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domingo, 26 de março de 2023

Depoimento do historiador Timothy Snyder no CSNU sobre as atrocidades cometidas contra russos e ucranianos - Dagobah

 Introdução PRA:

As atrocidades que estão sendo cometidas pelo ESTADO russo na Ucrânia, e também contra o seu próprio povo, na Rússia, ao negar-lhe as verdades sobre a guerra de agressão e seus horrores, a matança dos próprios russos na Ucrânia, seja de soldados convocados para a invasão, seja de russo-ucranianos vivendo no território invadido e em outras localidades, tudo isso, como relatado pelo historiador da Rússia Timothy Snyder, deveria ser ponderado pela DIPLOMACIA BRASILEIRA em seu posicionamentos sobre como o presidente do Brasil deveria se manifestar a respeito dessa guerra terrível que compromete o futuro da Europa e também do mundo. 

Além das atrocidades que estão sendo perpetradas pelas forças russas que atacam continuamente a Ucrânia, existe uma dimensão que não está sendo propriamente considerada na avaliação dos interesses do ESTADO brasileiro e do país como um todo em face desse conflito (que não é um simples conflito militar e sim uma guerra de aniquilação de um Estado e de um povo): essa dimensão, inescapável a qualquer indivíduo que recebe as terríveis notícias que nos chegam da Ucrânia, é a DIMENSÃO MORAL de todo esse assunto.

Pergunto: como se pode ser indiferente em face de todas essas ATROCIDADES?

Onde está a capacidade de ser humano, como se perguntava Primo Levi ao voltar de Auschwitz: SE ISSO É UM HOMEM?

Como se pode ser insensível a tudo isso?

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 26/03/2023


Timothy Snyder: Briefing do Conselho de Segurança das Nações Unidas


Se fazendo de vítima

Testemunho ao Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o discurso de ódio russo

por Timothy Snyder, Thinking about: Snyder Substack (14/03/2023)

Tradução livre ao português por Zoia Luecht

(Este é o texto do meu briefing do Conselho de Segurança das Nações Unidas esta manhã, 14 de março de 2023, para uma sessão convocada pela Federação Russa para discutir “russofobia”. Se você quiser me citar exatamente como eu falei, talvez queira verificar o vídeo da sessão, que encontra-se disponível no texto original linkado nos comentários.)

Senhoras e senhores, venho diante de vocês como historiador da região, como historiador da Europa Oriental e, especificamente, como historiador de assassinatos em massa e atrocidades políticas. Fico feliz em ser convidado a informá-los sobre o uso do termo “russofobia” por atores estatais russos. Acredito que tal discussão pode esclarecer algo sobre o caráter da guerra de agressão da Rússia na Ucrânia e a ocupação ilegal do território ucraniano pela Rússia. Falarei brevemente e me limitarei a dois pontos.

Meu primeiro ponto é que os danos aos russos e o dano à cultura russa são, principalmente, resultado das políticas empregadas na Federação Russa. Se, realmente, estamos preocupados com os danos aos russos e à cultura russa, então devemos nos preocupar com as políticas empregadas pelo estado russo.

Meu segundo ponto: Será que o termo “russofobia”, que estamos discutindo hoje, foi explorado durante esta guerra como uma forma de propaganda imperial na qual o agressor afirma ser a vítima? Serviu no ano passado como justificativa para os crimes de guerra cometidos pelos russos na Ucrânia.

Deixe-me começar do primeiro ponto. A premissa, quando discutimos “russofobia”, é que estamos preocupados com os danos aos russos. Essa é uma premissa que eu certamente compartilho. Eu compartilho da preocupação com os russos. Eu compartilho da preocupação com a cultura russa. Lembremos, então, as ações do ano passado que causaram os maiores danos aos russos e à cultura russa. Citarei brevemente dez.

1. Forçando os russos mais criativos e produtivos a emigrar. A invasão russa na Ucrânia fez com que cerca de 750.000 russos deixassem a Rússia, incluindo algumas das pessoas mais criativas e produtivas. Este é um dano irreparável à cultura russa, e é o resultado da política russa.

2. A destruição do jornalismo russo independente para que os russos não possam conhecer o mundo ao seu redor. Isso também é política russa e causa danos irreparáveis à cultura russa.

3. Censura geral e repressão à liberdade de expressão na Rússia. Na Ucrânia, você pode dizer o que gosta em russo ou ucraniano. Na Rússia, você não pode.

Se você estiver na Rússia com uma placa dizendo “não à guerra”, você será preso e muito provavelmente preso. Se você estiver na Ucrânia com um sinal que diz “não à guerra”, independentemente do idioma em que esteja expressado, nada acontecerá com você. A Rússia é um país de apenas um idioma importante com o qual você pode dizer pouco. A Ucrânia é um país com dois idiomas onde você pode dizer o que quiser.

Quando visito a Ucrânia, as pessoas me relatam sobre os crimes de guerra dos russos usam um dos dois idiomas, seja o ucraniano ou seja o russo, como preferirem.

4. O ataque à cultura russa por meio da censura de livros escolares, enfraquecendo as instituições culturais russas em casa e a destruição de museus e organizações não governamentais dedicadas à história russa. Todas essas coisas são obras da política russa.

5. A perversão da memória da Guerra da Grande Pátria, travou uma guerra de agressão em 2014 e 2022, privando assim todas as gerações futuras de russos dessa herança. Essa é a política russa. Isso causou grande dano à cultura russa.

6. O rebaixamento da cultura russa em todo o mundo e o fim do que costumava ser chamado de “russkiy mir”, o mundo russo no exterior.

Costumava ser o caso de haver muitas pessoas que se sentiam amigáveis com a Rússia e a cultura russa na Ucrânia. Isso terminou por duas invasões russas. Essas invasões eram políticas do estado russo.

7. O assassinato em massa de falantes de russo na Ucrânia. A guerra de agressão russa na Ucrânia matou mais falantes de russo do que qualquer outra ação de longe.

