O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador artigos Paulo Roberto de Almeida. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador artigos Paulo Roberto de Almeida. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Um antigo discurso contrarianista, talvez ainda valido - Paulo Roberto de Almeida

Ontem, dia 9 de outubro, depois de dar uma aula sobre Economia Política Internacional para o curso de Diplomacia e Defesa da ESG-Brasilia, um ex-aluno do curso de Relações Internacionais da Universidade Católica de Brasília, turma de 2004, da qual fui patrono na formatura em março do ano seguinte, Edmar, lembrou-me de meu discurso na cerimônia realizada no campus da UCB, do qual eu já tinha esquecido. Ele até reproduziu um dos trechos, do qual eu confesso ter uma vaga lembrança.
Para refrescar minha memória, fui buscar esse texto, que permaneceu obscuro esse tempo todo, e que posso reproduzir agora logo abaixo.
A menção feita no discursos às "minhas" regras da diplomacia moderna remete a um texto meu de 2001, que pode ser lido neste link: https://espacoacademico.wordpress.com/2017/10/21/dez-regras-modernas-de-diplomacia/
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de outubro de 2018

1403. “Conselhos de um contrarianista a jovens internacionalistas”, Brasília, 5 mar. 2005, 6 p. Alocução de patrono na XI turma (2º semestre de 2004) de Relações internacionais da Universidade Católica de Brasília (10/03/2005, 20h, Auditório S. João Batista de La Salle).

Conselhos de um contrarianista a jovens internacionalistas

Paulo Roberto de Almeida
Alocução de patrono na XI turma (2º semestre de 2004) de
Relações internacionais da Universidade Católica de Brasília
(10 de março de 2005, 20hs, Auditório S. João Batista de La Salle)

Senhora representante da Magnífica Reitora da Universidade Católica,
Senhor Paraninfo,
Senhores professores homenageados, 
Senhoras e senhores demais membros da mesa e autoridades presentes,
Meus caríssimos alunos e agora formandos em relações internacionais,

Confesso que quando a Comissão de Formatura desta turma de relações internacionais da Universidade Católica me procurou, cerca de dois meses atrás, para formular este honroso convite de “patrono” de sua formatura, me senti verdadeiramente orgulhoso de tê-lo feito por merecer. Já lá se vai mais de um quarto de século que me exerço nas lides da diplomacia profissional, com uma dedicação paralela às “coisas internacionais”. Por “coisas”, vão aqui compreendidas a pesquisa, geralmente solitária, o ensino, sempre voluntário e irregular, ao sabor de uma vida nômade a serviço do Brasil, e a redação e publicação de textos de caráter didático em torno das questões das relações internacionais, da história diplomática e, sobretudo, da inserção internacional do Brasil. No entanto, ao longo desse tempo todo, não havia tido ainda a satisfação de receber um convite como este que vocês me fizeram, o que me desvaneceu, de verdade. 
Minhas primeiras palavras, portanto, são de agradecimento sincero a todos vocês pela lembrança, pelo gesto simpático e pelo carinho demonstrados. Isso me incita a continuar retribuindo, nos anos que ainda tenho de exercício profissional e acadêmico, produzindo de forma ainda mais intensa no campo das relações internacionais, sempre com sentido didático. Isso nada mais representa, afinal de contas, do que uma modesta retribuição de minha parte à sociedade brasileira, por tudo que ela me deu em termos de formação educacional nos quadros do ensino público.

Vocês também me prestaram a homenagem de transcrever no convite, ainda que de forma abreviada e livremente adaptadas, mas muito bem resumidas, as dez novas regras de diplomacia que eu havia elaborado, em agosto de 2001, a partir da leitura de um velho livro do século XIX sobre quatro regras de diplomacia, para justamente ilustrar as reflexões contemporâneas de meus jovens colegas diplomatas e outros tantos candidatos à carreira. Esse gesto me incita a retomar algumas delas e tentar elaborar, nesta noite, alguns poucos conselhos que um velho contrarianista do século XX, como eu, poderia dar a jovens internacionalistas do século XXI, como vocês.
Digo “contrarianista” sem qualquer espírito opositor ou anarquista, ainda que estes sentimentos sejam igualmente legítimos em sociedades plenamente democráticas, como pretende ser a nossa. Meu espírito contrarianista deriva do fato de que eu nunca quis ou pretendi me submeter ao argumento da autoridade, mas sim aceito, com prazer e voluntariamente, a autoridade do argumento. Num cenário de diálogo socrático e de dedicação honesta à busca da verdade, como deve ser o ambiente acadêmico, desejo reformular algumas dessas regras, para melhor iluminar o que me parecem ser qualidades essenciais ao jovem internacionalista de nossos tempos. 

Inicialmente, eu destacaria a última regra e, agora, a colocaria em primeiro lugar. Não se deve fazer da carreira profissional, seja no campo da diplomacia ou em outras atividades ligadas de perto ou de longe com as questões internacionais, o foco exclusivo de sua vida e, sobretudo, não se deve passar a carreira à frente da família, dos amigos e das pessoas com quem convivemos no ambiente familiar ou de trabalho.
A carreira profissional, qualquer que seja ela, é importante, mas as pessoas, sobretudo os indivíduos que nos são caros, são ainda mais importantes do que ela. Podemos, por certo, mudar de carreira, uma ou várias vezes na vida, podemos até mudar nossos relacionamentos individuais, mas os familiares e nossos amigos mais chegados estarão sempre lá para nos ajudar nas horas difíceis, para nos confortar em determinados momentos, para nos trazer alegrias em várias ocasiões.
Por isso, meus caros formandos, contrariem o carreirismo e sejam, antes de mais nada, profissionais que vêem nas pessoas, de fato, o centro da vida.

Eu diria, em segundo lugar, que algo se ganha ao contrariar o próprio princípio da autoridade, desde que, é claro, vocês tenham absoluta certeza sobre a fundamentação da posição de vocês sobre um assunto qualquer. Regras hierárquicas e disciplina são boas de serem cumpridas na execução de tarefas que exigem uma linha de comando definida, inquestionável, em função da implementação de uma decisão maduramente refletida e alcançada graças a um processo decisório bem estruturado e solidamente bem estabelecido.
Mas, a hierarquia e a disciplina não podem entravar a liberdade de pensamento, em especial a defesa de posições de maior valor agregado, que conseguem realizar uma otimização “paretiana” dos recursos e meios disponíveis para a tomada de ação. A contestação, pelo simples prazer de contrariar, não me parece levar a resultados ótimos, mas sim pode-se e deve-se praticar o questionamento honesto, o ceticismo sadio, a desconfiança metodológica em relação às verdades reveladas, por mais que elas tenham sido formuladas por alguma autoridade imbuída do seu poder autocrático. 
Por isso, não tenham medo de expor e de defender com firmeza suas opiniões, se elas refletem, efetivamente, um conhecimento fundamentado do problema em pauta, e isso mesmo que uma “autoridade superior” ostente uma opinião diversa da de vocês.

Por esse motivo, e aqui vai minha terceira regra, contrariem o desejo, ainda que compreensível, de aposentar os livros e deixar os estudos de lado, agora que vocês têm um canudo na mão e algumas idéias na cabeça. Ao contrário, sejam opositores sistemáticos da aposentadoria precoce nos estudos, e voltem imediatamente às leituras, às bibliotecas, às livrarias, às pesquisas de internet. 
Não parem de estudar, em nenhum momento da vida. Aliás, comecem a fazê-lo imediatamente, assim que saírem daqui. Afinal de contas, até agora, vocês fizeram, em grande medida, aquilo que os professores determinaram que vocês fizessem, com uma série de leituras chatas e outras tantas obrigações impostas. 
Neste momento, cabe a vocês mesmos imporem a si mesmos um programa sistemático de estudos e de leituras que melhor se conformar às habilidades, gostos e orientações particulares de cada um. Sejam, portanto, contrários ao estudo dirigido e estabeleçam, vocês mesmos, um plano regular de dedicação à formação metódica da especialidade que vocês pretendem ter na vida. 
A universidade é uma grande fonte de generalidades e mesmo de algumas banalidades repassadas ao longo dos anos, numa repetição por vezes aborrecida do saber acumulado. O que vocês devem fazer agora é construir o seu próprio saber e para isso vão precisar continuar estudando. Apenas com base num saber específico, que dê a cada um de vocês o melhor desempenho possível numa determinada vertente profissional, vocês terão sucesso na vida e no trabalho. Por isso, mãos à obra: coloquem o canudo de lado e comecem a estudar de novo. 

