mãos. Sempre que você puder. Esses são os elementos básicos de saúde que, se os brasileiros seguirem, poderão controlar a pandemia.



quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Desastre diplomatico em Washington: embaixador informa errado sobre eleições (OESP)

 Não esperava isso de Nestor Forster, um rapaz inteligente quando foi meu aluno no Instituto Rio Branco, e que parece ter ficado transtornado por “excesso de olavismo”, um barbitúrico poderoso que embota o pensamento. Dá para se recuperar, desde que se afaste da droga.

Paulo Roberto de Almeida


Embaixador  nos EUA orientou Brasil a não admitir triunfo de Biden

Apenas na terça-feira, 15, 38 dias após vitória democrata, Planalto reconheceu resultado

Estadão | 16/12/2020, 5h

BRASÍLIA - Com um atraso de 38 dias, Jair Bolsonaro reconheceu na terça-feira, 15, a vitória de Joe Biden na eleição dos EUA. Foi o último dos países que compõem o G-20 a fazer isso – instruído pelo embaixador Nestor Forster, conforme telegramas a que o Estadão teve acesso com exclusividade. Na contramão de observadores americanos e europeus, o diplomata enviou a Brasília, ao longo da contagem dos votos, descrições baseadas em análises e notícias falsas que questionavam a lisura da disputa vencida por Joe Biden.

Durante a apuração, o presidente brasileiro demonstrou sintonia ao discurso eleitoral de Trump, algo incomum na história da diplomacia nacional, a ponto de não comentar a derrota do aliado. Por sua vez, Forster Junior escreveu mensagens informativas que Bolsonaro queria ouvir. Uma série de cinco telegramas obtidos pelo Estadão, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), revela a atuação do embaixador na missão de orientar o governo. Nelas, o diplomata repassou, num primeiro momento, análises que enfatizavam a desconfiança no processo eleitoral e, depois, com a confirmação do resultado favorável ao democrata, relatos que apostavam numa virada de mesa nos tribunais.

As mensagens enviadas entre 5 e 12 de novembro pelo embaixador, num total de 22 páginas, destacaram comentários e expectativas de aliados do candidato republicano. A reportagem teve acesso ainda, via LAI, a outros dez telegramas, 54 páginas, enviados em julho e agosto, meses das convenções partidárias. Procurado, o embaixador disse que não comentaria o conteúdo dos seus textos.

Na noite de 6 de novembro, horas antes do anúncio da vitória de Biden, Forster Junior informou a Brasília que “estreitas margens tornam quase certos processos de recontagens e ações judiciais adicionais”. “A campanha do presidente Donald Trump já robustece sua assessoria legal para promover a recontagem nos Estados-chave e ações judiciais relativas a percebidas irregularidades e denúncias de fraude na apuração de votos”, comunicou Forster Junior. No dia seguinte, um sábado, o democrata era declarado vencedor e analistas políticos dos EUA consideravam improvável uma mudança do resultado.

Foster Junior ignorava até mesmo as posições dos corpos diplomáticos em Washington. Nos telegramas obtidos via LAI, o embaixador só relatou a 12 de novembro que o Reino Unido, a Alemanha e a França tinham reconhecido a vitória de Biden. Os governos desses países cumprimentaram o democrata ainda no dia 7. As mensagens não sinalizaram recomendações para Bolsonaro fazer o mesmo. Questionado em entrevistas sobre a postura de outros dirigentes de cumprimentar Biden, o presidente brasileiro rebatia com a pergunta se a disputa tinha acabado.

Só na tarde de terça-feira Bolsonaro cumprimentou Biden pelo Twitter. “Saudações ao presidente, com melhores votos e a esperança de que os EUA sigam sendo ‘a terra dos livres e o lar dos corajosos’”, escreveu na sua rede social. “Estarei pronto a trabalhar com o novo governo e dar continuidade à construção de uma aliança Brasil-EUA, na defesa da soberania, da democracia e da liberdade em todo o mundo, assim como na integração econômico-comercial em benefício dos nossos povos.”

Ainda no dia 6 de novembro, Forster Junior alertou em relação a “diversos relatos” de fraudes em Michigan, Pensilvânia, Arizona e Nevada. Comentaristas políticos dos Estados Unidos acusavam Trump de divulgar fake news e enfatizavam que as ações dele na Justiça seriam derrotadas. Naqueles dias, emissoras de TV chegaram a interromper entrevistas do presidente na Casa Branca para alertar sobre mentiras ditas ao vivo.