8. A invasão da Ucrânia pela Rússia levou à morte em massa de cidadãos russos que lutavam como soldados em sua guerra de agressão. Cerca de 200.000 russos estão mortos ou mutilados. Esta é, e é claro, simplesmente a política russa. É política russa enviar jovens russos para que morram na Ucrânia.

9. Crimes de guerra, trauma e culpa. Esta guerra significa que uma geração de jovens russos, aqueles que sobrevirem, estarão envolvidos em crimes de guerra e estarão envolvidos em traumas e culpas pelo resto de suas vidas. Isso é um grande dano à cultura russa.

Todo esse dano aos russos e à cultura russa foi alcançado pelo próprio governo russo, principalmente no decorrer do último ano. Então, se estivéssemos sinceramente preocupados com os danos aos russos, essas são algumas das coisas em que pensaríamos. Mas talvez a pior política russa em relação aos russos seja a última, a décima.

10. O treinamento sustentado ou a educação dos russos para acreditar que o genocídio é normal. Vemos isso nas repetidas alegações do presidente da Rússia de que a Ucrânia não existe. Vemos isso em fantasias genocidas na mídia estatal russa. Vemos isso em um ano de televisão estatal atingindo milhões ou dezenas de milhões de cidadãos russos todos os dias. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como porcos. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como parasitas. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como vermes. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como satanistas ou como canibais. Vemos isso quando a televisão estatal russa proclama que as crianças ucranianas devem ser afogadas. Vemos isso quando a televisão estatal russa proclama que as casas ucranianas devem ser queimadas com as pessoas dentro. Vemos isso quando as pessoas aparecem na televisão estatal russa e dizem: “Eles não deveriam existir. Devemos executá-los por pelotão de fuzilamento.” Vemos isso quando alguém aparece na televisão estatal russa e diz “vamos matar 1 milhão, vamos matar 5 milhões, podemos exterminar todos vocês”, ou seja, todos os ucranianos.

Agora, se estivéssemos sinceramente preocupados com os danos aos russos, estaríamos preocupados com o que a política russa está fazendo aos russos. A alegação de que os ucranianos são “russófobos” é mais um elemento do discurso de ódio russo na televisão estatal russa. Na mídia russa, essas outras alegações sobre os ucranianos estão misturadas com a alegação de que os ucranianos são russofóbicos. Então, por exemplo, na declaração na televisão estatal russa em que o orador propôs que todos os ucranianos fossem exterminados, seu raciocínio era que todos eles deveriam ser exterminados porque exibem a “russofobia”.

A alegação de que os ucranianos têm que ser mortos porque têm uma doença mental conhecida como “russofobia” é ruim para os russos, porque os educa no genocídio. Mas é claro que tal afirmação é muito pior aos ucranianos.

Esta é uma foto que tirei no porão da escola em Yahidne, na região de Chernihiv, na Ucrânia. Em Yahidne, os ocupantes russos mantinham toda a população da aldeia no porão da escola. Algumas pessoas foram executadas, outras morreram de exaustão. O texto nela diz “59 crianças”; eram quantas crianças que estavam entre aquelas pessoas presas em um espaço muito pequeno. No térreo da escola haviam grafites russos repetindo slogans da propaganda de televisão, por exemplo, que os ucranianos são o “diabo”.

Isso me leva ao meu segundo ponto. O termo “russofobia” é uma estratégia retórica que conhecemos das histórias dos imperialismos.

Quando um império ataca, o império afirma que é a vítima. A retórica de que os ucranianos são de alguma forma “rusófobos”, está sendo usada pelo estado russo para justificar uma guerra de agressão. A linguagem é muito importante. Mas é o ambiente em que é usado que mais importa. Este é o cenário: a invasão russa da própria Ucrânia, a destruição de cidades ucranianas inteiras, a execução de líderes ucranianos locais, a deportação forçada de crianças ucranianas, o deslocamento de quase metade da população ucraniana, a destruição de centenas de hospitais e milhares de escolas, o ataque deliberado ao abastecimento de água e calor durante o inverno. Esse é o cenário da invasão russa na Ucrânia. Isso é o que realmente está acontecendo.

O termo “russofobia” vem sendo usado neste cenário afim de promover a alegação de que o poder imperial é que é a vítima, mesmo que o poder imperial, a Rússia, esteja realizando uma guerra de atrocidades. Este é um comportamento historicamente típico. O poder imperial desumaniza a vítima real e afirma ser a vítima. Quando a vítima (neste caso a Ucrânia) se opõe a ser atacada, assassinada, a ser colonizada, o império diz que querer ser deixado em paz é irracional, é uma doença. Isso é uma “fobia”.

Essa alegação de que as vítimas são irracionais, de que são “fóbicas”, de que têm uma “fobia”, destina-se a desviar a atenção da experiência real das vítimas no mundo real, que é uma experiência, e é claro, de agressão de guerra e atrocidade. O termo “russofobia” é uma estratégia imperial destinada a mudar o assunto de uma guerra real de agressão para os sentimentos dos agressores, suprimindo assim a existência e a experiência das pessoas mais prejudicadas. O imperialista diz: “Somos as únicas pessoas aqui. Somos as verdadeiras vítimas. E nossos sentimentos feridos contam mais do que a vida de outras pessoas.”

Agora, os crimes de guerra da Rússia na Ucrânia podem ser e serão avaliados pela lei ucraniana, porque ocorrem em território ucraniano, e pelo direito internacional. A olho nu, podemos ver que há uma guerra de agressão, crimes contra a humanidade e de genocídio.

A aplicação da palavra “russofobia” neste cenário, a alegação de que os ucranianos estão mentalmente doentes em vez de que estão passando por uma atrocidade, é retórica colonial. Serve como parte de uma prática mais ampla no discurso de ódio. É por isso que esta sessão é importante: ela nos ajuda a ver o discurso de ódio genocida da Rússia. A ideia de que os ucranianos têm uma doença chamada “russofobia” é usada como um argumento para destruí-los, juntamente com os argumentos de que são eles os vermes, os parasitas, os satanistas e assim por diante.

