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domingo, 22 de outubro de 2017

Como vencer a transicao: Consequencias economicas da vitoria, parte 4 (4-2002) - Paulo Roberto de Almeida

Ainda fiz um último esforço para ajudar os companheiros – isso antes mesmo do segundo turno – já antecipando sobre as próximas etapas da governança: montagem do gabinete, preparação das políticas a serem implementadas, essas coisas. Pouca gente, se alguém, me leu, mas eu escrevia sobretudo para mim mesmo, para ter ideias claras sobre a governança do Brasil.
Nada do que eu prescrevi deu certo, o que era óbvio, mas nada impede que meus "ensinamentos" continuem a servir ainda hoje a novos candidatos a estadistas do Brasil. Eles não faltam mas invariavelmente falham, por mediocridade de formação, por deformação de carreira, por má influência de oportunistas e de todos os bandidos que se aproximam do poder para lucrar e enriquecer. O poder é isso mesmo: um pote de mel que atrai os mais gananciosos.
Espermos que um dia isso mude. Por isso escrevo e mantenho a esperança...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Como vencer a transição:
recomendações espontâneas sobre como alcançar a vitória na subida ao poder
(da série: Consequências econômicas da vitória, parte 4)

Paulo Roberto de Almeida
(Washington, 20/10/2002)

            Dando continuidade a minha série de reflexões sobre a nova situação política criada com a mudança da maioria social de governo no Brasil – já consubstanciada em trabalhos sobre aspectos pouco usuais do pensamento mudancista – , pretendo tocar mais de perto, não nos elementos constitutivos de um “manual para a nova economia política”, que estava compondo de maneira algo improvisada, mas em uma série de pontos de caráter mais tático do que estratégico, que visam chamar a atenção para problemas do curto prazo, condizentes aliás com a transição relativamente longa que se vive no sistema político brasileiro. Esses pontos podem ser sumariados nas tarefas seguintes:

1) Unificar o discurso
2) Falar ao País, não ao partido
3) Dirigir-se ao mundo, seletivamente
4) Tranquilizar os agentes econômicos
5) Designar os principais assessores, depois negociar
6) Recompor um programa de governo
7) Atender a circunstâncias excepcionais
8) Indicar as linhas do discurso de posse
9) Estruturar as bases do apoio congressual
10) Preparar-se para o pior, manter a mensagem otimista

            Não se trata obviamente de uma lista exaustiva, ou de um “manual para a fase de transição”, mas de alguns pontos que me parecem de consideração relevante na presente conjuntura, a partir de uma observação prática de outros momentos de transição para uma nova maioria, no Brasil e no exterior. A ordem não é essencial, mas pode ser importante.

1) Unificar o discurso
            Trata-se de uma regra absoluta, válida em qualquer momento, em qualquer circunstância do jogo político, por isso vem em primeiro lugar. A liderança fala de uma voz única, ou quando ela não é única é pelo menos unificada, homogênea, concordante, sobretudo em matéria econômica, terreno no qual os perigos são maiores do que em qualquer outro, dadas suas consequências potencialmente catastróficas. Pequenos chefes e porta-vozes auto-assumidos têm de ser alertados para os efeitos nefastos da chamada “dupla linguagem” e o comando central tem de saber impor um discurso uniforme e, portanto, tranquilizador. Em operações militares não pode haver dualidade de comando, e a arte da política tem regras muito semelhantes.

2) Falar ao País, não ao partido
            Quaisquer que sejam os resultados de 27 de outubro, o corpo eleitoral e, mais importante, a Nação permanecerão divididos, independentemente do que diga ou faça o vencedor. A desconfiança em relação ao novo centro de poder é obviamente muito maior no caso de uma mudança importante no centro de gravidade política como a que acaba de ocorrer, com temores infundados e animosidades involuntárias aflorando mesmo na ausência de motivos objetivos para tal estado de espírito. Trata-se de um sentimento talvez exagerado mas não de todo inesperado, dada a situação de incerteza que reina no País sobre diversos aspectos da nova realidade política.
            Contado o resultado do pleito de 27, o vencedor não pertence mais a um partido ou a uma coalizão, mas trata-se de um líder nacional. Por isso, a primeira palavra não deve ser aos seus seguidores mas à Nação, ainda que esse pronunciamento contenha palavras de agradecimento a todos aqueles que tornaram possível a vitória. Esta contudo já pertence ao passado e à História e o que conta doravante é a construção de algo novo, que não será a realização pura e simples da agenda partidária – a Nação ainda está dividida, lembre-se – mas a busca de um novo consenso em favor do conjunto da coletividade. Esqueça por um momento os grupos sociais e os problemas locais, com exceção de uma menção ampla aos excluídos e marginalizados, pois que os interesses começam justamente a divergir quando se mencionam categorias específicas da população. O discurso ao País deve ser unificador e consensualizador, e todas as referências partidárias – de fato todas as vinculações – devem ficar para trás ou em segundo plano. O tom elevado deve ser mantido durante todo o exercício.

3) Dirigir-se ao mundo, seletivamente
            Não cabe ao eleito dirigir mensagens a quem quer que seja, e sim recebê-las e depois respondê-las, em tom formal, cerimonioso, anódino, pois ninguém faz política externa em mensagens de cumprimentos e agradecimentos, salvo algumas referências óbvias à importância e relevância das relações bilaterais e do direito internacional. Cabe, sim, cuidadosamente, planejar eventual viagem pré-posse, já que a teia da globalização e os compromissos em curso não permitem uma espera passiva pela chegada da agenda externa à sua mesa.
            Não será possível cobrir todos os pontos de interesse, ou mesmo aqueles ditos principais, colocados burocraticamente no capítulo de relações exteriores do programa, mas seria preciso ter uma visão clara de onde estão as prioridades na frente externa, que não são necessariamente os pontos que oferecem soluções aos problemas, mas podem ser aqueles que representam a própria fonte desses problemas, ou pelo menos onde um início de solução pode ser encontrado e encaminhado.
            De modo geral, contudo, a raiz de nossos principais problemas encontra-se aqui mesmo no País, são mazelas “Brazil-made” e auto-infligidas, estando sua solução inteiramente sob nosso controle e responsabilidade, sendo não apenas derrisório como francamente inútil buscar suas causas no estrangeiro. O mundo vai aceitar o Brasil como uma grande democracia consolidada, que está justamente dando enormes passos no sentido de resolver internamente seus piores problemas de injustiça social e de miséria residual, de corrupção latente e de desigualdades gritantes no exercício e no gozo dos mais elementares direitos da cidadania. Se nos dedicarmos a isso de forma consequente, com ou sem a cooperação internacional – pois que esta eventualmente está voltada para os ainda mais carentes do que nós – teremos o respeito e a consideração da comunidade internacional. Todo o resto é secundário, inclusive a política externa, que deve ser vista como o prolongamento da política interna por outros meios. Nosso principal problema é o de assegurar uma educação de qualidade a todos os brasileiros? Que seja! Este deve ser também o objetivo da política externa. O prestígio externo será o resultado de termos alcançado aquele objetivo na frente interna, não a consequência de qualquer novo ativismo no plano externo.

4) Tranquilizar os agentes econômicos
            Não se pode negar um ambiente de turbulência na frente econômica, o que é próprio de todas as fases de transição, sobretudo as de nítido sentido paradigmático como a que agora se empreende. Por isso caberia fazer o máximo para restabelecer a confiança dos agentes sociais, pois são eles que garantem, em última instância, o comportamento da conjuntura econômica. Por agentes deve-se entender todo mundo, não apenas o banqueiro e o industrial, eventualmente o investidor estrangeiro, mas também o assalariado e a dona de casa, que se preocupa com sua poupança duramente adquirida, a única garantia de uma velhice um pouco menos sofrida.
            Provavelmente mais da metade da economia é feita de uma mercadoria básica que se chama confiança – na moeda, na capacidade de compra dos salários, no retorno dos investimentos, mesmo aqueles mais arriscados ou especulativos – e a confiança é um elemento terrivelmente difícil de se adquirir e muito fácil de se perder. A componente psicológica de qualquer programa econômica é provavelmente maior do que a de seus elementos matemáticos mais consistentemente lógicos, e de fato não há muita lógica na reação dos agentes econômicos a qualquer fato ou dito no terreno econômico. Cabe inteiramente aos dirigentes econômicos e, em última instância, à liderança política inspirar confiança nos cidadãos enquanto agentes econômicos.
Essa confiança não cresce apenas com a abertura ao diálogo, mas sobretudo com a capacidade demonstrada de tomada de decisão. Há um momento, portanto, em que as consultas precisam ser interrompidas e a decisão anunciada. Ela não vai, não pode, satisfazer a todos ao mesmo tempo, e de fato alguns serão mais sacrificados do que outros. Mas a liderança se afirma, justamente, no momento de explicar claramente a natureza do problema e o sentido da decisão tomada, como sendo a de menor custo social possível, da maneira mais transparente e compreensível a todos os agentes econômicos, mesmo os mais humildes.

