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domingo, 3 de março de 2024

O dever fundamental de pagar impostos, de Casalta Nabais - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Conjur)

Mais um Embargo Cultural de Arnaldo Godoy, chagando, se já não alcançou, seu 500o. embargo, sempre falando de livros e da cultura em geral.

 

O dever fundamental de pagar impostos, de Casalta Nabais

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Conjur, 3/03/2024

https://www.conjur.com.br/2024-mar-03/o-dever-fundamental-de-pagar-impostos-de-casalta-nabais/

 

Já se vão alguns anos, eu estava no Recife, participando de um Congresso de Direito Tributário, então muito tradicional. Mary Elbe Queroz e Heleno Taveira Torres estavam à frente do evento. A palestra de Heleno foi memorável. No elevador, encontrei-me com um autor português, jurista convidado, que eu já admirava, que já havia lido, e cuja obra apreciava. Era José Casalta Nabais, professor em Coimbra. Não podia perder a oportunidade de ouvi-lo. Puxei conversa. Fiz referência ao sucesso que sua tese de doutoramento fazia entre nós. Muito espontaneamente, ele me respondeu que o título do livro era mal-entendido[1]. Fiquei intrigado.

O título, segundo Nabais, não se resumia em “O dever fundamental de pagar impostos”. Segundo o autor, o livro deveria ser recepcionado como “O dever fundamental de pagar impostos, de acordo com a lei”. Ele enfatizou a vírgula, pronunciando em voz alta o sinal de pontuação, gesticulando. Certamente, o dever de pagar impostos é um dever, fundamental, o que não significa que o Estado possa cobrar impostos como bem entenda. Há limites. E é justamente esse o tema central desse texto canônico da literatura jurídico-tributária de expressão portuguesa.

Trata-se de um livro escrito com profunda erudição, redigido como tese definitiva. Nabais enfrentava o tema da tributação sobre a ótica de “deveres fundamentais”. Essa opção metodológica representava uma virada de chave na literatura do direito público, então empolgada com “direitos fundamentais”. Só se falava de direitos. Não se falava de deveres. Nabais mudou a perspectiva.

Na parte I há capítulo que cuida de um efetivo regime dos deveres fundamentais. O autor tratava de um regime geral, de sua aparente inaplicabilidade direta, de seu significado normativo, bem como das relações entre os deveres fundamentais e o legislador, a par da revisão constitucional, em face dos deveres fundamentais, que é o núcleo conceitual do livro.

De fato, segundo Nabais, “o tratamento constitucional e dogmático dos deveres fundamentais tem sido descurado nas democracias contemporâneas”. O autor chamava a atenção para o fato (indiscutível) de que a agenda dos direitos fundamentais contava com uma sólida construção dogmática, o que não se podia afirmar em relação aos deveres fundamentais. Nabais rejeitava “os extremismos de um liberalismo que só reconhece direitos e esquece a reponsabilidade comunitária dos indivíduos”. O tema é de permanente atualidade.

Nabais discutia os fundamentos da tributação. O Direito Tributário é o ramo do Direito Público que se ocupa da arrecadação de recursos com os quais o Estado atende suas despesas. Trata-se de conjunto sistematizado de regras e princípios que orienta a atividade financeira do Estado, com fortes reflexos na organização da economia e da vida dos cidadãos.

John Marshall, juiz da Suprema Corte norte-americana, afirmou, em julgado célebre (de 1819) que o poder de tributar envolvia, necessariamente, o poder de destruir. Por outro lado, Oliver Wendell Holmes Jr., também juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, afirmava (em 1927) que o pagamento de tributos o tornava feliz, porque era o preço que pagava pela vida civilizada. Não sei. Tenho dúvidas. Essa tensão, que opõe a organização da vida privada à necessidade de recursos, por parte do Estado, é um dos pontos centrais da discussão que Nabais apresentava.

O Direito Tributário tem como objeto central a construção conceitual das várias modalidades tributárias, bem como os arranjos institucionais que organizam as exigências fiscais. Radica no Direito Constitucional, de onde colhe seus princípios norteadores e suas linhas gerais. As normas de direito tributário são de natureza cogente. O Direito Tributário cuida da instituição, da arrecadação e da fiscalização das várias espécies tributárias. A justificação da tributação e a discussão acerca da justiça tributária é assunto para a Ciência das Finanças. Esses postulados são incontornáveis.

