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domingo, 23 de maio de 2021

A diplomacia bolsolavista no contexto mundial e comparada aos antecedentes lulopetistas: um depoimento pessoal - Paulo Roberto de Almeida

 A diplomacia bolsolavista no contexto mundial e comparada aos antecedentes lulopetistas: um depoimento pessoal 

Paulo Roberto de Almeida

Entrevista para estudantes da Pós-graduação em Economia da FEA-USP – EPEP

e para membros do LAI - Laboratório de Análise Internacional Bertha Lutz, IRI-USP. Texto de apoio a mentoria, em 28/05/2021; EPEP-FEA-USP.

 

Perguntas do EPEP-FEA-USP e respostas de Paulo Roberto de Almeida (PRA):

1. A gestão do Ernesto Araújo frente ao Itamaraty, como o senhor bem coloca em seus textos, foi desastrosa para a imagem do Brasil no exterior. Com esse novo chanceler, o Carlos França, parece que o governo brasileiro está tentando reduzir alguns atritos construídos da gestão anterior. Quais o senhor diria que são os caminhos para a reconstrução da imagem brasileira pós-Ernesto Araújo? O que o Itamaraty pode fazer agora para amenizar a condição de “pária internacional” do Brasil? (possivelmente: uma saída de Bolsonaro é condição necessária para isso?)

PRA: Como um dos poucos diplomatas da ativa – talvez o único – a ter oferecido resistência aos despautérios perpetrados contra a nossa política externa por essa coisa horrorosa e disfuncional que eu chamei de bolsolavismo diplomático, recebi diversas demandas de jornalistas tão pronto o desequilibrado chanceler acidental foi, finalmente, afastado da direção do Itamaraty, em 29 de março de 2021, depois de dois anos e três meses de sua obra nefasta de demolição da diplomacia profissional. Todos os jornalistas formulavam a mesma pergunta: o que se poderia esperar de “diferente” na nova gestão, comparada à do seu esquizofrênico antecessor.

Eu imediatamente argumentei que “nada” haveria a esperar de “diferente” no Itamaraty, e sim a continuidade do que sempre tinha sido a nossa ferramenta e ação diplomáticas. Diferente havia sido, sim, e com um imenso grau de potencial destrutivo, a inacreditável não-gestão da Casa de Rio Branco pelo vergonhoso capacho do guru presidencial (o Rasputin de Subúrbio) e da família Bolsonaro, numa cadeira na qual ele nunca deveria ter se sentado. À nova gestão bastaria ser exatamente igual ao que sempre foi o Itamaraty, ou seja, nada de diferente do que sempre fizemos, nós os diplomatas profissionais, na condução das relações internacionais do Brasil, na agenda externa do país e na excelência dos serviços diplomáticos que sempre soubemos prestar à nação.

(...)


As perguntas adicionais são estas: 

 

2. O Itamaraty sempre foi considerado uma das instituições de Estado mais respeitáveis e idôneas do Brasil. Que tenha havido um ponto fora da curva dentro do Ministério como o Ernesto Araújo pode causar estranho, mas não é estatisticamente significante. O que causa espanto, porém, é que parece que ele conseguiu cooptar (ou sequestrar, como o senhor usa no título do seu livro) o Itamaraty para o projeto bolsolavista do governo. Como isso foi possível? O senhor acha que houve conivência interna suficiente?

 

3. Embora o senhor tenha se tornado amplamente conhecido por opor-se à política externa de Bolsonaro, sabemos que também foi bastante crítico da diplomacia sob os governos do PT. Qual é a sua visão hoje, com algum distanciamento temporal, sobre a política externa de Lula e Dilma? Sua opinião mudou desde que o PT saiu do poder?

 

4. O senhor é muito vocal nas suas opiniões, muitas vezes críticas às direções tomadas na política externa brasileira. No Itamaraty, qual é a extensão da liberdade de expressão que os ‘soldados de terno’ têm? Diplomatas podem criticar livremente o comando do MRE? Na sua percepção, isso mudou sob Bolsonaro?