Nas mensagens a Brasília, Forster Junior atribuiu as acusações de fraudes sempre a “relatos” que disse ter ouvido. Sem citar fontes, ele registrou, no mesmo dia 6, “tráficos de cédulas eleitorais em pequena escala”, “intimidação e restrição de acesso de observadores eleitorais a locais de contagem de votos” e critérios de segurança “insuficientes” para verificação de assinaturas de eleitores em envelopes com cédulas enviados pelo correio. O diplomata relatou ainda ter ocorrido “correção de cédulas preenchidas incorretamente por eleitores, de modo indevido, por mesários”.

Informações

Em entrevista no dia 29 de novembro, no segundo turno das eleições municipais no Brasil, Bolsonaro colocou em dúvida o resultado das urnas nos Estados Unidos e disse ter “informações” seguras de que houve fraude no pleito. “A imprensa não divulga, mas eu tenho minhas informações, não adianta falar para vocês que vocês não vão divulgar, que realmente teve muita fraude lá. Teve, isso ninguém discute”, afirmou.

O embaixador brasileiro informou a Brasília, no dia 10, que Trump permanecia firme no propósito de rejeitar o resultado das urnas, ignorando mais uma vez que os analistas davam como certo um fracasso do republicano em levar o caso à Justiça. “Na tarde de hoje (10/11), o secretário de Estado Mike Pompeo afirmou, em resposta a pergunta de jornalista, que o Departamento de Estado estaria preparado para uma “suave transição para uma segunda administração Trump”. 

Ao citar o advogado pessoal de Trump, o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani, o embaixador brasileiro afirmou, em outro telegrama, que a primeira ação judicial de “escopo abrangente” havia sido protocolada junto à corte federal na Pensilvânia. “Na ação, os advogados do presidente argumentam que o sistema eleitoral do Estado criara um ‘sistema de dois trilhos de votação’, em que eleitores foram tratados de maneira distinta: os votos depositados pessoalmente teriam sido submetidos a critérios de transparência e verificação, ao passo que ‘a massa de votos’ enviada pelo correio estaria ‘envolta em obscuridade’”, destacou.

Segundo Forster, os “votos presenciais” teriam sido submetidos à rigorosa verificação de assinaturas e observação eleitoral, o que não teria ocorrido no caso de votos recebidos pelos correios. “Entre as irregularidades, é mencionado o acesso insuficiente de observadores eleitorais ao processo de verificação, legitimação e contagem dos votos pelo correio. Tais falhas teriam, segundo os autores, violado a ‘cláusula constitucional de proteção igualitária’”.

O telegrama reforça que o advogado de Trump solicitou ao juiz federal, “à luz das alegadas irregularidades”, liminar para impedir que Biden fosse considerado vencedor das eleições no Estado e a desconsideração de votos pelo correio enviados pelos condados da Filadélfia e de Allegheny. “Ambos os condados, de esmagadora maioria democrata, teriam processado mais de 600 mil votos recebidos pelo correio”.

Sobre a falta de provas sobre as supostas irregularidades, o embaixador disse que elas não foram apresentadas, pelos advogados de Trump, “nesse primeiro momento”. “Mas foram levadas ao conhecimento do juízo notícias veiculadas na imprensa e declarações de observadores eleitorais republicanos. Se o juiz do caso acatar o pedido de liminar republicano, será indício de abertura do juízo para análise mais detida de provas e do eventual êxito do processo”. 


sábado, 1 de setembro de 2018

A Alca Possível: Comentarios a artigo do Ministro de Estado (2003) - Paulo Roberto de Almeida

