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quarta-feira, 16 de maio de 2018

A obsessao brasileira com o desenvolvimento - Paulo Roberto de Almeida

Um antigo projeto de trabalho, conduzido de forma dispersa, errática,  em diversos textos meus ao longo dos últimos anos, mas jamais de maneira sistemática, como ele mereceria.
Talvez cabe retomar o projeto agora.
Paulo Roberto de Almeida

A noção de desenvolvimento no discurso diplomático brasileiro

Paulo Roberto de Almeida

Parte I:
Desenvolvimento: biografia de um conceito
1. A economia natural e a economia dos clássicos
            (ausência da noção e da prática na economia do laissez-faire)
2. A emergência do desenvolvimento enquanto idéia
            (a noção iluminista de progresso; livro: The Idea of Progress)
3. O desenvolvimento se materializa na prática: o Estado como ator
            (Primeira Guerra e conseqüências práticas)
4. O triunfo do desenvolvimento: a idéia central de nossa época
            (sua consagração na retórica onusiana e na teoria econômica)
5. A tragédia do desenvolvimento: meio século de frustrações
            (a despeito de todo esse talking e dos estudos, a realidade...)

Parte II:
O desenvolvimento no discurso diplomático brasileiro
6. O desenvolvimento como idéia e como retórica
            (Furtado e outros desenvolvimentistas e seus reflexos no Itamaraty)
7. O discurso diplomático: recorrências e reverências
            (rendemos tributo, praticamente de modo mecânico, ONU, etc.)
8. Trajetória prática e arranjos mecânicos: a dinâmica dos grupos
            (a organização dos trabalhos nos foros desenvolvimentistas)
9. A eficiência marginal de um conceito: os rendimentos decrescentes
            (como tudo isso foi perdendo a força, mas continuamos insistindo)
10. O renascimento do desenvolvimento [enquanto discurso]
            (o papel apresentado na OMPI é um bom test in case...)

Parte III:
Conseqüências econômicas de um conceito
11. Brasil: país subdesenvolvido ou pais injusto?
            (o que somos afinal?: provavelmente ambas as coisas)
12. Do discurso à prática: correlações causais?
            (a retórica provocou mudanças reais?)
13. O fim do desenvolvimento?
            (conclusões pouco conclusivas?)

Biblio, etc

Brasília, 1ª versão: 5 outubro 2004

A cultura da esquerda: Sete pecados que atrapalham seu desenvolvimento - Paulo Roberto de Almeida (2005)


A cultura da esquerda
Sete pecados dialéticos que atrapalham seu desenvolvimento

Paulo Roberto de Almeida
(texto de 2005)
  
Prólogo necessário:
Faço parte daquilo que poderia ser classificado, à falta de melhor definição, como “cultura de esquerda”, algo suficientemente disseminado no Brasil para desobrigar-me aqui de maiores elaborações sobre seu conteúdo específico. Talvez eu devesse dizer que pertenço hoje bem mais à “cultura” do que à “esquerda”, et pour cause: adjetivos desse tipo, one-sided, são em geral reducionistas ou simplificadores e os maniqueísmos que usamos na vida corrente não estão adaptados aos matizes da realidade e a uma visão abrangente dos processos sociais, sempre complexos em sua totalidade. Dicotomias como “esquerda” e “direita” são partes de um todo, mas relutam em abrigar as particularidades que não se encaixam em seus moldes pré-concebidos.
Sem maiores considerações terminológicas ou metodológicas, pretendo listar e em seguida discorrer sobre o que considero serem os sete grandes pecados da cultura da esquerda, características pouco defensáveis e que parecem atrapalhar sobremaneira seu desenvolvimento e sucesso público. Alguns desses pecados são “veniais”, como a visão popularesca da cultura e da vida social, outros são “mortais”, como a ojeriza ao mercado ou a objeção à democracia simplesmente formal, mas todos eles me aparecem como “inutilidades históricas” ou “relíquias bárbaras” que já deveriam ter desaparecido do discurso da esquerda, se é verdade que ela pretende se colocar como alternativa credível de poder e de administração pública.
Quais são, afinal, esses “pecados dialéticos” que afligem a esquerda, no Brasil e no mundo? Listei apenas sete, como os sete pecados capitais, mas eles poderiam ser mais. Contentei-me, no momento, com estes sete, mas aceito sugestões “amplificadoras”.

1. A esquerda é estupidamente antimercado.
2. Ela é (falsamente) igualitarista.
3. Ela se posiciona contra a “democracia formal”, preferindo a “democracia real”.
4. A esquerda é geralmente estatizante (o que é, realmente, uma pena).
5. Ela é anti-individualista, preferindo os “direitos coletivos”.
6. Ela é tristemente populista e popularesca.
7. Também costuma ser voluntarista e anti-racionalista.

Voilà: feita a listagem dos pecados “dialéticos” que julgo identificar na esquerda, certamente atribuídos a uma história de lutas que remonta ao século XIX (mas que ela se esqueceu de atualizar para nossos tempos de globalização), vejamos como explicar cada um deles e, quiçá, contribuir para sua superação.

1. Antimercado.
Eu disse que a esquerda é “estupidamente” antimercado, e tenho, infelizmente, de reforçar o adjetivo estúpido, pois isso constitui um flagrante atestado de incoerência e de irracionalidade da parte de um grupo que, supostamente, cultiva as boas virtudes do método dialético. Trata-se, porém, de uma atitude muito frequente no meio acadêmico e comum às várias vertentes do movimento. Ela deriva de um preconceito original, filiado geneticamente ao velho barbudo, mas que sempre constituiu o mais grave pecado que prejudicou terrivelmente a carreira da esquerda em todo o mundo. Suas consequências foram verdadeiramente trágicas, pois que não apenas redundaram em inúteis sofrimentos sociais, incompreensíveis inconsistências econômicas, além de catastróficos atentados aos direitos humanos nos vários países nos quais experimentos de esquerda tentaram “corrigir” as chamadas “insuficiências do mercado”, como elas continuam a obstaculizar os progressos da esquerda em direção a uma administração mais racional das “coisas”.
Mercados (e moedas) são antiquíssimas instituições humanas – ou melhor, “societais” – que muito contribuíram para “empurrar” as sociedades a patamares mais avançados de organização social da produção e de distribuição de bens e serviços. São não apenas indispensáveis como insubstituíveis, já que permitem operacionalizar, na prática, a velha lei da oferta e da procura, sinalizando o encontro de produtores e de consumidores, mediante esta outra instituição intangível, mas tremendamente real, que se chama “preço”. A esquerda pode até não gostar da lei da oferta e da procura, mas ela não tem o direito de negar sua realidade social e sua validade histórica. Ela pode também achar que a sociedade estaria mais bem organizada segundo o princípio vagamente utópico que proclama, seguindo Marx na sua “Crítica ao Programa de Gotha” (da socialdemocracia alemã do século XIX), “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”.
De fato, a ojeriza da esquerda contra os mercados deriva diretamente de Marx, pois ela não é típica de outras correntes socialistas (como as proudhonianas ou de autogestão, por exemplo), e provavelmente se explica pelos horrores da exploração do trabalho durante a primeira Revolução Industrial, dos quais Marx tinha conhecimento pela leitura de relatórios oficiais britânicos e pelo livro de seu amigo Engels sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra (não consta que ele jamais tenha adentrado numa fábrica). O pecado original está aí: Marx concluiu, de modo hegelianamente falso, que o vilão da história era essa instituição singular e onipresente chamada “mercado”, e não um fator real e diretamente responsável, chamado “mercado laboral”, então, e ali na Inglaterra, caracterizado pelo “excesso” de oferta de trabalhadores, o que deprimia o “preço de mercado” dos trabalhadores em questão. Concluindo pela perversidade natural dos mercados, Marx recomendou sua abolição, mas ele o fez de modo puramente teórico, sem maiores consequências para a humanidade. Em todo caso, mesmo em sua época, economistas como John Stuart Mill e Vilfredo Pareto já tinham criticado as posições de Marx sobre a “extração de mais-valia” como inexequíveis e irracionais, mas a esquerda se “esqueceu” de ler esses críticos do profeta maior.
As coisas se complicaram quando Lênin, um gênio em política mas um inculto em economia, resolveu concretizar as poucas idéias vagas de Marx sobre o funcionamento de uma “economia socialista”, na sua concepção podendo prescindir dos mercados. Não deu outra: foi um desastre completo, tanto que ele resolveu, rapidamente, voltar a aceitar o funcionamento parcial dos mercados, na chamada NEP, a “nova economia política”. Mas, mesmo nesse regime, as grandes fábricas foram nacionalizadas, burgueses e latifundiários foram devidamente expropriados e se começou a lançar as bases do “planejamento econômico socialista”, algo que Stalin aperfeiçoaria tremendamente alguns anos depois, com os custos humanos que se conhecem.
Desde o início, entretanto, um economista “liberal” como Ludwig Von Mises advertia para a impossibilidade de funcionamento de uma “economia socialista” naquelas bases, pela ausência do mecanismo absolutamente indispensável ao cálculo econômico: a fixação dos preços via mercado, ou seja, a velha lei da oferta e da procura. A esquerda também preferiu ignorar essas advertências e seguiu construindo o socialismo a seu risco e perigo. Deu no que deu: um imenso desperdício de “forças produtivas”, uma coerção absolutamente inimaginável, em termos históricos, das “relações de produção”, e uma ausência notável de progresso econômico sob aquele “modo de produção”, em virtude dos reduzidos (ou inexistentes) incentivos à inovação tecnológica, em vista da recusa de “riqueza proprietária” (ou de acumulação em bases individuais).
Podemos até compreender, e de certa forma aceitar, que tais erros tenham sido cometidos no passado, uma vez que até mesmo “engenheiros sociais” de espírito e vocação eminentemente capitalista (e até mesmo aristocrática), como Saint Simon por exemplo, puderam incorrer na ilusão de que mercados e sistemas produtivos pudessem ser organizados pelos homens de maneira mais “racional” do que aquela permitida pelo simples funcionamento da lei da oferta e da procura. O inacreditável é que, ainda hoje, pessoas que se consideram de esquerda – mantendo, portanto, certo comprometimento com o progresso social e o bem estar das pessoas – mantenham o preconceito totalmente equivocado contra o mercado alimentado pelos pais fundadores do marxismo. Marx certamente cometeu um erro, Lênin persistiu no equívoco e Stalin simplesmente acumulou crime sobre crime, ao pretender fundar uma nova economia na ausência total de mercado e de sinalização de preços. O fracasso só poderia ser completo.
Tanto isso é verdade que os primeiros experimentos de “reforma socialista”, no pós-Segunda Guerra, inspirados por economistas que tinham vivido sob o capitalismo como Oskar Lange, pretenderam introduzir mecanismos de mercado na “economia planejada”, voltando a utilizar os preços como sinalizadores do cálculo econômico. Não deu muito certo, nem naquela época, nem posteriormente, em tempos de glasnost e perestroika, uma vez que a autonomia operacional e gestora requerida pelos mercados, com livre disposição dos bens em função do custo de produção e apropriação de renda segundo as oportunidades de mercado, revelou-se incompatível com o monopólio partidário exercido por uma nomenklatura que se apropria do processo de decisão sem medir a raridade relativa dos fatores de produção e organizando ela mesma a distribuição, segundo critérios não econômicos de “mérito”.
Esse desastre conceitual se perpetua ainda hoje pelo simples fato de que os principais produtores e disseminadores de “conhecimento”, que são os professores da rede pública, em especial os universitários, mantêm a ilusão (e o autoengano) de viver à margem do mercado, pois que eles recebem sua paga independentemente dos seus níveis de produtividade relativa. Esta é uma das muitas distorções do serviço público, mas que sempre são sancionadas pelo mercado e pelos preços (neste caso indiretamente, via retorno social dos investimentos feitos ou gastos incorridos no sistema de ensino público), independentemente do que possam pensar tais “disseminadores” de cultura antimercado.
O preconceito da esquerda contra os mercados, e seus sinalizadores, pode até ser aceito no pequeno mundinho semi-produtivo da cultura universitária, mas ele se revela absolutamente catastrófico quando transmutado para o terreno das políticas públicas, em especial as de cunho diretamente econômico. A pretensão de certos intelectuais, em geral diretamente saídos do mundo universitário, de organizar a sociedade e a economia em bases “socialmente justas”, isto é, “corrigindo as imperfeições dos mercados”, traduziu-se em desastres incomensuráveis do ponto de vista da riqueza social, o que geralmente se refletiu na “desacumulação”, no “desinvestimento” e em manifestações mais prosaicas como fuga de capitais, alocação sub-ótima (senão totalmente errada) de recursos escassos e assistencialismo inconsequente do ponto de vista da produtividade do trabalho humano.
Os “intelectuais” que assim procedem pensam que seu trabalho de “planejador” é pago com “recursos públicos”, quando a única fonte de riqueza, em qualquer sociedade, é o trabalho diretamente produtivo dos agentes econômicos que possuem ou manipulam fatores de produção (e a administração estatal não é um deles, muito menos o ensino universitário, ainda que este possa contribuir para “acumular conhecimento”, base do progresso tecnológico). Em todas as instâncias de geração de riquezas, repito “em todas”, os mercados são absolutamente indispensáveis para o bom funcionamento do mecanismo econômico da sociedade. Pretender ignorá-los, e a seus sinalizadores imediatos que são os preços, constitui uma atividade de imenso risco social, como aliás já deveríamos ter descoberto aqui no Brasil. A esquerda precisaria refletir sobre isso.