A tributação é assunto constante na história dos povos. Ainda que não se possa afirmar que houve um modelo tributário racionalmente organizado no passado, há evidências de que civilizações que nos antecederam se preocuparam seriamente com o problema da tributação.

Quais são os fundamentos da tributação nas sociedades contemporâneas? Em que extensão se revelam como obrigações (deveres) sem as quais não se podem fruir direitos? Nabais propõe que há uma categoria jurídico-constitucional própria para os deveres fundamentais, que integram, por uma razão muito mais do que óbvia, os direitos, também fundamentais. É que esses (direitos) não se realizam sem aqueles (deveres).

Para Nabais, deveres fundamentais também qualificam a soberania do Estado, que radica na dignidade da pessoa humana. Os deveres fundamentais submetem-se “ao princípio da tipicidade ou da lista constitucional”, revelando-se (na prática) na esfera de seus destinatários. Mencionados deveres fundamentais, prosseguia o Professor, contam com uma estrutura externa (que radica em várias relações jurídicas) e com uma estrutura interna (que é seu próprio conteúdo).

Os deveres fundamentais, continua Nabais em seu livro, são diretamente ligados à realização de valores que a comunidade escolheu, e que de alguma forma se encontram constitucionalizados. No caso de Portugal, os deveres fundamentais também se destinam a estrangeiros e a apátridas, premissa que também vale para a realidade empírica brasileira. Os deveres fundamentais afetam também as pessoas jurídicas, que Nabais nomina de pessoas coletivas.

O que chama a atenção é que Nabais vincula os deveres fundamentais aos direitos fundamentais, no sentido de que ambas as expressões qualificam o estatuto constitucional dos indivíduos. Intui-se, assim, que não há como se usufruir de direitos fundamentais sem que se tenha a necessária concretude para tal. Isto é, os direitos somente podem ser usufruídos se há financiamento.

Pode-se perceber, nessa linha, alguma semelhança com o pensamento de Stephen Holmes e Cass Sunstein, em livro que vincula a tributação ao exercício de direitos. O argumento central do livro “Os Custos dos Direitos- Por que a liberdade depende da tributação “consiste na afirmação de que direitos custam dinheiro; é que direitos não podem ser protegidos sem apoio e fundos públicos.

Holmes e Sunstein tratam dos custos enquanto custos orçamentários e de direitos como interesses que podem ser protegidos por indivíduos ou grupos mediante o uso de instrumentos governamentais. Direitos somente existiriam quando efetivamente passíveis de proteção. E a proteção se faz com recursos que o Estado obtém da sociedade. Para simplificar: tem-se na realidade uma justificativa para a tributação, que se reconheceria como legítima.

A lógica de Nabais aproxima-se da lógica dos autores norte-americanos acima citados, com a diferença de que o autor português se preocupa com os limites da extração fiscal, que devem ser fixados em lei. Vale dizer, se os direitos fundamentais contam com um delineamento constitucional objetivo, o outro lado da relação, os deveres fundamentais, de igual modo, escora-se com igual razão na lei. Não há como se fixar um dever fundamental de pagamento de impostos sem que se operacionalize essa obrigação dentro dos exatos limites da lei.

Há um dever fundamental de se pagar impostos, como condição de exercício de direitos fundamentais na vida social. Estes dependem daquele. O que os equipara – direitos e deveres – é a fixação normativa, de índole constitucional. O dever de pagar impostos é um dever fundamental, cujo exercício (mandatório) é limitado pela lei. É essa, na minha compreensão, o “lead” do livro de Casalta Nabais, um clássico, publicado pela Almedina.

[1] Dedico essa resenha, em forma de ensaio, aos colegas Paulo Caliendo, Luis Alberto Reichelt e Édison Porto, com quem participei na banca de mestrado de Edimilson Cardias Rosa, também grande colega, autor de belíssima tese sobre economia comportamental e recolhimento de tributos, ocasião em que a contribuição de Nabais foi realçada.

 

 

 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Embargos Culturais: a coluna de livros de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy no Conjur

EMBARGOS CULTURAIS: a coluna de livros no Conjur de ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY

 https://www.conjur.com.br/colunistas/embargos-culturais/

Imperdível, todos os domingos, para os que gostam de livros, em geral, em especial na conexão com mundo jurídico (mas literário também).