Em julho de 2003, ainda trabalhando como ministro-conselheiro em Washington e ocasionalmente atuando como chefe de missão interino, nas ausências ocasionais do chefe do posto, o embaixador Rubens Barbosa, eu provavelmente cometi, aos olhos do então chanceler do lulopetismo, o maior pecado do ponto de vista de quem, junto com os outros arautos do regime, já tinha firme a intenção de implodir a Alca: ousei, num comentário a um artigo dele na FSP, criticar métodos e estratégia, assim como deixar transparecer, de forma moderada, de que alguma acomodação seria possível entre o Brasil e os EUA na questão do projeto americano de um zona de livre comércio hemisférica. Mesmo escrevendo em nome do chefe do posto – pois que o telegrama deveria ser expedido oficialmente, ousei alinhar argumentos, em resposta a circular telegráfica (ou telegrama) da SERE justamente solicitando comentários a esse artigo. Não tenho certeza de que tenha sido deliberado por parte do chanceler calculista, talvez pensando justamente em montar uma armadilha, talvez para demonstrar ao chefe do Estado que o “pessoal de Washington” – o embaixador Rubens Barbosa e eu mesmo – era irremediavelmente pró-americano e pouco confiável para o projeto de implodir a Alca que todos eles entretinham. Seja como for, coloquei no telegrama, que redigi inteiramente sozinho (ainda que interpretando o que poderia pensar o chefe do posto), todos os argumentos objetivos e honestos, que poderiam sustentar a postura do Brasil na fase difícil que já estava aberta. Esse trabalho n. 1081 – “A Alca Possível: Comentários a artigo do Ministro de Estado”, de julho de 2003 – pode ter marcado definitivamente, na concepção dos dirigentes do Itamaraty, a ideia de que eu não seria confiável do ponto de vista da política externa dos companheiros. Evitei colocar as "espertezas" que eu percebia que já estavam sendo preparadas para implodir a Alca, e fui bastante moderado na avaliação da postura confrontacionista formulada em Brasília. A partir desse momento, foram 13 anos de afastamento de quaisquer funções na Secretaria de Estado, enquanto durou o regime lulopetista no poder (e eles ainda tentam voltar). Esse meu texto talvez explique algo.
Transcrevo, em primeiro lugar, o artigo do chanceler do lulopetismo em 2003, que foi recebido em telegrama oficial solicitando comentários. Como eu estava na posição de Encarregado de Negócios interino, elaborei o telegrama de resposta, alinhando todos os argumentos que me pareciam pertinentes, para expedição em nome do chefe do posto, o que vem em segundo lugar abaixo.
Fica o registro, no sentido da transparência e honestidade de princípios.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/09/2018

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Artigo do Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, publicado na Folha de São Paulo - "A Alca possível" (8/07/2003)

O governo do presidente Lula não aderirá a acordos que forem incompatíveis com os interesses brasileiros