5) Designar os principais assessores, depois negociar
            Trata-se de uma derivação da regra anterior, especificamente voltada para a área econômica, pois que uma máquina governamental não pode, pela sua complexidade, emergir pronta de um embate eleitoral. Sua construção é por vezes lenta e penosa, o que justamente alimenta os focos de turbulência econômica, que caberia extinguir em seu início. De todo modo, trata-se do núcleo central de comando, que deve não só dispor da, como corresponder à, confiança total do novo líder, sendo junto a ele responsável, à exclusão de qualquer jogo partidário ou congressual. Por isso caberia designar a equipe econômica que vai começar a trabalhar na primeira fase da transição, dando-lhe inteiro respaldo e preservando-a das inevitáveis barganhas das demais escolhas.
            Uma vez feito isso, pode-se sentar para ouvir velhos aliados e novos amigos, antigos militantes e apoiadores de última hora, sem negociar o que é essencial, isto é, a capacidade governativa no núcleo central. Há que preservar uma certa coerência na máquina governamental, mas algumas concessões terão de ser feitas à esquerda e à direita (sem esquecer o centro), literalmente. Ainda que a montagem seja política, a competência técnica deveria prevalecer sobre indicações meramente partidárias, uma vez que a responsabilidade final sempre incumbe ao presidente, não aos partidos da base aliada.

6) Recompor um programa de governo
            Não se pode pensar que o calhamaço de propostas contidas no programa de campanha (metade do qual era aliás composto de críticas à situação corrente) constitua uma base credível de ação governativa, ainda que as sugestões ali contidas sejam um indicador razoável da filosofia geral pela qual vai se pautar a nova maioria. Mas cabe agora preparar um novo documento de diretrizes executivas, nas quais ficam excluídas todas as considerações (mais ou menos impressionistas) sobre o quão deletéria era a situação anterior. Algumas críticas nesses sentido são até aceitáveis, inclusive como forma de transferir responsabilidade pelas dificuldades encontradas no momento mesmo da transição (“a herança recebida é pior do que se esperava”, etc.), mas a ideia é que se tenha agora não um manual completo de governo, mas uma agenda de ações prioritárias para os primeiros seis meses de governo, enquanto se faz o “balanço acurado” da situação e se procede a elaborar um novo orçamento, levando em conta essas novas prioridades, que não são necessariamente as mesmas que as da fase mais imediata de governo.
O programa de governo é o que poderá ser levado adiante com a nova maioria congressual, o que vai ficar claro já nas primeiras conversações para a formação da primeira equipe de governo – estaremos vivendo uma situação semi-parlamentarista – e ele será necessariamente menos ambicioso do que as grandes mudanças prometidas no programa de campanha, sendo sobretudo despojado do tom grandiloquente – ainda que possa continuar sendo tão vago quanto – que marcava aquele documento. De preferência será curto, preciso, objetivo, sem adjetivos, indicando claramente para onde vai dirigir-se a ação governamental, numa primeira fase pelo menos. Lembre-se de que não será possível contentar a todos e assim certos problemas não serão necessariamente tocados. Isso não deve ser motivo de angústia, pois ninguém espera, sobretudo os mais esclarecidos, que a nova situação resolva tudo em seis meses.
O essencial seria preservar a estabilidade econômica – sem a qual a situação dos mais pobres estará imediatamente comprometida – e iniciar um processo de “reversão de expectativas” que confirme que, por uma vez, o bem estar dos mais humildes será, sim, a preocupação principal da nova maioria política. Não vai aqui nenhuma recomendação em favor do assistencialismo, muito pelo contrário, pois que medidas de cunho social podem ser mobilizadas mediante políticas universalistas de investimentos nos setores mais suscetíveis de alcançar a maioria da população: educação, saúde, infraestrutura social, capacitação profissional, segurança pública. O emprego será uma decorrência disso, não do favorecimento de grupos de interesse mediante políticas ativas nos setores industrial ou comercial.
Falou-se em “recompor”, não rescrever um programa de governo, o que indica que sua essência virá daquele primeiro documento, ainda que revisto por uma maioria que não será mais exclusivamente partidária, ou aliancista. Ainda assim, caberia rever certos cacoetes de linguagem que se acumulam em longos anos de autismo militante.

7) Atender a circunstâncias excepcionais
            Não se pode negar que o Brasil vive circunstâncias excepcionais, não apenas pela mudança política em curso, mas também pelo nível anormalmente alto de turbulência econômica, real e percebida, justamente motivada em grande medida pelo caráter inédito da transição na área política. Não apenas se deve evitar que a situação se deteriore ainda mais na fase de transição como caberia buscar ações conjuntas para restabelecer o precário equilíbrio anteriormente prevalecente, antes de se pensar em fatores mais permanentes de estabilidade macroeconômica.
            O papel da liderança política e o do discurso unificado são aqui essenciais, mas caberia encerrar a “muralha da China” que até agora dividiu “nós e eles” na área da administração econômica e passar a trabalhar conjuntamente na solução de um problema que é nacional, não político ou partidário. Determinados bens públicos devem ser preservados além e acima das querelas ideológicas e a situação econômica é um deles. Eventualmente, medidas excepcionais serão necessárias, antes mesmo da assunção ao poder, o que exige, antes de mais nada, o abandono da postura do “eu não disse?” em favor da adoção de uma atitude de responsabilidade compartilhada no acolhimento dos custos – inclusive políticos – derivados de medidas restritivas ou de ajuste emergencial.
            A liderança política se fortalece em situações de comoção nacional, mas a margem de manobra é muito estreita no terreno econômico, o que recomenda uma avaliação cuidadosa das opções disponíveis e uma corajosa defesa da decisão tomada nessas circunstâncias excepcionais.

8) Indicar as linhas do discurso de posse
            As incertezas tendem a ocupar o espaço político – e estender-se ao terreno econômico – por isso seria recomendável não esperar até o dia da posse para revelar algumas das grandes linhas de atuação da futura administração. Isso ocupa os jornalistas e movimenta as colunas de comentaristas, mas esta não deve ser a principal motivação da nova liderança, e sim o próprio fato de avançar para a sociedade alguns elementos da ação governativa que estará sendo implementada no momento devido. Essas indicações não precisam ser na linha das “rupturas” e “continuidades”, mas podem retomar os pontos principais do novo programa de governo, o que significaria portanto destacar mais os elementos afirmativos da futura ação governamental do que as críticas à herança recebida (ainda que algum “exagero” seja aqui compreensível).
            Uma coisa é certa: deve-se terminar de uma vez por todas com aquelas entrevistas de porta de carro ou de descida de avião, pois microfones agressivos e perguntas confusas raramente resultam em boas exposições de ideias. Não há mais improvisação possível e toda declaração tem uma “massa atômica” específica e um peso político próprio. Por isso, as poucas declarações gerais dadas em caráter coletivo antes da posse deverão aproximar-se o mais possível do próprio discurso de posse, para diminuir as tensões naturais que emergem a partir das grandes transições. Uma vez definida as linhas do novo tipo de consenso tranquilo, deve-se ater a esses elementos conceituais na fase de transição.

9) Estruturar as bases do apoio congressual
            Tarefa gigantesca, por certo, mas não tão difícil quanto parece, pois parece haver um natural adesismo – mais do que oposicionismo de princípio – por parte de toda nova legislatura em situação de inauguração presidencial. As ofertas de colaboração virão dos redutos mais inesperados – alguns até suspeitos, e que caberia descartar sem parecer grosseiro – e o esforço deveria ser feito na direção da preservação da plataforma de ação, mais do que na manutenção das velhas trocas de favores da antiga situação política.
            Ainda aqui caberia ter presente de que o melhor para o Brasil seria não se ter um governo de um partido, ou de uma coalizão, mas um governo nacional que procuraria atuar a partir de suas bases naturais de apoio no Congresso, com ampla latitude de meios e muito pragmatismo, em função mais de resultados efetivos do que de velhas bandeiras ideológicas. Afinal, o novo governo, no executivo ou no legislativo, deve estar primariamente interessado na eficácia de suas ações, não na sua conformidade a qualquer cartilha política do passado. A clareza de propósitos deve servir como elemento de pressão do ponto de vista da opinião pública, que por uma vez estará satisfeita de saber que velhas práticas clientelísticas e fisiológicas da situação anterior não estariam sendo herdadas – ou em todo caso não serão privilegiadas – na nova situação.
            Não custa nada lembrar que teremos um presidencialismo congressual – falou-se anteriormente em semi-parlamentarismo – ou pelo menos uma situação na qual os dois poderes terão de trabalhar conjuntamente, provavelmente mais do que em qualquer outra época da história política brasileira, salvo na do próprio regime parlamentarista de 1961-63 (mas se tratava de uma construção artificial e de mero expediente). Essa situação não é intrinsecamente perversa do ponto de vista da ação administrativa, mas exigirá o abandono de alguns cacoetes do passado, como aquelas situações em que o presidente se dirige “diretamente ao povo”, passando por cima das prerrogativas congressuais.  Melhor ter essa situação muito clara desde o início, inclusive porque o Brasil ganharia em evoluir para um tipo de regime no qual as maiorias presidenciais deixem de se chocar com as maiorias congressuais (uma das maiores fontes de instabilidade política em nossa história).