Afirmar ser a vítima quando você é de fato o agressor não é uma defesa. Na verdade,a alegação faz parte do crime. O discurso de ódio dirigido contra os ucranianos não faz parte da defesa da Federação Russa ou de seus cidadãos. É um elemento dos crimes que os cidadãos russos estão cometendo em território ucraniano. Nesse sentido, ao convocar esta sessão, o estado russo encontrou uma nova maneira de confessar crimes de guerra. Obrigado pela sua atenção.

(Eu então falei uma segunda vez, em resposta a uma pergunta do representante russo. Novamente, se você quiser me citar diretamente, talvez queira consultar o vídeo, que está aqui. Como a consulta era sobre fontes, adicionei alguns links, por conveniência. Eles não eram elementos da minha apresentação.)

Obrigado, Sr. Presidente. Foi um prazer estar com você e entre os diplomatas. O representante russo achou por bem me pedir fontes, e estou muito feliz em ajuda-lo.

Se estamos preocupados com fontes de declarações de altos funcionários da Federação Russa, encaminho o representante russo para o site do Presidente da Federação Russa. Lá ele encontrará discursos do presidente da Federação Russa negando que a Ucrânia existe com base no fundamento de que a Ucrânia foi inventada pelos nazistas, negando que a Ucrânia existe com base no fundamento de que foi inventada pelos comunistas e negando que a Ucrânia existe com o fundamento de que um viking foi batizado há mil anos. Eu não comento aqui sobre a validade histórica ou a lógica desses argumentos. Eu simplesmente aponto que esta é uma questão de registro público, que estas são as declarações do Presidente da Federação Russa. Da mesma forma, Dmitri Medvedev, membro do Conselho de Segurança Russo, em seu canal no telegram, oferece repetidamente o tipo de linguagem genocida que foi discutida aqui hoje.

Com relação às fontes na televisão estatal russa. Isso é muito simples. Eu estava citando a televisão estatal russa. A televisão estatal russa é um órgão do estado russo. Como o próprio presidente da Federação Russa disse, a televisão estatal russa representa os interesses nacionais russos. As declarações feitas na televisão estatal russa e em outros meios de comunicação estatais, portanto, são significativas, não apenas como expressões da política russa, mas também como uma marca de motivação genocida à população russa. Isso é verdade a tal ponto que os próprios apresentadores da televisão russa se preocuparam em voz alta com a possibilidade de serem processados por crimes de guerra. Então eu encaminho o representante da Federação Russa para os arquivos de vídeo dos canais de televisão estaduais da Rússia. Para aqueles de vocês que não sabem russo, eu os refiro ao excelente trabalho de Julia Davis. Julia Davis montou um arquivo de material de vídeo russo relevante.

Se as fontes em questão são sobre as atrocidades russas reais na Ucrânia, elassão bem conhecidas e foram abundantemente documentadas. A coisa mais simples para o estado russo fazer seria permitir que jornalistas russos relatassem livre e diretamente da Ucrânia. Para todos os outros, a coisa mais simples a fazer seria visitar a Ucrânia, uma terra que tem um presidente bilíngue, democraticamente eleito, que representa uma minoria nacional e perguntem ao povo da Ucrânia sobre a guerra em ucraniano ou russo. Os ucranianos falam os dois e podem responder em ambos.

O representante da Federação Russa achou por bem atacar minhas qualificações. Eu tomo essa repreensão do estado russo como um distintivo de orgulho, já que é um elemento muito menor em um ataque maior à história e à cultura russas. Meu trabalho tem sido dedicado, entre outras coisas, a narrar o assassinato em massa de russos, inclusive no Cerco de Leningrado. Tenho orgulho ao longo da minha carreira de aprender com historiadores da Ucrânia, Polônia, Europa em geral e também com historiadores da Rússia. É lamentável que os principais historiadores da Rússia e os principais estudiosos da Rússia não tenham permissão para praticar ´livremente’ suas disciplinas em seu próprio país. É lamentável que organizações como o Memorial, que fizeram um trabalho heroico na história russa, agora sejam criminalizadas na Rússia.

Também é lamentável que as leis de memória na Rússia impeçam a discussão aberta da história russa. É lamentável que a palavra Ucrânia tenha sido banida dos livros escolares russos. Como historiador da Rússia, estou ansioso pelo dia em que possa haver uma discussão livre da fascinante história da Rússia.

Falando em história, o representante russo negou que existisse algo como a história da Ucrânia. Eu indicaria ao representante russo excelentes pesquisasfeitas por historiadores que conhecem tanto o ucraniano quanto o russo, como o trabalho recente do meu colega Serhii Plokhii em Harvard. Eu indicaria as pessoas em geral para minha aula abertasobre história ucraniana em Yale, que espero compartilhar o significado da história ucraniana de forma mais eloquente do que posso faze-lo aqui.

Mas fundamentalmente, gostaria de agradecer ao representante russo por me ajudar a fazer o ponto que eu estava tentando inclui-lo no meu briefing. O que tenho tentado dizer é que não é para o representante de um país maior dizer que o país menor não tem história. O que o representante russo acabou de nos dizer é que sempre que os ucranianos, no passado ou no presente, afirmam que existem como sociedade, isso é “ideologia” ou “russofobia”.

O representante russo nos ajudou exemplificando o comportamento que eu estava tentando descrever. Como venho tentando dizer, descartar a história alheia, ou chamá-la de doença, é uma atitude colonial com implicações genocidas. O império não tem o direito de dizer que um país vizinho não tem história. A alegação de que um país não tem passado é discurso de ódio genocida. Ao nos ajudar a fazer a conexão entre palavras e ações russas, esta sessão foi útil. Obrigado.

Timothy Snyder em 14 de março de 2023

Obrigado por ler.

Este post é público, então sinta-se à vontade para compartilhá-lo.