Dessa característica de estudo constante, e totalmente dedicado à expansão contínua do saber em todos os ramos do conhecimento humano, derivam duas outras regras que eu havia inscrito em meu decálogo de quatro anos atrás: possuir o domínio total de cada assunto do qual nos vamos ocupar profissionalmente, o que significa aprofundar o conhecimento daquele tema em pesquisas paralelas e correlatas, adotando, ao mesmo tempo ou paralelamente, uma perspectiva histórica e estrutural de cada tema, situando-o no seu contexto próprio.
Apenas com base nesse conhecimento suplementar, vocês saberão se opor, se for o caso, ao princípio primário da autoridade e ter condições de manter independência de julgamento em relação às idéias recebidas e às “verdades reveladas”. A autoridade do argumento só se sustenta com um saber superior, solidamente embasado nos dados da realidade e apoiado em pesquisas comparativas ou no conhecimento de outras experiências que podem ser relevantes para um caso porventura similar. 
O “ser contrário” significa, em princípio, possuir um argumento dotado de autoridade superior, embasado em dados mais amplos e um domínio mais seguro da realidade. Claro, podemos ser vencidos pela força bruta, pela imposição da hierarquia ou do poder simplesmente incontestável e incontrastável. Mas aí não estamos falando de métodos socráticos de busca da verdade ou de formação de um consenso no processo decisório, e sim da vontade unilateral, o que não deveria valer no ambiente sadio da pesquisa acadêmica ou mesmo da organização burocrática racionalmente estruturada.
A regra é esta: para vocês serem contrários ao lugar comum, ao déjà vu, ao habitual costumeiro, vocês precisarão construir um saber superior e expô-lo com clareza. E isso nos faz voltar à necessidade já referida do estudo constante, do esforço feito sob a forma da pesquisa individual e de leituras contínuas. A geração de vocês leva uma enorme vantagem em relação àquelas que a precederam: hoje em dia, com os recursos existentes on-line, praticamente 90% do estoque acumulado de conhecimento produzido pela humanidade, até aqui, está livremente disponível na internet, bastando um pouco de destreza lingüística para desfrutar desse imenso saber.

Vocês também podem ser contrários aos interesses político-partidários, às ideologias do momento e às conjunturas políticas de uma dada maioria governamental, mas isto não é uma regra absoluta. Digo isto porque várias carreiras, sobretudo aquelas fortemente dependentes de uma determinada estruturação hierárquica que tem no seu pináculo uma autoridade política qualquer, podem ser levadas ao fenômeno bem conhecido do “adesismo”, ou seja, aquela aderência momentânea aos senhores da hora, às idéias temporariamente dominantes, às situações de adequação oportunista às novas condições do exercício do poder, que sempre vem associado às benesses e favores distribuídos em direção daqueles que partilham, ou fingem fazê-lo, as mesmas opiniões daqueles que justamente ocupam o poder naquele dado momento. 
Não estou excluindo, por certo, que algum partido ou agrupamento político consiga encarnar, num determinado momento da vida da Nação, os anseios ou as aspirações da maioria, conseguindo traduzir de modo prático aquilo que normalmente se chama de “vontade nacional”. Este é um fato, aliás corriqueiro nas democracias. O que estou dizendo é que vocês precisam ter absolutamente claros, para vocês e no exercício de alguma atividade profissional, quais são os grandes princípios de atuação do país a serviço do qual se colocam, isto é, quais são, se é que possível saber de verdade, os chamados “interesses nacionais permanentes”. 

É com base numa compreensão desse tipo que eu formulei minha primeira regra e uma outra que dela também deriva: servir a pátria, mais do que aos governos, e afastar ideologias ou interesses político-partidários das considerações relativas à política externa do país, que precisa assumir um caráter nacional abrangente, e não meramente setorial ou corporativo.
Para que isso se faça, é preciso, repito ainda uma vez, conhecer profundamente os interesses permanentes da nação e do povo aos quais se serve, e por isso volto ao tema do estudo contínuo.
É preciso, da mesma forma, não aderir a modismos em matéria de “explicações definitivas” das causas das nossas mazelas e iniqüidades: elas são certamente muitas e provavelmente têm causas mais complexas do que certas “racionalizações inovadoras” que pretendem deter a chave milagrosa para a solução de todos os problemas brasileiros. O ser contrário à subserviência ao poder político do momento é também uma atitude de coragem moral e de honestidade intelectual, já que a razão do poder nem sempre se coaduna com o poder da razão, mas esta é, como disse, uma regra não absoluta. 

Em resumo ‑ e terminando por aqui este meu exercício de contrarianismo bem intencionado ‑, não pretendo que minhas regras subjetivas, certamente derivadas de um espírito inquieto e ainda rebelde, mas sempre aberto à causa do conhecimento, sirvam de guia absoluto na determinação do itinerário profissional que vocês empreenderão a partir daqui. Cada um definirá com base em sua própria experiência de vida, com o apoio e os conselhos dos familiares, dos professores e dos amigos, qual o melhor curso a seguir no plano profissional ou ainda da continuação dos estudos, agora em nível de pós-graduação, o que recomendo vivamente.
O que eu pretendi inculcar em vocês é a idéia da mente aberta, dotada de ceticismo sadio, contestadora das verdades reveladas e orientada para a busca honesta do saber e da maior eficiência possível no desempenho das atividades profissionais ou dos estudos futuros no terreno da especialização. Vocês agora vão deixar para trás uma etapa da vida e começar outra, mas devem sempre encarar os próximos desafios com toda a modéstia que requer o enfrentamento de cada nova situação de vida: deixar a suficiência de lado e buscar a excelência, em tudo e de todas as maneiras, sabendo que só a dedicação plena ao estudo continuado lhes poderá abrir o caminho para algumas rotas de sucesso profissional e pessoal.
Eu aprendi dessa maneira: vindo de uma família modesta, como é a maioria daquelas dos que aqui se formam hoje, consegui, à custa de muito estudo e dedicação pessoal, distinguir-me na carreira profissional e nas atividades acadêmicas, a ponto de me fazer merecedor da homenagem que vocês tão gentilmente quiseram me prestar nesta data, ao me fazer patrono desta turma de relações internacionais.
Vocês podem, em primeiro lugar, agradecer e retribuir à família e a todos aqueles que os ajudaram a conseguir o diploma que a partir de hoje passam a ostentar. Vocês devem ter, em segundo lugar, consciência de que o maior motivo de orgulho, não é necessariamente o canudo certificador do mérito alcançado, mas mais precisamente o fato de que vocês adquiram nesta escola algumas técnicas de aprendizado que devem ser internalizadas e aproveitadas em todo e qualquer momento da vida futura. Vocês aqui aprenderam tão simplesmente a aprender: comecem agora a estudar de verdade, e tenham sucesso na vida profissional e pessoal. Mãos à obra, de volta aos livros, e sejam felizes na vida.
Meus sinceros parabéns e, por esta oportunidade que me foi dada de me dirigir a alguns dos meus, até aqui, desconhecidos leitores, meu muito obrigado a todos vocês. 