 

5. Em 28 de junho de 2019 foi assinado o tratado de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Entretanto, ele ainda precisa ser ratificado no âmbito econômico pelos congressos nacionais dos países sul-americanos e pelo Parlamento Europeu. Este processo tem sido dificultado pela repercussão dos escândalos ambientais recentes dos países do Mercosul, especialmente o Brasil, e pela resistência de representantes dos setores agrícolas de alguns países europeus, como os da França. Qual é a expectativa de que esse acordo seja posto em prática por ora?

 

6. O Itamaraty é muito conhecido por grandes nomes do seu pensamento diplomático. Figuras como Rio Branco, San Tiago Dantas e Oswaldo Aranha deram à política externa brasileira um conjunto de ideias para - como você mesmo escreveu - “sustentar-lhe as ações”. Como o senhor vê o pensamento diplomático brasileiro hoje em dia? Quais contribuições o Itamaraty tem trazido para esse campo nos últimos anos?


7. Nos últimos 20, 30 anos, exceção feita aos últimos três, algumas pautas foram constantes na diplomacia nacional. A reforma do conselho de segurança da ONU, bem como a integração latino-americana e a afirmação da multipolaridade marcaram a condução da política externa brasileira - ainda que com variações importantes entre governos distintos. Em sua visão, qual o futuro dessas pautas para a agenda do MRE?

 

8. Teoricamente, política externa deve ser uma política de Estado. Entretanto - e o senhor tem sido bastante crítico disso em diversas instâncias -, ela muitas vezes acaba sendo cooptada para interesses políticos internos, tornando-se muito mais uma política de governo. Como impedir que, nas mãos de governantes eleitos e que buscam agradar sua base, a política externa seja “sequestrada” como política de governo?

 

9. Muitos dentre nós pensam em tentar seguir carreira diplomática. Que dica o senhor daria para universitários que querem perseguir esse caminho?

 

10. Um conceito bastante em voga nas relações internacionais é o de “armadilha de Tucídides”, do Graham Allison. Segundo ele - puxando o exemplo da Guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas, analisado pelo historiador grego Tucídides -, o crescimento de uma nova potência em ascensão sempre irá criar tensões com uma velha potência estabelecida, a ponto de irem à guerra. Esse conceito é muito usado para analisar as relações conflituosas entre EUA e China, sugerindo que um conflito armado seria inevitável. Na sua opinião, os EUA e a China, na condição de potências concorrentes, estão fadados a uma escalada nas suas relações conflituosas, levando, por exemplo, à guerra?

 

11. Desde o governo Sarney, a integração econômica latino-americana esteve entre as prioridades da diplomacia brasileira. Esse tema perdeu relevância não só no Brasil, como também em outros países historicamente defensores do Mercosul. Qual é a sua opinião, enquanto diplomata, sobre o futuro da integração regional?

 

Ler a íntegra das respostas às perguntas acima, neste link da plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/49026031/3918_A_diplomacia_bolsolavista_no_contexto_mundial_e_comparada_aos_antecedentes_lulopetistas_um_depoimento_pessoal_2021_


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Um capítulo das minhas “Crônicas dos Eventos Correntes” - Paulo Roberto de Almeida

 Um capítulo das minhas “Crônicas dos Eventos Correntes”

Paulo Roberto de Almeida 


Em meados de 2018, atendendendo a sugestões de conhecidos, estive com Paulo Guedes, Roberto Castello Branco, Rubem Novaes, Marcos Cintra e 2 ou 3 outros, no escritório de PG (no RJ). 

Assim que entrei, começaram me chamando de chanceler, o que recusei peremptoriamente, dizendo que poderia colaborar, mas apenas enviando subsídios sobre política econômica externa, o que fiz algumas vezes.  

Na conversa de 2hs que se seguiu, percebi que PG não entendia nada de Mercosul, de OMC, ou do que representava Trump como destruidor de tudo o que os EUA tinham construído desde Bretton Woods; argumentei o que pude, sem esperança, porém, de que pudesse convencê-lo com meus argumentos.

Queriam que eu integrasse a equipe preliminar na área econômica, o que também recusei na hora. Mas, desejei boa sorte a todos, repetindo o que eu já dissera ao início: que eu não era eleitor de JB, que eu iria me abster no 2o. turno e que eu achava o candidato deles “muito fraco” (para não dizer o que eu pensava e ainda penso, que achava o sujeito um boçal completo, para não constrangê-los).