10) Preparar-se para o pior, manter a mensagem otimista
            Não seria conveniente agitar de público a gravidade da situação econômica, mas o Brasil parece estar atravessando uma dessas conjunturas de turbulência – típicas num passado não tão remoto – nas quais a mudança política e as incertezas administrativas associadas a maiorias divergentes no executivo e no legislativo podem afetar a estabilidade econômica. Em todo caso, qualquer mudança tem um custo, ainda que ele seja simplesmente o da substituição de pessoas e o da descontinuidade temporária da maior parte das atividades administrativas.
            Neste caso específico, a sociedade pretendeu a uma mudança de maior magnitude e ela tem de saber que isso também tem um custo maior, o que geralmente se traduz pela retração geral das atividades econômicas e do investimento produtivo, quando não ocorre o fenômeno do “desinvestimento” e o da fuga de capitais, ainda que para “dentro” do País (mas para fora do sistema bancário oficial). A desconfiança no valor da moeda é o sinal mais claro desse desconforto com a mudança, que não resulta necessariamente da obra de “especuladores” ou outros conspiradores externos. Tudo isso precisa ficar claro para a nova maioria, que não pode perder o sangue frio e sair buscando “bodes expiatórios” e culpados de ocasião. A instabilidade é intrínseca à mudança, não um dado externo importado involuntariamente.
Por isso caberia preparar-se para o pior, isto é, para uma deterioração ainda maior da situação econômica nos próximos meses, ainda que mantendo um discurso otimista – ou moderadamente realista – sobre a superação da presente fase de turbulências. Seria preciso estar pronto a adotar com coragem um conjunto de medidas de distribuição de sacrifícios – pois que é disso que se trata – que será inevitável implementar caso essa hipótese pessimista se confirme. Mais uma vez, unificação do discurso e capacidade de tomada de decisões são os elementos-chave para a superação das turbulências, além, é claro, de se ter uma ideia clara do que se pretende resguardar: se a estabilidade econômica ou se a passagem a um “novo modelo econômico”, que resta largamente indefinido em seus contornos básicos.
            Os verdadeiros líderes se formam na hora da borrasca, não em situações de mares tranquilos, e eles são capazes de infundir tranquilidade em seus liderados mesmo nas horas mais sombrias do panorama político ou econômico de um país. O Brasil não tem nenhuma grande tragédia nacional, graves fontes de instabilidade econômica ou algum manancial de constantes terremotos políticos, mas ele tem uma miríade de pequenas-grandes tragédias sociais que podem ser agravadas em caso de rompimento de alguns consensos básicos. Mais uma vez se adverte: o sentido da ação é nacional, não partidário ou setorial.
            A nova maioria tem todas as condições de realizar uma transição bem sucedida para uma situação de mudanças incrementais em favor de uma nova agenda social, desde que ela não contribua para a erosão da situação econômica ou pretenda modificar por fora e por cima o tecido social. Ações voltadas para os excluídos permitirão construir de modo imperceptível as bases da mudança desejada, mais do que grandes discursos contra os incluídos (aqui compreendidos não só banqueiros e industriais, mas sindicalistas, funcionários públicos e universitários em geral).
As maiores rupturas, na verdade, não são aquelas contra a “velha ordem” – em grande medida já vencida ou pelo menos acomodada à nova situação –, mas contra as antigas formas de pensar e de conceber políticas, que por vezes impedem a incorporação da imaginação criadora ao novo modo de fazer política que agora se pensa implementar.

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 969
Esquema: 16 de outubro de 2002
Desenvolvimento: 20/10/2002


Ver os outros trabalhos desta série nas postagens precedentes.

1. Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!: As consequências econômicas da vitória (ou: manual de economia política para momentos de transição); 22 de setembro de 2002;
2. Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil: As consequências econômicas da vitória, 2ª parte; 29 de setembro de 2002;
3. Preparado para o poder?: pense duas vezes antes de agir: As consequências econômicas da vitória, parte 3; 8 de outubro de 2002.

Consequencias economicas da vitoria do PT (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Continuando em meus exercícios pedagógicos para instruir os companheiros nas artes da governança, eu formulava no artigo abaixo, um segunda série de recomendações, que encontrava importantes para um bom exercício do poder.
Eu ainda achava -- que ingênuo eu era -- que eles eram educáveis, flexíveis, e que iriam exercer o poder de acordo com o que pregavam em seus textos pré-eleitorais. Eu sabia que entre eles havia bandidos, como em qualquer partido, só não imaginava que seriam tantos, e em tão alto grau de desfaçatez no roubo, na fraude, na falcatrua. Mas isso só deu para perceber quando começaram a mentir deslavadamente logo depois de terem assegurado a vitória, quando também passaram a abusar das facilidades do poder em causa própria. O resto é história.
Mas, naquela altura – e estou falando aqui de 29 de setembro, ou seja, antes mesmo das eleições – eu pensava que eles poderiam ser educados...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil:
As conseqüências econômicas da vitória, 2ª parte
(da série: manual de economia política para momentos de transição)

Paulo Roberto de Almeida



Introdução: os grandes temas de “economia internacional” da nova maioria

Depois de ter divulgado o primeiro artigo desta série, apropriadamente intitulado “Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!” (ver postagem anterior), no qual eu discorro sobre o novo centro político que está se formando no Brasil a partir da transição operada na campanha eleitoral presidencial, com algumas recomendações de política econômica pela vertente teórica ou conceitual, pretendo, neste segundo ensaio, abordar algumas questões práticas da “economia política externa” com as quais terá de se haver a nova maioria política. A justificativa é a de que elas são as mais suscetíveis de introduzir elementos de turbulência na gestão macroeconômica do País, que passa a estar sob a responsabilidade do novo centro, uma vez que essas questões já foram responsáveis, como se sabe, por toda uma série de tremores e suores frios nos mercados cambial e de títulos da dívida externa durante a maior parte da campanha presidencial.
Quais seriam os temas que integrariam um manual de economia internacional capaz de atender às necessidades da fase de transição a uma “nova economia política”? Eles seriam resumidamente os seguintes:
1. Desequilíbrios das transações correntes (“exportar é a solução?”);
2. Dívida externa (e suas relações com a dívida pública interna);
3. Regime cambial e paridade do real (“Chamem um operador experiente!”);
4. Controles de capital (e outros remédios amargos);
5. Relações com o FMI e pacotes de ajuda financeira (consenso sobre o dissenso);
6. Mercosul, Alca e OMC (malabarismos subregionais, hemisférico e multilateral);
7. Relações econômicas e políticas com o Império (não tem como escapar);
8. Investidores estrangeiros, especuladores internacionais et caterva (“Hello boys”);
9. Outros assuntos pertinentes (inclusive o valor de troca dos economistas da casa).

A bibliografia disponível sobre um possível bridge-building conceitual entre a nova síntese neoclássica e a “velha” teoria do valor (iniciada por Adam Smith, retomada por Ricardo e continuada por outros nomes mais famosos) não é muito extensa, razão pela qual seremos obrigados a operar sem notas de rodapé, o que em contrapartida facilita muito a leitura. Por outro lado, as bases conceituais da economia política do novo centro político estão obviamente mais perto do pensamento prebischiano e furtadiano do que do lado da teoria clássica do comércio internacional ou mesmo da nova teoria do comércio estratégico. Para o primeiro, que tende a se opor à globalização na medida em que ela ameaça as bases da soberania econômica nacional, o importante é romper a dependência por meio de um projeto de desenvolvimento econômico que garanta fontes autônomas de acumulação, em bases nacionais, ao passo que a segunda não apenas aceita como também recomenda a interdependência ativa, como forma de se lograr patamares mais elevados de avanço tecnológico. Nos últimos tempos, contudo, a “nova economia política” tem aceito algum tipo de composição com a abordagem liberal, muito embora ela ainda tenha dificuldades em admitir certas implicações práticas dos (sempre erráticos, por definição especulativos) movimentos financeiros internacionais ou as conseqüências indesejadas do livre-comércio. A “coexistência pacífica” tem porém avançado, lenta mas resolutamente.

1. Desequilíbrios das transações correntes (“exportar é a solução?”):
Trata-se de conhecido calcanhar de Aquiles da economia brasileira, desde que ela se organizou na era independente, sendo apenas compensados pelos saldos comerciais, o que estava difícil de se obter nos primeiros cinco ou seis anos de gestão neoliberal da economia, que permitiu a valorização cambial e abriu indiscriminadamente as portas às importações. A solução lógica é o aumento contínuo das exportações, algo bem mais consensual hoje em dia, mas que se chocava com uma antiga crença nas virtudes liberadoras do mercado interno.
Com efeito, há não muito tempo atrás os economistas chefes do novo centro proclamavam, com o aval da principal liderança, as “diretrizes” da “ruptura econômica”, que deveria ocorrer em vários níveis, entre eles a “inversão das prioridades da política econômica” e a “mudança do padrão de crescimento”, cujo núcleo dinâmico passaria a ser: ampliação do mercado interno, redistribuição da renda e substituição de importações, muito embora também se previsse um incentivo dirigido às exportações. Atualmente não se faz muita distinção entre mercado interno e externo, mas ainda subsiste o preconceito mercantilista contra as importações. Uma das soluções não precisaria tanto passar pela eliminação completa dos déficits de transações correntes, mas deve-se encontrar formas de financiá-los sem sobrecarregar demasiado a conta de capitais. Ademais da solução óbvia do aumento das exportações, uma das receitas recomendadas pelos economistas liberais seria aumentar a atratividade para os investimentos diretos, algo ainda não totalmente consensual na nova maioria, por duas razões muito simples: a sobrecarga futura sob forma de remessas relativas aos rendimentos do capital e uma desconfiança de princípio do capitalista estrangeiro (ele seria bem vindo, desde que aceitasse certos compromissos de desempenho ou atuasse em áreas selecionadas administrativamente como as mais benéficas do ponto de vista do governo, não do próprio capitalista).
Agora que a nova maioria assume o comando da economia que tal começar pela aprovação dos acordos de proteção e promoção recíproca de investimentos? Eles estão mofando há quase dez anos no Congresso porque incluem também ativos financeiros e porque ainda se acredita que cláusulas de arbitragem são lesivas à “justiça nacional”.