2. Igualitarismo.
A esquerda é igualitarista, o que é compreensível: isso faz parte de seu credo evangelizador e legitima o discurso político pelo qual ela pretende conseguir adeptos e ter sucesso social. O mesmo ocorre com outros cultos ou mesmo religiões inteiras: pregar a simplicidade na vida, uma partilha equitativa dos bens e um usufruto razoavelmente equilibrado dos recursos disponíveis sempre soou como disposição de bom senso e de inegável mérito humanitário. Mas, e sempre tem um mas, existe um problema aqui: não existe almoço grátis, como reza uma velha arenga, e se você está se alimentando de graça é porque alguém está pagando por isso. Em outros termos, como não existe maná dos céus ou uma cornucópia infindável jorrando alimentos a partir do nada, os recursos escassos têm de ser organizados para servir a fins socialmente úteis.
A sociedade humana inventou uma outra instituição tão velha quanto os mercados e as moedas para tentar organizar essa escassez relativa: a propriedade. Ela é apropriada individualmente (sempre quando isso é possível) porque a fonte de toda a riqueza é o trabalho humano – como ensinavam Adam Smith e Marx – e se supõe que as instituições estatais (que também surgem muito cedo na história das sociedades) respeitem esse princípio da “acumulação individual”. Quando isso não ocorre é mais do que provável que não haverá um incentivo à acumulação e, portanto, ao aumento da riqueza social, com o que todos serão mais pobres, mas especialmente os mais pobres dentre os pobres, uma vez que os verdadeiramente ricos sempre distribuem um pouco de seu patrimônio em torno de si, sob a forma de trabalho doméstico e outros serviços “aliviadores” do seu próprio trabalho.
Mas eu disse que a esquerda é falsamente igualitarista porque não conheço, em qualquer parte do mundo, uma sociedade que tenha conduzido um experimento inovador de igualitarismo radical. Aceitando-se que alguns possam dispor de bens sem qualquer correspondência com sua contribuição efetiva para a criação da riqueza que os sustenta, como todas as sociedades socialistas admitem, tem-se que existe uma igualdade para os simples iguais e um pouco menos de igualdade para os “mais iguais”. Admitamos que estes sejam “detalhes” numa situação distributiva bem mais complexa e tratemos daquilo que incomoda realmente a esquerda: o excesso de desigualdade distributiva e os absurdos da ostentação social de riqueza, por um punhado de ricos, entenda-se, numa situação de relativa penúria para a maior parte da sociedade.
Essa situação realmente existe e sua origem é geralmente atribuída, pela esquerda, ao capitalismo, aos mercados, à apropriação individual de riquezas, ou a todos esses fatores reunidos. Passemos por cima da tremenda simplificação que significa equacionar capitalismo a mercados, quando o primeiro convive com os mais diferentes tipos de mercados e se puder tenta contornar e conformar os mercados segundo seus gostos e preferências particulares (sempre no sentido da acumulação e da concentração). Existe, por certo, certa tensão entre “acumulação capitalista” e distribuição de riqueza, mas as relações causais entre uma e outra não são unívocas ou unidirecionais: um dos países nos quais é maior o crescimento das desigualdades distributivas é justamente a China atual, formalmente descrita como “socialista de mercado” ainda oficialmente comprometida com a igualdade de condições dos cidadãos. Devemos assim observar que os diferenciais mais gritantes de distribuição de riqueza geralmente são encontrados em sociedades muito pouco capitalistas pela sua organização e tradição e que as sociedades plenamente ou tipicamente capitalistas apresentam um perfil distributivo bem mais, arrisquemos a palavra, “igualitário”.
Isto se dá porque o capitalismo plenamente eficaz e funcional implica em relativa “anomia” dos mercados, isto é, total “anarquia” dos sistemas produtivos e distributivos. Em princípio, todos são livres para produzir e vender o que desejam fabricar e distribuir, nada se opondo à constituição de pequenas firmas ou grandes empresas que arriscam o patrimônio de seus proprietários (e os ativos de outros participantes, acionistas diretos ou investidores longínquos) no livre jogo da oferta e procura de bens e serviços, triunfando apenas o menor preço e a maior qualidade. Quando os mercados são verdadeiramente livres, o capitalismo exerce todas as suas qualidades de melhor sistema para criar e distribuir riquezas; quando eles, ao contrário, são pouco livres, até o capitalismo ostenta suas mais horrendas feições, sob a forma de cartéis e de monopólios que distorcem a concorrência e alimentam, aí sim, o mais iníquo dos perfis distributivos de riqueza (pois que baseado na exploração impiedosa daqueles que foram alijados do mercado por critérios outros que não os diretamente econômicos).
O problema da distribuição, que está na base das vocações (e das pretensões) supostamente igualitaristas da esquerda, deriva justamente do fato de que ela pode ser organizada em bases que não têm diretamente a ver com a dotação de fatores existentes num determinado sistema produtivo. Ou seja, havendo um Estado que atua como agente regulador e “distribuidor” de bens e serviços “públicos”, é muito provável que os atores estatais sejam tentados a organizar a distribuição desses bens, mesmo daqueles que não são necessariamente “públicos”, em bases “socialmente justas”, praticando um pouco de “Robin Hood” a serviço dos mais pobres. É até “normal” que isso ocorra e plenamente compreensível nos termos “morais” em que o assunto é colocado pelo discurso da esquerda (que nesse caso se confunde com as pregações religiosas de muitos cultos). O problema começa quando se passa do “fluxo” de riquezas para a gestão dos “estoques”.
Expliquemos mais um pouco, pois a esquerda tende geralmente a confundir fluxos com estoques. Os fluxos são constituídos por todo produto do trabalho humano, sendo tanto maiores quanto forem elevados os índices de produtividade desse trabalho. Já os estoques são simplesmente riqueza acumulada, ativos de diversos tipos em formas por vezes não diretamente líquidas, e que representam apropriação individual ou coletiva. Tanto fluxos como estoques variam tremendamente, entre as sociedades e dentro delas, dependendo da capacidade produtiva e da maior ou menor propensão a poupar dos agentes sociais (a poupança é uma atitude eminentemente individual, mas existem indutores estatais de poupança “compulsória”). A poupança e o investimento são dois elementos absolutamente indispensáveis ao crescimento da riqueza social, e sem eles simplesmente não haveria o que distribuir, pois que os estoques existentes seriam simplesmente dilapidados entre os atores do jogo social.
Um dos problemas da esquerda não é o de pretender ao igualitarismo social – o que poderia ser até perdoado on moral grounds –, mas é o de pretender fazê-lo atuando sobre os estoques existentes, em lugar dos fluxos continuamente criados para aumentar a riqueza disponível. A esquerda parece querer realmente ser “Robin Hood”, ou seja, tomar dos ricos para dar aos pobres, quando o que ela consegue fazer, por essa via, é incitar os ricos a esconder ou expatriar sua riqueza, diminuindo a poupança, ou os investimentos, e em geral a ambos, o que impede o aumento contínuo de riqueza social. Que o mundo seja injusto e desigual, isso é conhecido desde os tempos bíblicos e até antes disso. Que a correção dessa desigualdade – equiparada ou não a uma “injustiça social” – possa ser feita mediante repartição dos estoques existentes, significa que esse tipo de “engenharia social”, quando praticada, pode teoricamente acarretar outras injustiças individuais, irracionalidades econômicas e até mesmo certo grau de violência social.
A melhor forma de praticar “igualitarismo” é, portanto, atuar sobre os fluxos, isto é, fazer com que os atores sociais possam retirar o máximo de remuneração e de retorno social possíveis de suas atividades diretamente produtivas (também distributivas, isto é, nas áreas que têm a ver com a intermediação e os serviços, inclusive o ensino público). Isto geralmente consegue-se elevando os padrões de produtividade do trabalho humano, o que tem a ver com a capacitação educacional e profissional dos atores sociais. Daí se conclui que a melhor forma de se fazer uma distribuição “igualitária” das chances de sucesso social (e de acumulação de riqueza, portanto) seria via qualificação educacional de todos, segundo padrões universais (e mínimos, mas quanto maiores melhor) de ensino e de aprendizado técnico profissional. Isso se consegue por um ensino fundamental de boa qualidade, o que geralmente é admitido pela esquerda, mas apenas teoricamente, pois que ela prefere se dedicar ao ciclo universitário (que pode ser tudo num país, menos universal). Quando a esquerda admitir que a melhor forma de ajudar os “pobres”, no Brasil, seria praticando uma revolução educacional radical (mas isso deve ser feito essencialmente em favor dos mais pobres, que não passam do segundo ciclo), talvez possamos começar a pensar na diminuição dos níveis absurdamente altos (iníquos e imorais, em todos os planos) de concentração de riqueza em nosso país.