Ao assumir o comando da nação, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que as negociações comerciais são hoje de importância vital para o Brasil. Além de um esforço interno de aumento da competitividade de nossos produtos e diversificação de nossa pauta exportadora, deixou claro que não poderíamos prescindir do combate, no plano internacional, pela abertura de novos mercados e por regras mais justas, respeitado o direito soberano do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento.
Nesse espírito, o governo Lula tem procurado reforçar o Mercosul, promover a integração da América do Sul, explorar novas parcerias comerciais -sobretudo com os grandes países em desenvolvimento- e participar ativamente dos exercícios negociadores em curso: na OMC, no processo da Alca e entre o Mercosul e a União Europeia.
No que se refere à Alca, deparamos com um contexto negociador complexo do ponto de vista dos interesses brasileiros, sujeito a um calendário que nos deixava escassa margem para uma eventual correção de rumos. Tal como vinha se desenvolvendo nas negociações, o projeto da Alca ia muito além do que denota a expressão "livre comércio" em sentido estrito. Com efeito, as propostas em discussão incluíam aspectos normativos para serviços, investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual que incidem diretamente sobre a capacidade reguladora dos países.
Por outro lado, não pareciam encorajadoras as perspectivas de obtenção de livre acesso ao maior mercado do hemisfério para os produtos em que detemos vantagens comparativas (sobretudo, mas não apenas, agrícolas). Excluíram-se das negociações aspectos de importância prioritária para o Brasil, como os subsídios agrícolas e as medidas antidumping. As discussões sobre acesso a mercados haviam sido de fato fragmentadas, de modo que ao Mercosul fora reservado o tratamento menos favorável, com prazos de abertura mais longos do que os oferecidos a outros países do continente.
Deve-se lembrar, porém, que já dispomos de canais negociadores para levar adiante uma agenda de integração com os países latino-americanos no âmbito da Aladi (Associação Latino-Americana de Integração), em especial os da América do Sul. Essas tratativas se beneficiam da cobertura jurídica da chamada "cláusula de habilitação" da OMC, que autoriza a troca de preferências comerciais entre países em desenvolvimento. Assim, o maior interesse em negociarmos uma Alca reside na expectativa de acesso ao mercado norte-americano, o qual, por sua dimensão e dinamismo, não pode ser ignorado. Trata-se, pois, de encontrar o equilíbrio adequado entre nossos objetivos, por assim dizer, "ofensivos", vistos a partir de uma perspectiva a um só tempo combativa e realista, e a necessidade de não comprometer nossa capacidade de desenhar e executar políticas de desenvolvimento social, ambiental, tecnológico etc.
Após um processo de reflexão dentro do governo, que não deixou de envolver debates com o Legislativo e a sociedade civil, o presidente Lula aprovou as linhas mestras do posicionamento brasileiro nas negociações sobre a Alca. De forma sucinta, essa posição -obviamente sempre sujeita a alguns ajustes no processo de negociação- pode ser descrita da seguinte forma: 1) a substância dos temas de acesso a mercados em bens e, de forma limitada, em serviços e investimentos seria tratada em uma negociação 4 + 1 entre o Mercosul e os EUA; 2) o processo Alca propriamente dito se focalizaria em alguns elementos básicos, tais como solução de controvérsias, tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento, fundos de compensação, regras fitossanitárias e facilitação de comércio; 3) os temas mais sensíveis e que representariam obrigações novas para o Brasil, como a parte normativa de propriedade intelectual, serviços, investimentos e compras governamentais, seriam transferidos para a OMC, a exemplo do que advogam os EUA em relação aos temas que lhes são mais sensíveis, como subsídios agrícolas e regras antidumping.
Esse enfoque redimensionado em "três trilhos" foi objeto de estreitas consultas com nossos sócios do Mercosul e foi exposto a nossos parceiros norte-americanos. Foi também debatido na reunião miniministerial de "Wye Plantation", em maio passado, e será apresentado, nesta semana, em El Salvador, por ocasião da 14ª Reunião do Comitê de Negociações Comerciais da Alca.
A visão brasileira foi também levada pelo presidente Lula à recente reunião de cúpula com os presidentes da Comunidade Andina, na Colômbia. O debate substantivo sobre a Alca, que se seguiu à exposição do presidente, contribuiu para um início de coordenação entre as posturas negociadoras dos países da América do Sul. Ainda que reconheçamos que há diferenças importantes entre o Mercosul e os países da Comunidade Andina, o diálogo entre nós é fundamental não só para as negociações da Alca, mas para a própria integração sul-americana, nossa principal prioridade.
Assim, em vez de nos prendermos a concepções irrealistas de uma Área de Livre Comércio das Américas, em torno das quais o consenso se afigura inatingível, preferimos nos concentrar na "Alca possível", que concilie da maneira mais produtiva os objetivos necessariamente diferenciados dos 34 países participantes. Foi a partir desse enfoque consistente e realista que a declaração conjunta na reunião dos presidentes Lula e Bush em Washington expressou o entendimento de que os dois países cooperarão pela conclusão exitosa das negociações nos prazos previamente acordados.
Mas prazos, como temos dito repetidamente, não podem prevalecer sobre o conteúdo. E "negociações exitosas", no caso do Brasil, significam preservar espaço para decidir de forma autônoma nossas políticas socioambientais, tecnológicas e industriais e obter melhores condições de acesso para os setores em que mais somos competitivos -e que enfrentam as mais elevadas barreiras protecionistas. O governo do presidente Lula não aderirá a acordos que forem incompatíveis com os interesses brasileiros, mas explorará, soberanamente, todas as alternativas para a promoção de nosso comércio e a aceleração de nosso desenvolvimento.

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De Brasemb Washington à SERE
SG – ALCA
Ref Desptel 744
Washington, 17/07/2003

Negociações da Alca. Artigo do
Senhor Ministro de Estado. Pedido 
de Comentários. Brasemb Washington.

Resumo: Cumpro Instruções. Comento o artigo do Senhor Ministro de Estado, “A Alca Possível” (FSP, 8/07/2003), do ponto de vista de Brasemb Washington. Ressalto grande coincidência com pontos de vista defendidos anteriormente por este posto. Ressalto as dificuldades da coordenação com parceiros regionais, inclusive do Mercosul.

Retransmissão automática para Delbrasgen, Braseuropa, Brasembs Londres, Paris, Berlim (Rogo retransmissão a Buenos Aires, Santiago, Montevidéu, Assunção, Brasaladi, Tóquio, Roma e Ottawa).