2. Dívida externa (e suas relações com a dívida pública interna):
O problema está mais na geração de divisas para o seu serviço – quase metade das exportações – do que na sua magnitude, pois se reconhece que a dívida externa é hoje em dia majoritariamente privada (a despeito do crescimento da dívida interna indexada em dólar). Em todo caso, parecem longe os dias da moratória soberana, da renegociação unilateral ou mesmo da auditoria dos contratos, tendo sido contudo proclamado o ponto central da redução da fragilidade financeira externa. Não há muito consenso sobre como fazê-lo, além do ponto óbvio da redução da demanda por empréstimos externos, mas essa questão também está ligada aos níveis internos dos juros, o que se constitui em outro aspecto, necessariamente mais complexo, da mesma realidade.
O Estado é um “despoupador” líquido, daí a necessidade de superávits primários, que quanto maiores, menor pressão sobre a taxa de juros provocará, mas os economistas do novo centro continuam proclamando a necessidade de se reduzir os patamares desses superávits, como forma de aumentar os investimentos e os gastos sociais, o que atua obviamente contra a redução dos juros e a diminuição da pressão sobre o real, cuja paridade está bastante ligada à crença (ou à suspeita) em torno da capacidade do governo em honrar os pagamentos da dívida externa. A boa notícia do ponto de vista prático está na aceitação da intangibilidade dos contratos externos e na assunção da responsabilidade fiscal como norma de administração pública, o que certamente contribuirá para a gradual superação desse nó financeiro e monetário em médio prazo.
Notável aqui como as antigas divergências de enfoque no tratamento da questão das dívidas deram lugar a um razoável consenso conceitual e prático sobre o “que fazer”. O aspecto bizarro é continuarem os economistas do novo centro achando que o governo argentino ficou aplicando políticas neoliberais durante todo o período, esquecendo-se eles que ele nunca conseguiu cumprir com o requisito mínimo, até recomendado pelo FMI, de redução dos déficits públicos. As diatribes ainda remanescentes sobre o pagamento de juros altos aos banqueiros devem ser debitadas à preservação de velhos cacoetes verbais.

3. Regime cambial e paridade do real (“Chamem um operador experiente!”):
A condenação da valorização cambial é absoluta, com toques de vingança pessoal e proclamações do tipo “nós cansamos de avisar” (o que economistas de direita também fizeram). O estruturalismo e a esquerda, de modo geral, sempre encontraram virtudes no modelo de desvalorização cambial, algo aliás recomendado pelo FMI em 99% dos casos de ajuste macroeconômico desde 1973. Se esquece, por outro lado, como o expediente deixa a todos mais pobres e diminui a pressão por ganhos de competitividade no setor produtivo. Todo mundo está portanto de acordo com a flutuação “suja” hoje praticada.
Caberia deixar o passado em paz e tentar olhar para o futuro, isto é, um naquele em que o real conseguisse não apenas sobreviver saudavelmente como moeda nacional independente, como constituir-se também em base da futura moeda comum do Mercosul, como proclamam os integracionistas mais afoitos do novo centro (esquecendo-se, por certo, da tremenda renúncia de soberania econômica e política que isso implica). Para que isso se faça, seria interessante assegurar que o objetivo principal do Banco Central seja a defesa da moeda (isto é, a luta contra a inflação), não a perseguição do pleno emprego ou outros objetivos ainda mais esdrúxulos (como a “taxa de desconforto” trabalhista).
Que tal começar por dar independência ao Banco Central e constituir um comitê de política monetária mais amplo e realmente independente? Quem se dá ao trabalho de ler as minutas das reuniões do Copom sabe como a política de metas de inflação constitui uma aproximação bastante razoável daquele objetivo primordial. A tentativa de fazer o Banco Central cumprir outras finalidades que não essa, basicamente, resultará, a médio e longo prazo, no enfraquecimento da moeda nacional e, com Alca ou sem Alca, na ameaça continuada de dolarização em algum ponto do futuro. 

4. Controles de capital (e outros remédios amargos):
Alguns economistas de esquerda falam de controles de capital com um sorriso nos lábios, quase com uma secreta satisfação de estarem “punindo” capitalistas fraudadores, especuladores estrangeiros e outros sócios da “volatilidade”. Existem obviamente vários tipos de controles, e o menos pernicioso deles – na entrada, por meio de quarentena ou imposto parcial – já foi aplicado pelo Brasil em fases mais receptivas de ingresso de capitais. Na verdade, o que aqueles economistas estão pensando são em controles na saída, o que apenas contribuiria para a volta do mercado negro, ágio cambial e corrupção, sub ou superfaturamento no comércio exterior e outras mazelas associadas.
Há uma imensa dificuldade do pensamento dito estruturalista em reconhecer as virtudes da livre movimentação de capitais (barateamento do custo do capital, rápida mobilização de recursos em momentos de necessidade etc.), como se o mundo tivesse vivido desde sempre em tempos keynesianos (cujas recomendações, se esquece, foram concebidas para uma Inglaterra decadente e carente de divisas). A oposição parece ser mais de caráter ideológico do que de ordem prática, pois é possível combinar a abertura cuidadosa do setor financeiro com o levantamento progressivo das últimas restrições à movimentação dos capitais, objetivo de toda forma dependente de uma superação mais permanente dos problemas crônicos de transações correntes.
Existe, por outro lado, uma adesão quase universal, nesses meios, à Taxa Tobin, proclamada como a “grande receita” contra a volatilidade (até por altas personalidades da administração “neoliberal”), sem que se reconheça seus efeitos essencialmente nefastos para países como o Brasil, que continuarão a ser, durante algum tempo, importadores líquidos de capitais financeiros. Essa adesão incondicional a algumas idéias progressistas que vêm de fora do País – e que se repete igualmente no caso da Alca – revela talvez a preservação de um certo colonialismo conceitual, que impede nossos “progressistas” de pensarem com suas próprias cabeças nas melhores soluções para o País, a partir de uma perspectiva do Sul, não daquela comandada pelos interesses de sindicalistas do Norte.

5. Relações com o FMI e pacotes de ajuda financeira (consenso sobre o dissenso):
A situação está “maravilhosa”, comparando com a demonização do FMI que se fazia ainda bem recentemente, com xingamentos e slogans substituindo uma reflexão ponderada sobre o que pode e não pode fazer o FMI em prol da saúde financeira do Brasil. Independentemente de como negociará o futuro governo – de pé ou sentado –, o fato é que tornou-se possível aceitar alguns parâmetros básicos desse relacionamento feito de amor e ódio durante boa parte dos últimos 50 anos. Em todo caso, é bom que se saiba que a era dos grandes pacotes de ajuda financeira está chegando ao fim e nem sempre será possível ao Brasil esperar salvamento em qualquer circunstância, inclusive porque a tolerância dos governos dos países ricos com países emergentes está ficando menor (e as operações para eles tenderão a ficar mais caras).
Uma coisa é certa: a política de condicionalidades deve continuar, mas se o novo centro tiver objeções ideológicas contra esse tipo de “imposição”, a solução é muito simples e está ao alcance de qualquer um. Basta não entrar em acordo com o FMI e pagar tudo o que se deve do pacote anterior. Como regra de princípio, o FMI e o BIRD acatam totalmente a soberania econômica e política dos países membros. O mais importante no relacionamento com o FMI não é contudo o dinheiro que ele pode emprestar (ainda que este possa ser bem-vindo em determinadas circunstâncias), mas sim o aval a um conjunto de políticas e a transparência que ele assegura em relação às contas públicas, hoje em dia um requisito indispensável a qualquer país que pretenda participar dos mercados de créditos comerciais e de financiamentos de curto prazo. Esse tipo de chancela parece ter sido compreendida muito bem pelos “novos economistas”, ou será que não?