3. A esquerda é contra a democracia formal.
A esquerda sempre foi contra a “democracia burguesa”, por ela considerada como simplesmente formal, ou “vazia de conteúdo social”, com consequências trágicas para as liberdades em várias épocas e circunstâncias. O que ela pretende é uma “verdadeira” democracia, querendo com isso dizer que todos devem dispor de igualdade de chances, e de um patamar mínimo de subsistência, para exercer plenamente os “direitos políticos”.
Isto é um equívoco grave, pois é como se o conteúdo do regime político fizesse parte de seu “envelope” social. A democracia nada mais é do que um “método”, um conjunto de regras do jogo que se situa na esfera das relações sociais, mas que não podem determinar, essas mesmas regras, as formas pelas quais os membros da sociedade irão repartir as riquezas e administrar as competências individuais, na produção de bens e no seu consumo.
Em outros termos, a democracia não pode ultrapassar sua vocação original, que é a de simplesmente determinar como os cidadãos delegarão mandatos e poderes a seus representantes para o desempenho de funções administrativas (executivas e legislativas), técnicas (serviços públicos), corretivas (justiça) ou defensivas. Mas todas essas funções – e algumas outras não eventualmente compreendidas nessas acima – são meramente redistributivas de alguma riqueza previamente criada em outras esferas da vida social, e não podem, elas mesmas, criar riquezas para que a “democracia” as distribua. Isso é virtualmente impossível. Pretender o contrário seria pedir demais à democracia.
Por isso mesmo que a democracia deve permanecer formal, pois qualquer outra atribuição concreta e real, no plano das desigualdades distributivas, implicaria certo grau de “violência social” que comprometeria as bases do regime democrático. A esquerda deveria lutar para aperfeiçoar o regime democrático no plano da representação – não necessariamente de tipo corporativo – e no âmbito do controle dos recursos públicos (que são eminentemente “privados”, como já se esclareceu) que são colocados à disposição desses representantes para o desempenho de suas funções eminentemente políticas (e não econômicas).
Parece óbvio, por exemplo, que a democracia brasileira, plenamente existente no plano das instituições, é de “baixa qualidade”, seja no que se refere à representação – o que deriva da educação política da população –, seja no que se refere ao exercício mesmo das funções delegadas, muito pouco controladas pelo povo representado e, sobretudo, se prestando a diversos abusos de forma e de conteúdo (como o fato de que certos delegados do povo façam dessa representação um verdadeiro negócio privado). Quanto mais formal for a democracia brasileira, isto é, menos sujeita a injunções pessoais e idiossincrasias das corporações em que se organiza o Estado e mais atenta às regras da boa gestão pública, com controle social das funções delegadas, melhor será para a população.
A democracia brasileira não será mais ou menos “burguesa” se ela se apresentar como simplesmente “formal”, mas ela será de melhor qualidade se esse formalismo for capaz de diminuir ou simplesmente minimizar as demandas particularistas – seja da burguesia, do proletariado ou de qualquer outra categoria social – em direção de um sistema de organização política que pretende, meramente, dispor sobre as “regras do jogo” (na feliz definição de Norberto Bobbio), sem avançar na definição de “direitos sociais” ou “econômicos” que podem inviabilizar seu modo de funcionamento. A esquerda brasileira deveria parar de pretender atribuir rótulos à democracia e empenhar-se, tão simplesmente, em construir uma “boa democracia formal” em nosso país.

4. A esquerda é estatizante.
É realmente uma pena que assim ocorra, pois que o próprio Marx não era estatizante, pelo menos não no sentido finalista. Verdade que no Manifesto do Partido Comunista, texto que alguns consideram a “bíblia” do comunismo ideal – mas que não constituiu senão uma plataforma preliminar para a tomada do poder pelos trabalhadores, escrita muito rapidamente no início de 1848 para responder à onda revolucionária então em curso na Europa –, várias das medidas preconizadas “para os países mais avançados” comportam uma estatização integral de diversos setores da economia: sistema bancário, transportes, latifúndios e instrumentos de produção em geral. Tratava-se, contudo, de um programa imediato de correção das desigualdades sociais, não de uma proposta definitiva para a organização social da produção em regime socialista, já que logo em seguida se afirmava que “uma vez desaparecidas no curso do desenvolvimento as diferenças de classe e concentrada toda a produção nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perde o seu caráter político”.
Marx certamente não era anarquista, mas ele via o Estado como um instrumento de dominação de classe, podendo, portanto, desaparecer uma vez superada essa situação, como registrado nos textos posteriores à Comuna de Paris. Ele pretendia mesmo, como confirmado por Lênin em uma de suas últimas obras “teóricas”, o fim do Estado e, na expressão de Engels, a “substituição do comando dos homens pela administração das coisas”. O Estado era visto por Marx e por Engels, como também (hipocritamente) por Lênin, como um mero expediente temporário, um “mal necessário” na transição para uma sociedade sem classes. Deixemos de lado essa pretendida (e ilusória) abolição da sociedade de classes, que acarretaria a consequente eliminação do Estado, para nos concentrarmos no seu papel econômico, que não é, obviamente, um simples comitê gestor dos negócios da burguesia, como está escrito no Manifesto.
Os socialistas marxistas partilham, de certa forma, da boutade de Proudhon, segundo a qual toda propriedade é um roubo. No sentido mais especificamente marxista, a eliminação da extração de mais valia e de sua apropriação individual pelo capitalista, por meio da revolução proletária, deveria resultar em uma gestão coletiva dos meios de produção, com uma administração igualmente coletiva dos mecanismos redistributivos. Ora, não há forma mais eficiente de fazê-lo, acredita a cultura de esquerda, do que pela intervenção direta do Estado, uma instituição que deveria ser colocada acima das classes e servir tão somente de instrumento temporário de redistribuição equânime de riquezas.
Por características próprias das sociedades modernas, o Estado acabou assumindo um papel econômico exagerado em relação aos velhos princípios da economia política de Adam Smith e do próprio Marx: guerras, revoluções e outros conflitos civis, e mais frequentemente crises financeiras e bancarrotas industriais, acompanhados ou não de ciclos econômicos depressivos, com alto desemprego e sofrimentos sociais, levaram o Estado a assumir um papel incomparavelmente maior do que o normalmente esperado numa economia de livre mercado. Por outro lado, a forma especificamente estatizante assumida pelo socialismo bolchevista, com a expropriação completa dos produtores privados e o desenvolvimento do planejamento centralizado, também contribuiu para essa concentração enorme de poderes econômicos nas mãos do Estado moderno, algo inédito, mesmo para os padrões dos antigos “despotismos orientais”.
Disso redundou que, durante todo o decorrer do século XX, tanto nas sociedades capitalistas como nas socialistas, o Estado assumiu um papel central na organização e na gestão de diversas atividades econômicas que, ainda que estivessem na esfera dos chamados “bens públicos” (serviços de infraestrutura e de comunicações são os mais típicos, mas educação e saúde também podem ser arroladas), poderiam ser fornecidas e garantidas em bases totalmente privadas, ou segundo a conhecida fórmula dos mercados regulados. Com efeito, não existe nenhuma razão racional, à exceção daqueles serviços de retorno difuso e contabilidade aleatória – como são as atividades de defesa e justiça –, pela qual a maior parte dos bens e serviços “públicos” não possa funcionar em bases de mercado: a demanda por determinados serviços, como se sabe, é desigual segundo as famílias e não há justificativa econômica, por exemplo, para que solteiros ou casais sem filhos paguem pela educação dos filhos de terceiros. O mesmo se aplicaria à saúde e à maior parte das chamadas public utilities: o critério de mercado é o que melhor se ajusta à alocação ótima de recursos segundo a demanda, evitando desperdícios indevidos que sempre vêm associados à chamada apropriação coletiva de serviço públicos.
Trata-se de uma posição absolutamente racional, suscetível de convencer aqueles que mais deveriam prestar atenção ao bom uso dos recursos públicos, de maneira a maximizar os ganhos de bem estar do conjunto da sociedade. Um Estado eficiente, bom gestor dos recursos que lhe são atribuídos pela sociedade – e sabe-se que esta possui um limite de tolerância para a imposição tributária –, estaria em melhores condições de prestar serviços aos verdadeiramente desprovidos de meios e condições de prover à sua própria subsistência, ou à educação e saúde dos familiares. Da mesma forma, uma gestão não estatal do sistema de previdência social poderia, provavelmente, obter melhores resultados em termos de retorno futuro, eventualmente sob a forma de contas individuais de capitalização das contribuições recolhidas, do que o atual sistema de fundos difusos, administrados na base do pay-as-you-go, que coloca todos os recursos nas contas globais do Estado, de onde eles saem segundo as necessidades momentâneas da administração em vigor.
O culto que a esquerda devota ao Estado, como provedor de “bens públicos”, é absolutamente antimarxista e, de toda forma irracional, pois que ele não foi feito para arcar com responsabilidades gestoras que têm uma dimensão própria e um modo peculiar de provimento, geralmente de cunho microeconômico (como são os “mercados” já referidos, segmentados segundo os usuários, forçosamente desiguais em suas demandas), e que nada têm a ver com suas funções típicas – legislativas, judiciárias ou de defesa nacional –, que seriam mais bem desempenhadas se o Estado a elas se dedicasse de maneira mais focada. A esquerda deveria refletir sobre essas realidades e revisar um pensamento já por si anacrônico e responsável, nos dias de hoje, por perdas sociais cumulativas, que só podem acarretar prejuízos para os mais pobres, como sempre ocorre.