Contei, aproximadamente, 494 ou 496 colunas (13 colunas, cada bloco, em 38 blocos), desde a primeira, abaixo reproduzida, sobre Macbeth, que é de 31 de julho de 2011. Ou seja, dentro de SEIS domingos, ele poderá comemorar 500 colunas (e alguns milhares de livros citados paralelamente). Trata-se de um dos mais vigorosos empreendimentos culturais do e no Brasil, à altura de um Wilson Martins, que publicou sete volumes da História da Inteligência Brasileira, falando, se possível, de todas as obras produzidas no Brasil, ou por brasileiros, desde o século XVI até os anos 1970.

A mais recente, logo abaixo, é de 18 de fevereiro de 2024. Ou seja, neste domingo, 25 de fevereiro, teremos uma nova, a qual acessarei assim que disponível (estamos na madrugada do domingo).

Mas não se trata de apenas uma resenha de UM livro cada domingo. Paralelamente, Arnaldo Godoy cita muitas outras obras. Por exemplo, coloquei as notas remissivas para a sua resenha de Macbeth, ao final desta postagem: 

Começo pelos mais recentes, ou seja, das últimas semanas de 2023 e as primeiras de 2024:

RECENTES:

(...)

Passo agora para o primeiro bloco, o 38. do total, com resenhas desde 2011.

Citações desta primeira coluna sobre Macbeth: 

[1] BRADLEY, A. C., A Tragédia shakespeariana, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 255. Tradução de John Russell Brown.

[2] Cf. MOURTHÉ, Claude, Shakespeare, Porto Alegre: L & PM, 2010, p. 164. Tradução de Paulo Neves.

[3] Cf. FREUD, Sigmund, Os Arruinados pelo êxito, in Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1999, Volume XIV, pp. 331 e ss. Tradução sob direção de Jayme Salomão.

[4] Cf. HELIODORA, Bárbara, Reflexões shakespearianas, Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004, pp. 159 e ss.

[5] BORGES, Jorge Luís, Prólogos, com um prólogo de prólogos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 193. Tradução de Josely Vianna Baptista.

[6] BLOOM, Harold, Gênio- os 100 autores mais criativos da história da literatura, Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 44. Tradução de José Roberto O´Shea.

[7] Cf. HONAN, Paul, Shakespeare, uma vida, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 399. Tradução de Sonia Moreira.

[8] Cf. CARBER, Marjorie, cit., loc.cit.

[9] Cf. FREUD, Sigmund, cit., p. 335


Trabalho excepcional, que deveria ser publicado em formato de livro digital, para podermos acessar facilmente as quase 500 colunas produzidas.


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 25 de fevereiro de 2024

sábado, 17 de fevereiro de 2024

'Juristas na Academia Brasileira de Letras', de Fabio Sousa Coutinho - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Embargos Culturais, Conjur)

A Academia abriga um número razoável de juristas, talvez tanto quanto "literatos".  

'Juristas na Academia Brasileira de Letras', de Fabio Sousa Coutinho

11 de fevereiro de 2024, 8h00

Para quem gostamos do selo Direito e Literatura é fascinante a leitura de Juristas na Academia Brasileira de Letras, de Fabio Sousa Coutinho, publicado pela Thesaurus. Fabio é notável escritor e advogado. Preside a Academia Brasiliense de Letras (ABrL) e a Associação Nacional de Escritores (ANE). Segue linha de juristas-literatos de renome, a exemplo de Hermes Lima e de Cândido Motta Filho, ambos ministros do STF, e que Fabio sucede na ABrL e na ANE. O prefácio é de Rossini Corrêa, com instigante referência a Thoth, o deus egípcio da escrita.

Em Juristas na Academia Brasileira de Letras, Fabio enfrenta nas entrelinhas um problema epistemológico nada arcano: os limites entre a Literatura e o Direito, no contexto das respectivas formas expressivas. Pode-se afirmar que a expressão jurídica (petições, sentenças, pareceres, atos normativos, perorações no júri) faria parte no conjunto de manifestações literárias? A literatura jurídica pode estar no cânon? A literatura só pode ser ficcional?

Lógica sem sentido
Aquiescendo-se com essa última pergunta corre-se o risco de afastarmos da grande biblioteca-paraíso de Borges as biografias, a memorialística, a filosofia e a história. Perderiam a condição de literatos autores como Diógenes Laércio, Plutarco e Heródoto ou, entre nós, Jorge Caldeira, Antonio Carlos Villaça e Capistrano de Abreu, além de Sérgio Buarque de Holanda, só para começar.