Paulo Roberto de Almeida
6-8 de março de 2005



sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Brasil: O que fazer?: propostas não leninistas - Paulo Roberto de Almeida

O que fazer?: propostas não leninistas

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de julho de 2018
 [Objetivo: auto-esclarecimento; finalidade: agenda de trabalho]


Introdução
O título, na versão original, se referia aos princípios organizadores de uma nova organização política, formada por quadros profissionais, teoricamente majoritária, mas que de fato foi consistentemente minoritária, até alcançar a maioria por meios não de todo ortodoxos. O exemplo histórico, aliás, não é o melhor possível, embora tenha sido consagrado, mais de dez anos depois, numa obra clássica de Curzio Malaparte sobre esse tipo de técnica de tomada do poder, e que aproveitou lições e ensinamentos de diversos casos de ascensão ao poder, por vias, digamos assim, não exatamente consensuais. Mas isso reflete justamente a diversidade de formas da luta política, no contexto da complexidade, que é a da maior parte das sociedades contemporâneas.
Em face de qualquer situação problemática, o planejador consciencioso tenta seguir o seguinte roteiro: (1) estabelecer um diagnóstico da situação, em seus diversos aspectos; (2) fixar, com base nesse diagnóstico, prioridades de políticas públicas, macro e setoriais; (3) em função dessas prioridades, verificar os meios disponíveis, e tentar correlacionar umas e outros; (4) se ultrapassar a barreira do círculo mais restrito de decisão, preparar uma mensagem pública que seja, ao mesmo tempo, realista, sincera e chocante, de maneira a unir as diferentes forças que antes atuavam separadamente, com base em interesses e percepções distintos; (5) propor mecanismos para superar, se preciso for eliminar, resistências e oposições aos objetivos propostos; (6) prever vias de esclarecimento geral e de mobilização das atenções, para reforçar a consecução dos objetivos precedentes; (7) sempre dispor de uma mensagem de justificativa, que é ao mesmo tempo de legitimidade e de legitimação das ações empreendidas, e de uma outra mensagem que prestação de contas e de balanço da nova situação, de preferência uma compatível com a outra, ou pelo menos não divergente. 

(1) Momento da partida
O diagnóstico da situação é, resumidamente, o seguinte: o Brasil está em meio a um difícil processo de recuperação da mais grave recessão de toda a sua história econômica, causada pela inépcia colossal, e a corrupção gigantesca da organização criminosa que assaltou o país em 2003, que provocou uma extrema deterioração de todas as instâncias de governança, e que foi parcialmente alijada do poder em 2016. Essa organização criminosa não teria chegado aos extremos da destruição a que se chegou se não contasse com a complacência e a conivência de uma classe corrupta de políticos aproveitadores, que se beneficiou, e também ampliou o sistema de roubo oficial instaurado na cúpula do poder pela conhecida clique de meliantes políticos e de sindicalistas corruptos.
A recuperação tem sido difícil, e até vem sendo obstada por outra classe de opositores determinados, que é representada pelo estamento burocrático, a casta de mandarins do Estado que entende proteger e preservar os seus privilégios, ao estilo dos dois estados superiores do Antigo Regime; eles assim o fazem mediante a sabotagem consciente e deliberada, e pelo uso das mentiras mais sórdidas a respeito de suas “espertezas adquiridas”, um elevado número de prebendas e mordomias, o que converte essa casta em sugadora oficial das riquezas duramente criadas por empresários e trabalhadores. 
Esse é o diagnóstico da situação atual, um cenário de impasses, de indefinições e até de confusão mental, característico do espírito caótico exibido atualmente por nossas elites, entre as quais podem ser incluídos os capitalistas promíscuos, que durante anos e até décadas se beneficiaram de políticas estatais de proteção e de subsídios, e que também sustentaram o regime corrupto dos companheiros, depois de terem sustentado o exato oposto, durante a ditadura militar. Para romper esse impasse, eliminar a confusão e propor um novo caminho seria preciso contar com uma liderança política capaz de romper com os compromissos e conivências do passado, com capacidade comprovada para propor vias ousadas, até aqui não percorridas pelo país. 
A cidadania consciente, pelo que se percebe, deseja: (a) o combate duríssimo à corrupção; (b) a redução dos gastos do Estado e do seu tamanho; (c) diminuição sensível da carga tributária total; (d) prioridade efetiva à segurança pública, que afeta seriamente o patrimônio e a vida dos mais pobres, a renda da classe média, e que tem motivado muitos profissionais de qualidade a deixar o país; (e) novas modalidades de prestação de serviços coletivos relevantes, como saneamento básico, educação, saúde, que possam ser oferecidos mais pela via dos mercados do que pela intermediação de entidades públicas, sempre sujeitas a desvios e ineficiências, ademais de se prestarem à criação e preservação de feudos políticos que alimentam o rentismo de elites predatórias e parasitárias; (f) eliminação de agências públicas inúteis e ineficientes, bem como da extração de recursos para fins não produtivos (como, por exemplo, as contribuições sindicais, tanto as entidades patronais, como as de trabalhadores).

(2) Quais as prioridades de políticas?
São muitas, mas cabe reter um número razoável, ainda que sejam conjuntos complexos de medidas governamentais, de nível macro e micro, interligadas entre si: 
(a) estabilidade macroeconômica, preservada com: equilíbrio das contas públicas; inflação baixa; flutuação cambial; juros de mercado; reforma tributária, com o objetivo de reduzir a carga fiscal total, progressivamente; 
(b) concorrência plena no plano microeconômico, com a eliminação de carteis e monopólios; privatização das empresas públicas; abertura dos setores financeiro e de comunicações; eliminação de controles intrusivos e das limitações as liberdades econômicas, diminuição da burocracia em todos os níveis;
(c) governança de qualidade, nas diferentes instâncias do Estado, com reformas no Judiciário, revisão dos códigos processuais; eliminação completa da Justiça do Trabalho, com atribuição de suas competências a varas especializadas e o recurso amplo à soluções arbitrais, com o objetivo mais geral de diminuir o peso do Estado;
(d) revolução educacional, a partir do básico e do ensino técnico-profissional; completa autonomia das instituições de ensino superior, com reforma dos regimes de contratação e atribuição de dotações oficiais limitadas, deixando-se o restante à área de captação livre de recursos junto aos mercados;
(e) política econômica externa caracterizada por abertura econômica ampla e liberalização comercial  (unilateral, se for o caso), com adesão a padrões mais elevados no plano regulatório e mais liberal no setor das compras governamentais, com supressão de reservas de mercados, regras de conteúdo local ou preferências de compras nacionais com preço adicional autorizado.

(3) Quem paga a conta?
Sempre é o contribuinte, obviamente, e sempre de forma compulsória, como não poderia deixar de ser. A correção dos desequilíbrios fiscais deve ser assim a prioridade das prioridades, na medida em que a erosão fiscal sempre redunda em uma ou outra, ou todas, das consequências mais comuns: mais dívida orçamentária, mais impostos, mais inflação, mais juros da dívida pública e, portanto, menos serviços públicos de qualidade, se eles existiam anteriormente. A concentração de esforços deve ser dirigida, não mais no sentido da extração de mais recursos da sociedade, mas contra as despesas do próprio Estado, convertido em ogro famélico e insaciável. Seria preciso, antes de qualquer outra coisa, inverter o sentido da expressão “custo Brasil”, pois isso dilui as responsabilidades pelo estado caótico da regulação e da tributação no país, quando a caracterização correta seria a de “custo do Estado brasileiro”. 
A luta contra a corrupção deve ser permanente, mas ela não é a principal fonte de desperdício nas contas públicas, e sim o funcionamento “normal” das atividades do setor público, responsável pelo descalabro fiscal e canalização de um cada vez maior volume de receitas para sustentar as despesas do próprio Estado. O equilíbrio fiscal, na verdade o superávit primário equivalente ao pagamento dos juros da dívida pública, deveria ser o objetivo permanente do planejamento orçamentário.

(4) Verdades ao megafone
Uma mensagem clara deveria ser a de que, talvez pela primeira vez na história política do país, a conta passa a ser paga pelo próprio Estado, o que significa inclusive seus estratos mais privilegiados. Antes de qualquer outra coisa, porém, o diagnóstico, o mais chocante possível, deveria ser anunciado em toda a dramaticidade permitida por uma exposição realista da situação do país, apontando os responsáveis pelo descalabro encontrado e sugerindo as medidas de correção estabelecidas com base numa discussão prévia do conjunto de prescrições necessárias. A cidadania deve ser informada sobre os baixíssimos padrões de produtividade prevalecentes no país, resultado de um ensino deplorável sob qualquer critério que se leve em conta, sobre o fechamento inacreditável da economia brasileira em perspectiva comparada com países similares, e sobre os já mencionados privilégios aristocráticos das camadas superiores do serviço público, os mandarins do Estado. 