5. A esquerda é anti-individualista.
Este é um axioma do pensamento da esquerda, pelo menos desde a Revolução Francesa, ou quiçá antes, desde alguns filósofos iluministas. Esta não é, obviamente, a tradição do liberalismo e do utilitarismo britânicos, dos iluministas escoceses e dos liberais ingleses. Karl Popper já tinha feito amplos esclarecimentos sobre algumas das raízes dessa tradição, que ele faz remontar a Platão e vem dar direto em Hegel e Marx no século XIX. A Revolução Francesa atravessa e alimenta essa corrente, de forma algo contraditória aliás, pois ela tinha começado por uma proclamação sobre os direitos do homem e do cidadão, de cunho absolutamente liberal e “burguês”. Mas a esquerda prefere apoiar a tradição termidoriana que se manifesta com clareza em Robespierre (seguido por Lênin quase que ipsis litteris). É a linha dos direitos coletivos, da “razão do Estado”, que vai resultar no Stato totale de Mussolini e outros (como Salazar, em Portugal, com seu “Estado novo”, e nossos autoritários caboclos, que o seguiram até meados do século XX pelo menos).
Antes disso, Lênin já tinha manifestado sua apreciação pelos métodos de “justiça expedita” seguidos por Robespierre. Homenageando a criação da polícia política do novo Estado bolchevique, ele dizia, sem hesitação: “Nós não estamos lutando contra indivíduos. Estamos exterminando a burguesia enquanto classe. A nossa primeira pergunta é: a que classe o indivíduo pertence, quais são suas origens, criação, educação ou profissão? Estas perguntas definem o destino do acusado. Esta é a essência do Terror Vermelho” (in Paul Johnson, Tempos Modernos. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1998, p. 56). Em síntese, os direitos individuais devem se anular face aos “direitos coletivos” e a sociedade sempre tem preeminência em relação ao indivíduo.
O problema não é apenas filosófico ou moral, uma vez que ele tem consequências práticas, segundo o tipo de política pública privilegiada pelos indivíduos que ocupam temporariamente (por vezes de modo delongado) o Estado. A questão é claramente exemplificada pelo caso de Cuba, que constitui, como se sabe, um dos mais tradicionais bastiões de luta política da esquerda brasileira. A defesa da Revolução cubana se faz de modo integral, em bloco, sem distinguir os aspectos meritórios da luta anti-ditatorial conduzida por Fidel Castro e seus seguidores – contra um regime, o de Batista, enfeudado ao imperialismo americano e praticando uma política de entrega do interesse nacional –, de outros aspectos menos gloriosos, ligados à repressão política indefensável contra o direito dos cidadãos cubanos desenvolverem atividades econômicas privadas, de expressar opiniões diferentes das do partido único ou, simplesmente, de emigrarem, de acordo com sua consciência ou vontade própria.
O fato de alguns expoentes da esquerda brasileira terem justificado o julgamento sumário e o fuzilamento de indivíduos – que não eram sequer dissidentes políticos –, simples “candidatos” à emigração, não é apenas indefensável do ponto de vista político, mas é moralmente abjeto e condenável sob todos os critérios. A justificativa se fez, e se faz, a pretexto de “defesa da Revolução”, contra seus inimigos internos e externos, ou seja, os “direitos coletivos” da sociedade cubana – o que quer que isso queira dizer – devem se sobrepor aos direitos individuais dos cidadãos cubanos. Triste posição essa de expoentes da esquerda brasileira, denegando direitos humanos a indivíduos cubanos em nome de uma ideologia e de um movimento político.
Direitos coletivos constituem uma categoria especial de direitos, geralmente de natureza social ou econômica, que se somam, mas não substituem, os direitos individuais, que são inalienáveis, segundo as declarações universais subscritas pelo governo cubano, relativas ao direito à vida, à liberdade de pensamento e de circulação, inclusive o direito de dispor de sua residência. A defesa dos direitos individuais, mesmo contra o Estado, constitui um dos mais notáveis progressos da consciência coletiva e da própria humanidade; eles não são simplesmente ocidentais ou “burgueses”, mas são universais. Que novos direitos, de base coletiva, comunitária, étnica, social, econômica ou ambiental, venham se agregar aos direitos existentes trata-se de um progresso desejável, mas isto não pode se fazer em detrimento dos direitos naturais dos indivíduos.
A esquerda não pretende negar os direitos do homem e do cidadão, mas ela tende a defender, em primeiro lugar, a soberania dos Estados e, em segundo lugar (e a isso ligado), os direitos coletivos, que podem ser formulados de maneira a anular os direitos individuais. Os próprios acordos internacionais preveem, em alguns casos, a derrogação de alguns direitos, em caso de grave ameaça à segurança do Estado e à defesa nacional. Sabemos, pela experiência histórica, que essa invocação é muito facilmente feita pelas ditaduras, em casos nos quais os direitos individuais tentam se opor ao poder discricionário desses governos, que invocam a segurança do Estado ou algum outro “perigo público” para denegar a observância desses direitos. Trata-se de um claro retrocesso, que não poderia ser sancionado por qualquer movimento político que aspira ao direito de governar um país.
Dentre os direitos que não são derrogáveis, segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), estão o direito à vida, a prescrição da tortura, a não-sujeição à escravidão ou servidão, a prisão por dívida, a não-retroatividade penal, o direito de cada um ao reconhecimento de sua personalidade, bem como a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Que a igualdade, a solidariedade, a participação no bem-estar coletivo e outros direitos possam igualmente ser assegurados pelos Estados constitui, sem dúvida, um grande progresso no sentido da promoção de valores universais, mas essa promoção não pode se fazer em detrimento dos direitos individuais.

6. A esquerda é populista e popularesca.
Invariavelmente, os textos da esquerda, de natureza cultural ou mesmo política, estão repletos de frases derrogatórias das “elites” e valorizadoras das características do povo e da cultura popular. É de certa forma patético constatar isso, mas tudo o que vem da elite é considerado como intrinsecamente mau, ao passo que o que vem do povo é bom, por definição. Quando esse tipo de discurso vem das hostes da direita, é identificado com o chamado populismo e condenado de uma penada, sem apelação.
As culpas pelo nosso subdesenvolvimento material, as características perversas do modelo social brasileiro, a corrupção e o atraso são inevitavelmente atribuídos às elites e aos seus “500 anos de dominação”. De certa forma, isso encerra o discurso, pois que essas elites não são em geral definidas, nem identificadas em seu perfil próprio a cada época. Basta culpar as elites, elogiar as virtudes do povo e a “análise sociológica” está feita. De certa forma, o antropólogo Darcy Ribeiro foi um grande expoente desse tipo de pensamento, que passa por progressismo de esquerda.
Ao mesmo tempo, a esquerda não consegue perceber que ela também é de elite, ainda que não necessariamente do poder e do dinheiro. Elites sindicais, partidárias e intelectuais são tão elites quanto quaisquer outras, com amplo acesso aos meios de comunicação e, eventualmente, até aos círculos do poder, quando não conseguem, elas mesmas, assumir esse poder, como ocorreu em outubro de 2002. Recusar essa realidade é acreditar naquelas imagens que veem a elite como um gordo capitalista de cartola e charuto, sentado num monte de dinheiro, e achar que o povo é unicamente formado por aqueles trabalhadores de macacão com os quais a esquerda se identifica, mas, que de fato, esse povo não se reconhece nessa outra elite, a do pensamento.
A esquerda é dominante no establishment universitário, nos círculos culturais, nos meios de comunicação e em vários outros ambientes influentes na sociedade brasileira. Ela conforma, portanto, uma elite, no sentido pleno do termo. O fato da esquerda se recusar a ver a si mesma como elite, não lhe retira o caráter de elite, nem de fato, nem de direito. Sua identificação com o povo é meramente retórica, tão ou mais populista do que os discursos da direita que pretende encarnar o “verdadeiro espírito nacional”, geralmente centrista e conservador. Com efeito, o pensamento progressista, de esquerda, só existe numa fração esclarecida da população, geralmente da classe média para cima, no máximo entre alguns poucos membros da “aristocracia operária”, que também são a elite da classe trabalhadora.
De resto, a condenação genérica das elites pelo discurso de esquerda é hipócrita e mal informada, pois que não referida a uma elite concreta, mas sim a um simulacro de elite, que só existe no pensamento da esquerda. Da mesma forma, a exaltação dos valores do povo, de sua “genialidade” cultural e inventividade “natural”, soa como um escárnio, aliás uma verdadeira manifestação de elitismo cultural, pois que redundando, igualmente, numa aceitação acrítica e condescendente dos “produtos” populares, independentemente de seu valor intrínseco e contribuição para o enriquecimento cultural da população. Esse tipo de atitude termina por justificar e legitimar formas erradas de expressão oral e letrada (por evidente incultura do “produtor popular”), que podem até encontrar acolhimento no campo do folclore, mas jamais no campo do conhecimento a ser promovido pelo Estado.
Ao assim fazer, a esquerda acaba confundindo manifestações da cultura popular, plenamente aceitáveis em seu contexto próprio e que acabam fazendo parte do chamado “patrimônio” nacional, com a cultura formal, que não precisa ser erudita, mas que sempre é cientificamente rigorosa e dotada de certa lógica intrínseca, e que constitui uma condição indispensável para a elevação cultural de qualquer povo. Os raciocínios semiológicos e os exercícios de “intuição” típicos da cultura popular, cultivados por políticos e outros demagogos, mas que deveriam ser rejeitados por membros de uma elite intelectual e do pensamento, como pretende ser a esquerda, constituem contrassensos culturais e um desserviço à causa da elevação educacional do povo. Não há nada de mais populista ou popularesco do que cultivar acriticamente o popular apenas pelo fato de ser popular. Quanto à condenação genérica das elites, a esquerda deveria olhar no espelho e fazer um sério exercício de autocrítica.