6. Mercosul, Alca e OMC (malabarismos subregionais, hemisférico e multilateral):
O terreno das políticas comerciais e das diferentes estratégias de negociação nos foros comerciais é aquele no qual a esquizofrenia econômica parece mais freqüente e disseminada, provavelmente por falta de (in)formação suficiente sobre o modo de funcionamento da OMC, sobre as implicações da Alca para a economia brasileira (e por uma visão ideológica desta última, como revelado pela “teoria anexacionista”) e em virtude de uma avaliação otimista dos méritos do Mercosul e seu papel em determinadas negociações (com a UE, por exemplo, vista de forma positiva em relação à Alca não se sabe bem em função de quais resultados esperados). Não é um campo no qual se possa recomendar um curso rápido de políticas comerciais – tanto porque a leitura de algum manual sobre o GATT eqüivale a tortura psicológica, melhor valendo freqüentar suas sessões –, mas pode-se exigir mais atenção aos documentos negociadores e bem menos aos daqueles grupos anti-globalizadores e anti-alcalinos que vivem repetindo bobagens sem sentido por puro espírito anti-capitalista e anti-imperialista (o que até é admissível, como brincadeirinha de jovens e discurso em assembléia da UNE, mas não em funções de responsabilidade num governo dotado de uma diplomacia respeitada).
O abismo que ainda existe entre economistas da “situação” e da “oposição” (deve haver inversão, dentro em breve) só vai ser preenchido na prática das negociações, o que implica alguma preparação técnica muito séria no plano interno. Em todo caso, como ocorreu com o FMI, a demonização da Alca não vai ajudar em nada o Brasil, cabendo sim defender de forma conseqüente nossos interesses e deixar o pessoal anti-alcalino gritando nas ruas. Uma coisa é certa: estes últimos estão fazendo o trabalho sujo para os sindicalistas americanos e os congressistas protecionistas, que não querem a Alca, assim como não queriam o Nafta. Algum sindicalista brasileiro é, por acaso, contrário à captura de empregos do Norte?: teria de dizer isso claramente para a nova maioria política. No mais, nossos problemas são mais de ordem interna – juros, capital, infra-estrutura, cultura exportadora – do que de ordem externa, ainda que não seja fácil equacionar alguns deles, a reforma tributária, por exemplo. Mas, quem sabe a Alca não consegue fazer aquilo que a classe política e os empresários não logram obter a despeito de tanta vontade retórica?
Quanto ao Mercosul, caberia também colocá-lo em sua dimensão própria, nem mais, nem menos do que ele pode razoavelmente, nas condições que são dadas, cumprir em favor da economia brasileira. Transformá-lo em “laboratório de experiências sociais” ou em escalão avançado de uma “mercocracia comunitária” não vai ajudar em nada na resolução de nossos atuais problemas de estabilidade macroeconômica – que são de todos os países membros – e pode até terminar por desacreditá-lo internacionalmente. Trata-se de um projeto relevante, talvez até mais diplomaticamente do que economicamente, e o Brasil deveria propor as bases de sua restruturação, com muito realismo e bom senso.

7. Relações econômicas e políticas com o Império (não tem como escapar):
Como diria Jean-Paul Sartre em relação ao marxismo, trata-se do “horizonte insuperável de nossa época”. Melhor assim encontrar os termos de uma boa convivência, respeitosa e respeitadora das soberanias e diferenças, do que insistir em se proclamar “do contra”. Quem pode ser do contra é o próprio Império, que tem condições de sustentar suas posições contra tudo e contra todos. Países fragilizados como o Brasil têm de ser a favor de alguma coisa, geralmente das soluções multilaterais, que já foram apontadas como a “arma dos mais fracos”. Que seja: não há como não continuar proclamando o princípio da igualdade soberana dos estados e de continuar exigindo o predomínio do direito internacional, mas no plano da diplomacia prática é preciso encontrar alguma forma de convivência com esse Big Brother incômodo e arrogante. De uma certa forma, ele também cumpre o seu papel histórico, que é o de garantir a segurança internacional, ainda que seja bastante desatento às preocupações de desenvolvimento de uma imensa maioria de países. Excluindo o mito da “relação especial” ou o da “divisão do trabalho”, não há muito o que se possa fazer para compor uma agenda bilateral minimamente equilibrada, mas alguns elementos diplomáticos e militares podem ser mobilizados na construção de um entendimento aceitável para ambas as partes.
A nova maioria pode, por exemplo, começar por aprovar o acordo de Alcântara (salvaguardas tecnológicas), assim como mudar a sua atitude em relação aos acordos de investimentos, pois ambas as posturas são totalmente ideológicas e não têm nada a ver com o interesse brasileiro. Aliás, de forma geral, recomenda-se mais pragmatismo e bem menos politização na conformação dessa relação “imperial”: o bom senso em relação aos interesses nacionais deve prevalecer em face dos julgamentos apressados que se fazem na avaliação dos “motivos secretos” do Império (geralmente em função das famosas teorias conspiratórias da história).

8. Investidores estrangeiros, especuladores internacionais et caterva (“Hello boys”):
A especulação, junto com a agiotagem, constitui uma das mais desprezíveis ações humanas, comportamento apenas comparável, na natureza, ao das aves predatórias, que se aproveitam do momento em que a vítima está enfraquecida para atacá-la e, se possível, esquartejá-la no ato. De acordo com a proposta acima? Como para a maior parte dos economistas alternativos, não há como legitimar o comportamento especulativo, a menos que se pare para pensar duas vezes e se constate, então, que a especulação não é, na verdade, um alienígena que ataca o Brasil de surpresa, aproveitando-se da instabilidade provocada pelos famosos “capitais especulativos”. Por que existem esses capitais? Já pensou que a instabilidade, em lugar de ser importada, pode ser um dado da realidade interna do País, provocada por políticas erráticas, por ameaças de retrocesso no ambiente regulatório, de nova auditoria nos contratos da dívida externa, de revisão das regras de privatização ou de concessão de serviços públicos, enfim, pelo discurso da “ruptura”?
Se pensou, continue pensando, pois este também é um terreno no qual a distância entre economistas de escolas diferentes é uma das mais profundas, constituindo talvez a área na qual a credibilidade do País mais se vê afetada pela retórica soberanista e de cunho nacionalista. Não que essas virtudes sejam dispensáveis, ao contrário, mas é que nesse terreno os requerimentos de desempenho costumam ser mais rigorosos do que as condicionalidades do FMI. Com efeito, continua-se a repetir que os capitais externos são bem-vindos, mas apenas se for para o “desenvolvimento econômico de qualidade”, que reforce a capacidade produtiva, impulsione a absorção de tecnologia e estimule a inovação. Assim, se o capital estrangeiro quiser vir para produzir com técnica defasada, sem compromisso com a superação da “fragilidade das nossas contas externas”, talvez já não seja mais bem-vindo, a menos é claro que aceite a orientação e a disciplina de algum tecnocrata esclarecido.
Não se trata aqui de uma questão de economia política, mas de um problema psicanalítico e eu ainda não conheço algum título próximo de “Freud para economistas”. Enquanto esse manual não aparece, recomenda-se um pouco de convivência com essa “wild bunch” de mega-investidores: eles em geral são cordatos e, salvo babar um pouco na gravata, não mordem na presença da própria “vítima”.

9. Outros assuntos pertinentes (inclusive o valor de troca dos economistas da casa):
Quando se fizer a crônica do transformismo político dos últimos anos, vai se constatar o quanto ocorreu uma discreta, subreptícia, mas efetiva e profunda evolução da nova maioria, indo dos antigos compromissos ideológicos com a “velha” economia política em direção de uma NEP adaptada aos nossos tempos de social-democracia algo descaracterizada por uma inconfessada adesão a premissas hayeckianas, ainda que elas sejam inconscientes. Torna-se surpreendente, ademais, constatar que esse largo caminho foi feito praticamente em três meses, sem manual de bordo e sem muitos mapas para iluminar o caminho. Em todo caso, todos são bem-vindos à realidade, cabendo agora, do ponto de vista do observador externo, examinar os dados do problema, ver as razões dessa “grande transformação” e tentar discutir os efeitos que tal atitude provocará dentro e fora da própria casa.
Em relação aos dados, não seria preciso grandes elaborações, bastando remeter à letra de antigos programas, de documentos cidadãos e mesmo de diretrizes aprovadas em encontros oficiais e como subsídios à plataforma eleitoral, e compará-los ao que está escrito atualmente e ao que vem sendo dito expressamente: “o mundo mudou,…”. Quanto às razões, tampouco seria preciso examinar os fundamentos teóricos da travessia, como revelados, por exemplo, nos limites conceituais da “acumulação primitiva” da velha economia política, na teoria sociológica da “lei de bronze” dos partidos políticos, ou na abordagem antropológica dos “ritos de passagem” (pós-adolescentes) de uma primeira geração de líderes políticos.
Os critérios são aqui mais pragmáticos, estando ligados ao “prêmio” final (and the prize is power). Eles têm a ver com o difícil diálogo com a sociedade com base nas antigas premissas pré-Bad Godesberg, com a falta de trânsito nas altas rodas da sociedade (dos capitalistas nacionais aos banqueiros de Wall Street), com as barreiras eleitorais na base do “eu sozinho”, enfim, com uma série de relações (condicionantes estruturais) que, segundo a linguagem do Manifesto, deixaram de corresponder às novas forças produtivas (necessidades políticas) e tinham tornado-se outros tantos grilhões: esses grilhões tinham de ser rompidos e eles foram rompidos.
No que se refere, em terceiro lugar, aos efeitos, ainda é muito cedo para uma avaliação precisa, mas seria preciso separar os internos dos externos. Neste último campo, caberia constatar, de imediato, o fim do “efeito espantalho”, pois a nova maioria passa a ter de administrar o capitalismo velho de guerra, com os ônus e bônus da nova situação, talvez mais dos primeiros do que dos segundos, o que não deixa de ser uma repetição tropical de outras experiências conhecidas por alguns irmãos mais velhos (e menos puristas). Entre os efeitos internos e externos, se situa a nebulosa dos amigos e companheiros de viagem: do movimento social, das instâncias internacionais (foros de São Paulo, de Porto Alegre, por exemplo) e outros tantos amigos e aliados incômodos que seria preciso acomodar sem alienar. Vai ser difícil aprovar resoluções e participar de plebiscitos como antigamente, como se eles não tivessem efeito sobre a ação governativa, mas esse é o problema dos custos ideológicos, quando se salta a barreira da prática. Existe alguma resposta clara à décima-primeira tese sobre Feuerbach?
Abordando, finalmente, a questão da reciclagem da “prata da casa” (manuais e resoluções incluídos), não há como evitar uma repetição do “déjà vu” em torno do “esqueçam o que eu escrevi”, pois é disso mesmo que se trata. Muitos acreditam, não se sabe bem se por crença religiosa ou avaliação racional, que a “diplomacia da cidadania” saberá como realizar a transição ideológica entre velhos hábitos e novas necessidades.
Em todo caso, a nova maioria tem todas as condições para realizar o que esses foros vêm prometendo-nos há pelo menos dez anos sem nunca ter, de fato, apresentado propostas concretas quanto às políticas alternativas que conseguiriam retirar o lucro e a exploração do centro do sistema econômico: se um outro mundo é possível – agora também em sua variante regional, uma outra América – seria preciso que nos dissessem, ou melhor, nos demonstrassem que isso pertence, não ao reino do utópico e ao domínio das exortações, mas ao universo das realizações concretas. Trata-se, aliás, de excelente oportunidade para demonstrar o valor de uso de tantos economistas alternativos, a menos, é claro, que eles pretendam passar a enfatizar agora o seu valor de troca. Nunca é tarde para a síntese metodológica e para o revisionismo nouvelle manière!