E há também o problema do teatro, que só é teatro quando representado, porque do contrário parece ser só literatura. Um problema teórico para João Roberto Faria (Ideias Teatrais – o Século XIX no Brasil) e para Sábato Magaldi (Moderna Dramaturgia Brasileira). Há uma pista nas aulas de Anatol Rosenfeld (A Arte do Teatro) para quem “o teatro é mais antigo do que a literatura e não depende dela”.

Jorge Amado, nessa lógica sem sentido, não poderia ser um jurista na Academia, ainda que formado em Direito, e ainda que recorrentemente tratando de advogados, chicanas e injustiça em seus textos. Recomendo Ideias Penais na Obra de Jorge Amado, de Sérgio Habib. Interessante o estudo de Habib sobre o Capitão Justo, de Tereza Batista Cansada de Guerra. Imperdível também Direito Penal na Literatura, de José Osterno Campos de Araújo, cujo estudo sobre a consciência da ilicitude em Tchekhov é imbatível.

Nesse campo, há situações-limite. Refiro-me a Gilberto Amado, um de nossos maiores memorialistas, que lecionou Direito Penal e que deixou vários pareceres como consultor-jurídico no Itamaraty, sucedendo a Clóvis Beviláqua. Pode-se fixar Gilberto Amado no quadro imaginário de juristas, como pretendeu Márcio Garcia, ou trata-se a pergunta de um falso problema? Na mesma linha, Candido Motta Filho, ainda que este último tenha ido para o STF. Gilberto Amado viajou pelo mundo, foi diplomata na Finlândia, onde lia, lia, lia, e lia mais ainda. Para Gilberto Amado, “ler na cama desafia qualquer outra felicidade a ser usufruída por um homem inteligente”.

Dilema resolvido
A relação prática entre Direito e Literatura parece ser o maior dilema que Fabio resolve em seu belíssimo livro. O que faz de um jurista um literato e o que faz de um literato um jurista? Leiam. Fabio divide o livro em quatro dimensões de tempo: os juristas fundadores da Academia, a geração posterior, os eleitos no pós-guerra e os atuais ocupantes.

Entre esses últimos, atuais ocupantes, elenca Joaquim Falcão, Celso Lafer e Alberto Venâncio Filho. Venâncio é também notável historiador da educação jurídica brasileira, autor de Das Arcadas ao Bacharelismo, livro indispensável para a compreensão de nossos currículos bacharelescos. Lafer e Falcão também são educadores, pontificando na USP e na FGV.

Fabio começa o livro inventariando as presenças de Rui Barbosa, Lúcio de Mendonça, Clóvis Beviláqua, Joaquim Nabuco e Rodrigo Octávio. Octávio foi ministro do STF e antes, ao longo de boa parte da República Velha, foi consultor-geral da República.

Octávio, Rui Barbosa e Nabuco
No início da década de 1920, o então consultor-geral da República, Rodrigo Octávio, respondeu consulta a propósito de projeto referente à construção de um monumento ao Cristo Redentor, no alto do Corcovado. Havia, à época, alguma dúvida sobre a constitucionalidade da iniciativa. Octávio opinou pela impossibilidade de se erguer o referido monumento, que significaria resistência ao Estado laico. O governo não ouviu a opinião. O monumento foi erguido. E hoje é símbolo da cidade do Rio de Janeiro.

Fabio simbolicamente inicia o capítulo dos fundadores com Rui Barbosa, símbolo mais consistente do beletrismo com o Direito. Rui não deixou obra literária de ficção propriamente dita. Deixou-nos artigos de jornal, cartas, petições, pareceres. Fabio menciona o parecer sobre a redação do Código Civil, e menciona também o discurso fúnebre de Rui no enterro de Machado de Assis. Para Fabio, esse discurso é “uma das mais belas peças de retórica já escritas em nosso idioma”. Não há como discordar. É tocante. Fabio nos lembra que o 5 de novembro, data do aniversário de Rui, é, por lei, o Dia Nacional da Cultura.