7. A esquerda é voluntarista e anti-racionalista.
O voluntarismo, aqui, se refere a uma suposta encarnação da vontade popular, da qual a esquerda pretende deter o monopólio (não se sabe bem se por direito divino). Se olharmos o registro histórico, entretanto, veremos que as esquerdas, em suas diversas versões político-ideológicas, estiveram muito pouco à frente de governos ou enquanto responsáveis de políticas públicas. Esta não é uma afirmação gratuita e sim uma simples constatação de fato: deve haver algo de errado com um movimento que se proclama vanguarda popular, mas que na verdade esteve muito pouco em condições de determinar políticas que influenciaram a vida das sociedades nos últimos 150 anos, pelo menos.
Mesmo na América Latina, que conheceu por longos períodos muitos governos de direita que, aliás, combateram duramente (por vezes cruelmente) as esquerdas, e onde as esquerdas finalmente chegaram ao poder ao início do século XXI, não se observa uma mudança radical de políticas econômicas ou mesmo de políticas sociais, em relação às políticas e práticas anteriormente adotadas. Observa-se, incidentalmente, nos países que elegeram dirigentes de esquerda, uma forte retórica mudancista, mas, de fato, práticas cautelosas, quando não conservadoras de administração da “coisa pública”. As próprias esquerdas são conscientes desse fato, pois elas são as primeiras a protestar contra a não-mudança, em ruidosas manifestações de rua e em incontáveis manifestos de intelectuais.
O que acontece, na verdade, é que se as propostas e sugestões de políticas que são oferecidas nessas manifestações e manifestos fossem submetidas a referendo popular elas seriam fragorosamente derrotadas. Por outro lado, os movimentos de “esquerda” que foram eleitos tiveram sucesso pelo fato mais prosaico de terem revertido um discurso vazio e uma retórica oca que prometia “grandes mudanças”, em prol de uma abordagem mais realista e cautelosa das políticas macroeconômicas e setoriais. Como as esquerdas “intelectuais” dispõem de ampla audiência nos meios de comunicação, elas tendem a acreditar que seu discurso mudancista, pela via da ruptura, é aceito pela sociedade, quando na verdade ele se move em círculos auto-concêntricos, falando para seus próprios convertidos. Quanto às esquerdas “práticas”, elas já se converteram, de modo sub-reptício, à socialdemocracia, praticando, sem dúvida, um discurso mudancista, agora pela via da reforma paulatina, mas sobre isso elas calam, têm vergonha ou hesitam em confessá-lo.
Isso nos remete ao segundo conceito selecionado neste sétimo (e último, até aqui) “pecado dialético” da cultura da esquerda: o anti-racionalismo. A esquerda se pretende aberta ao debate público e às controvérsias em torno de questões políticas, sociais e econômicas, mas isso habitualmente se dá no plano mais geral das questões atinentes à própria sociedade nacional e aos problemas internacionais, ao passo que, no terreno das idéias, ela é sabidamente autista e infensa ao debate público sobre suas próprias posições. O que é isso senão, de fato, anti-racionalismo?
Antes que alguém me acuse de má vontade em relação às idéias da esquerda, se o conceito se aplica, gostaria de trazer dois pequenos exemplos em apoio ao argumento. Tenho sido um leitor habitual e frequente das publicações da esquerda, nos últimos 40 anos, pelo menos (confesso que com crescente cansaço em relação a certa sensação de déjà vu). Se eu fizesse uma tabulação das matérias mais relevantes e dos temas mais frequentes nessas revistas (agora boletins eletrônicos) os campeões absolutos seriam, pela ordem: a crise do capitalismo, a agressividade do imperialismo, a nocividade das políticas sociais e econômicas “burguesas” do ponto de vista dos interesses populares e, mais recentemente, a condenação absoluta do “consenso de Washington” e do neoliberalismo, ambos no mesmo saco indistinto da globalização capitalista, excludente e assimétrica. Estarei exagerando? Não creio, pois basta consultar os títulos das matérias dessas revistas (que me eximo de citar para não fazer publicidade indevida e gratuita).
Gostaria que me indicassem quantas vezes compareceram artigos fazendo autocríticas dos próprios erros analíticos, matérias de revisão das previsões erradas sobre a crise geral (em alguns casos final) do capitalismo, ensaios em torno de algum (mesmo modesto) reconhecimento pela factibilidade nula, ou marginal, das próprias propostas da esquerda para uma solução “inventiva” dos “graves desequilíbrios econômicos e sociais do capitalismo”, enfim, de discussão das próprias idéias da esquerda que foram (e são) sistematicamente derrotadas nas urnas, mesmo quando pretendem encarnar a vontade geral do povo e a “recusa de tudo isso que aí está”. Esses exemplos são mínimos, ou simplesmente inexistentes, pois o tom geral é de condenação das idéias dos outros, não de reconsideração das suas próprias idéias. Mais uma vez: gostaria que me contestassem.
Dentre os cinco exemplos práticos apontados como representando um avanço das idéias da esquerda latino-americana no campo eleitoral, três pelo menos podem ser considerados como excepcionais e não representativos. O Chile emergiu de uma transição cautelosa da ditadura e elegeu, primeiro, um governo democrata-cristão, depois um de cunho socialista que, ambos, voluntariamente ou porque concluíram que não havia outro caminho, praticaram as mesmas políticas econômicas em vigor na fase final da ditadura militar. A Venezuela ainda não se recuperou da grave crise de legitimidade que atingiu seu sistema partidário, totalmente desacreditado politicamente, e enveredou pelo caminho do populismo voluntarista, que só se sustenta economicamente graças à renda petrolífera, um maná do subsolo que representa ao mesmo tempo uma maldição em termos de (baixa) diversificação de sua economia. A Argentina, por fim, mergulhou num verdadeiro abismo econômico, também por incapacidade de suas elites políticas, não apenas “radicais”, mas, sobretudo, peronistas, e tem ainda um largo caminho pela frente para recuperar o terreno perdido em anos de experimentos econômicos mirabolantes.
A rigor, apenas o Brasil e o Uruguai poderiam ser apresentados como exemplos de legítimas transições políticas de “esquerda”, ainda que o conceito seja duvidoso do ponto de vista das políticas econômicas adotadas por seus dirigentes. A retórica social progressista, que conseguiu afastar os tradicionais partidos de centro-direita do poder, ainda não foi capaz de realizar uma verdadeira transformação das estruturas econômicas e sociais e é mesmo duvidoso que intentem fazê-lo, a despeito de afirmações em contrário. Obviamente, o balanço final dos resultados concretos ainda precisa ser feito, sendo cedo para avaliar corretamente essas experiências desses governos de esquerda” do ponto de vista de suas próprias idéias, tal como expostas em programas eleitorais e repetidas em incontáveis discursos nos meios de comunicação.
Em todo caso, abstraindo-se os exemplos da Venezuela e da Argentina, que conformam manifestações agudas de crises gerais de seus sistemas políticos, alimentadas também por crises econômicas mais ou menos profundas, o único modelo de crescimento econômico, de transformação produtiva e de progresso social na região parece ser o do Chile, não por acaso sistemática e sintomaticamente desprezado pelas esquerdas. A razão parece simples: se há um exemplo de país que seguiu, de modo quase religioso, pode-se dizer, as idéias do chamado “consenso de Washington” e as práticas recomendadas pelos neoliberais, este país foi o Chile. Que ele venha experimentando anos e anos de crescimento sustentado, de estabilidade macroeconômica e conhecendo progressos reais, embora modestos, no caminho da elevação dos padrões de vida da população, tudo isso pode ser mera coincidência, mas o exemplo poderia incitar, talvez, os analistas de esquerda a se debruçarem um pouco mais de perto sobre esse modelo “neoliberal” de desenvolvimento econômico e social.
O segundo exemplo, finalmente, de autismo e de anti-racionalismo nas esquerdas é representado pelo chamado movimento altermondialista, que deveria ser chamado, mais apropriadamente, de simplesmente “antiglobalizador”, uma vez que ele recusa de modo peremptório a globalização, mas não conseguiu, ainda, determinar qual seria esse “outro mundo possível”. Não se tem notícia de exemplo mais patético de recusa da realidade, como essa assemblagem de representantes progressistas e de esquerda, reunida sob o emblema do Fórum Social Mundial, que proclama, a cada encontro e de modo estridente, as carências da globalização capitalista, invariavelmente descrita como excludente e concentradora, quando todas as evidências estatísticas e factuais vão de encontro a esses argumentos enviesados.
Um pouco mais de modéstia, ou de simples atenção à realidade, poderia fazê-los constatar que a globalização é eminentemente progressista, que ela retira, sim, milhões de excluídos da miséria mais abjeta, e que seu caráter capitalista não constitui uma marca de opróbrio ou uma maldição, pela simples razão de que o único “modo de produção” que restou nos supermercados da história foi o velho e duro capitalismo, por absoluta inexistência de qualquer modo alternativo de se organizar a produção material e a distribuição de bens e serviços em escala mundial. Relatórios e mais relatórios, estudos empíricos de entidades não suspeitas de colusão ideológica com os capitalistas triunfantes de Wall Street têm demonstrado suficientemente as transformações benéficas – que tendem largamente a superar os impactos negativos – da globalização capitalista, mas isso não parece comover de nenhum modo os antiglobalizadores mais enragés.
Que um “outro mundo” seja possível não é de se descartar, embora isso pareça pouco provável no horizonte histórico previsível, mas os antiglobalizadores podem até fazer um esforço teórico adicional para expor de modo mais concreto sua configuração precisa, em lugar de simplesmente ficar atirando pedras nas vitrines do capitalismo. Que esses antiglobalizadores não gostem do lucro, da acumulação capitalista e até das duras regras de mercado – como também acontece com as “velhas” esquerdas – pode ser compreensível e mesmo esperado em estudantes universitários dotados de indignação juvenil anticapitalista, mas eles estão geralmente “excluídos” da economia de mercado pela via do trabalho direto (ainda que não deixem de ser consumidores). Que esse tipo de crença seja alimentado também por velhos militantes da esquerda, por sindicalistas experimentados e, mais ainda, por políticos profissionais, aí o caso é bem mais grave, conformando um tipo de autismo que pode ser incurável.


Voilà: encerro por aqui meus comentários sobre a cultura da esquerda, não sem antes lembrar que minha lista não é exaustiva. Existem, por certo, muitos outros “pecados dialéticos” no comportamento, nas atitudes e sobretudo nas “disposições mentais” da esquerda, mas prefiro no momento não comentar essas outras deficiências.
Contento-me, em contrapartida, com apontar o fato de a esquerda valorizar, reconhecidamente, muito mais o ensino universitário do que a educação popular, o que pode contribuir para manter o Brasil nesse estado catatônico de indigência produtiva, dada a baixa qualificação das massas trabalhadoras. Ora, é sabido que a única fonte de riqueza de uma nação é a produtividade do trabalho humano, que no Brasil apresenta índices reduzidos.
Que tal se a esquerda operasse uma “revolução mental” e passasse a defender, de modo resoluto, uma verdadeira “revolução” no ensino público fundamental do Brasil?

Paulo Roberto de Almeida (25 de março de 2005)
Revisão: 29/01/2014.
1412. “A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos que atrapalham seu desenvolvimento”, Brasília, 25 mar. 2005, 22 p. Comentários sobre obsessões da esquerda (antimercado, igualitarismo, estatismo, etc.), que conformam pensamento ultrapassado para suas tarefas políticas. Publicado na revista Espaço Acadêmico (a. IV, n. 47, abr. 2005;). Objeto de crítica de Robinson dos Santos, intitulada “‘Milk-shake’ indigesto ou sete equívocos de uma crítica à esquerda?: Réplica a Paulo de Almeida” (Espaço Acadêmico, na. IV, n. 48, abr. 2005;). Feita tréplica registra em Trabalhos n. 1425, publicada no número de junho. Reproduzido no blog português “O Insurgente”, em 10/2005, com comentários agregados por leitores de Portugal (registrados no dossiê 1412). Nova réplica de outro leitor, respondida com o trabalho n. 1432. Relação de Publicados n. 549.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Previsoes imprevidentes: sempre reincidindo na astrologia - Paulo Roberto de Almeida

Um ano atrás eu fazia minhas "previsões imprevidentes" para o ano de 2017, e elas não eram muito otimistas. Um trecho, relativo ao Brasil:
"O Brasil, infelizmente, a despeito da brilhante equipe econômica que assessora o governo de transição, ainda não conseguiu traçar, já não digo uma estratégia política, mas um simples consenso nacional, entre dirigentes políticos e lideranças econômicas, para produzir o imenso rol de reformas estruturais de que ele necessita para enveredar novamente por um processo sustentado de crescimento econômico, base indispensável a qualquer ciclo de desenvolvimento social de que o seu povo poderia desfrutar, caso dispusesse de elites dirigentes menos ineptas e corruptas."
Este ano, 2018, não tive tempo de fazer minhas "previsões", mas confirmo a maior parte dos argumentos expostos nesse longo ensaio. Alguns acréscimos podem ser feitos, para o bem -- como a aproximação entre as duas Coreias -- e para o mal, como a ameaça de uma guerra comercial deslanchada por aquele presidente imprevisível. Vou tentar atualizar minha análise do cenário mundial e brasileiro em meados deste ano.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de maio de 2018

O que esperar de 2017: economia e política internacional, por Paulo Roberto de Almeida

  1. Surpresas em 2017?

O ano de 2016 terminou com a relativa surpresa da eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos – embora alguns analistas a tivessem previsto – e o ano de 2017 começou com ainda mais surpresas, ao se constatar que o presidente, uma vez no poder, pretendia cumprir algumas de suas piores promessas de uma campanha eleitoral literalmente heterodoxa para os padrões normalmente menos excitantes das eleições presidenciais americanas. Todas as suas ações – proibição do ingresso nos EUA de cidadãos de alguns países islâmicos, construção de um muro na fronteira com o México, retirada dos EUA da Parceria TransPacífica (TPP), ameaça de cancelamento, ou reforma, do acordo de livre comércio da América do Norte (Nafta), reorganização da OTAN, revisão do posicionamento estratégico dos EUA em diversos cenários que representam preocupações de segurança militar para os planejadores do Pentágono e até para os parceiros envolvidos nesses diferentes esquemas, enfim, uma gama variada de assuntos que interessam, virtualmente, o mundo inteiro – causaram grande impacto mediático, algum impacto nas relações bilaterais e nos foros multilaterais, e legítimos sentimentos de inquietação ao redor do mundo.
O único país que parece ter recebido bem, pelo menos até agora, a eleição e o posicionamento do novo presidente dos EUA, é a Rússia, e alguns outros próximos da linha “quanto pior para os EUA, melhor para o mundo”. Embora seja previsível algum recuo posterior – inclusive por pressão do establishment responsável das instituições de governança nos EUA – nas medidas extremas anunciadas pelo imprevisível presidente, não há nenhuma dúvida de que neste ano de 2017, e talvez nos próximos três também, o mundo ainda vai se defrontar com inúmeras, e desagradáveis, surpresas vindas dessa nova e excitante fonte de notícias ao estilo “acredite se quiser”. Jornalistas não podem reclamar da pletora de material adicional em suas caixas de entrada, muito embora a maior parte possa ser descartada como “besteirol” inconsequente, mas o fato é que a maior parte da comunidade internacional tem, sim, razão ao ficar preocupada com as inesperadas e imprevisíveis políticas que o bizarro presidente promete ainda brindar esta nossa pobre humanidade.
Um apostador inglês, um desses bookmakers muito presentes naquele país também bizarro que se chama Grã-Bretanha, diria que nunca alguém perdeu dinheiro apostando na estupidez alheia: ela sempre se materializa, da pior forma possível. Se juntarmos, digamos assim, os personagens mais “coloridos” da presente conjuntura internacional, o constitucional Trump, o czarista Putin, o ditador da Síria, o projeto de líder bonapartista Erdogan e aquele stalinista anacrônico da Coreia do Norte, teremos material para uma penca adicional de surpresas durante todo o decorrer de 2017. Este ano, portanto, promete muito na política internacional, quando não na mobilização de tropas, de tanques, de aviões e porta-aviões. Esperemos que não passe disso, ou seja, apenas mobilização para demonstrações machistas, e um bocado de retórica vazia.
  1. E na economia, o que vem pela frente?