DAGOBAH, por Augusto de Franco, a quem agradeço por viabilizar o acesso.

(PRA)


terça-feira, 1 de novembro de 2022

Depoimento de Paulo Roberto de Almeida a Luiz G. Maluf (Mundo em Análise)

Diplomacia econômica e política comercial: entrevista de Paulo Roberto de Almeida a Luiz G. Maluf

Uma conversa com Luiz G. Maluf sobre a diplomacia econômica do Brasil, sua política comercial e outros aspectos suscitados pelo entrevistador: Luiz G. Maluf, do Mundo em Análise.


A CONVERSA - DIPLOMATA PAULO ROBERTO DE ALMEIDA - PT 1 [Bio + Intersecção com a História Brasileira]

Desenho de um círculo

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Mundo em Análise

 

Como um apaixonado por biografias e trajetórias, tenho um prazer especial em poder acompanhar as histórias e os "causos" daqueles vultos que com certeza marcarão época. É um grande prazer poder ouvir do próprio sujeito, algo muito raro, e ainda interagir. 

 

PARTE I: Paulo Roberto de Almeida permite que em pouco menos de 50 minutos tenhamos a intersecção do que vivenciou em uma longa trajetória diplomático-acadêmica, perpassando o regime militar, o comunismo, as fronteiras políticas, a democracia brasileira e os meandros políticos do PT até desembocar na lastimável política externa do Gov. Bolsonaro.

LINKhttps://www.youtube.com/watch?v=QM7Iz8B0odQ

 

Na PARTE II, A MENTALIDADE PROTECIONISTA VS MULTILATERALISMO, Paulo Roberto de Almeida traz nesta pílula um pouco dos fatores importantes e concepções que marcam os posicionamentos estratégicos que regem a mentalidade tacanha do protecionismo x os avanços multilaterais da esfera político-econômica. AQUI teremos um aprofundamento da visão dos grandes fatos e atores que ditam nosso cotidiano, ainda que não tenhamos plena ciência disso. Nada melhor do que a prática para desmontar as ficções teóricas que rodeiam os acadêmicos.

LINKhttps://www.youtube.com/watch?v=8IHeYolx39U

 

PARTE III: EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA DIPLOMACIA BRASILEIRA E SUAS MENTALIDADES

Paulo Roberto de Almeida traz nesta pílula um pouco da evolução contemporânea da diplomacia brasileira e permeia a mentalidade / postura para alguns posicionamentos.

LINKhttps://www.youtube.com/watch?v=M38g3LiqNsE

 

PARTE IV: O QUE SABOTA O COMÉRCIO EXTERIOR BRASILEIRO; digressões sobre nosso protecionismo renitente e nosso eterno mercantilismo.

LINKhttps://www.youtube.com/watch?v=xE7lCPslKY4

 

Seu site éhttp://pralmeida.org/

Sua biografia: Doutor em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984), Mestre em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977), Licenciado em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). É diplomata de carreira, por concurso direto, desde 1977; serviu em diversos postos no exterior e exerceu funções na Secretaria de Estado, geralmente nas áreas de comércio, integração, finanças e investimentos. Foi professor de Sociologia Política no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília (1986-87) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional, colabora com várias iniciativas no campo das humanidades e ciências sociais, e participa de comitês editoriais de diversas publicações acadêmicas. De agosto de 2016 a março de 2019 foi Diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IPRI), afiliado à Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), do Ministério das Relações Exteriores. 

Seus Livros Publicados: Seleção de livros publicados: Apogeu e demolição da política externa brasileira (Curitiba: Appris, 2021) Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira (Brasília: Diplomatizzando, 2020); Um contrarianista na academia: ensaios céticos em torno da cultura universitária (Brasília: Diplomatizzando, 2020; 363 p.); A ordem econômica mundial e a América Latina: ensaios sobre dois séculos de história econômica (Brasília: Diplomatizzando, 2020, 308 p.); O Mercosul e o regionalismo latino-americano: ensaios selecionados, 1989-2020 (Edição Kindle, 453 p.) Marxismo e socialismo: trajetória de duas parábolas da era contemporânea (Brasília: Edição de Autor, 2019); Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (Boa Vista: Editora da UFRR, 2019); Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019); A Constituição Contra o Brasil: ensaios de Roberto Campos sobre a Constituinte e a Constituição de 1988 (São Paulo: LVM, 2018); O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris, 2017); Révolutions bourgeoises et modernisation capitaliste: démocratie et autoritarismo au Brésil (Sarrebruck: Éditions Universitaires Européennes, 2015); Die brasilianische Diplomatie aus historischer Sicht: Essays über die Auslandsbeziehungen und Außenpolitik Brasiliens (Saarbrücken: Akademiker Verlag, 2015); Nunca Antes na Diplomacia…: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014); Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013); O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos (Kindle edition: 2013); Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: GEN, 2012); Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011); O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) (Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010); O estudo das relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a academia (Brasília: LGE, 2006); Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (São Paulo: Senac, 2001; 2005); Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Paz e Terra, 2002); Mercosul: Fundamentos e Perspectivas (São Paulo: LTr, 1998). Editou ou coordenou a publicação de diversos outros livros, e participou de várias dezenas de obras coletivas, com capítulos sobre os temas preferenciais de pesquisa. 

Blog : http://diplomatizzando.blogspot.com/

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quinta-feira, 9 de junho de 2022

100 dias de Guerra de Agressão da Rússia na Ucrânia: um pequeno depoimento - Paulo Roberto de Almeida (Instituto Montese)

Não sou, nunca fui, de me apresentar para falar sobre qualquer coisa para público indeterminado, Geralmente, no meu "natural reservoso" – como diria o coronel Ponciano de Azeredo Furtado, do genial "O Coronel e o Lobisomem", de José Candido de Carvalho –, prefiro ficar no meu canto de biblioteca, lendo, refletindo e escrevendo (nessa ordem), eventualmente dando aulas ou palestras também, quando me convidam, e depois publicando o que faço, se julgo adequado, apropriado e consistente. Não me convidei para falar neste evento: 

Mas, como insistiram em ter a minha opinião, eu a dei, mas não a tenho, pois foi gravada e será exibida na sexta-feira, 14hs, no Canal YouTube do Instituto Montese, um nome evocativo de uma das grandes batalhas da FEB na campanha da Itália.