(5) Quem são os inimigos do povo?
O Brasil enfrenta, atualmente, não um mero punhado de inimigos, certamente os responsáveis do regime celerado anterior, responsáveis pela Grande Destruição inédita em nossa história econômica, mas uma tribo inteira de adversários da estabilidade macroeconômica, da responsabilização política dos governantes, da boa condução dos negócios públicos, da simples gestão responsável nos poderes da República. Todos esses inimigos são internos, tanto na área política quanto na econômica; eles não estão necessariamente coordenados entre si, mas o mais provável que sejam convergentes no sentido de atrasar e de manter o Brasil num estado de estagnação quase permanente. Eles podem se manifestar inclusive indiretamente, como pela inoperância e torpor do Judiciário, responsável por custos de transação inaceitáveis para os padrões mundiais.
A classe política detém a maior fração de responsabilidade nessa crise moral que solapa a confiança da cidadania nos poderes públicos, que reforça o cinismo do cidadão comum, que o aliena da política, e torna todo o sistema pouco representativo. As elites, como já referido, falharam terrivelmente em sua missão de prover clareza quanto aos objetivos pretendidos, de fugir às responsabilidades que são inerentes aos que assumem posições de mando na sociedade. As elites não são compostas apenas pelos donos do dinheiros, mas também pelos que conquistaram o poder com base na sua suposta representatividade dos interesses populares, mas que, uma vez alcançado esse objetivo, cuidaram de seu enriquecimento pessoal, como observado no curto intervalo de tempo entre o AC e o DC, antes e depois dos companheiros.

(6) Um diálogo constante com a cidadania
Um dirigente tem como sua primeira responsabilidade prestar contas, de forma constante e intensa, à cidadania que o elegeu, como de resto a toda a população. Cada medida, cada decisão, cada gasto ordenado deve ser objeto de um esclarecimento amplo sobre sua oportunidade, sua necessidade, sua legitimidade. As vias alternativas devem ser apresentadas, e justificada a adoção de uma opção a mais racional nas circunstâncias existentes. Sem máquina de propaganda, sem comunicação espalhafatosa, apenas uma curta e singela explicação quanto ao sentido das políticas adotadas.

(7) A legitimidade está na transparência total da governança
Todos os números devem ser expostos, todos os dados disponibilizados, todos os responsáveis por cada área de gestão indicados, todas as metas expostas com clareza e sua cobrança efetuada no tempo devido. Atribuídas as responsabilidades, segundo a lista de objetivos fixados, os meios devem ser exibidos e seu acompanhamento efetuado da maneira mais transparente possível. A prestação de contas deve ser constante, regular e embutida em toda e qualquer iniciativa governamental, em todos os níveis e escalões.
O Brasil precisa saber o que se vai fazer, de maneira totalmente democrática!

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de julho de 2018

O que fazer para cumprir um programa de governo? - Paulo Roberto de Almeida

O que se deve fazer para cumprir um programa de governo?

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: auto-esclarecimento; finalidade: análise da conjuntura]


Introdução
Respondo imediatamente à pergunta do título: em primeiro lugar, ter uma visão clara de quais são os principais problemas do país, e portanto, quais seriam as suas principais prioridades. Para atender ao primeiro quesito é preciso fazer um diagnóstico correto da conjuntura, mas mantendo uma visão de médio e longo prazo, de maneira a construir uma estratégia adequada para enfrentar, de forma persistente e continuada, os principais problemas detectados.
Minha própria percepção sobre a situação atual do Brasil é, obviamente, a da mais grave crise jamais enfrentada pelo país no plano econômico, mas também a de uma crise ainda mais grave no plano moral. A segunda crise talvez seja muito pior do que a primeira, pois ela é mais insidiosa, permanente, e também mais subjetiva, sendo provavelmente derivada do estado mental da maioria dos membros da elite, o que a torna de muito mais difícil resolução.

A grave crise moral de que padece o Brasil
Esta profunda crise moral tem a ver não apenas com o mau funcionamento do sistema político, mas também, e principalmente, com a profunda corrupção e completa degradação dos costumes que todo o sistema da governança pública atravessa, uma situação de declínio ético que contaminou o país, que o intoxica, e que torna quase impossível a obtenção de algum consenso razoável em prol das grandes reformas estruturais de que o Brasil necessita para resolver a primeira crise, a econômica, e retomar níveis razoáveis de crescimento sustentado.
Não me perguntem como resolver essa profunda crise moral que nos atinge a todos, pois eu também não sei. Não basta dizer “Que se vayan todos!”, como fizeram os argentinos em 2001, porque isso não vai acontecer. Não ocorreu por lá, e não vai acontecer por aqui, mesmo que se processe uma renovação limitada do corpo político, que está, repito, profundamente podre, moralmente falando.
Esse problema tem a ver com o nosso velho patrimonialismo – sempre passando por novas formas, do velho patrimonialismo luso-colonial, estudado por Raymundo Faoro, conhecendo certa renovação no quadro dos regimes autoritários do Estado Novo e da ditadura militar, até o patrimonialismo de tipo gangster, na era lulopetista –, mas tem também a ver com vários outros “ismos” nefastos, alguns de extração mais recente, outros de existência permanente em nosso país: o nepotismo, o fisiologismo, o prebendalismo, o corporativismo, o sindicalismo exacerbado, o protecionismo comercial, o intervencionismo econômico, o nacionalismo rastaquera, o patriotismo de fachada, o dirigismo extremo de nossa burocracia atávica, o regulacionismo excessivo das mesmas corporações de ofício e, last but not the least, esse desenvolvimentismo ingênuo, que nos faz concentrar todas as alavancas do crescimento econômico nas mãos, nos pés, no estômago desse ogro famélico, insaciável e desastrado que se chama Estado brasileiro, a fonte segura da maior parte dos nossos males.
Ao colocar o Estado no centro dos nossos males, não me engano nem exagero. A despeito de o Estado ser, infelizmente, o eixo central de toda a nossa organização política e social, e também (e ainda mais infelizmente) econômica, ele é, para o bem e para o mal, a raiz, a fonte, o fulcro de todos os nossos problemas e preocupações. Não nos enganemos: o estado brasileiro atual é o verdadeiro inimigo da nação, de uma sociedade livre, de nossa prosperidade. 
O Estado brasileiro, que no passado foi um impulsionador do desenvolvimento nacional, tornou-se, nitidamente hoje, o principal obstrutor de um processo sustentado de crescimento econômico. Ele o é de diferentes formas: ao extrair, vorazmente, cerca de 2/5 de tudo o que a sociedade produz; ao cercear possibilidades de acumulação e de investimento privado, o que o faz ser também um obstáculo à transformação produtiva; por último, ele é o grande empecilho a um processo real de distribuição do (baixo) crescimento econômico, ao ser, de fato, um instrumento nas mãos de ricos e poderosos, inclusive dos mandarins do próprio Estado, concentrando renda e provocando um aumento contínuo, ou pelo menos a preservação, das desigualdades sociais. Volto a repetir: o Estado, tal como ele funciona hoje, ou como ele não funciona atualmente, é o principal inimigo da nação, e isso precisa ficar bastante claro para todos. 