Todo o livro é repleto de informações relevantes e de referências cruzadas, que revelam que Fabio leu tudo e todos. Aponta a impressão de Evaldo Cabral de Melo em relação a O Abolicionismo, obra central na vida também política de Joaquim Nabuco. Nabuco notabilizou-se pela extraordinária capacidade de argumentador, aglutinador e de líder pela inteligência.

Nabuco é o retrato mais bem-acabado da cultura brasileira da segunda metade do século 19, proscênio de patriarcas e bacharéis (na impressão de Luís Martins), espremidos por um remorso incurável que os atingia desde o ocaso do Imperador, que deixou o país num vapor noturno, como se fosse um escravo fujão, nas próprias palavras de Sua Majestade. Fabio registrou a influência de Walter Bagehot em Nabuco, no ponto em que fixou as compreensões de direito público que permeiam a obra desse grande diplomata e campeão da causa abolicionista.

Pujol e Carneiro
Na segunda parte chama a atenção aos apontamentos sobre Alfredo Pujol e sua importância para um resgate sistemático da obra de Machado de Assis. Talvez na mesma extensão em que Pujol sistematiza o Pai Fundador da Academia do ponto de vista de suas obras, Lúcia Miguel Pereira o fez em relação à vida de Machado. Não nos esqueçamos que Fabio Coutinho é o biógrafo de Lúcia Miguel Pereira. Pujol, Lúcia Miguel Pereira e Raymundo Faoro (A Pirâmide e o Trapézio) são os três autores a partir dos quais pode se começar a estudar Machado de Assis. Faoro está no livro de Fabio.

A passagem sobre Levi Carneiro também é muito oportuna. Carneiro (que foi também consultor-geral da República) é o redator do célebre parecer que resultou na criação da Ordem dos Advogados do Brasil. Fabio menciona um livro que eu não conhecia (Livro de um Advogado, de Levi Carneiro, de 1964) que deve ser fundamental para a compreensão de uma liga de advogados: não se trata de um sindicato, há também um alicerce ético e moral na confraria.

Resgate, reminiscência e homenagem
Em cada um dos juristas literatos inventariados há muita informação. Há passagens memoráveis, a exemplo da reação de Hermes Lima para com Costa e Silva, quando do expurgo no STF. Cada um dos acadêmicos mencionados por Fabio sugere que retomemos várias obras, a partir de uma perspectiva não necessariamente funcional, que é a perspectiva predominante quando lemos, por exemplo, Pontes de Miranda. O jurista alagoano é muito oportuno para problemas práticos de Direito Privado, ainda que nos guie também no Processo e na Constituição, mas é também um filósofo do Direito.

Fabio captou também que há enorme intersecção política no contexto do templo da Avenida Presidente Wilson 203, no Rio de Janeiro, o que se percebe com Afonso Arinos de Melo Franco, um de nossos mais exuberantes memorialistas, sem quem não se entende a história da política brasileira no século 20.

A lembrança de Pedro Calmon também é instigante, porque Calmon é um polímata incomparável. Fabio escreve sobre Oscar Dia Corrêa, de quem foi aluno de Economia Política no “velho casarão da Rua do Catete”. Fabio menciona também Antonio Carlos Sechin, bibliófilo, membro da ABL, colega de turma, e autor da “orelha” de Viagem com Dante”, de Oscar Dias Corrêa.

Fabio, além de cultíssimo, é bem-humorado e inspirado: faz no livro duas referências a um grupo de ludopédio, que tanto estima, quase obsessivamente, e que nos lembra a Rua Álvaro Chaves, 41, em Laranjeiras, e que atende por um quase gentílico que nos evoca um substantivo masculino de origem latina que se reporta a um rio. Para Fabio, uma das virtudes de Evaristo de Moraes Filho fora justamente o apreço pelo grupo mencionado, de quem também era um grande torcedor. De que time estou falando?

Juristas na Academia Brasileira de Letras, de Fabio Sousa Coutinho, é, ao mesmo tempo, resgate, reminiscência e homenagem. É memória viva e afetiva de um escritor militante. Fabio escreve sobre quem e sobre o que gosta, e é por isso que gostamos de seus livros: gostamos dos mesmos temas e dos mesmos autores.

Juristas na Academia Brasileira de Letras também é um desafio. Fabio descortina um problema, relativo à fixação das fronteiras entre a pessoa de letras e a pessoa de leis. Um campo novo, a ser explorado, que renova o repertório temático do selo Direito e Literatura.

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.