Eventualmente, como sempre faço, para "aclarar as ideias" – alguns julgariam racista essa expressão –, eu também preparei um pequeno texto, que resume um pouco, mas muito pouco, do que penso sobre a maior tragédia do nosso tempo: um ditador sanguinário, genocida e criminoso de guerra tentando obliterar um povo e um país, pois que não obteve a sua submissão à sua tirania. Depois do fracasso dos primeiros dias da "operação militar especial" – na verdade, um campanha de extermínio –, Putin só tem três objetivos na sua guerra de agressão: destruir, matar, transformar a Ucrânia em Estado falido pelos próximos dez anos (na metade desse prazo a Ucrânia será admitida na UE, mas não precisa entrar na OTAN, nem é recomendável).

Meu texto, provisório, segue abaixo, para complementar o que eu terei falado nesse evento, gravado antecipadamente. Não vou recomendar que "divirtam-se", pois seria um escárnio na atual situação. 

Os 100 primeiros dias da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: o Brasil afronta o Direito Internacional e a sua história diplomática

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para exposição oral resumida no quadro do webinar do Instituto Montese sobre “100 dias de Guerra na Ucrânia”, dia 10 de junho, 14hs.

  

Agradeço o convite do Instituto Montese para manifestar minha opinião, na condição de simples cidadão brasileiro, e também professor, mas não como diplomata brasileiro, sobre os 100 dias do que foi chamado de “Guerra na Ucrânia”. Gostaria, antes de mais nada, de fazer uma observação terminológica e factual, e aqui vou ser extremamente objetivo quanto aos termos e o significado preciso dos conceitos: não existe uma “guerra na Ucrânia”, e sim uma guerra de agressão da Rússia, mais especificamente uma guerra de seu ditador, contra o governo, o povo e o território de um país soberano, a vizinha Ucrânia. A designação é essa, pois a isso nos leva uma leitura do Direito Internacional, que é o foco desta contribuição; não tenho nenhuma competência para me pronunciar sobre o lado militar da questão.

Que a “operação militar especial”, tal como designada enganosamente pelo ditador russo, seja, de fato, uma guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia está meridianamente claro, a partir de uma leitura dos artigos 1º e 2º da Carta das Nações Unidas, estabelecida em San Francisco, ao término do mais cruel e mortífero conflito global em toda a história da humanidade. Assim também decidiu, preliminarmente, o julgamento de 13 juízes da Corte Internacional de Justiça, em 17 de março de 2022, contra apenas dois – por acaso os da Rússia e da China –, ordenando expressamente que a Rússia interrompesse imediatamente a guerra contra a Ucrânia e cessasse completamente as operações bélicas no território do vizinho país. A CIJ não tem, obviamente, nenhum poder sobre o lado militar dessa guerra de agressão, que já completou 100 dias, pois mesmo para se pronunciar apenas sobre os aspectos de Direito Internacional a ela ligados, a Corte dependeria de resoluções do Conselho de Segurança. Apenas esta peculiaridade da conformação do processo decisório no âmbito das Nações Unidas explica que resoluções aprovadas com ampla maioria naquele Conselho ou na Assembleia Geral permaneçam letra morta, ainda que a condenação moral é muito clara.

O ditador russo não deslanchou apenas uma guerra de agressão contra o território ucraniano, um país soberano, como tal reconhecido pelas Nações Unidas desde quando ele foi desmembrado da finada União Soviética no início dos anos 1990. Putin, ao invadir a Ucrânia, sem qualquer provocação ou gesto belicoso desse país, não apenas violou a Carta da ONU, mas destruiu mais de quatro séculos de difícil construção de uma ordem internacional baseada na força do Direito, e não no direito da força. Ele começou violando os tratados de Westfália (1648), sobre o reconhecimento recíproco da soberania dos Estados nacionais, cada um possuindo o direito de estabelecer o seu próprio regime político e a sua religião. Também violou princípios implícitos decididos no Congresso de Viena (1815), sobre a legitimidade dos Estados nacionais e o reconhecimento de seus enviados diplomáticos, como canais de diálogo e de consulta entre dois ou mais soberanos. Ele violou o Tratado de Paris (1856), que estabeleceu a paz entre os contendores da primeira guerra da Crimeia, de 1853 a 1855. Da mesma forma, agiu contrariamente às decisões das negociações de paz de Paris (1919), que estabeleceu a Liga das Nações, com disposições relativamente similares às da Carta de San Francisco sobre a proibição das guerras de agressão. Se colocou frontalmente contrário aos poucos dispositivos do Pacto Briand-Kellog (1928), de renúncia à guerra e de recursos aos meios pacíficos de solução de conflitos, depois incorporados à Carta das Nações Unidas.

Ou seja, Putin é um violador serial dos principais instrumentos multilaterais que foram sendo acordados dentro do espírito e da letra do Direito Internacional nos últimos quatro séculos. Pelas suas ações, registradas e devidamente avaliadas por observadores da Corte Internacional de Justiça e do Tribunal Penal Internacional, Putin já incorreu nos mesmos crimes de que foram acusados os dirigentes civis e militares nazistas no Tribunal de Nuremberg, em 1946: crime contra a paz, crimes de guerra e contra a humanidade. Putin mereceria um Nuremberg só seu, mas sobre isto a História se pronunciará no futuro curso dos eventos. Não vou me estender mais sobre os aspectos multilaterais da questão, e sim tratar da relação entre o Brasil e o Direito Internacional, que me parece seriamente comprometida. 