            Congratulo-me com o Senhor Ministro de Estado pela publicação do artigo “A Alca Possível” (FSP, 8/07/2003), que sintetiza, tanto para a sociedade brasileira, como para o público externo, alguns dos pontos de vista defendidos pelo Brasil no quadro do processo hemisférico, que estavam efetivamente demandando maior explicitação em razão de percepções eventualmente equivocadas em relação à posição brasileira e das naturais complexidades de um processo negociador que, como ressaltado no texto, não se limita ao universo tradicional de uma área de livre-comércio stricto sensu.

2.         Minha satisfação é tanto maior quanto fui levado a constatar, no texto, inúmeras coincidências e de fato uma quase perfeita identidade de pontos de vista com argumentos e sugestões de posições negociadoras desde muito defendidos por este posto, como tenho levado ao conhecimento da SERE desde minha assunção, em virtude da situação de certa forma privilegiada de que desfruto nesta capital. Washington constitui, inegavelmente, um dos pólos de poder e de influência no atual processo hemisférico (tanto do lado do Executivo quanto no âmbito congressual), bem como um terreno fértil de reflexões e de debates (com intensa osmose intelectual e intercâmbio de opiniões entre funcionários governamentais, representantes corporativos e de grupos de interesse e de inúmeros centros acadêmicos dotados de real independência), não só pelo lado dos inúmeros think tanksdedicados à temática das relações econômicas internacionais, como pela existência de organismos multilaterais que produzem insumos de alta qualidade sobre o substrato econômico das negociações (a começar pelo próprio BID, um dos integrantes da atual troika administrativa da Alca).

3.         Tanto a definição geral de política comercial externa, como a ordem de prioridades estabelecidas nos diversos processos negociadores de que o Brasil participa (objeto dos dois primeiros parágrafos do artigo) parecem corresponder amplamente a um amplo consenso na sociedade brasileira no que se refere à interface externa de nosso processo de desenvolvimento. Do ponto de vista dos EUA, as prioridades econômicas externas sempre foram, desde o imediato pós-Segunda Guerra, a preservação de um ambiente econômico aberto no plano internacional, suscetível de acomodar os interesses de suas grandes corporações desde cedo implantadas no exterior, como, do ponto de vista metodológico, a valorização dos instrumentos multilaterais sobre os esquemas mais ou menos minilateralistas de blocos comerciais excludentes, por seus líderes acusados de ostentar vários pecados econômicos, desde o desvio de comércio às práticas discriminatórias. Exceções foram, por certo, toleradas, como no caso do bloco europeu, mas elas se prendiam mais a questões de segurança geoestratégica do que a considerações de natureza econômica quanto ao caráter excludente daquela experiência, de resto facilmente contornada pela precoce implantação local de multinacionais americanas e em virtude do ambiente relativamente aberto, quanto a fluxo de capitais e acesso ao setor terciário, que caracterizou o território comum da OECE-OCDE.

4.         Essa situação começou entretanto a mudar desde o final dos anos 1980, não por acaso coincidentes com a percepção de uma “esclerose” parcial dos antigos mecanismos gattianos e a multiplicidade e diversidade natural de posições em virtude da ampliação do número de parceiros participantes do jogo multilateral. Começa então uma sutil e cada vez mais declarada adesão de Washington a mecanismos minilateralistas, consubstanciados nos acordos de livre-comércio com o Canadá, no lançamento da Iniciativa para as Américas (de Bush pai), na formação do Nafta, no apoio a mecanismos regionais de liberalização gradual (como no caso da APEC), no próprio início do exercício da Alca (sob Clinton) e, finalmente, na multiplicação de iniciativas bilaterais em diversos continentes que já conduziram à conclusão de vários FTAs e à composição de uma lista pelo menos triplicada de candidatos a novos esquemas bilaterais (desde “frameworks arrangements” até acordo formais de livre-comércio). Contribuiu para esse surto – de certa forma quase uma “epidemia” nos últimos anos – a impressão, partilhada tanto pelo Congresso como pelo Executivo – de que Washington estava perdendo a batalha para Bruxelas na estratégia de sedução (ou de reserva de mercados) de diversos parceiros regionais, quando não sendo ultrapassados pelos próprios (como Canadá e México, por exemplo). 