Reduzir o peso do Estado
Ao dizer isso, não quero ingenuamente fazer uma profissão de fé anarquista, e proclamar a necessidade de destruir o Estado, para tornar a sociedade livre de todas as deformações, vícios, malefícios, deseconomias provocadas pelo Estado, por meio de suas corporações de ofício, por meio das instituições voltadas prioritariamente para si mesmas, por meio dos lobbies particularistas que atuam no, e em direção do Estado, em virtude de toda a promiscuidade mantida entre agentes políticos e corporativos, de um lado, e a classe dos capitalistas, dos industriais e dos banqueiros, de outro, que se apropriam, estes, do Estado, e de seus representantes, para fazê-los funcionar em benefício dos seus próprios interesses, um pouco como aquela imagem de um comitê político atuando em defesa dos negócios da burguesia, de que falava, num famoso manifesto, um antigo filósofo social alemão.
O Estado é, infelizmente, nas sociedades complexas e altamente burocratizadas nas quais vivemos hoje, com graus exacerbados de urbanização e de regulação intervencionista, o único instrumento de que dispomos para evitar a conhecida situação hobbesiana de luta de todos contra todos. Se ele é esse instrumento, não pode ser destruído, certo? Apenas parcialmente correto.
O que nos cabe fazer, em primeiro lugar, nas condições concretas do Brasil, é reduzir drasticamente o tamanho e do peso do Estado a proporções suportáveis pela população trabalhadora, os agentes econômicos primários de produção de riqueza e de criação de empregos, que são os empresários e os microempreendedores – até o nível de carroceiros e de pipoqueiros de esquina –, que são também os que alimentam e cobrem os privilégios de uma rica burocracia de Estado, ademais da classe política predatória e extratora, os equivalentes atuais da antiga aristocracia do Ancien Régime.
Reduzir o tamanho e o peso do Estado sobre a vida dos cidadãos, e sobre as atividades produtivas dos criadores primários de renda e riqueza, já é meio caminho andado para resolver o primeiro e mais grave problema econômico da nação, qual seja, o desequilíbrio dramático das contas públicas e a falência virtual da fiscalidade. Voltamos, portanto, ao primeiro problema apontado ao início deste texto: a grave crise fiscal de que padece o Brasil atualmente, fruto da Grande Destruição da era lulopetista, o mais grave atentado de que já padecemos, sem o perceber, desde a fundação da República. 
Pouca gente está disposta a admitir que o Brasil, de 2003 a 2016, foi vítima de, ainda que administrado por, uma organização criminosa travestida de partido político, que não apenas se revelou totalmente inepta no plano da governança, como também foi, e principalmente, exacerbadamente corrupta no plano dos negócios públicos. Sem reconhecer esta realidade, torna-se difícil propor um programa de reconstrução nacional e de refundação da própria República, que passa pela eliminação da vida pública desses quistos cancerosos do sistema político.

Como construir a governança?
Partindo desse pressuposto, uma primeira tarefa de uma governança responsável seria a de construir uma maioria de apoio ancorada na transparência em relação a um programa de governo declaradamente reformista, que afaste de vez a corrupção dos negócios públicos, como é a expressa vontade da imensa maioria da população. O governo deveria ser em parte político, em parte tecnocrático, pois seria impossível trabalhar sem especialistas, de um lado, e sem representantes dos partidos presentes no Congresso, de outro. 
A reforma política é algo absolutamente necessário, e o Executivo precisaria ter uma visão clara de como ela deve ser feita – reduzir a fragmentação, mudar o sistema eleitoral, cláusulas de barreira, fim dos fundos partidário e eleitoral –, mas também deve ter absoluta consciência de que essa reforma não será feita pelos próprios políticos e partidos, sem uma pressão decisiva por parte da cidadania consciente, o que obviamente será difícil de obter. O governo, então, deverá se concentrar nas reformas econômicas e em diversas outras reformas estruturais – previdenciária, trabalhista, educacional, etc. –, com total transparência sobre o que o Brasil precisa fazer para retomar o crescimento.
Na parte econômica, o restabelecimento do equilíbrio fiscal, a diminuição dos déficits orçamentários e do endividamento público, assim como um amplo programa de privatizações, são absolutamente necessários para que todos os demais objetivos reformistas sejam alcançados. O sentido geral das reformas deve ser o da abertura econômica, o da liberalização comercial – se preciso for unilateral –, amplas liberdades econômicas, com diminuição do regulacionismo intrusivo e uma profunda reforma fiscal no sentido da redução, sim, da redução da carga fiscal total. 
Como não parece haver entendimento preliminar, nem federativo, sobre o caráter dessa reforma, sobre a estrutura do novo sistema tributário, sobre a mudança na arquitetura e na composição da base fiscal – peso e repartição dos impostos, das taxas e contribuições, nos três níveis –, o que se propõe é um programa gradual e progressivo de redução paulatina de alguns pontos percentuais – pode ser meio por cento a cada ano – em cada uma das alíquotas ou valores aplicados em todos os componentes da atual base fiscal, digamos num espaço de cinco a dez anos, período no qual a sociedade e o parlamento engajariam uma discussão ponderada sobre a substância e o perfil da nova estrutura fiscal e tributária, condizente e compatível com as necessidades dos país. O sentido será sempre o da redução da carga sobre o investimento, sobre o trabalho e os lucros, com maior incidência sobre o consumo – mas desonerando os itens de consumo popular –, sobre o patrimônio e as rendas do capital. O Brasil precisa chegar a uma carga fiscal total não superior a 30% do PIB, que seria comensurável com sua atual renda per capita.
Outro aspecto essencial das reformas modernizantes é a privatização de todas – sublinho TODAS – as empresas estatais, que salvo raros casos têm servido principalmente de cofre e de cabide de empregos para políticos inescrupulosos, aqueles expropriadores e rentistas. Não existe nenhum motivo econômico, ou até político, para que grandes empesas públicas, em praticamente todas as áreas, inclusive os bancos estatais, continuem a funcionar sob a gestão ineficiente, e altamente comprometedora de sua higidez, do Estado. Mesmo bancos de “desenvolvimento” podem ser colocados parcialmente sob a responsabilidade de uma gestão pautada por critérios de mercado.
A política econômica externa e, portanto, a política externa igualmente podem ter como foco as mesmas prioridades de reformas estruturais já definidas para a tarefa de modernização doméstica, sendo que a política externa setorial é acessória ao, e em grande medida dependente do, imenso esforço de recuperação da nação, depois de quase duas décadas de descaminhos e contradições no processo de desenvolvimento nacional. 

Estas são as considerações genéricas que julgo serem importantes apresentar numa fase preliminar do debate em torno da reconstrução nacional. Argumentos mais específicos serão apresentados para políticas setoriais em terrenos seletivos. Apenas volto ao meu resumo habitual de políticas gerais para um processo de crescimento sustentado, com transformação produtiva e redistribuição de renda via mercados, antes que pela mão assistencialista sempre torta do Estado: macroeconomia estável – fiscal, monetária e cambial –, microeconomia competitiva, governança responsável e transparente, alta qualidade do capital humano e abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros. Vale...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília-Lisboa, em voo; Aeroporto de Lisboa; Beja, 22 junho de 2018

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

O poder do Itamaraty: o conhecimento como base - Paulo Roberto de Almeida

Alguns meses atrás, sempre armado de minhas cadernetas Moleskine, indo e voltando de uma aula magna na UFPB, eu traçava no avião algumas notas sobre a corporação que é a minha, desde algumas décadas. Eis o que escrevi no voo de ida e de volta, sendo que antes transcrevo a ficha do trabalho: 


3277. “O poder do Itamaraty: o conhecimento como base”, Em voo, Brasília-João Pessoa-Brasília, 28-29 maio 2018, 6 p. Comentários sobre a agenda de reformas do Brasil e suas implicações para a política externa e para o Itamaraty. Inédito. 


O poder do Itamaraty: o conhecimento como base

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: comentários sobre as reformas no Brasil; finalidade: papel do Itamaraty]

Introdução
O Itamaraty não tem muito poder, ou quase nenhum. Poucos políticos miram o seu comando, uma vez que ele não dá votos, talvez apenas um pouco de prestígio para quem não deseja maiores cargos na trajetória política. Ele tampouco possui, longe disso, alguma força própria no sentido estrito, poder de polícia, de defesa ou de ataque, nada. Ele não tem, obviamente, nenhum poder econômico ou financeiro: dispondo de menos de 0,5% do orçamento geral do executivo, ele não pode sequer pensar em lançar grandes projetos por sua própria iniciativa, pois sem prévia aprovação das autoridades econômicas, necessitando ainda do empenho pessoal do presidente, nada pode fazer, uma vez que a burocracia do setor podaria qualquer aumento de despesa. Em outros termos, trata-se de um ministério fraco, desprovido de meios, de recursos, dispondo, apenas e tão somente, de algum controle sobre as informações que processa, a partir de suas antenas, que são os postos no exterior, aliás, considerados em número excessivo por essas mesmas autoridades.
O único poder de que dispõe o Itamaraty, mas que pode ser a sua força moral, é a arma do conhecimento, ainda que não se tenha certeza de que ele faça bom uso desse recurso valiosíssimo. A presente nota, de caráter subjetivo, pretende discutir o poder do conhecimento no plano mais amplo das políticas públicas em geral, com referência ao papel subsidiário do Itamaraty no processo de reformas de que carece o Brasil.