O Brasil sempre demonstrou, até recentemente, uma adesão inquestionável aos valores e princípios do Direito Internacional, tal como foram sendo elaborados e acatados nos últimos duzentos anos pela sua diplomacia, ainda que nem sempre o país tenha sido um seguidor fiel de alguns de seus dispositivos. Por exemplo, o compromisso assumido no âmbito do Congresso de Viena, na condição de Reino Unido ao de Portugal e Algarve, de fazer cessar o tráfico escravo, não foi traduzido na prática, como tampouco ocorreu, já como Estado independente, depois de assinar tratados bilaterais com a Grã-Bretanha prometendo fazê-lo em breves anos à frente. Mas, mesmo defendendo, até o Segundo Reinado, o nefando comércio, sua diplomacia, então guiada por Paulino Soares de Souza, argumentou de modo correto no plano jurídico, ao protestar contra o Bill Aberdeen, que equiparava o tráfico à pirataria, passível, portanto, de severa punição, indo até mesmo à pena de morte. Como escreveu em nota diplomática o Visconde do Uruguai, o tráfico não ameaçava o comércio internacional como a pirataria o fazia, e, de toda forma, não havia nenhum tratado internacional proibindo o horrível comércio de carne humana. Argumento bastante lamentável no plano moral, mas juridicamente correto.

O Brasil, por essa época, interferia nos assuntos internos do Uruguai, sob a justificativa de que do Uruguai partiam ataques contra o patrimônio de brasileiros em território nacional, num contexto de diferendos bem mais amplos com a Argentina de Rosas e com o Paraguai de Solano Lopes, que resultaram em duas guerras no espaço de duas décadas. Tampouco havia, a despeito do “espírito de Westfália”, um compromisso formal de não interferência nos assuntos internos de outros Estados, esporte ao qual se dedicavam todas as potências europeias da época. Desde a Guerra do Paraguai, e independentemente dos progressos feitos no terreno do Direito Internacional, assim como no âmbito de sua própria Constituição – a de 1891, por exemplo, proibiu terminantemente o recurso à guerra –, o Brasil se manteve integralmente fiel ao espírito e à letra dos instrumentos internacionais que foram sendo progressivamente incorporados aos edifícios hemisféricos e multilaterais dos dispositivos formais e informais regendo a ordem internacional. 

Os pilares dessa diplomacia nacional estritamente respeitadora da soberania nacional e de fiel cumprimento de instrumentos jurídicos internacionais foram impulsionados pela política externa do Segundo Reinado, consolidados pelos dois Rio Branco, pai e filho, e magnificamente sustentados por Rui Barbosa por ocasião da segunda conferência internacional da paz da Haia, em 1907; contrariando muitas vezes sozinho a arrogância das grandes potências, Rui Barbosa defendeu o princípio da igualdade soberana de todos os Estados, conceito que se converteu no eixo central do multilateralismo contemporâneo. O mesmo Rui Barbosa clarificou a observância da neutralidade em casos de guerra e procedeu a uma vigorosa tomada de posição em defesa do direito de neutralidade em situações de conflito, e sua violação, na famosa conferência feita em Buenos Aires, em 1916, doutrina sistematizada na obra Princípios Modernos do Direito Internacional, mais vulgarmente conhecida como Os Deveres dos Neutros

O Brasil, estritamente neutro, justamente, com respeito aos dois grandes conflitos globais da primeira metade do século XX, a Grande Guerra de 1914-18 e a Segunda Guerra, de 1939 a 1945, avançou para uma declaração formal de status bélico apenas quando foi covardemente atacado por forças marítimas do Império alemão e do Reich nazifascista, respectivamente. Participamos ativamente da construção da ordem econômica e política contemporânea, mesmo não concordando em San Francisco com o direito de veto que se atribuiu aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. 

Mas, o Brasil e sua diplomacia começaram a falhar no acatamento aos princípios do Direito Internacional desde que aqui se inaugurou uma política externa partidária, quando da diplomacia lulopetista praticada de 2003 a 2016. O presidente Lula ignorou completamente dispositivos da Convenção de Viena de 1961, sobre relações diplomáticas, relativos à não interferência nos assuntos internos de outros Estados, aliás incorporados explicitamente ao artigo 4º da Constituição de 1988, junto com vários outros princípios, que correspondem às cláusulas mais importantes observadas nas relações internacionais contemporâneas, coincidentes com os grandes instrumentos multilaterais que regem as relações entre Estados soberanos. Lula violou sistematicamente tais dispositivos ao interferir em praticamente todas as disputas eleitorais em Estados vizinhos, apoiando candidatos pertencentes ao mesmo arco político-ideológico do seu partido. Mais grave ainda: quando da nacionalização dos recursos em hidrocarburos da Bolívia, em 1/05/2006, ela mesma uma violação grave de um tratado bilateral Brasil-Bolívia e de um acordo do governo boliviano com a Petrobras, mediante inclusive o uso da força pelo presidente Morales, a diplomacia de Lula – que pessoalmente deveria saber antecipadamente dessa iniciativa de seu companheiro de postura política, mas que provavelmente desconhecia o emprego do exército boliviano para ocupar as instalações da Petrobras – não apenas concordou com a expropriação, como soltou uma nota apoiando o gesto ilegal do governo do país vizinho. Militares nacionalistas poderiam eventualmente considerar tal postura como o equivalente de uma traição à pátria. De forma geral, a diplomacia partidária tendeu a favorecer aliados políticos, na região e fora dela, mesmo em detrimento dos interesses nacionais, em alguns casos implicando e violação de acordos bilaterais (no caso de Itaipu) ou regionais (no caso do ingresso da Venezuela no Mercosul).