Depois que saiu aquele horrível programa na área externa, enviei um documento de críticas, cujo teor acabo de postar novamente no meu blog. Evitei críticas na parte econômica, que me pareceu bem intencionada, mas vaga demais. 

Nunca mais voltei a ver qualquer um deles, mas tive reflexos bem informados sobre as desventuras de todos eles.

Desde então, as cabeças foram caindo, ou as pessoas saindo, por razões que podem ser facilmente deduzidas.

Parece que agora, de todos os nomes que citei (e mais dois ou três, que não estavam naquela visita), só sobrou o PG.

Meus bons votos de persistência ao PG, pois se, além da Saúde, do Meio Ambiente, dos DH, da diplomacia, da Petrobras, da Cultura, o capitão assumir igualmente a área econômica, então o Brasil estará pronto para cumprir o seu destino.

Só não me perguntem qual...

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 19/02/2021


domingo, 21 de outubro de 2018

Depoimento sobre o embaixador Rubens Barbosa - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente trabalho publicado, ainda que o tenha sido em uma versão bem mais reduzida, como informado abaixo. Os links para a versão completa deste trabalho são fornecidos na informação abaixo: 

3172. “Você é um ‘accident prone diplomat’: minhas interações com o embaixador Rubens Antônio Barbosa”, Brasília, 2 outubro 2017, 45 p. Ensaio recapitulativo para servir de depoimento sobre minha relação de trabalho e amizade com o diplomata que foi meu chefe em diversas ocasiões. Publicado em versão resumida no livro de Rubens Antônio Barbosa: Um diplomata a serviço do Estado: na defesa do interesse nacional (depoimentos ao Cpdoc)(Rio de Janeiro: FGV, 2018,  300 p.; ISBN: 978-85-225-2078-7),pp. 273-289. Divulgado em versão completa na plataforma Academia.edu (21/10/2018; link: https://www.academia.edu/37622963/Um_accident-prone_diplomat_depoimento_sobre_emb._Rubens_Barbosa) e em Research Gate (link: https://www.researchgate.net/publication/328416691_Voce_e_um_'accident-prone_diplomat' ).

“Você é um ‘accident-prone diplomat’”:
minhas interações com o embaixador Rubens Antônio Barbosa
  
Depoimento elaborado por Paulo Roberto de Almeida
para subsidiar construção de testemunho oral.
Brasília, janeiro 2010-outubro de 2017.
Publicado, em versão resumida, no livro de Rubens Antônio Barbosa: Um diplomata a serviço do Estado: na defesa do interesse nacional (depoimentos ao Cpdoc)(Rio de Janeiro: FGV, 2018,  300 p.; ISBN: 978-85-225-2078-7),pp. 273-289).


A frase destacada no título foi, obviamente, pronunciada em Washington, pelo embaixador Rubens Antônio Barbosa, em algum momento do ano de 2001; concordo inteiramente com ela e, de certa forma, dela me orgulho, pois ela expressa, com rara felicidade, minha atitude na diplomacia e, talvez, na própria vida. Não, não me considero um diplomata desastrado, daqueles tipos caricaturais de cinema que provocam acidentes pela sua simples aparição no cenário. Sou, sim, um diplomata contestador, ou contrarianista, e nunca pretendi ser diferente. Estou sempre querendo questionar os fundamentos empíricos de algum argumento, descobrir suas possíveis deficiências para chegar a uma resposta mais adequada ao problema colocado; em resumo, sou um desconfiado, um dubitativo, praticando um ceticismo sadio.
Creio que o Embaixador Rubens Antônio Barbosa captou, com total percuciência, um traço de meu caráter, responsável tanto pela minha trajetória profissional e acadêmica, quanto por alguns “acidentes de trabalho” ao longo de uma carreira a que ele não esteve alheio, muito pelo contrário. Mas a frase em questão foi dita em meio a uma interação profissional que durou várias décadas, ou seja, quase toda minha carreira ativa no serviço diplomático, e ela talvez esteja na origem da trajetória ulterior, de encerramento parcial da cooperação ativa, quando Rubens Barbosa decidiu se aposentar. Vejamos, assim, como essa interação se deu, e como ela se desenvolveu ao longo do último terço do século XX e início do século XXI.