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 29 setembro 2002, 11 pp.

Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar! (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Mais de um mês antes das eleições de 2002, eu já tinha certeza de quem iria ganhar, mas não tinha muita certeza quanto às políticas a serem aplicadas pelos companheiros. Por isso mesmo tentei orientar os companheiros, sobre as boas políticas a serem implementadas, mas nem eu dispunha de bons canais de comunicação, nem me cabia "dar ordens" aos apparatchiks do PT. Em todo caso tentei. Por não me terem seguido, eles fizeram todas aquelas coisas que redundaram em perdas para eles e sobretudo para o Brasil.
Apresento abaixo meus conselhos pré-eleitorais aos companheiros.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!
As conseqüências econômicas da vitória
(ou: manual de economia política para momentos de transição)

Paulo Roberto de Almeida
(Washington, 947: 22 de setembro de 2002)

1. Princípios básicos da economia política dos partidos no sistema brasileiro

No momento em que escrevo estas linhas, 21-22 de setembro de 2002, antes portanto de qualquer definição eleitoral, parece estar ficando muito claro que o Brasil prepara-se para atravessar uma das mais importantes fases de transição política em toda a sua história contemporânea, equivalente, talvez, ao desmantelamento do Estado econômico varguista, supostamente operado durante os oito anos da administração FHC.
De fato, o País passou a viver, a partir do início da campanha eleitoral, em meados de 2002, uma situação de nítida recomposição das forças políticas e da própria estrutura da representação político-eleitoral, resultando no desmantelamento do sistema político varguista instalado a partir de 1945. Com efeito, todos os partidos representados no Congresso, à exceção de um, provinham do ordenamento político tradicional conhecido no Brasil a partir da era Vargas: um grande partido oligárquico de direita, eventualmente dividido em uma corrente atrasada e ruralista e outra de feição mais urbana; um grande centrão, moderadamente reformista; movimentos de centro esquerda, de inspiração trabalhista ou social-democrática; e os mais que tradicionais partidos da esquerda socialista – o velho Partidão, reconvertido em PPS, e o PCdoB, que mesmo sendo anti-sistema, constitui o que mais de oficial pode haver no cenário político.
Apenas um partido, como se disse, escapa a essa regra não escrita da democracia brasileira, que faz com que todos eles acabem sendo dominados por lideranças políticas tradicionais, líderes profissionais que fazem do jogo político-parlamentar o seu modo de vida e o seu negócio público, eventualmente por via das práticas também tradicionais do populismo, do clientelismo, do fisiologismo e de outros “ismos” mais ou menos nefastos do ponto de vista da verdadeira representação do eleitorado. Esse partido nasceu de forma independente e alheia ao jogo habitual das transações políticas e emergiu com uma proposta tendente a transformar o panorama social do Brasil, tendo conhecido, ao longo dos últimos vinte anos, uma trajetória de sucessos contínuos, mesmo tendo sido derrotado três vezes na busca do que se chama, usualmente, “suprema magistratura” do País. Esses sucessos foram dados pelo crescimento constante em termos de presença capilar nos mais diversos recônditos de um país imenso, pelo aumento da representação parlamentar, em todos os níveis, e pela assunção de responsabilidades executivas em unidades importantes da federação. Não se pode, de toda forma, falar em “derrota” quando o líder desse partido aumentou, progressiva e constantemente, sua aceitação junto a faixas cada vez maiores do eleitorado e conduziu o movimento ao centro do sistema político brasileiro.
Cabe enfatizar essa realidade, inédita e surpreendente em toda a história política brasileira: esse partido, seja como referência positiva ou negativa, ocupa uma posição absolutamente central no sistema copernicano da política brasileira, em torno do qual todos os demais atores passam a se posicionar, a favor ou contra (não importa), como se ele fosse o paradigma de fato desse sistema político-partidário. Talvez no cenário pós-eleitoral essa centralidade venha a retroceder, em termos de forças e pesos reais na arena parlamentar, mas do ponto de vista político-ideológico ela parece destinada a perdurar.
Quando se disse que esse partido constitui uma exceção às regras não escritas da democracia brasileira, isto não significa que ele mesmo possa escapar às “leis de bronze” dos sistemas de partidos, algumas delas “codificadas” um século atrás por sociólogos como Robert Michels. Essas “leis” se traduzem na “rotinização do carisma” – seguindo aqui Max Weber –, na burocratização do aparelho partidário, na profissionalização dos quadros, na rigidificação das linhas hierárquicas, na profusão de normas e rituais que retiram algo do espírito espontâneo dos antigos tempos militantes e idealistas e, mesmo, na internalização de alguns hábitos pouco recomendáveis – e anteriormente censurados – dos velhos partidos “burgueses” ou “oligárquicos”. Trata-se de uma evolução normal, na medida em que os velhos quadros se acomodam a estruturas de poder e de participação no jogo parlamentar que acabam se distanciando da vibração e do entusiasmo juvenil dos tempos heróicos de emergência e afirmação de um partido que, primeiro, era “out-system”, depois virou anti-sistema e que, ulteriormente, converteu-se em partido do sistema, ainda que comprometido com a transformação desse mesmo sistema. Tudo isso não impede esse partido de conservar intacta sua mensagem transformadora e de operar segundo regras democráticas pouco vistas nas demais agrupações político-partidárias.
Desenhado o quadro básico da transição política brasileira, caberia agora capturar, de um ponto de vista analítico, a economia política da mutação, de maneira a operar da melhor forma possível o salto para a vitória, e, de outro lado, num plano mais empírico e programático, contribuir para o debate de teses e propostas de políticas públicas que possam vir a ser testadas na realidade em algum momento do futuro próximo, de maneira mais concreta, a partir de janeiro de 2003.
O autor desta análise econômica não-acadêmica não pertence a nenhum partido oficial, mas pode ser considerado como simpático às causas “transformistas” que são defendidas pelo novo movimento “paradigmático” – introduzir mais justiça social no panorama brasileiro, colocar a economia a serviço da maioria, contribuir para a correção das desigualdades sociais e regionas do Brasil, favorecer um sistema político marcado pela ética etc. – ainda que não concorde com alguns dos métodos ou com muitas das políticas setoriais que vêm sendo avançadas e defendidas por dirigentes ou economistas desse partido “central”. Entendo, porém, que o receituário de política econômica proposto pelo partido foi concebido como uma síntese das propostas apresentadas em assembléia democrática, a serem depois afinadas em função dos requerimentos de administração concreta da máquina pública, segundo a mesma perspectiva evolutiva que já determinou a passagem do antigo programa partidário “maximalista” para um programa de campanha eleitoral moderadamente reformista e que aponta, portanto, para uma aplicação ainda mais “realista” dessa plataforma, processo durante o qual deve operar-se a inevitável compatibilização entre o politicamente desejável e o financeiramente possível, ou entre o socialmente necessário e o operacionalmente factível.