O que faz o Itamaraty?
A linguagem, o discurso, as negociações em torno de acordos, o entendimento recíproco no plano bilateral, a participação plena no contexto multilateral, constituem as principais ferramentas de trabalho do Itamaraty, ao longo de toda a sua história e no futuro previsível. Mas todos esses instrumentos representam apenas meios, e não seriam de grande ajuda no plano substantivo, se eles não estivessem apoiados, se não fossem embasados num conhecimento profundo do que é o Brasil e do que é o mundo, e de como evoluem e se relacionam essas duas entidades políticas desiguais, sobre como fazê-las interagir ao melhor dos modos possíveis, de maneira a lograr com que o Itamaraty possa contribuir de modo decisivo para que se alcance a grande obsessão nacional desde largo tempo: o desenvolvimento. Este representa bem mais do que o simples crescimento econômico: sociedade próspera, democracia estável e inclusiva, economia dinâmica, tecnologia avançada, sociedade relativamente igualitária, ou pouco desigual, respeitadora dos direitos humanos, uma nação integrada nos seus vários componentes étnicos, culturais, religiosos, respeitadora das diferenças e dos direitos das minorias e, sobretudo e principalmente, um Estado de Direito.
Alcançar o status de país desenvolvido tem sido o objetivo maior da sociedade brasileira desde sempre, como parece natural. Mas é forçoso reconhecer que nossas elites – todas elas, inclusive a corporação dos diplomatas – têm fracassado nessa meta nacional. Digo isto com certo constrangimento, pois parece que também pertenço a essas elites que fracassaram no atingimento do grande objetivo nacional, embora eu talvez possa me atribuir certa isenção de culpa. Nunca me julguei pertencer a qualquer tipo de elite, exceto, talvez, à elite do conhecimento, justamente. Sendo originário de uma família extremamente modesta, eu ascendi a essa elite social de renda e prestígio exclusivamente pela via do trabalho e da educação, isto é, por meio do conhecimento.
Se existe algum sentido mais elevado no trabalho amplamente burocrático de que nos ocupamos na maior parte do tempo ele deveria estar, precisamente, na produção de conhecimento especializado e instrumental, não apenas na busca, processamento e organização de conhecimento produzido não por diplomatas, mas por outras categorias de trabalhadores não manuais, os “trabalhadores intelectuais”. Pois bem, como se produz conhecimento original? Como fazer aportes inéditos, novos insumos ao trabalho diplomático, trazidos afanosamente para processamento na Secretaria de Estado ou comunicado a postos no exterior, que não seja a mera transmissão de conhecimento produzido alhures, nos meios de comunicação, nos informes e relatórios de organismos internacionais, nas consultas e expedientes de outros governos, nas comunicações de interlocutores, do país e do exterior?

AC e DC na diplomacia
A produção de conhecimento, da mesma forma como a de qualquer outro insumo ou mercadoria, requer agregação de valor pela via da mobilização de fatores produtivos. No caso dos diplomatas, trata-se de produzir conhecimento especializado e adaptado aos requerimentos do serviço exterior da nação. A finalidade última é, obviamente, a de subsidiar a política externa definida pelo governo: no caso dos regimes presidencialistas, aquela definida pelo presidente, auxiliado por seu ministro das relações exteriores; no caso dos regimes parlamentaristas, o presidente do Conselho, ou o primeiro ministro, e o seu auxiliar setorial. 
A diplomacia profissional, ao subsidiar esses executivos na política externa, não só deve trazer-lhes as informações mais acuradas sobre as relações exteriores do país, sobre a política internacional e a economia mundial, como também produzir guias de ação para os itens mais relevantes da agenda de política externa desse país. Isso significa, muitas vezes, libertar-se das amarras do passado e inovar, num sentido que por vezes não é bem percebido pelos próprios diplomatas, acostumados que eles estão, como sempre foram, a seguir as ordens vinda de cima, que cumprem disciplinadamente, mesmo quando o senso comum pode revelar o contrário do que lhes é ordenado.
Tomemos, por exemplo, o caso da política externa brasileira que nos foi servida diligentemente nos últimos quinze anos, e talvez até um pouco mais, essa diplomacia que já foi classificada de “ativa e altiva”, mas que, salvo na superfície – como o término do apoio a ditaduras execráveis, na região e fora dela –, não mudou significativamente, talvez alguma coisa na forma e quase nada no conteúdo. Ora, o que faz o Itamaraty, o que faz a diplomacia brasileira, que não produz conhecimento novo sobre a política externa, para servir a um novo governo, animado por outros princípios? O que fazem todos os diplomatas profissionais que continuam disciplinadamente obedecendo aos mesmos padrões de política externa, sem questionar nada do que aconteceu na cronologia política desse período? Eu o divido, como na historiografia cristã, em duas eras bem definidas, uma AC e outra DC: Antes dos Companheiros e Depois dos Companheiros. O que fazem os diplomatas que não elaboram novos conceitos para a política externa brasileira, para subsidiar o presidente e o seu ministro da área?

Os novos conceitos da diplomacia: seria ela meramente acessória?
Por novos conceitos eu quero me referir, não a uma versão diferente da diplomacia “ativa e altiva”, de tão triste memória (em minha opinião), mas a uma diplomacia da inserção global do Brasil, como aparentemente estamos tentando fazer, com o ingresso pleno no Clube de Paris e a demanda de adesão à OCDE. Considero essas duas iniciativas não como um fim em si mesmo, mas como mero meio para implementar uma política externa de abertura realista, um regionalismo sensato – não aqueles arreganhos de liderança regional de que se jactava o Guia Genial dos Povos –, a continuidade da prática de um multilateralismo ponderado, focado em objetivos pragmáticos, não estrepitoso ou voluntarista, visando definir e estabelecer parcerias estratégicas no estrito limite dos interesses nacionais, não determinadas a priori por uma postura ideológica canhestra e anacrônica, caracterizada por um anti-imperialismo infantil e um anti-hegemonismo de fancaria. O que se visa é uma política externa podendo servir ao Brasil numa fase de transição para um outro tipo de política geral de governo, que será a do país nos próximos anos. 
Por que digo isto? Porque vejo o Brasil como um país notoriamente fracassado em atingir o seu objetivo básico de desenvolvimento integrado, ou seja, com igualdade social. Vejo um país frustrado com os retrocessos que lhe foram impostos por uma política econômica esquizofrênica, não apenas inepta, no sentido operacional do termo, mas especialmente corrupta até a raiz dos cabelos, se é possível dizer. Tratou-se de uma administração econômica que nos levou à Grande Destruição a que eu já me referi em outros trabalhos. Não tenho nenhuma dúvida de que o Brasil é um país derrotado por suas próprias elites, irresponsáveis, patrimonialistas, prebendalistas, incompetentes e singularmente corruptas, fenômenos tradicionais desde sempre, mas que se agravaram a partir do momento em que uma organização criminosa tomou de assalto o Brasil. 
Estabelecer novos conceitos para uma nova política externa significa, antes de mais nada, reconhecer essa realidade, a de um país fracassado, deteriorado em suas instituições, fragmentado e dividido pela ação criminosa e irresponsável daqueles que insistem em dividi-lo ainda mais, com suas propostas deletérias, equivocadas, enfim, anacrônicas do ponto de vista de um país que pretende se inserir na moderna economia global. Significa também reconhecer que a política externa é meramente acessória, secundária, não determinante na solução dos principais problemas que afligem o Brasil atualmente. Mas, o que é determinante no Brasil atual?
Para mim, trata-se de considerar a questão social como uma questão nacional, a prioridade das prioridades, a única que deveria mobilizar nossas energias de mandarins da República, de altos burocratas, de membros de uma elite privilegiada, que não quer ver-se dessa maneira. E qual é a tarefa básica nessa missão de fazer da questão social a mais alta prioridade da nação?
Parece-me, sem sombra de dúvida, que é o ajuste fiscal. Sem tergiversações, eu diria que esse ajuste deve sim ser feito com austeridade, a mais completa e corajosa austeridade. Não aquela que atingiria os mais pobres, mas a que precisa, desta vez, atingir os mais ricos. Os mais ricos somos nós, não necessariamente os diplomatas, mas os membros da magistratura, os da mais alta cúpula do Estado, os políticos em geral, os mandarins dos três poderes, nos três níveis da federação e os seus associados de carreira ou de circunstância. O ajuste fiscal deve figurar como tarefa básica no contexto da austeridade geral, e esta atingir primeiro o Estado, antes que a sociedade produtiva, os empresários e os trabalhadores, que são os que criam riqueza, renda, empregos. O Brasil precisa empreender um processo vigoroso, continuado, persistente, de reformas estruturais profundas, em todos os setores de sua vida pública, a começar pela Constituição, esse monstro metafísico notoriamente esquizofrênico em seus capítulos econômicos e sociais.
Essas reformas não devem incidir apenas e tão somente sobre aspectos deletérios, iníquos e irracionais de nossa presente organização institucional, como o sistema previdenciário e o assistencialista, a legislação laboral, as políticas setoriais protecionistas e subvencionistas (como na indústria e na agricultura). Elas devem se concentrar, sobretudo e principalmente, no peso do Estado na vida pública, na enorme e opressora carga fiscal, que atinge todos os brasileiros, especialmente os do setor produtivo, e inclusive os mandarins do Estado, que vivem dos recursos extraídos dos verdadeiros criadores de riqueza. Deve-se desde já revisar e eliminar do jargão corrente um conceito totalmente errado, o tal de “custo Brasil”, que só redunda em atribuir genericamente a culpa de nossas mazelas a todo o país, de maneira vaga. Não existe “custo Brasil”. O que existe é o custo do Estado brasileiro, que pesa como uma canga sobre os ombros dos brasileiros produtivos.
Caberia também empreender uma revolução educacional, que não é apenas uma reforma dos sistemas educativos, nos seus vários níveis, do pré-primário ao pós-doc, esse turismo de luxo para os detentores de sinecuras acadêmicas. A reforma da educação, na verdade, exigiria uma verdadeira revolução mental, mudança para a qual a maioria dos brasileiros não está provavelmente preparada para aceitar e empreender. O analfabetismo funcional atinge, ao que parece, os mais altos níveis da educação formal: os brasileiros, já se constatou, exibem uma enorme dificuldade para aceitar a simples lei da oferta e da procura, a coisa mais elementar que existe em economia, equivalente à lei da gravidade para a física.