Gênese
Conheci o então jovem conselheiro Rubens Antônio Barbosa ainda antes de ingressar na carreira, em outubro de 1977, mas por puro acaso e sem que eu sequer tivesse me movimentado para tanto, já que não tinha certeza, então de conseguir entrar na diplomacia. Explico.
(...)

Versão completa deste depoimento nos links abaixo: 

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Minha vida de koala - Paulo Roberto de Almeida (2004)

A "descoberta" desta foto na internet, totalmente por acaso, me fez lembrar de um antigo texto que fiz, sobre um novo estilo de vida, tentando imitar esses simpáticos bichinhos:
1356. “Minha vida de koala: fábula fabulosa (à la manière de La Fontaine)”, Brasília, 19 nov. 2004, 3 p. Digressão ligeira sobre uma reencarnação ideal, a partir de uma ideia formulada em Washington, em 7/09/2003. Postado no blog Diplomatizzando (20/11/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/11/minha-vida-de-koala-um-texto-pra-jamais.html). 

Será que ainda se aplica?



Minha vida de koala
fábula fabulosa (à la manière de La Fontaine)

Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)

E se eu não fosse quem eu sou?
A pergunta faz sentido, sobretudo se colocada no contexto da herança deixada pelos “anos de chumbo”, nas décadas de 60 e 70, quando muitos opositores ao regime militar então em vigor tiveram de assumir outras identidades, de maneira a resguardar a segurança pessoal ou a dos familiares. Alguns aderiram à nova identidade e gostaram tanto da “personalidade alternativa” que preservaram a vida do alter ego mesmo depois de plenamente restabelecida a democracia no Brasil.
Não foi o meu caso, mas ainda assim a pergunta toca numa corda sensível, já que implica que eu poderia ter nascido sob outro nome, ter tido uma outra história de vida, ter sido uma pessoa completamente diferente daquela que se apresenta agora sob esta identidade de funcionário público e professor universitário, completamente desprovido desta aparência anódina de intelectual de gabinete. Eu bem que poderia ter sido, a despeito deste ar tranqüilo de “combatente da pluma”, um perigoso contraventor da lei e da ordem, um “subversivo” como então se dizia, um marxista enragé (e engagé) ou então um anarquista franco-atirador, tão ameaçador da saúde das instituições en place quanto o libertário radical que de fato eu sou atualmente. Tampouco foi o meu caso, mas caberia considerar seriamente a hipótese levantada acima, pelo menos teoricamente, e talvez até mesmo hipoteticamente, num terreno situado externamente à espécie humana.
Sim, vejamos: se eu não fosse este bípede leitor e escrevinhador, com este jeito de eternamente distraído e sempre absorto em alguma leitura atrasada, o que eu poderia ser? Ou melhor: o que eu gostaria de ser? Boa pergunta esta, mas a resposta já foi dada acima, assim que o resto da fábula não apresenta mais surpresas, apenas curiosidades.
Com efeito, considerando todas as possibilidades disponíveis no reino animal – não, eu não estava considerando nada nos reinos vegetal ou mineral – e as alternativas indicadas no caso de um cidadão pacato como este que vos fala e escreve, fiquei bastante tentado a, numa segunda (ou em qualquer outra) encarnação de vida, formular ao todo poderoso senhor criador de todas as coisas meu desejo de voltar ao mundo como koala. Pausa para explicar essa do “criador”, num texto de um “materialista vulgar”, ou pelo menos um “irreligioso” assumido. A justificativa é perfeitamente lógica: num exercício que se pretende de “reencarnação”, o mínimo que se poderia querer, como fiat inescapável, é a existência de um criador supremo, que fica brincando com a vida da gente, dando a um sapo a conformação de um príncipe, a uma barata a beleza de Nefertite ou a um fracote poderes de Napoleão (mas existem muitos concorrentes neste caso).