5.         Na medida em que essa estratégia parece ter adquirido dinâmica própria (e será portanto continuada pelos eventuais sucessores de Bush e Zoellick, sejam eles até mesmo democratas), parece-me correto, portanto, a atual estratégia brasileira de perseguir, com igual denodo nos diferentes planos, esquemas multilateralistas e minilateralistas (regionais ou com parceiros selecionados em determinadas regiões) de liberalização negociada de fluxos de comércio e de investimentos recíprocos, como forma de maximização de nossos ganhos num ambiente internacional irremediavelmente caracterizado pela imbricação multiforme, complementar e contraditória, dos processos de globalização e de regionalização. Por certo essa multiplicação de foros negociadores conduz a um certo stressnas equipes responsáveis, fenômeno visível até mesmo no bem aparelhado USTR, mas ela parece ser a única estratégia suscetível de minimizar as perdas potenciais no cenário “mercantilista-multilateralista” em que parece ter se convertido o sistema de comércio internacional contemporâneo. 

6.         A participação plena no exercício da Alca parece-me, portanto, corresponder aos interesses brasileiros, ainda que eventuais resultados positivos apareçam como duvidosos, no presente momento, em virtude das características gerais desse processo e pelas condições particularistas da oferta dos EUA, como ressaltado no artigo do Sr. Ministro de Estado. Uma percepção exata do que poderia vir a ser (não a, mas) uma Alca se vê dificultada pelas incertezas ainda remanescentes da posição negociadora dos EUA, dadas as ambigüidades e indefinições deliberadas do documento original que solicitou mandato negociador ao Congresso e em razão das condicionalidades estritas – mas nem sempre explícitas – colocadas no instrumento autorizativo do Congresso, que solicitou ser informado estreitamente e até mesmo ser consultado sobre ofertas liberalizadoras em setores de direto interesse brasileiro. Como ressaltado diversas vezes por várias autoridades dos EUA, a começar pelo próprio USTR, nada está excluído do mandato negociador, mas de fato as ofertas são moduladas em função de objetivos maximalistas nas áreas de real competitividade americana e de retraimento ou exclusão implícita naquele setores de exposição mais frágil (agro, de forma geral, algumas indústrias, assim como diversos serviços sujeitos a legislação restritiva) ou de natureza regulatória (defesa comercial).

7.         Partilho da convicção de que eventuais esquemas aladianos (típicos da “cláusula de habilitação”) e sua transposição num espaço econômico sul-americano de liberalização ampliada, suscetível até mesmo de consolidar-se numa área de livre-comércio regional, constituem o principal terreno de manobra da diplomacia comercial brasileira na atualidade, muito embora eu acredite que a eventual consecução plena desse objetivo requeira uma margem maior de liberdade negocial do que aquela permitida pelos atuais mecanismos mercosulianos, de consulta, coordenação e negociação conjunta. O objetivo acima descrito seria certamente mais fácil de ser atingido se o Brasil se dispusesse a (ou se ele pudesse) converter-se no “livre-cambista universal” no âmbito da América do Sul, mas por outro lado perderíamos, por certo, as vantagens do espaço ampliado de intercâmbio já consolidado ao abrigo da união aduaneira de 1995. Tal não é possível, entretanto, em virtude dos compromissos já firmados sucessivamente em Assunção e em Ouro Preto, e que vem sendo confirmados pelos atuais esforços de revitalização e de consolidação do Mercosul, inclusive com metas que ultrapassam os objetivos relativamente modestos dos “pais fundadores”, que não previram instrumentos parlamentares ou monetários comuns.

8.         Preservada a atual estrutura institucional e o cenário já conhecido de difíceis negociações inter-blocos entre o Mercosul e a CAN, tenho, entretanto, legítimas dúvidas, se me permitem tal atitude, quanto à solidez da disposição negociadora e à consistência dos compromissos sub-regionais de nossos parceiros continentais, por razões de ordem eminentemente práticas: (a) os imensos atrativos do mercado e dos investimentos dos EUA para a maior parte desses parceiros (inclusive do Mercosul); (b) pressões políticas, financeiras e até mesmo de ordem psicológica a serem exercidas pelo império em direção desses participantes hoje em sua maioria fragilizados; (c) disparidade de resultados percebidos entre nossos acenos de “coordenação de políticas setoriais” e de “integração física” com os vizinhos regionais e a promessa de ganhos imediatos, ainda que a rigor ilusórios em sua maior parte, do lado do Big Brother. Pode-se observar, por outro lado, que poucos países na região dispõem de condições ótimas para o exercício soberano e a execução concreta, como o Brasil, de projetos, políticas e programas setoriais de desenvolvimento integrado (social, ambiental, tecnológico etc.). 