A produção de conhecimento para uma nova política externa
A reforma da política externa não estaria imune a esse processo de revisão geral das políticas públicas, a começar pela revisão dos conceitos nos quais ela se tem apoiado nas últimas décadas. Isso passa, obviamente, por uma reforma dos métodos de trabalho do Itamaraty, mas não se resume a esse aspecto operacional. Essa reforma da política externa passa também por uma revolução mental, que nos liberte de certas suposições do passado recente e nos coloque num outro patamar de formulação e de execução da diplomacia profissional. Se as palavras máximas da nova política externa de inserção plena do Brasil na economia global são abertura econômica e liberalização comercial, então a diplomacia profissional precisa se preparar para suas novas tarefas.
Já indiquei, em trabalho recente sobre as relações econômicas internacionais do Brasil (em capítulo no livro de Jaime Pinsky, Brasil: o futuro que queremos, São Paulo: Contexto, 2018), os principais elementos que me parecem dignos de integrar uma nova agenda para as relações exteriores do país. Uma formulação paralela dos objetivos estratégicos do Brasil, em linha com esses objetivos e os princípios aqui traçados, encontra-se em curso de elaboração, em texto independente.
Se existe algum poder no, ou do, Itamaraty, esse poder está em sua capacidade, em nossa capacidade, de adaptar a política externa às necessidades mais prementes do país. Os diplomatas profissionais não devem ser mandarins desligados das carências mais sentidas pelos concidadãos mais humildes. Ou melhor: eles são mandarins, mas nem por isso devem se sentir, ou se julgar alheios aos problemas internos do país. A força moral do Itamaraty consiste em usar todo o poder derivado do seu conhecimento especializado para, como já disse alguém, transpor possibilidades externas ao terreno das capacidades internas. Para isso, o mero conhecimento das realidades externas talvez não seja suficiente; um profundo conhecimento do que é o Brasil, de sua história e de sua presente fase de transição, de seus problemas cruciais e dos remédios a eles associados, representa não apenas uma agregação de valor à diplomacia profissional, mas a condição necessária para a expressão de um poder próprio.

Paulo Roberto de Almeida
Em voo: Brasília, João Pessoa, Brasília, 28-29 de maio de 2018


Balanco e trajetoria futura das relacoes internacionais do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Uma reflexão anterior, não publicada, mas que talvez mereça alguma atenção no momento presente, de indefinições eleitorais.
Já tenho alguma ideia do que pode ser feito (ou não) no plano externo).
Paulo Roberto de Almeid
Brasília, 4 de outubro de 2018

Balanço e trajetória futura das relações internacionais do Brasil

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de abril de 2018
 [Objetivo: análise da situação presente, temas em curso; finalidade: debate]


Introdução
O conceito de relações internacionais, no presente ensaio, compreende tanto uma breve análise do quadro global, do contexto regional, e das diferentes vertentes do enquadramento do Brasil nesses ambientes, quanto uma avaliação sumária de sua política externa no período recente e da atuação de sua diplomacia, complementando esta síntese por um enunciado resumido das diferentes frentes de trabalho abertas ao país, a cargo dos responsáveis políticos e dos profissionais das relações exteriores.

1. O quadro global
A ordem mundial caracterizada pela existência da ONU e de grandes potências autônomas, capazes de influenciar a agenda multilateral, se desenvolve entre as regras do direito internacional e a ação política dos atores mais influentes, com coalizões diversas atuando em diferentes frentes de trabalho, tais como: paz e segurança, comércio mundial e finanças internacionais, blocos regionais e esquemas de integração, desequilíbrios estruturais e permanência de situações de instabilidade política, insuficiência de desenvolvimento e de níveis adequados de prosperidade em largas porções do planeta, desafios comuns advindos de sustentabilidade não garantida, criminalidade e violência em diferentes ambientes interestatais, fragilidades dos regimes democráticos, não observância dos direitos humanos ou sua violação sistemática, etc.
O Brasil se situa nesse quadro como uma potência média, dotada de recursos e fatores produtivos relativamente amplos, mas fragilizado nos últimos anos pela mais grave crise econômica de sua história, provocado inteiramente no âmbito interno, por erros graves de política econômica e extenso quadro de corrupção no próprio seio do poder central, o que diminuiu o ímpeto de sua ação diplomática, sempre muito ativa nas diferentes frentes de trabalho abertas aos profissionais de seu serviço exterior. A recuperação vem se fazendo de forma lenta, porém segura, o que deve garantir, no próximo mandato presidencial, a retomada de dinamismo habitual.
Sua diplomacia sempre se guiou por valores e princípios solidificados ao longo da história, na defesa da igualdade soberana das nações, mas reconhecendo de forma realista as diferenças de poder e de influência nos diferentes processos decisórios nos diversos órgãos da interdependência global contemporânea. Sempre partidário do diálogo e da busca de consenso por meios pacíficos, sua capacidade de projeção em cenários de exercício de poder é relativamente limitada em razão de carência de recursos apropriados para suas Forças Armadas, estritamente limitadas ao desempenho de suas funções constitucionais e alinhadas com sua diplomacia no plano externo. 
A pequena limitação do “domínio de competência exclusiva” nos assuntos internos de cada Estado membro da ONU representada pelo conceito de “responsabilidade de proteger” suscitou a proposta feita pela diplomacia brasileira de “responsabilidade ao proteger”, mas ambiguidades na aplicação dos dois conceitos devem persistir no futuro previsível. Não é seguro que a aparente multipolaridade atual, com o declínio relativo de velhos poderes imperiais e a ascensão de novas potências emergentes, favoreça um ambiente favorável a um multilateralismo ordenado; pode criar novas fontes de tensão, resultantes dessas alterações nas capacidades decisórias. 
Do ponto de vista de sua segurança, não parecem existir ameaças reais ou potenciais que exijam postura ativa de sua defesa, e menos ainda um ambiente regional que requeira uma atitude ofensiva, mas a persistência de tensões localizadas e de conflitos efetivos em diferentes cenários confirma a necessidade de preparação adequada de suas FFAA, sobretudo no quadro de operações multilaterais legalmente autorizadas no quadro do direito internacional e do órgão de segurança da ONU. A proliferação de atores não estatais dotados de certa capacidade destrutiva implica, todavia, inovações doutrinais e adaptação nas ferramentas necessárias a esses novos desafios, sobretudo no campo da criminalidade transnacional. 
O ambiente econômico internacional se apresenta como quase completamente liberado dos modelos alternativos à economia de mercado, mas o recrudescimento de posturas nacionalistas e mercantilistas e de desequilíbrios derivados de contas fiscais deficitárias em grande número de países não poupa o mundo da possibilidade de novas crises financeiras. A demagogia política e o populismo econômico, inclusive por parte de economias dominantes, também podem contribuir para o arrefecimento da construção de uma ordem econômica internacional verdadeiramente interdependente. O Brasil, reconhecidamente, é um país dotado de instintos nacionalistas exacerbados, sendo notoriamente fechado a essa interdependência global, ficando bem mais próximo de uma postura protecionista e mercantilista do que de uma postura propensa à abertura econômica e à liberalização comercial. Sua baixíssima integração a cadeias de valor não augura progressos significativos nessa frente, que demandaria aumentos significativos de produtividade, exatamente dependente dessa maior abertura e da redução da proteção efetiva à produção doméstica, acoplada à melhoria dos padrões de inovação tecnológica.