2. As leis fundamentais da economia política burguesa: devagar com a louça

O sistema político pode estar sendo transformado de maneira radical pelo novo centro político, mas este ainda não conseguiu abolir, no campo econômico, a lei da oferta e da procura. Caberia, por isso, atentar para o funcionamento dos grandes equilíbrios macroeconômicos ainda em vigor no cenário brasileiro. Segundo um dos preceitos não escritos do método econômico voluntarista, o princípio da escassez tem uma aplicação apenas relativa no receituário prático de política econômica. Ele existe, mas não é um constrangimento absoluto, de onde decorre que as escolhas dos agentes econômicos poderiam ser mais bem delimitadas pelos administradores econômicos do que pelas possibilidades reais do sistema produtivo. Estas possibilidades podem ser estendidas no limite dos recursos disponíveis, daí as propostas de voltar a crescer 4, 5 ou mesmo 6%, regularmente encontradas nos discursos e textos de alguns dirigentes e economistas.
Uma coisa é constatar, no plano da retórica, que o ajuste neoliberal impôs um baixo dinamismo econômico e que portanto seria preciso, no novo governo, mobilizar a capacidade produtiva instalada na indústria, na agricultura e nos serviços. Outra, bem diferente é achar que a proposta de um novo modelo de crescimento – modificando o estilo de desenvolvimento concentrador e excludente – pode ser feita à base de exortações e de boa vontade: constatar a “abundância de terras férteis” – elas serão vertidas para a agricultura capitalista ou para a propriedade familiar? –, indicar a capacidade não utilizada em importantes segmentos produtivos – o empresário estaria trabalhando aquém de suas possibilidades, mas por quê, exatamente? – e lamentar a mão-de-obra qualificada desocupada – formados sem oferta de emprego no setor – não bastam para superar os limites do crescimento no Brasil. O discurso de campanha disse apenas que a utilização dos recursos disponíveis carece de políticas públicas adequadas, sobretudo as fiscais, creditícias e de abastecimento, mas a introdução de medidas práticas de adminstração econômica precisa ir além dessas generalidades.
Considerando-se que a política de abastecimento do futuro governo pode ser a resultante de um casamento feliz entre as leis da oferta e da demanda – se elas não forem maltratadas até lá –, restariam as políticas fiscais e monetárias como cerne das propostas de políticas macroeconômicas. Alguns economistas parecem acreditar que seria possível aproximar o Brasil do PIB potencial desde que as políticas “corretas” sejam efetivamente aplicadas. Nâo há nenhum impedimento teórico a essa crença mas, do ponto de vista prático, será preciso determinar como recuperar, com o orçamento existente, a capacidade de investimento público, tão importante para alavancar o crescimento econômico.
Pergunta-se, aliás, se esse investimento deve mesmo ser público e, se for este o caso, por que exatamente, a equipe econômica identificada com a administração FHC arriscou-se, durante tanto tempo, a sofrer acachapante derrota eleitoral ao manter baixo nível de crescimento e poucas oportunidades de emprego e renda? Supondo-se que os atuais defensores do modelo “neoliberal”, ainda que legítimos representantes da classe dominante e dos interesses do grande capital, não sejam todos um bando de idiotas e alienados, eles também deveriam ter, supostamente, interesse em fazer o País crescer a taxas mais altas, inclusive como forma de perpetuar-se no poder através da criação de empregos e da expansão da renda agregada. Se eles não o fazem, não deveria ser por mera ausência de vontade, mas por constrangimentos reais no investimento global, fatores que por sua vez remetem à baixa taxa de poupança do sistema econômico e à alta propensão à “despoupança” estatal, notoriamente conhecida nos últimos anos (ou décadas) de economia política real no Brasil.
Em outros termos, do ponto de vista fiscal e monetário, aumentar o crédito e os incentivos para o crescimento e baixar os juros para a irrigação adequada do aparelho produtivo capitalista não dependem apenas da vontade do ministro da economia ou do presidente, mas de certos equilíbrios econômicos cujas variáveis não são todas dominadas pelo governo. Ao contrário: o governo pode ele mesmo constituir um fator limitador do crescimento econômico, ao “drenar” uma parte dos recursos necessários para o setor privado investir em novas atividades produtivas. E por que isso acontece? Porque a oferta e a procura de dinheiro são em grande medida determinados, não pelas necessidades da sociedade mas, pelas necessidades do governo, que como sabemos não constitui toda a sociedade (ainda que ele absorva um terço de tudo o que ela produz).
O novo centro da política brasileira pode, assim, até achar que vai imprimir uma nova “dinâmica de crescimento” no sistema produtivo, mas ele não poderá negar que a maximização da capacidade manipuladora do governo – inclusive para aplicar “boas” políticas – resulta numa minimização das possibilidades de investimento do setor privado, o único, finalmente, que produz empregos não inflacionários no País (no sentido em que a oferta atende, supostamente, a uma demanda real, caso contrário o capitalista não arriscaria o seu dinheiro).
Por outro lado, a maximização da “utilidade marginal” do capitalista, por via de políticas públicas de financiamento e de políticas setoriais de indução do investimento e produção, resultam na minimização de recursos públicos para fins de atendimento da população mais carente, que seria supostamente objeto de atenção prioritária no novo governo. Não sendo elásticos esses recursos, a não ser pela via da indução inflacionária (isto é, irresponsabilidade emissionista), corre-se o risco de, por um lado, distribuir dinheiro para quem já é rico e de, por outro lado, deixar ao relento quem realmente precisa, que são justamente aqueles setores não organizados da sociedade que menos chance têm de fazer passar suas reivindicações (por certo difusas e comuns aos milhões de excluídos existentes pelo Brasil afora) à frente das reinvindicações e programas muito precisos apresentados por aqueles grupos de interesse organizados que conseguem provar que tal ou tal atividade setorial será responsável pela criação de tantos empregos diretos e milhares de outros indiretos.
Que tal se, por uma vez, o novo governo deixasse agir sozinha a lei da oferta e da procura? Existe, obviamente, um tremendo preconceito contra a economia política burguesa, mas porque não usar essa lei contra a burguesia, que sempre vem reclamar do governo algum tratamento especial que a dispense, justamente (e sem ironia), de enfrentar essa lei? Registre-se, apenas, que a “lei” antecede e ultrapassa o reino burguês e a dominação capitalista conhecidos nos últimos cinco século, sendo mais propriamente um mecanismo condizente com o funcionamento de mercados livres. Mas, se o novo governo desconfiar dos mercados e pretender fazê-lo “funcionar melhor” – em benefício dos “pobres”, entenda-se – o mais provável que ocorra é que os beneficiários desse tipo de intervenção estejam mais bem situados nos estratos superiores da distribuição de renda do que nas camadas inferiores. Não há uma teoria econômica conhecida que explique esse fenômeno curioso – a despeito do famoso senso comum da “lei das conseqüências involuntárias” – mas a experiência histórica tem indicado que políticas ativas em certos setores de atividades tendem a gerar fluxos de renda que são capturados pelos operadores principais daqueles setores, que raramente comportam excluídos e pobres em geral entre seus clientes imediatos.