9.         As linhas de ação para a Alca, propostas em documento do Senhor Ministro de Estado e referendadas pelo Senhor Presidente da República – basicamente consistentes nos “três trilhos” já conhecidos e como tal referidos no artigo em questão – parecem-me corresponder, efetivamente, à realidade atual do processo negociador, como aliás vinha sendo observado pela Embaixada em Washington desde a aprovação pelo Congresso do mandato negociador para o Executivo americano. Há uma compartimentalização de fato e uma segmentação de ofertas segundo os parceiros, a partir das quais o Brasil deve tirar as conseqüências práticas e avançar suas próprias propostas negociadoras, tanto quanto a métodos, como no que se refere á substância das ofertas realizadas e a serem melhoradas. Permito-me observar entretanto que se, a maior parte dos elementos negociais constantes de cada um dos trilhos pertence, efetivamente, ao mandato original de Miami, a componente dos “fundos de compensação”, inserida no contexto da Alca propriamente dito, não parece ter integrado aquele pacote fundador, sendo portanto suscetível de contestação numa visão mais legalista ou formalística do processo da Alca. De resto, estou basicamente de acordo com a repartição funcional e temática desses elementos entre os três trilhos sugeridos.

10.       A questão mais relevante a esse respeito, porém, tem a ver com a própria aceitabilidade dessa nova estratégia, ou dessa “metodologia revisionista”, aos olhos não apenas do Grande Irmão, mas dos demais parceiros regionais, inclusive Chile, Canadá e as chamadas “small economies”, cuja principal motivação pode estar, por exemplo, em investimentos ligados a serviços (em suas próprias economias, entenda-se). Não estou certo, assim, que esses parceiros – por certo algo recalcitrantes, mas nem sempre opostos aos desígnios do império, e em alguns casos até predispostos à satelitização – estejam prontos a seguir o Brasil nessa nova compartimentalização que oferecemos como uma solução elegante aos atuais impasses do processo hemisférico. 

11.       Não estou nem mesmo seguro de que nossos sócios do Mercosul manifestarão completa (e sincera) adesão ás teses e métodos propostos pelo Brasil, a despeito mesmo das juras repetidas e das promessas de solidariedade a cada novo encontro de cúpula. Não se pode, por exemplo, eludir o fato real de que os outros três parceiros sempre perceberam a TEC como uma construção essencialmente brasileira, daí as inúmeras exceções (nacionais, continuadas, divergentes e conflitantes) ao principal instrumento da união aduaneira. Tampouco se pode ignorar a realidade de um leque consideravelmente menor de interesses nas regras de acesso e nas normas regulatórias que esses mesmos parceiros mantêm em relação aos exercícios da Alca, das negociações UE-Mercosul e da própria rodada de Doha. 

12.       Por outro lado, pela minha própria experiência desde o início dos anos 90, no quadro do Mercosul (e mesmo antes, como representante brasileiro na Aladi), percebo os esforços de coordenação com a CAN como essencialmente ilusórios, quando não como diretamente frustrantes, dado o alto grau de “surrealismo institucional” e de “esquizofrenia operacional” existentes no bloco (bastante esgarçado) dos andinos. Na verdade, o único país consistentemente coerente em seus propósitos negociais, e de fato assumidamente livre-cambista e aberturista, tem sido o Chile, disposto a negociar acordos de livre-comércio com todo e qualquer país, em qualquer continente, que apresente oportunidades concretas em termos de suas vantagens comparativas. Essa facilidade negocial tem algo a ver, provavelmente, com o perfil tarifário único da pauta aduaneira chilena e com a preferência do país por políticas não indutoras de desenvolvimento, opções provavelmente difíceis no caso brasileiro, dada a natureza mais diversificada e regionalmente diferenciada de sua economia. 

13.       Partilho igualmente da opinião de que seria melhor ao Brasil concentrar-se no perfil de uma “Alca possível” do que procurar atingir todos os resultados originalmente inscritos no mandato de Miami, mas não estou certo de que a “minimização” dos grandes objetivos proclamados uma dúzia de anos atrás seja uniformemente acolhida por todos os parceiros do hemisfério. Tenho dúvidas inclusive de que o enfoque realista oferecido pelo Brasil, aparentemente acolhido pelos nossos parceiros americanos nos recentes encontros ministeriais e de cúpula, desfrute do mesmo entendimento do que seja uma “conclusão exitosa das negociações nos prazos previamente acordados”, sobretudo se considerarmos que interesses de grandes corporações americanas – certamente bem acolhidas pela atual administração americana – manifestam-se justamente naquelas áreas que desejaríamos ver transferidas para Genebra. 