Na economia o quadro é mais complexo, pois embora a globalização, aquela que se processa ao nível microeconômico, promete continuar sua marcha irresistível e irrefreável, graças a seus promotores primários – empresários, grandes e pequenas companhias e o tino individual de inovadores geniais –, seu ritmo, sua extensão e sua profundidade muito dependem, de fato, de elementos macroeconômicos que dependem, por sua vez, em pequena ou grande medida, da ação de governos, que podem ser tão racionais quanto se deveria esperar de líderes responsáveis, ou tão irracionais quanto pode ocorrer com populistas altamente irresponsáveis como parecem ser os citados e vários outros. A demagogia política e o populismo econômico são características permanentes, atemporais, regulares, aborrecidamente recorrentes nos assuntos humanos e sociais, e por isso mesmo podemos contar com a ação deletéria de todos esses fugazes candidatos a uma glória qualquer nas mídias nacionais e internacional.
Mas, em minha modesta opinião, nosso mundo vive tempos não convencionais, talvez normais doravante, mas ainda assim altamente preocupantes para quem, como eu e o leitor destas linhas, nos angustiamos ao ver tanto besteirol correndo solto, tantas ações irrefletidas proclamadas por dirigentes incompetentes, tanta perda de riqueza e de oportunidades para a criação de paz e prosperidade, tudo isso ameaçado pela ação desses malucos que ascenderam ao poder em diversos países nos últimos tempos. Nunca tivemos tantos ineptos, vários corruptos, tantos demagogos e populistas exercendo cargos de alta responsabilidade em países que julgávamos ao abrigo dessas ameaças de retrocessos políticos, econômicos e até morais, ou éticos. O fato é claramente este aqui: nunca antes na história da era contemporânea tivemos tantos medíocres no comando de países que possuem alguma ascendência sobre a agenda mundial, ou seja, sobre a vida de um número considerável de pessoas, nos mais diversos continentes.
  1. Alguma nova ordem em vista?

Como sempre acontece nesses momentos de transição para alguma nova ordem que não se sabe exatamente qual será, do que será feita, como classificá-la, descrevê-la  ou o que dela esperar, ficamos desarmados ante o aluvião de más notícias, em nosso país e no mundo, em meio a um pequeno volume de boas notícias, como a indicar que, no meio de tanta loucura, algum novo Erasmo pode emergir para nos indicar o modesto caminho da racionalidade e da melhoria constante nos assuntos humanos, mesmo com a intervenção frequente de demagogos políticos, brutamontes militares e outros malucos espalhados pelas mais diversas jurisdições soberanas da comunidade internacional. Na verdade, salvo nas grandes catástrofes envolvendo número significativo de atores poderosos – como os conflitos globais do século XX –, nenhuma nova ordem é construída pela vontade puramente política de líderes mundiais e seus conselheiros políticos, mesmo os mais kantianamente bem intencionados. A maior parte das transições entre modos de organização social e configurações políticas e institucionais de um novo tipo vai emergindo progressivamente como resultado da dinâmica econômica desses diferentes atores, a evolução política das grandes formações e o próprio nascimento de novas propostas de ordenamento global com base em ideias e propostas de personalidades influentes.
Os cientistas políticos podem se desentender sobre os vários conceitos nos quais podem ser resumidos os cenários existentes e cambiantes do sistema internacional – unipolaridade imperial, multipolaridade deformada, nova bipolaridade sino-americana, ascensão das novas potências emergentes, equilíbrio de potências, balança de poder, o que seja – mas o fato é que estamos um pouco perdidos sobre o que pode ocorrer neste ano e nos anos próximos, em termos de situação econômica, de comportamento político dos principais atores, de encaminhamento das principais questões inscritas na agenda internacional – comércio, meio ambiente, miséria e guerras civis nas áreas subdesenvolvidas do globo, evolução dos debates sobre bens comuns, entre eles epidemias globais, segurança e ameaças terroristas, crimes transfronteiriços, e até circulação de pessoas comuns, não apenas homens de negócios – e sobre como todas essas questões podem ser tratadas com base em alguma autoridade moral que se eleve sobre todas as outras autoridades.
Quem possui, hoje em dia, essa autoridade moral? O presidente dos EUA? Dificilmente. Os líderes das duas grandes autocracias que contestam o velho poder hegemônico da maior potência econômica do planeta? Duvidoso. O papa? Não sei. O secretário-geral da ONU? A sua Assembleia Geral? O comandante militar da OTAN? O comitê do Nobel da Paz? O foro do G20 financeiro? Quem poderá nos salvar de nós mesmos? Não existem super-heróis, nem um conclave de sábios que possa estar sempre a postos para salvar a humanidade de seus riscos latentes ou potenciais. Tampouco existem forças multinacionais – isto é, onusianas – prontas para combater as ameaças à paz e a segurança internacional, que elimine guerras remanescentes, sobretudo no Oriente Médio e na África, ou entidades suficientemente fortes de assistência pública que consiga promover (nem esse é o caminho) o bem-estar de povos miseráveis e de populações oprimidas, que assegure a vida de povos ameaçados por catástrofes naturais ou outros fenômenos causados pela própria mão de dirigentes ineptos, líderes corruptos, autocratas assassinos, gangues de meliantes armados, como os piratas marítimos e as grandes redes de traficantes, por exemplo. O próprio Brasil, sempre saudado como estando ao abrigo de grandes calamidades naturais, tem sido frequentemente assaltado pelos mais diferentes tipos de calamidades humanas, se não é por um simples mosquito.
  1. E o Brasil, como andou nestes tempos borrascosos?

Aliás, quem salvou o Brasil da Grande Destruição econômica dos anos recentes, da enorme desmoralização das instituições políticas provocada pela administração incompetente e altamente corrupta dos companheiros? Ninguém, ou pelo menos não tivemos forças oposicionistas ou instituições de controle aptas a prevenirem ou reprimirem, no devido tempo, as malversações deliberadas, as políticas equivocadas, a roubalheira evidente a que estávamos e estivemos submetidos nos últimos treze anos e meio, quando uma organização criminosa tomou de assalto o país, sua política e seus órgãos de Estado. Apenas por um acaso – justamente a Grande Destruição econômica – esses grandes bandidos do sistema político foram expulsos do poder, mas isso apenas in extremis, pois se fosse apenas pela corrupção política e pela roubalheira generalizada, os líderes da organização criminosa não teriam sido apeados do poder, já que os crimes são partilhados com os políticos. Foi preciso a intensa mobilização da cidadania consciente para obrigar os parlamentares a votarem o impeachment, ainda assim pela metade apenas, sem cuidar de limpar o corpo necrosado do sistema político dessas frutas podres que contaminam todo o resto. As frutas podres continuam lá…
Como se pode constatar, não sou muito otimista quanto ao cenário atual ou seus desdobramentos futuros, e isto por uma razão muito simples. Pela primeira vez em nossa história estamos enfrentando uma crise econômica gigantesca, que não possui nenhum vínculo com algum problema identificado da economia mundial, pois se trata de uma crise produzida inteiramente no Brasil, por nossas próprias mãos, e pés, uma crise inteiramente fabricada por dirigentes ineptos e altamente corruptos. À diferença das crises anteriores – digamos, a crise da bolsa de Nova York, em 1929, que depois precipitou a Grande Depressão dos anos 1930, ou as crises inflacionarias alimentadas pelos dois choques do petróleo dos anos 1970, a crise de balanço de pagamentos que surgiu com o aumento dos juros internacionais e seus reflexos em termos da dívida externa brasileira nos anos 1980, as crises financeiras internacionais dos anos 1990 que nos obrigaram a recorrer ao FMI, a crise da Argentina em 2001, que nos obrigou a ir por uma segunda vez ao FMI, sem mencionar a própria crise das eleições de 2002, que nos levou ao mesmo FMI por uma terceira vez, e recentemente a crise imobiliária americana e a crise bancaria internacional de 2008, que provocou o que se chamou de Grande Depressão – esta nossa Grande Destruição dos anos 2015 e 2016 pode ser debitada inteiramente na conta da mais nefasta máfia de dirigentes políticos que se apossou do país, de seu governo, do Estado brasileiro.
Essa organização criminosa o fez quase tão completamente, tão absolutamente, que ela conseguiu comprar um número significativo de parlamentares, literalmente bancadas inteiras no Congresso, conseguiu aparelhar de modo amplo o Estado brasileiro, colocar seus militantes nos órgãos os mais diversos de governo, designar apparatchiks para agências públicas, fundos de pensão, empresas do Estado e até entidades privadas, que, todos juntos, se empenharam em saquear o Estado e roubar a sociedade, numa magnitude jamais vista em toda a história anterior, numa amplitude jamais imaginada pelos órgãos de controle e de prevenção, que finalmente despertaram para as escabrosas operações desses meliantes políticos. É virtualmente impossível contabilizar o gigantesco iceberg de roubos, falcatruas, desvios, operações de sub e superfaturamento envolvendo recursos públicos, subsídios, financiamentos irregulares, “doações legais”, contratos de serviços no Brasil e no exterior, enfim, toda a gigantesca máquina de malversações perpetradas pelos companheiros e seus aliados e associados de ocasião ou oportunistas de plantão, como existem muitos espalhados em todo o sistema político brasileiro. Ainda assim, espero que o ministério público, auxiliado por economistas, consiga fazer a contabilidade dos crimes econômicos do lulopetismo.
Esse quadro lamentável no cenário doméstico ocorre numa conjuntura externa de ausência de lideranças confiáveis, e competentes, para guiar a política e a economia mundiais para caminhos não confrontacionista, para soluções racionais aos problemas de segurança e de cooperação econômica e política aos conflitos remanescentes ou às disputas sempre existentes em termos de regulação do comércio, do meio ambiente, da segurança nas zonas quentes do planeta, enfim, dos obstáculos à prosperidade dos povos do planeta. A globalização é até favorável à prosperidade dos países que sabem se abrir e se posicionar corretamente em face das oportunidades por ela criadas, em termos de comércio, investimentos, transferência de tecnologias, licenciamento de know-how estrangeiro, acolhimento de imigrantes produtivos, enfim, um sem número de coisas boas que sempre ocorrem para quem é receptivo à abertura econômica, à liberalização comercial, aos investimentos diretos, aos intercâmbios humanos, sem qualquer censura política, protecionismo comercial, paranoias nacionalisteiras e outros pecados do gênero. A globalização arrancou centenas de milhões de pessoas da miséria – que o digam os pobres da China e da Índia –, trouxe enormes benefícios aos povos integrados nos fluxos de bens, serviços, ideias que circulam pelo mundo, desde que libertos das amarras das restrições idiotas, que sempre são colocadas pelos governos, jamais pelos mercados livres.
  1. O que é que a globalização pode fazer por nós?