3. Princípios de economia política e do imposto: David Ricardo vingativo?

Hoje, como nos tempos de Malthus e David Ricardo, os impostos representam uma parte da produção e do trabalho de um país, colocados à disposição do governo, e que são, em última instância, uma subtração ao capital e à renda nesse país. Naqueles tempos, os principais impostos existentes eram aqueles sobre a renda da terra e as taxas aplicadas a produtos importados (até o início do século 20, a principal fonte das receitas do Estado). A economia moderna inventou uma quantidade incrível de novas fontes de renda para o Estado, a começar pelos impostos indiretos sobre todo tipo de produção (geralmente sobre valor agregado ou venda de produtos ou serviços), o imposto direto sobre a renda pessoal e diferentes taxas sobre transações e transferências de ativos.
David Ricardo era um crítico dos impostos, uma vez que eles tendiam a aumentar o preço dos produtos (penalizando portanto os trabalhadores, ou pelo menos aumentando o seu custo de reprodução, como Marx aprendeu com ele), reduzindo, por outro lado, a renda disponível para investimentos. Em nenhum momento ele concebeu o sistema de impostos como mecanismo redistributivo inter-classes ou como instrumento corretor de desigualdades, muito embora ele não fosse desatento a esse aspecto também. Esse, porém, é o aspecto que mais tende a ser ressaltado nos conceitos elementares da taxação, tal como apresentados nos manuais econômicos do novo centro político brasileiro. Nessa visão, o imposto não é simplesmente um expediente menos que perfeito para atender a algumas das obrigações sociais da administração pública, mas a forma principal pela qual pode ser introduzida a justiça social.
A regra nº 1 parece ser: “eles são ricos, por isso devem pagar”, o que traduz uma percepção vingativa do mundo e das relações sociais. A regra nº 2 parece rezar: “se nós somos pobres, é porque nosso trabalho foi expropriado pelos ricos”, daí a necessidade de não apenas aumentar os impostos sobre o capital, como também elevar salários e os benefícios sociais, na certeza de que isso vai corrigir as distorções acumuladas ao longo de anos e anos (décadas?; séculos de extração de mais valia?) de crescimento econômico segundo um modelo excludente e concentrador.
Uma derivação dessa segunda regra é a que se aplica ao comércio exterior e aos investimentos estrangeiros e está excelentemente bem refletida no comentário do líder do MST ao argumento da Embaixadora dos EUA, quando da entrega dos resultados do plebiscito sobre a Alca, sobre a pobreza persistente na América Latina: “só existem esses 80 milhões de pobres porque as multinacionais norte-americanas vêm aqui nos explorar”, o que justifica plenamente, portanto, a manutenção de altas tarifas na importação e várias normas restrititvas ao investimento direto estrangeiro. Os industriais da FIESP agradecem tão zelosa defesa dos seus interesses e mandam avisar que vão, sim, aproveitar a deixa para defender a manutenção de altas tarifas e algumas outras “reservas de mercado” para os capitalistas nacionais e que, com seus outros colegas do IEDI, vão oferecer estudos e propostas para justificar políticas públicas “ativas” em seus setores de interesse (se possível todos eles, da extração da borracha à indústria eletrônica, do setor bancário aos estaleiros navais).
O novo centro político seria em princípio favorável a essa orientação ativista da política industrial, que promete ser seletiva e vertical, e que pelo visto deve privilegiar o setor microeletrônico, apontado como o grande vilão da balança comercial. Apesar de que se proclame a vontade de não criar novos cartórios, podemos ter certeza de que os candidatos já estão articulando seus novos projetos de investimentos com o cálculo já embutido dos ganhos adicionais a serem obtidos com isenções fiscais e outros incentivos tributários e creditícios. O próprio David Ricardo, se vivo fosse, se surpreenderia com essa contradição econômica que consiste em taxar o conjunto da sociedade para entregar o dinheiro a quem já é rico.
A justificativa para esse tipo de comportamento pouco racional seria a de que, ao estimular atividades produtivas produtoras de emprego e renda, são gerados novos fluxos de renda e, ainda que os ricos fiquem um pouco mais ricos, o Estado pode então taxá-los de maneira adequada para transferir esses recursos aos grupos sociais mais necessitados. O problema, como sempre, será o de escolher os ganhadores desse jogo administrativo – alguém, afinal, precisa dizer, com a sapiência dos números oficiais e uma concepção esclarecida do processo histórico da industrialização, quem tem direito ao maná – e de explicar a todos os demais como e por que apenas alguns são beneficiados. Nada contra esse exercício de imaginação, mas convenhamos que a receita não é nova, tendo o mais recente exemplo de planejamento indicativo ocorrido sob a República dos militares, por acaso o modelo perfeito de concentração de renda e de forte aumento nas desigualdades distributivas.
Trata-se, talvez, de uma nova versão da teoria econômica do “fazer o bolo crescer primeiro, para depois distribuir”, ainda que se possa, obviamente, tentar uma síntese dialética entre os dois métodos, crescer e distribuir ao mesmo tempo, ainda que essa economia política do possível seja extremamente difícil na sua dosagem apropriada. A distribuição, nas atuais condições orçamentárias brasileiras, só pode acontecer com novas fontes de receita ou com arrecadação mais eficiente, o que é uma possibilidade teórica real, mas dependente de certas variáveis que não serão totalmente controladas pelo novo executivo.
Quanto ao aspecto “externo” da economia política do imposto, a intenção iria justamente no sentido inverso ao da desgravação tributária e do incentivo às atividades selecionadas no plano interno: manutenção de alta proteção tarifária e de regras e normas de acesso condizentes com a preservação da soberania nacional, mesmo se em detrimento do bem-estar da maioria da população. Aqui se pensa que o imposto de importação e as barreiras de acesso ao investimento estrangeiro apresentam virtudes “punitivas” contra o capital “espoliativo” vindo de fora, quando as únicas desvantagens ficam com o próprio consumidor brasileiro (eventualmente também o trabalhador, privado de uma nova fonte de emprego, ao dificultar-se o tratamento nacional ao investidor estrangeiro). Como essa visão tende a garantir que não haverá mesmo uma Alca anexacionista (ou pelo menos não com a presença do Brasil), o resultado previsível é a continuidade das linhas tradicionais de industrialização substitutiva, com pleno aproveitamento das possibilidades do mercado interno. De resto, cabe continuar brigando na OMC para a liberalização dos mercados agrícolas, talvez mais bem tratados na relação política mais equilibrada entre o Mercosul e a UE, um bloco comercial dotado do senso prático da correção das desigualdades socio-regionais (pelo menos para os seus próprios membros).

4. A organização social da produção ao estilo do programa de Gotha

As evidências empíricas das aventuras econômicas conduzidas sob o governo de Salvador Allende e na primeira fase de François Mitterrand indicam que o novo centro político tenderá a atuar mais segundo as linhas de Felipe Gonzalez e de Jacques Delors do que em função de um programa maximalista que tenderia a proclamar “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades”. Ainda asim, parece haver uma tendência a acreditar que a conformação de um modelo “democrático e popular” de gestão econômica poderá superar alguns dos limites materiais colocados à economia real.
Como isso poderia ser feito? Talvez negociando diretamente com a burguesia nacional (o aumento dos investimentos com o máximo possível de oferta de novos empregos), com os banqueiros especuladores (o alongamento da dívida interna, por exemplo) e com os investidores estrangeiros (trabalhando com eles na seleção da melhor alocação de fatores mobilizados no projeto de internalização de capital, maximizando o aproveitamento da dotação interna e das possibilidades de exportação). Tal tipo de solução seria perfeito se a teoria econômica voluntarista não se chocasse de frente com o que se poderia chamar de “equação Mané Garrincha”, aquela que faz depender o resultado esperado da boa vontade do adversário (este representado pelos mesmos personagens acima referidos, que parecem preferir guardar sua própria margem de manobra, sem depender da consciência esclarecida de algum burocrata governamental).
Não que seja terrivelmente difícil induzir capitalistas nacionais e estrangeiros a investir numa pujante economia nacional, com promessas de retornos ampliados, pois que tudo estará sendo feito para ampliar o mercado interno. Mas o problema é que essa indução sempre vem acompanhada de pedidos de favores especiais, os mesmos referidos acima sob a forma de isenções fiscais, de créditos tributários e outros mecanismos de “facilitação de negócios”. A experiência dos anos 1990 conheceu fartos exemplos desse tipo de política industrial, geralmente feita por governadores à cata de alguns empregos a serem criados por multinacionais chantagistas. Caberia agora fazer um balanço honesto dos resultados da “guerra fiscal” desse período, para ver quanto custou cada emprego criado e avaliar se não teria sido melhor fazer esforço similar na direção da formação da mão-de-obra e na capacitação técnica da população, em primeiro lugar mediante programas universais de educação ampliada para os setores mais desfavorecidos.
O ambiente regulatório das relações sociais de produção na fase de transição para uma economia democrática e popular pode vir a chocar-se, igualmente, com demandas conflitantes e contraditórias no plano da legislação trabalhista, na qual o neoliberalismo neodefunto operou, ao longo dos últimos anos, uma não tão grande (mas certamente lenta) transformação, no sentido da flexibilização das relações contratuais como forma de incrementar as chances de empregabilidade (aqui interessando apenas o mercado formal).
Nesse campo, os desafios são gigantescos, sobretudo no terreno do mercado de trabalho informal, ou pouco qualificado, onde a presença sindical é nula ou marginal. Os problemas mais graves de pobreza e de exclusão se encontram aliás nesse setor, onde as regras contratuais sequer encontram aplicação. A menos que o Estado pretenda organizar uma NEP da fase de transição, caracterizada por uma “economia filantrópica” com fortes injeções keynesianas na demanda agregada (o que parece orçamentariamente difícil), a solução desse imenso problema passa justamente por mais flexibilização do que por mais regulação. Tal tipo de proposta pode chocar mais de uma consciência preocupada com o funcionamento do mercado de trabalho, mas não se trata aqui de atender nenhuma teoria econômica ou alguma conveniência ideológica, e sim de resolver uma tragédia nacional, que é a auto-exclusão do mercado de trabalho de imensos contingentes de brasileiros que simplesmente não encontram ocupação por “desqualificação” absoluta. A regulação e os investimentos nacionais ou estrangeiros, para eles, têm influência nula, zero completo.
O problema, para o novo centro político, é que programas ao estilo de Gotha, de tendências lassalianas ou não, se dirigem a trabalhadores organizados e já integrados ao mercado formal, aliás dotados de um mínimo de proteção social e aspirando à conquista do poder político (que está, como se sabe, ao alcance da mão). A realidade da exclusão social do Brasil recomendaria trabalhar com um programa pré-Gotha, condizente com as necessidades mais elementares das grandes massas ditas subalternas: educação, saúde, saneamento básico, acesso à segurança e à justiça, enfim aqueles requisitos mínimos da cidadania que parecem ainda ser uma miragem para grandes contingentes da população.
Por isso, a grande missão histórica do novo paradigma do sistema político no Brasil não precisaria ser – ou pelo menos não deveria ser – ajudar a burguesia nacional e os capitalistas estrangeiros a ficarem mais ricos, mas tão simplesmente implementar políticas universais que seriam suscetíveis de tornar os pobres menos pobres, de fazer com que as crianças das escolas públicas tenham uma educação de qualidade e, de modo geral, diminuir a desigualdade de chances nos mercados laboral e educacional. Se apenas isso fosse feito, já seria uma imensa revolução social no Brasil, totalmente compatível com o espírito e a letra do programa do novo centro político.

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)
Washington, 947: 22 de setembro de 2002