2. O quadro regional
O ambiente geral é desprovido de maiores focos de tensão, embora persistam fricções localizadas em alguns cenários interestatais – Bolívia-Chile, Venezuela-Guiana – ou mesmo internos: guerrilhas residuais, erosão política e “exportação” populacional de crises (Venezuela). O continente sul-americano permanece marcado por amplo quadro de pobreza, a despeito dos progressos realizados, desigualdades persistentes e enormes bolsões de corrupção, quando esta não se encontra incrustrada no próprio seio do poder (como no caso brasileiro a partir de 2003). A América Latina, de modo geral, apenas acompanhou a evolução da economia global, sem grandes avanços estruturais, uma vez que permanece basicamente exportadora de commodities, a despeito do vigor (não isento de retrocessos) dos processos de industrialização. Ela perdeu espaços de forma consistente para a região da Ásia Pacifico nos grandes fluxos de comércio e de atração de investimentos, e não parece pronta a alterar significativamente seus padrões de inserção global, com a exceção de algumas economias adeptas de uma postura globalizante. A Aliança do Pacífico é notoriamente mais aberta que o Mercosul.
Os diferentes experimentos de integração serviram para abrir reciprocamente economias nacionais anteriormente introvertidas ou extrovertidas unicamente em direção dos mercados mais avançados, mas não conseguiram consolidar um espaço econômico verdadeiramente integrado ou dotado de um quadro regulatório uniforme e aberto a uma maior complementaridade entre setores. A cartografia desses vínculos é notoriamente inferior às cadeias de valor existentes em outras regiões, o que se explica essencialmente pela ausência de uniformização nos mecanismos de acesso a mercados e sobretudo pelas enormes diferenças de padrões regulatórios, mais até do que pela existência de barreiras físicas ou as dificuldades de comunicações. 
No plano político, a retórica continua suplantando largamente o pragmatismo necessário ao aprofundamento dos laços inter-regionais, inclusive no Brasil, que se tem revelado tímido em sua própria abertura aos vizinhos, como autorizaria sua economia mais avançada e sua produtividade relativamente mais robusta. Sua diplomacia, entre 2003 e 2016, foi errática ou excessivamente contaminada por influências partidárias claramente enviesadas no plano político e ideológico, o que claramente lhe retirou algumas alavancas para exercer certa preeminência consensual em iniciativas que poderiam ter impulsionado o processo de integração ou de convergência para ações e políticas mais conformes à globalização e à interdependência global. A “exportação” de corrupção, no mesmo período, também deixou uma marca negativa na projeção do Brasil, na região e fora dela. Uma completa normalização de sua ação externa parece depender da instalação de novo governo em 2019, assim como de claras orientações de política externa que caminhem no sentido da integração regional e da inserção global. 
Caberia, a propósito, uma revisão ponderada dos diferentes mecanismos de coordenação política criados na esfera regional durante aquele período, vários deles marcados ou contaminados pela mesma visão enviesada que caracterizou a diplomacia brasileira em outras esferas, bem como o reexame de algumas “parcerias estratégicas”, mais definidas em função dos mesmos critérios puramente políticos do que com base nos reais interesses nacionais. Por fim, os mecanismos de financiamento a projetos no exterior padeceram das mesmas deformações, o que criou uma exposição excessiva dos recursos nacionais a iniciativas dotadas de poucas garantias efetivas de repagamento, o que também pode ser explicado pelas simpatias políticas do regime anterior. 

3. Uma agenda de reformas e de modernização
O Brasil continuará padecendo, no futuro imediato, de uma enorme crise fiscal criada pelo regime anterior, que limitará de alguma forma tanto iniciativas localizadas ou multilaterais de projeção de seus interesses quanto seu engajamento decisivo nos processos de interdependência global (que requerem abertura econômica e liberalização comercial). As soluções são praticamente todas de âmbito interno, ainda que a sua diplomacia profissional possa contribuir para a definição e a implementação de toda uma série de reformas internas já suficientemente diagnosticadas e prescritas em vários relatórios de entidades multilaterais ou foros globais. Documentos como o “Fazendo Negócios” do Banco Mundial, os relatórios de competitividade do World Economic Forum, as evidências eloquentes de análises como as inseridas nos estudos “Economic Freedom of the World”, assim como avaliações tecnicamente embasadas de órgãos como a OCDE ou mesmo de instituições nacionais (Ipea, FGV, SAE-PR) representam um manancial completo de “terapêutica e cura” da maior parte dos males nacionais. 
A diplomacia econômica brasileira pode e deve contribuir no e ao necessário processo de modernização econômica do país, trazendo evidências quanto à eficácia de uma série de reformas já efetuadas em outros contextos, mas dotadas do mesmo sentido de abertura resoluta à interdependência global. O fortalecimento da economia nacional, assim como a correção das deformações mais evidentes em seu ambiente regulatório – sobretudo na esfera tributária, no excesso de burocracia, no nacionalismo exacerbado – devem poder assegurar ao Brasil um retorno mais efetivo às iniciativas e à participação efetiva na agenda internacional de que é capaz sua diplomacia profissional. A nova postura necessita de meios adequados à projeção dos interesses brasileiros, não apenas na cooperação com países em desenvolvimento, mas basicamente na aceitação decidida de novos compromissos no plano da interdependência, o que de toda forma emergirá naturalmente a partir da aceitação não defensiva de padrões superiores de qualidade nas políticas macroeconômicas e setoriais, a partir do ingresso pleno do país na OCDE.
Essa interface econômica não representa todos os componentes já presentes na agenda multilateral – global e regional – e nos diferentes outros compromissos já inscritos na ordem do dia da diplomacia brasileira, derivados de suas parcerias já consolidadas ou a serem criadas a partir dessa nova postura engajada. Existem muitos outros itens no multilateralismo político – sobretudo paz e segurança internacionais –, nos foros econômicos, no plano bilateral ou de foros específicos que vão continuar a exigir recursos humanos e financeiros, ademais de uma visão clara das prioridades externas, todos eles amplamente cobertos pela diplomacia profissional. Mas esse lado de reformas econômicas e de modernização da agenda nacional representa a condição sine quaoutros objetivos políticos e diplomáticos não poderão ser alcançados. A nova política externa do Brasil deveria dar clara prioridade aos capítulos mais importantes de sua diplomacia econômica. Esta é a direção dos próximos anos.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de abril de 2018