Mas é óbvio que a globalização não pode fazer muito por aqueles povos e nações que se enclausuram num protecionismo tão inútil quanto custoso, num nacionalismo míope, numa atitude defensiva em face das oportunidades e desafios por ela criados, como é obviamente o caso do Brasil, um país que não perde oportunidade de perder oportunidades, como dizia Roberto Campos, o maior estadista e intelectual da segunda metade do século XX no Brasil, e que estaria completando cem anos no dia 17 de abril (e por isso homenageado com um livro meu: O Homem que Pensou o Brasil, pela Editora Appris, de Curitiba). O Brasil, infelizmente, a despeito da brilhante equipe econômica que assessora o governo de transição, ainda não conseguiu traçar, já não digo uma estratégia política, mas um simples consenso nacional, entre dirigentes políticos e lideranças econômicas, para produzir o imenso rol de reformas estruturais de que ele necessita para enveredar novamente por um processo sustentado de crescimento econômico, base indispensável a qualquer ciclo de desenvolvimento social de que o seu povo poderia desfrutar, caso dispusesse de elites dirigentes menos ineptas e corruptas.
O mundo é o que ele é, e não poderemos fazer muito, ou praticamente nada, dada nossa insignificância internacional em termos de poder econômico ou militar, para mudá-lo decisivamente em nosso favor. Aliás, o que significa, exatamente, “mudar o mundo em nosso favor”? Seria torná-lo ainda menos receptivo à abertura econômica, à liberalização comercial como nos empenhamos em fazer nas últimas décadas? Seria continuar apelando para medidas absolutamente idiotas como essa mania de pretender proibir estrangeiros de adquirir terras, ou quaisquer outros ativos, como se esses estrangeiros viessem com a intenção de roubar o nosso patrimônio, dilapidar o nosso meio ambiente, saquear as nossas riquezas, explorar o nosso povo? Seria, ainda, continuar a proteger a produção nacional com normas e regulações absolutamente idiotas e nefastas, como as nossas tomadas jabuticabais, que discrepam de quaisquer outros padrões normalmente usados para o acoplamento de aparelhos e dispositivos ligados à corrente elétrica? Seria dotar as nossas escolas de normas curriculares absurdas, destinadas unicamente a oferecer uma reserva de mercado a professores ineptos, produzidos pela ideologia nefasta da Pedagogia do Oprimido, alimentados pelo besteirol ainda mais nefasto da Teologia da Libertação, por esse marxismo vulgar disseminado em praticamente todos os cursos de (des)humanidades das faculdades públicas e privadas?
O Brasil ainda não percebeu o quão atrasado ele está, em face de tantos exemplos de adequação, adaptação e acolhimento da modernidade, por tantos povos ao redor do mundo, aliás até mesmo aqui na região, quando alguns países da América Latina escolhem se juntar à grande interdependência global, em lugar de se refugiar numa suposta, e nefasta, identidade latino-americana de recalcados e de frustrados perdedores da globalização? Quando é que vamos nos libertar desses políticos rastaqueras, que prometem defender os “empregos nacionais”, e nos condenam ao atraso, desses empresários ineptos que proclamam a necessidade do protecionismo, quando eles querem apenas assegurar reserva de mercado, dessas construtoras que vivem do rentismo de obras públicas e de concessões exclusivas, bem como de generosos subsídios para justamente praticarem corrupção generalizada, no Brasil e no exterior? Quando é que vamos nos livrar do Fundo Partidário, um convite à anomia política e à corrupção, simplesmente, uma vez que partidos políticos são entes de direito privado? Quando é que o Brasil vai virar um país capitalista normal, sem os “dez vezes sem juros”, sem a opressão da Receita Federal sobre as empresas privadas, sem que as corporações de empregados públicos façam dos cidadãos os reféns de seus interesses corporativos justamente? Quando é que a educação pública vai qualificar de maneira decente os brasileiros mais humildes para o mercado de trabalho, permitindo que eles possam contribuir para o crescimento da produtividade, o que é hoje algo impossível?
  1. Da Guerra Fria geopolítica à guerra fria econômica

Mas vamos voltar para a economia política internacional. Muitos analistas contemporâneos, partindo da constatação, aliás evidente, da nova agressividade da Rússia de Putin em relação ao Ocidente em geral – isto é, a UE e os EUA – e da velha desconfiança do Império do Meio, ou seja a China, em relação a esse mesmo Ocidente, já estão falando de uma nova Guerra Fria, agravada sobretudo pela invasão russa da Ucrânia oriental e pela incorporação forçada da Criméia à Rússia, bem como outros gestos em direção dos bálticos e da Geórgia que, no conjunto, revelam uma tomada de postura contra a expansão irrefletida da OTAN nos confins imediatos da Rússia. A China de Xi Jin-ping também tem demonstrado uma política de maior assertividade na defesa dos seus interesses nacionais, inclusive no controle da sua própria população, como se pretendesse demonstrar que sua maior, enorme, inserção econômica mundial não significa que ela esteja caminhando na direção dos valores e princípios típicos das economias democráticas de mercado, e que essa atitude positiva na defesa do livre comércio e da livre concorrência internacional não se traduz em maior liberalidade no plano político interno.
Do outro lado do mundo, confirmando a atitude típica dos militares, em todo e qualquer lugar do planeta – que é a da paranoia securitária –, o pessoal do Pentágono e do próprio governo americano elegeu a China como a substituta da Rússia nos possíveis embates decorrentes de algum choque futuro de interesses, seja nos mares da China, os do sul e os do leste, seja na velha questão de Taiwan, ou seja, reforçando a hipótese de uma nova Guerra Fria, podendo desdobrar-se em algum futuro conflito bélico, ou seja, uma guerra quente. Alguns analistas, até famosos, acreditam, ou fingem acreditar, numa Terceira Guerra Mundial, isto é, envolvendo as grandes potências militares, dotadas de um poder propriamente devastador em todas as áreas das ferramentas militares, das mais convencionais às nucleares. Não partilho absolutamente desse tipo de temor.
Não apenas não acho que haverá uma terceira grande conflagração global, como tampouco considero que estejamos assistindo a uma nova Guerra Fria no sentido usual, geopolítico, da expressão. A Guerra Fria foi um episódio circunscrito das relações internacionais do imediato pós-Segunda Guerra, e se pode dizer até um aspecto peculiar das relações bilaterais de competição política estratégica entre os dois grandes atores do sistema mundial, EUA e URSS, naquela conjuntura histórica específica da história mundial, que não tem mais chance de se reproduzir atualmente entre os dois novos grandes atores das relações internacionais contemporâneas, os EUA e a China. Não creio que estejamos caminhando para uma grande confrontação estratégica suscetível de configurar uma nova Guerra Fria entre esses dois gigantes, com atuação de conflitos entre atores secundários, que seriam o equivalentes dos cenários regionais de enfrentamento estratégico, do tipo proxy wars, como vimos naquele período histórico (digamos a guerra civil na Grécia e a guerra da Coreia, na era Truman-Eisenhower, o episódio dos mísseis soviéticos em Cuba, nos anos Kennedy, a guerra do Vietnã, que atravessa diversas administrações americanas, ou diferentes guerras civis na África, servindo também a essa competição estratégica, notadamente em Angola).
Essa Guerra Fria tipicamente geopolítica dos anos 1940 aos 80 passou e não voltará mais. E nem foi a Guerra Fria que determinou o desaparecimento de um dos dois grandes atores daquele período, nomeadamente a União Soviética, dotada de um arsenal militar impressionante, incluindo um número formidável de ogivas nucleares e seus respectivos meios de delivery. A União Soviética não desapareceu por causa dessa competição, ou mesmo, isso ocorreu apenas indiretamente, se considerarmos o efeito da Strategic Defense Initiative, a “guerra nas estrelas” de Reagan, no enfraquecimento decisivo de sua capacidade econômica ao tentar competir com a enorme fortaleza do império americano no plano econômico. A URSS desapareceu por uma espécie de implosão auto-induzida, pela pressão de suas próprias contradições internas, por que simplesmente ela não consegui satisfazer economicamente o seu próprio povo, e também por que a inevitável fome de liberdade dos povos submetidos ao seu império despótico ajudou na sublevação geral de todo o sistema coletivista criado na Europa central e oriental durante a era do moderno socialismo escravocrata.
Segundo o novo autocrata de Moscou, referindo-se à essa auto-implosão, “o desaparecimento da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX”, uma opinião com a qual se pode facilmente concordar, desde que se façam os ajustes necessários para medir o real impacto dessa “catástrofe geopolítica”. Ela teve, de fato, um enorme impacto, não apenas nas relações internacionais, mas também, e sobretudo, para o próprio povo russo, até então escravizado sob o jugo soviético do Partido Comunista. O desaparecimento da União Soviética deu um golpe fatal na legitimidade do comunismo enquanto forma de governo, retirou as bases econômicas de um sistema totalmente ineficiente de organização social da produção e libertou milhões de pessoas da entropia totalitária, trazendo, talvez, um pequeno acréscimo ao PIB global das economias de mercado, mas um enorme aporte de trabalhadores podendo, enfim, serem integrados à divisão internacional do trabalho e aos fluxos mundiais de consumo. Foi, portanto, uma “catástrofe” eminentemente positiva para os povos antes submetidos a um regime de exclusão interna e externa, e para a própria interdependência global.
O que temos hoje é algo completamente diferente da Guerra Fria geopolítica daqueles tempos, da velha confrontação entre dois impérios absolutamente opostos nos planos ideológico e de organização econômica e política, uma confrontação geopolítica por poder e prestígio entre aqueles dois gigantes, o que não é o caso, de nenhuma forma, da suposta confrontação estratégica entre EUA e China. O que temos atualmente, em minha opinião, é uma Guerra Fria econômica, entre esses dois atores, mas uma que não significa uma competição entre polos opostos do sistema internacional de poder: tanto os EUA quanto a China representam dois representantes da moderna interdependência global, duas jurisdições políticas distintas e separadas, mas unidas no mesmo universo das economias de mercado, ainda que, de um lado, tenhamos uma velha democracia política e do outro, uma ainda mais velha tirania política administrando uma nova economia de mercado. Trata-se, obviamente uma nova situação política, inédita nas relações internacionais, que é difícil de ser mentalmente aceita, e considerada como válida, por aqueles que tendem a visualizar o mundo sob o prisma das mesmas velhas concepções que vigoraram em períodos anteriores.
Em outros termos, não é possível analisar a nova Guerra Fria Econômica ficando prisioneiro dos mesmos esquemas mentais da velha Guerra Fria geopolítica, o que é o que parece estar acontecendo com os estrategistas do Pentágono e com um número considerável de analistas políticos contemporâneos (mas ainda raciocinando com base em antigos cenários, que não mais vão se reproduzir na atual fase das relações internacionais contemporâneas). Esses estrategistas anacrônicos, mais especializados em desperdiçar os recursos da coletividade do que em analisar as reais ameaças ao seu país, elegeram a China como o grande contendor da atual fase da política mundial, o que representa um erro monumental em termos de alocações orçamentárias e de disposições táticas sobre o terreno, ademais de investimentos exagerados em novos meios de combate que provavelmente nunca serão usados nas dimensões imaginadas.
A China é um império emergente, mas com imensas deficiências internas, o que os novos mandarins do regime comunista buscam remediar mediante uma estratégia de desenvolvimento econômico extensivo e intensivo, a única maneira de conferir alguma aparência de legitimidade a um sistema de dominação política de caráter despótico, mas profundamente nacionalista e basicamente defensivo, não ofensivo externamente. A projeção militar em curso no novo Império do Meio se destina, essencialmente, a garantir o aprovisionamento da população chinesa em alimentos e em energia, e a sua base industrial em matérias primas e outros insumos necessários ao funcionamento contínuo de um imenso aparato produtivo aparentemente imbatível no plano da concorrência internacional (mas apenas temporariamente).
As bases que a China constrói nos mares que ela considera como seus (a Leste e mais ao Sul de suas águas), assim como margeando o Índico e o Atlântico Sul, numa miríade de países da Ásia do Sul e do continente africano, se destinam precisamente a garantir a livre circulação de sua frota comercial nacional e de todos os demais navios participando desse abastecimento e dessas rotas comerciais que estão na base de sua ascensão irresistível para a prosperidade e a modernidade tecnológica. Essas bases são uma espécie de bem público que deveriam supostamente servir, igualmente, aos interesses brasileiros nessas mesmas regiões, uma vez que a segurança e os postos avançados que são construídos pelos chineses – bem como os portos, ferrovias e outras infraestruturas materiais e de comunicações – em todos esses países devem aumentar os fluxos comerciais de todos os participantes da economia global, uma inserção à qual o Brasil relutantemente busca se adaptar da forma mais lenta possível.
Se ouso arriscar uma projeção geopolítica – o que não deveria ser permitido a diplomatas, mesmo astrólogos –, eu diria que a China vai emergir como nitidamente vitoriosa dessa Guerra Fria econômica, que não se destina, obviamente, a confrontar qualquer “adversário estratégico” com a finalidade de ocupar “espaços vitais” de maneira excludente, ou para desmantelar a capacidade de resistência desses supostos adversários. Creio que os analistas sérios saberão reconhecer na Guerra Fria econômica uma estratégia sofisticada de capacitação própria em “armas produtivas” e outras ferramentas de projeção estratégica em termos de serviços, investimentos, finanças, soft power e outros elementos que integram a interdependência global. A China não pode se dar ao luxo de criar conflitos até a beira do precipício com seus principais parceiros, pois é neles que ela se abastece, legal e ilegalmente, dos bens e da inteligência que são absolutamente necessários para elevar continuamente o seu povo na escala do bem-estar e da prosperidade. A potência militar é uma decorrência disso, não o contrário, como aliás ocorre com qualquer império que se preze (mas militares e diplomatas tendem a esquecer a verdadeira ordem dos fatores). Que o Pentágono e seus equivalentes ao redor do mundo, inclusive na China, mantenham orçamentos superdimensionados e sejam responsáveis por desperdícios absurdos de recursos, sempre apostando numa infinita corrida armamentista, mesmo quando não proclamada e conveniente escondida, tudo isso faz parte da paranoia obrigatória a que todos os planejadores militares são supostos alimentar, para alimentar suas próprias carreiras e a irracionalidade das burocracias. A China, provavelmente, é tão perdulária quanto o Pentágono em seus gastos militares, e tudo isso se auto-alimenta numa progressão contínua. Mas ela vai, presumivelmente, ganhar essa guerra fria econômica, pois mantém a estratégica correta, visando apenas e tão somente o seu interesse nacional, sem algumas das obrigações “universais”, ou regionais, do outro grande império (e destinado a sê-lo no futuro previsível).
  1. O que o Brasil faz, o que ele não faz, e o que ele deveria fazer?