Outro episódio grave, ainda no plano do direito internacional, ocorreu quando da invasão do território ucraniano em 2014, sob as ordens do mesmo Putin, e a anexação ilegal da península da Crimeia: a diplomacia lulopetista, então sob comando da presidente Dilma Rousseff, não emitiu sequer um comunicado condenando a grave violação da soberania da Ucrânia, o que tampouco ocorreu quando da derrubada de um avião da Malásia sobrevoando a região da Ucrânia oriental, já em conflito justamente devido à ocupação ilegal daquele setor por forças russas não devidamente identificadas. Optou-se por uma postura totalmente inerte no plano da política externa e da diplomacia brasileira, contrastando com a obrigação pelo menos moral de defesa do direito internacional e dos princípios da Carta da ONU, num momento em que diversos países ocidentais protestavam vigorosamente contra a invasão e introduziam sanções contra a Rússia. A presidente Dilma se manifestou apenas quando cobrada pela imprensa, dizendo que o Brasil não se envolveria (sic) em assuntos de outros países, como se fosse esse o problema no caso. Uma provável razão pela inação vergonhosa do ponto de vista dos princípios sempre defendidos pela diplomacia profissional pode ter sido a parceria entre o Brasil e a Rússia no âmbito do Brics, uma construção claramente artificial, e totalmente política, entre quatro, depois cinco, países sem grandes convergências no plano da política internacional.

O caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, desde 24 de fevereiro de 2022, depois que o ditador russo passou semanas denegando a invasão, é infinitamente mais grave, ainda que o Brasil tenha supostamente aderido às resoluções votadas na ONU – no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral – e no seu Conselho de Direitos Humanos, condenando a Rússia pelos atos cometidos desde então, mas com explicações de voto que traduzem claramente a decisão do chefe de Estado brasileiro de evitar acusar diretamente a Rússia pelas transgressões bárbaras perpetradas em território ucraniano. Sem adentrar nas minúcias da Carta da ONU, dos grandes princípios do Direito Internacional, assim como dos protocolos existentes sobre as leis de guerra, cabe registrar apenas algumas observações sobre a postura política do Brasil, não apenas no tocante às resoluções votadas no âmbito da ONU e do Conselho de Direitos Humanos, mas refletindo igualmente a atitude geral das autoridades políticas brasileiras com respeito ao posicionamento geral em relação à guerra de agressão.

É notoriamente conhecido que o Brasil, como país e como diplomacia, se encontra atualmente singularmente isolado no plano internacional, aliás desde o início de 2019, tendo em vista, basicamente, a postura, digamos heterodoxa, do chefe de Estado e de governo no seu relacionamento externo, tanto regional, quanto internacional ou multilateral. Tal situação de isolamento internacional decorreu das políticas domésticas do governo Bolsonaro, notadamente no domínio ambiental, mas também por repetidos ataques às instituições – Congresso e Suprema Corte) –, aos meios de comunicação, às organizações da sociedade civil (não governamentais) das áreas de defesa do meio ambiente, dos direitos indígenas, de ação social em geral. Ademais, o chefe de Estado hostilizou parceiros estrangeiros, com destaque para os líderes europeus, o presidente peronista da Argentina e dirigentes tidos de esquerda de maneira geral. De forma bastante evidente buscou relações unicamente com colegas de direita ou extrema-direita, além de prestar submissão ao anterior presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. 

Foi nessa situação de extremo isolamento que o presidente buscou realizar uma visita de trabalho a um dos poucos líderes mundiais que poderia recebê-lo, o presidente da Rússia, provavelmente já antecipando conquistar um aliado para o que já pretendia fazer poucos meses à frente. Quando se decidiu tal viagem bilateral, entre os dois chanceleres, Serguei Lavrov e Carlos França, no início do último trimestre de 2021, não estavam claros, ainda, os preparativos para a planejada ofensiva russa contra o país vizinho, o que foi feito por meio da acumulação de tropas russas na fronteira comum nos últimos dois meses daquele ano. Ao tomar conhecimento desse planejamento, a chancelaria brasileira recomendou que o presidente adiasse ou cancelasse a viagem, o que ele se recusou a fazer, mesmo com manifestações de alerta vindas do próprio presidente americano, Joe Biden (a partir de dados da inteligência dos EUA). A visita, ocasião na qual o presidente brasileiro declarou sua “solidariedade” ao presidente russo e justificada pela necessidade de importação de fertilizantes russos, foi feita oito dias antes de efetivada a invasão, que foi até minimizada pelo presidente.

Independentemente de palavras e gestos do presidente, a postura oficial do Brasil que vale para fins de política externa e de legitimação junto à comunidade internacional são as declarações feitas junto às Nações Unidas, cujos órgãos principais, o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral, se ocuparam da questão da Ucrânia nas semanas seguintes à guerra de agressão da Rússia. Não cabe aqui reproduzir a íntegra das declarações da delegação do Brasil em Nova York e em Genebra (Conselho de Direitos Humanos), todas eles disponíveis no site do Itamaraty, ou a partir dos registros da ONU. O que cabe é sinalizar pormenores dessas declarações que revelam, se preciso fosse, o contorcionismo verbal da diplomacia profissional para evitar de responsabilizar claramente a Rússia pela guerra de agressão. Podem ser destacados quatro elementos nessas declarações que tornam evidente a postura do chefe de Estado no sentido de continuar apoiando objetivamente a postura de Putin. 

Em primeiro lugar, sem condenar explicitamente a violação flagrante da Carta da ONU, a delegação brasileira instou as partes à “cessação de hostilidades”, como se estas fossem recíprocas, ou seja, uma guerra empreendida por decisão de ambas as partes, e não uma guerra unilateral sem qualquer provocação da parte agredida e invadida. Em segundo lugar, a delegação também pediu negociações entre elas, tendo em vista as “preocupações de segurança das partes”, como se a Ucrânia tivesse ameaçado, em algum momento, a segurança da Rússia. Em terceiro lugar, mesmo votando pela condenação da Rússia na Assembleia Geral – uma votação de toda forma inoperante, dado uso abusivo do poder de veto em defesa do próprio transgressor da Carta da ONU –, a delegação brasileira se opôs terminantemente à imposição de sanções contra a Rússia, a pretexto de que qualquer punição agravaria a situação econômica no mundo inteiro, o que significa, implicitamente, que o agressor pode se safar impune das ilegalidades e crimes perpetrados. Em quarto e último lugar, a delegação também se pronunciou contrariamente ao fornecimento de armas à Ucrânia, a pretexto de não provocar maior número de vítimas, o que se traduz num simples “convite” a que um governo soberano renuncie à defesa do seu povo e território. 