Pois bem, por que, exatamente, eu gostaria de ser esse estranho animal do tão distante continente australiano? Por algumas razões muito simples: aprendi que o koala passa 80% do seu tempo dormindo, 10% comendo e os 10% restantes apenas esperando a próxima refeição ou o próximo dodô (sitting-by, dizem os australianos). Para quem só passa 20% do seu tempo dormindo, essa perspectiva é verdadeiramente fabulosa, digna de algum La Fontaine do sono. Não sei se os koalas são todos funcionários públicos do Serviço Zoológico Nacional da Austrália, mas esse emploi du temps me parece bom para aposentados, preguiçosos ou hedonistas de maneira geral (o que eu ainda não sou, mas um dia chegarei lá). Trata-se de uma repartição de ocupações que melhor reflete um ideal de cultura zen, contemplativa, que não pode fazer nenhum tipo de mal à humanidade, à condição, obviamente, que se tenha de onde tirar o alimento.
Os ecologistas mais radicais por certo me apoiariam nessa reencarnação, pois eles estão sempre querendo nos fazer voltar ao equilíbrio da vida natural, distanciada da vida agitada da civilização e seus nefastos efeitos poluidores. Como isso não parece perto de ocorrer na minha vida terrena, vejamos como eu poderia organizar minha vida para me aproximar daquela distribuição fabulosa de tempo, desde que invertendo, está claro, a repartição de tarefas para melhor refletir minhas prioridades de vida.
Atualmente, passo 60% do tempo trabalhando (no meu emprego assalariado e em tarefas acadêmicas auto-assumidas), 20% dormindo e o quinto restante numa variedade de ocupações familiares, locomotoras, alimentícias e duchísticas (sem esquecer a lista do supermercado). Não está mal, mas poderia estar melhor se eu tivesse um modo koala de ser. Vejamos como isso seria possível.
Eu acordaria às 11 horas da manhã, não precisaria ler as últimas notícias daquele chatérrimo jornal conservador do qual sou assinante, não correria para consultar e-mails, não teria, sobretudo, de sair correndo de casa para o trabalho, tentando demonstrar a mim mesmo que as muitas horas empregadas durante a noite em leituras sonolentas e em navegações na internet são de fato “úteis” para aquele novo trabalho que pretendo terminar ainda nesta manhã (hélàs, ainda não foi desta vez). Não precisaria mais usar gravata nem paletó e poderia sair de casa sem lenço e sem documento.
Ou melhor: eu não sairia, eu ficaria. Eu simplesmente desceria lentamente do meu galho-cama para o galho-cozinha, me serviria de algumas folhas de eucalipto e, voilà, já teria ganhado metade do meu dia. A caminho (lentamente) do galho-biblioteca, eu daria um bom-dia à patroa e às crianças, não teria de me ocupar do horário da escola, do dever de casa, das compras de supermercado, da arrumação da mesa da sala, da retirada de jornais do dia anterior e, sobretudo, de lavar a louça das refeições. Em muito menos tempo do que se emprega para dizer saperlipopette, eu teria alisado os pêlos, lambido os beiços do resto de suco de eucalipto e estaria pronto para me dedicar ao esporte favorito de todo koala: dormir (não sei quando eles arrumam tempo para a reprodução da espécie).
Mas, alto lá: eu sou um koala diferente. Nasci e me criei no galho-biblioteca, para onde devo ter sido arrastado por alguma lufada dos bons ventos australianos. Desde então me acostumei a dormir no meio dos livros, a caminhar lendo livros, a sonhar com livros e a me imaginar vivendo uma vida só de leituras e de resenhas de livros. Ainda vou fazer isso e talvez nem precise de uma outra encarnação; esta mesma daria conta do recado. Só preciso de um orçamento do tamanho do da Library of Congress, de uma boa rede à sombra das palmeiras, de um estoque de água mineral com gás, de um laptop wireless dotado de dictavoice e de uma assinatura da The New York Review of Books. O resto é supérfluo, inclusive as palmeiras (na verdade detesto exibicionismos).
Ainda vou fazer isso, ainda que possa demorar mais um pouco: só me falta aprender a gostar de folhas de eucalipto (que devem ser horríveis…).

Moral da história: você não precisa deixar de ser quem você é, para fazer aquilo que mais lhe dá prazer na vida: basta um pouco de imaginação e paciência de koala…

Washington, 7 de setembro de 2003.
Brasília, 19 de novembro de 2004.