O Brasil, obviamente, está longe de todos esses cenários estratégicos e, pelo andar da carruagem, está destinado a permanecer num soberbo isolacionismo pelos tempos que correm e outros mais à frente. Os partidários da diplomacia “ativa e altiva” até podem se vangloriar de terem “colocado o Brasil no mapa do mundo”, mas tudo isso é uma grande ilusão, fruto da megalomania do grande chefe da organização criminosa e de alguns assessores diplomáticos. Eles pretendem justificar essa “grandeza” nacional – mais um resquício da era militar, junto com o intervencionismo exacerbado, o estatismo irracional, o protecionismo vergonhoso – agitando a bandeira das chamadas “parcerias estratégicas”, como Ibas, Brics, com a UE, etc., e alguns outros ativos, como por exemplo o fato de a China ter se convertido no primeiro parceiro comercial. Tudo isso, ouso repetir, é uma grande ilusão, a começar por essa pretensa parceria comercial com a China: a China se abastece no Brasil como poderia se abastecer em qualquer outro país do mundo nas mesmas commodities, que, à exceção da jabuticaba (que aliás ainda não entrou nessa categoria), não são exclusiva de nosso patrimônio natural ou construído.
A maior parte dessas alianças, se elas não servem unicamente a fins de prestígio político dos dirigentes do momento (como é o caso do UE), representa uma herança mal concebida e mal implementada do lulopetismo diplomático, com todos os vícios de forma e de substância que isso possa acarretar, inclusive em termos de passividade diplomática. Os esquemas regionais constituem, igualmente, um grande empenho de esforços, e portanto de gastos (sem qualquer análise de custo-benefício), para ganhos muito circunscritos e que poderiam, nas mais diversas hipóteses, serem conquistados com uma ação puramente unilateral (abertura voluntária a todos os parceiros da região, por exemplo, o que conformaria automaticamente um espaço econômico integrado no continente) ou em bases bilaterais negociadas com certa generosidade de intenções.
O Brasil precisa aprender a ficar sozinho, o que não significa ficar isolado do mundo, muito pelo contrário. O Brasil precisa se integrar ao mundo, e da maneira a mais ampla possível, mas a maior parte desses grupos age como um clubinho fechado – desde o Mercosul ao Brics – se congratulando mutuamente e atuando pela via do mínimo denominador comum, o que é propriamente péssimo para nosso processo de inserção mundial e de interdependência global, segundo aqueles melhores valores e princípios que exibimos frequentemente, pelo menos no plano constitucional. Atuar em conjunção com ditaduras e autocracias não deveria fazer parte de nossos exercícios habituais de diplomacia. Ou seja, uma profunda revisão das escolhas e opções feitas nos últimos quinze anos se impõe de qualquer maneira aos nossos dirigentes políticos.
O Brasil não se abre ao comércio internacional, por exemplo, e muitos – não só no setor privado, mas no âmbito governamental – acham que ele só pode se abrir a novos patamares de inserção econômica global quando forem satisfeitas todas estas condições, sucessiva ou simultaneamente: (a) que se consiga reduzir o “custo Brasil”, que na verdade é o “custo do Estado brasileiro”, pois até mesmo uma “externalidade” como a (péssima) educação, em todos os níveis, resulta de falta de ação do Estado, o que incide sobre nossa baixíssima produtividade; (b) que se possa encontrar parceiros dispostos a negociar acordos comerciais nos nossos termos (ou seja, os menos ambiciosos possíveis, descartando todos os penduricalhos dos acordos de “última geração”); (c) que se observe a mais estrita reciprocidade em cada um deles.
Não vou comentar cada um desses aspectos em detalhe, pois isso demandaria uma outra longa exposição, mas vou dizer simplesmente que a maior parte dos argumentos em defesa desses requerimentos são francamente ridículos, pois o esforço próprio, e o interesse também, tem de ser nosso, unilateralmente, para o nosso próprio bem, não condicionado a quaisquer pré-condições que se possam estabelecer para nossa integração ao mundo. Mas o Brasil não falha apenas na área econômica, ele também tropeça, e se arrasta, penosamente, no domínio político também.
Para começar, nossa governança é péssima, a despeito de termos construído um dos Estados mais modernos dentre os países da antiga periferia europeia, dotado de instituições sofisticadas, mas que funcionam muito mal, em total descoordenação entre si, a despeito de algumas ilhas de excelência aqui e ali. Mas, entre nós ainda vigora o velho patrimonialismo de origem portuguesa, já estudado no clássico de Raymundo Faoro, e transformado, modernamente, num outro tipo de patrimonialismo, como estudado, por exemplo, por observadores escrupulosos como Antonio Paim e Ricardo Vélez-Rodríguez; pode-se até dizer, com base nesses novos estudos, que já deixamos o velho patrimonialismo tradicional, e reforçamos tremendamente o “estamento” (à falta de melhor conceito) burocrático, que chegou até a ser, com os companheiros, um patrimonialismo de tipo gangster. O Estado brasileiro é hoje um corpo quase inerme, servindo apenas para a extração de recursos da sociedade em benefício próprio, com algumas migalhas indo para investimento ou para fins socialmente úteis, ademais das mais corriqueiras e comezinhas atividades clássicas. O problema é que ele se colocou demasiadamente à serviço desses estamentos que o assaltam oficialmente e de uma ampla gama de capitalistas promíscuos, que o prostram sob os golpes contínuos de concorrências viciadas, superfaturamentos e propinodutos regulares.
Na área econômica – mas ela está intimamente vinculada à área política – os desafios de reformas estruturais são enormes, e o Brasil não decaiu o suficiente, ainda, ou não teve um choque realmente falimentar, para obrigar os ineptos e corruptos eleitos e dirigentes a alcançar um consenso mínimo em vista de reformas significativas. Até quando isso vai persistir? Difícil dizer: se o Brasil não ficar insolvente, internamente, nos próximos dois ou três anos, ele vai continuar a se arrastar penosamente em direção a um futuro incerto, feito de crescimento medíocre, divisão política exacerbada, ausência de lideranças suficientemente fortes para catalisar os esforços de uma nova coalizão política verdadeiramente moderna, e não mentalmente atrasada como hoje. Ou seja, o Brasil se encontra a meio do caminho entre a decadência argentina, já longa por sinal, e a inadimplência grega, sem ter uma coalizão de credores dispostos a salvá-lo do desastre no qual já se encontra.
Não tenho muitas razões para ser otimista, inclusive porque vejo outros países avançando na escala do progresso, enquanto o nosso permanece paralisado por disputas absolutamente ridículas, algumas até vergonhosas (como a tentativa da classe política de se safar dos dispositivos legais que vedam a corrupção nos assuntos públicos). Vamos avançar para algum lugar? Duvido, pois isso depende de bons diagnósticos e de prescrições adequadas. Ainda não vi nem uns, nem outros.
Vale!

Sobre o autor

Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira e diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – IPRI-MRE (paulomre@gmail.com).


Como citar este artigo

Mundorama. "O que esperar de 2017: economia e política internacional, por Paulo Roberto de Almeida". Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais,. [Acessado em 06/05/2018]. Disponível em: <https://www.mundorama.net/?p=23347>.