Os quatro posicionamentos da delegação brasileira não são a rigor, ilegais, do ponto de vista do Direito Internacional, mas são altamente hipócritas, tendo em vista a acumulação de crimes de guerra e até, possivelmente, crimes contra a humanidade, perpetrados pelas tropas russas de ocupação. A hipocrisia puramente política – não teoricamente contrária ao direito internacional – se estende inclusive à oposição do Brasil à imposição de sanções à Rússia, a pretexto de que elas seriam “unilaterais”, e não aprovadas pelo CSNU, como se este pudesse fazê-lo não obstante o veto russo a qualquer medida contrária a seus interesses. No que concerne as sanções, cabe registrar que elas se conformam inteiramente ao espírito e à letra dos artigos 41 e 42 da Carta da ONU, que regulam tal faculdade. Ou seja, os países estão apenas aplicando as medidas previstas na Carta de San Francisco, numa situação em que – da mesma forma como ocorre nas cortes quando juízes se declaram impedidos de atuar em casos nos quais eles possam incorrer em qualquer conflito de interesse – o veto da Rússia não poderia ser aplicado em seu próprio favor, dado o fato de que ela é a parte agressora, aquela que violou as disposições mais relevantes do instrumento máximo do Direito Internacional. 

Ao se conformarem os 100 primeiros dias da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, neste dia 4 de junho de 2022, a diplomacia brasileira apresenta, por nítida pressão da presidência, um triste quadro de contorcionismo verbal e subterfúgios retóricos para evitar de se colocar, como geralmente fez ao longo de sua história de dois séculos, sob o espírito e a guarda de sagrados princípios do Direito Internacional, e até mais do que isso, da moralidade. A restauração da credibilidade e da legitimidade da diplomacia brasileira terá de aguardar a própria reconstrução de uma política externa coerente e condizente com as próprias cláusulas de relações internacionais que figuram no Artigo 4º de sua Constituição e que integram o seu patrimônio histórico de conformidade ao Direito Internacional em todas as circunstâncias.


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4165: 3 junho 2022, 7 p.


quarta-feira, 19 de maio de 2021

O falso testemunho do falso chanceler - Dora Kramer, Ricardo Rangel (Revista Veja)

 Um falso chanceler só podia mesmo prestar falso testemunho. Não é que seus dizeres na CPI não continham um pingo de verdade: o fato é que eles não contimam sequer um átomo de conexão com os fatos, um miligrama de aderência aos registros dos infelizes dois anos e três meses nos quais ele infelicitou o Itamaraty.

Tão falso quanto o COF do seu guru protetor.

Pailo Roberto de Almeida

Falso testemunho

Dissimulado e manhosamente insolente, o ex-chanceler Ernesto Araújo levou ao ápice o exercício do negacionismo na CPI da Covid ao negar a si mesmo e ao retratar, perante os senadores, uma realidade contrária aos fatos. Numa palavra, mentiu.

Prestou, como testemunha juramentada, um depoimento cuja falsidade esteve expressa nos registros de declarações feitas durante sua gestão exibidos pelos parlamentares. A eles, o diplomata desmentia com desfaçatez: negou a existência dos atritos com a China e alinhamento com os Estados Unidos na era Donald Trump, a despeito das evidências em contrário devidamente documentados na imprensa, nas redes sociais, em aúdios, vídeos e atas de reuniões.

A julgar pelas palavras de Araújo, sob o compromisso de dizer a verdade, a passagem dele pelo ministério das Relações Exteriores foi tão exitosa quanto irrepreensível no tocante à defesa dos interesses do Brasil. Isso depois de ter dito em sua apresentação inicial que a política externa deve se submeter à doutrina do governo de turno e pouco antes de reconhecer que não apenas não pediu como sequer agradeceu ao oxigênio doado pela Venezuela ao Amazonas.

Na versão apresentada pelo ex-chanceler nas respostas aos senadores, o governo Jair Bolsonaro não cometeu ações deletérias nem incorreu em omissões na gestão da pandemia. Eventuais problemas, segundo ele, foram todos decorrência da oposição dos adversários. Ou seja, no relato oferecido por Ernesto Araújo o Brasil chegou à situação presente não por atos do presidente, mas pelo fato de Bolsonaro ser injustamente perseguido em virtudes de suas convicções.

Seriam apenas fantasias não fossem mentiras que configuram falso testemunho prestado à CPI.

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A culpa é do Pazuello

RO ex-chanceler Ernesto Araújo mentiu bastante, esqueceu muito, enrolou uma barbaridade e gaguejou como nunca ninguém jamais gaguejou.

Mas não escapou de deixar claro que o desempenho do governo e o seu próprio foram um desastre no que se refere ao combate à pandemia.

Araújo deveria ter alertado Bolsonaro de que o comportamento hostil do presidente em relação à China e a outros países poderia nos prejudicar, mas não o fez. Deveria ter preservado a relação com a China, mas foi ele mesmo hostil.

Deveria ter insistido com Bolsonaro para responder à carta da Pfizer, mas não o fez. Deveria ter aderido ao acordo celebrado por 130 países (inclusive os EUA) contra fake-news, que tanto atrapalham o combate à Covid, mas não o fez. E muito mais.

Mas Araújo não se espatifou sozinho.

O Brasil foi um dos últimos países do mundo a aderir à Covax Facility, e aderiu na cota mínima de 10%, mas foi por orientação do Ministério da Saúde. Araújo não negociou com a Venezuela, que doou oxigênio para a crise de Manaus, mas foi porque o Ministério da Saúde não pediu. E muito mais.

A chapa de Pazuello vai esquentar ainda mais — se é que isso é possível — na quarta-feira.