14.       Permito-me, por fim, expressar minha convicção de que o problema principal da Alca não se refere mais a prazos ou a modalidades negociadoras, mas apresenta uma dupla vertente, segundo cada uma das co-presidências. Do lado americano, a prioridade parece centrar-se na maior “inclusividade” possível, ao passo que para o Brasil a tendência é exatamente inversa. Termino, portanto, afirmando que se quisermos fazer do atual processo hemisférico, não um exercício meramente dilatório mas, uma oportunidade singular para ganhos localizados em áreas de competitividade sistêmica brasileira, teríamos de abandonar o cenário das “grandes estratégias” – necessariamente generalizantes e pouco suscetíveis de acomodar nossos interesses concretos – e passar a concentrarmo-nos, desde já, em simulações econométricas quanto a ganhos possíveis e realizáveis em situações reais de barganhas setoriais (a serem conduzidas, eventualmente, até num esquema bilateral Brasil-EUA, e não necessariamente no formato 4+1). 

15.       A “Alca possível”, nesse sentido, não seria nenhum grande projeto de integração hemisférica, e muito menos a realização perfeita e acabada de uma área de livre-comércio (para mim utópica, nas atuais circunstâncias), mas uma “colcha de retalhos” (de geometria variável segundo os parceiros e setores “colados” entre si), na qual teríamos de colocar na nossa “periferia” todas as nossas vantagens comparativas naturais e adquiridas e deixar no “centro protetor” os setores e ramos dotados ainda de relativa fragilidade sistêmica. As simulações econométricas acima aludidas nos permitiriam, precisamente, medir a situações de maiores ganhos de bem estar para a economia brasileira, adotando então um perfil absolutamente pragmático (e não necessariamente uniforme) nas áreas selecionadas para abertura seletiva. Não se poderia excluir nem mesmo, a esse respeito, entendimentos ad hoccom os EUA relativos a medidas de defesa comercial, um dos nossos “demônios” principais nos vários exercícios negociais e absolutamente intratáveis até mesmo para as autoridades americanas em virtude dos humores congressuais. 

16.       Estou, por outro lado, absolutamente certo de que, assim como – no dito conhecido – os generais tendem a planejar a próxima guerra segundo as condições e técnicas militares dos combates precedentes, os diplomatas também negociam segundo cenários existentes em processos anteriores, sendo uns e outros ultrapassados pela dinâmica efetiva dos acontecimentos que se sucedem na vida real. Dessa forma, acredito que as empresas e os agentes econômicos, quando concluído o presente exercício negociador, terão avançado consideravelmente nos fluxos cruzados e nas interconexões recíprocas de investimentos produtivos, associações empresariais, fusões e outras formas diversas (e simultâneas) de market sharing, de cooperação e de competição, que diminuirão sensivelmente o impacto efetivo de uma futura (e ainda hipotética) Alca, assim como o Nafta, por exemplo, revelou-se bem menos transformador do que o “imenso sorvedouro de empregos” ou o “fabuloso manancial de modernização tecnológica”, imaginados por uns e temidos por outros.

17.       A Alca (em grande parte imaginada e imaginária) cresceu a ponto de “seqüestrar” boa parte da agenda diplomática brasileira, quando ela não é, de verdade, nem o monstro metafísico temido por alguns, nem a solução mágica do desenvolvimento brasileiro desejada por outros. Uma visão mais modesta desse exercício negociador, certamente complexo, mas nem por isso totalizador e totalitário, poderia contribuir para reduzi-lo às suas reais dimensões e eliminar, assim, os componentes ideológicos que hoje cercam o debate em torno dessa questão em nosso País. Quanto aos EUA, uma “Alca pragmática” – que provavelmente não será a mesma “possível” para o Brasil – certamente pode vir a satisfazer os setores da administração que buscam “quaisquer” resultados politicamente aceitáveis, para o eleitorado e para o Congresso, ainda que não para as corporações mais exigentes em termos de programa maximalista. Entre a Alca possível e a pragmática, tenho certeza de que existe espaço para um entendimento razoável entre o Brasil e os Estados Unidos. Espero poder contribuir para isto ainda à frente deste posto. 

RUBENS ANTONIO BARBOSA, Embaixador

Washington, 17/07/2003