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terça-feira, 19 de março de 2024

Intervenção na economia afasta investimentos e reduz potencial do PIB - Solange Srour, do UBS, entrevista a Eduardo Laguna e Renata Pedini (Broadcast)

  Os companheiros não gostam de críticas à sua política econômica. Assim ocorreu entre 2011 e 2014, com o PT defendendo as escolhas de Dona Dilma, até que o inevitável se impôs...

Intervenção na economia afasta investimentos e reduz potencial do PIB, diz Solange Srour, do UBS

Para economista, episódio dos dividendos da Petrobras aumenta o grau de incerteza em relação a possíveis interferências não só na área de petróleo, mas em outras áreas da economia

Por Eduardo Laguna (Broadcast) e Renata Pedini (Broadcast)


ESTADAO, 18mar24

 

A diretora de macroeconomia para o Brasil do UBS Global Wealth Management, Solange Srour, avalia que, qualquer que seja o desfecho, a crise aberta pela retenção de dividendos extraordinários da Petrobras elevou no horizonte dos investidores o risco de interferência do governo não apenas na estatal, mas em outras áreas da economia.

Mesmo que a Petrobras distribua os dividendos que foram retidos, a possibilidade de o governo intervir, além das empresas onde tem participação, em marcos regulatórios continuará sendo uma incerteza que, junto com outras indefinições, atrapalha os investimentos. A consequência é uma limitação no potencial de crescimento do País.

“O episódio aumenta o grau de incerteza em relação a possíveis intervenções, não só na área de petróleo, mas em outras áreas da economia, e isso atrapalha o investimento, em última instância”, diz Solange Srour em entrevista ao Estadão/Broadcast. Na conversa, a diretora de macroeconomia do braço de gestão de fortunas do UBS Global fala ainda da probabilidade “não pequena” de mudança já no ano que vem do arcabouço fiscal. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Em relação à confiança do investidor, a interferência do governo na Petrobras causa um grande abalo?

O episódio aumenta o grau de incerteza em relação a possíveis intervenções, não só na área de petróleo, mas em outras áreas da economia, atrapalhando o investimento, em última instância. A incerteza sobre intervenções tem preço para o cenário macro, porque aumenta também a incerteza regulatória, aumenta a incerteza sobre qualquer tipo de investimento, seja em empresa pública ou em empresa privada. Aumenta o prêmio de risco no juro neutro da economia, porque você tem menos investimento, logo, menos PIB potencial. Então, é bem negativo aumentar esse nível de incerteza. Mesmo que voltemos à estaca zero, e a Petrobras pague o dividendo, que o Prates (Jean Paul Prates, presidente da Petrobras) continue, a dúvida existe e vai ficar perene na economia.

No ano passado, o investimento, em queda, já foi na contramão do consumo, que cresce. Quais preocupações isso traz do ponto de vista da inflação e do PIB potencial?

Em 2024, o investimento deve voltar a subir, mas o problema é que estruturalmente não vai acontecer um salto de investimento porque, mesmo que o Banco Central (BC) corte os juros, é difícil ver um ciclo de investimento bombando no Brasil quando a taxa de juros de equilíbrio é vista como alta, dadas as incertezas fiscais. E, para piorar a situação, tem toda a questão não só do risco de intervenção (do governo) em empresas, mas também do ambiente regulatório muito incerto. Volta e meia tenta-se mudar algum marco no Congresso. A reforma tributária é muito positiva, mas no curto prazo traz uma incerteza enorme. Enquanto ela não for regulamentada, nenhum setor sabe qual será a sua alíquota. Não sabemos nem qual vai ser a alíquota geral. Como é que você vai investir se você não sabe nem qual é o seu regime tributário? Então, é muita insegurança para o investimento.

Os investimentos públicos não podem puxar a retomada dos investimentos?

Não tem espaço fiscal. O investimento público fica restrito ao teto. Várias despesas obrigatórias consomem o investimento. Tem de pagar o funcionalismo, a Previdência, os benefícios sociais, a saúde, a educação... O que sobra para investimento? Nada.

Mas o governo não deve tentar blindar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de possíveis contingenciamentos no orçamento?

No fim, acaba pegando uma parte pequena do PAC. Não tem onde cortar porque o resto (das despesas no orçamento) é quase tudo obrigatório. Fora isso, vale lembrar que, mesmo no PAC, em grande parte, o governo conta com o privado. Grande parte do PAC é investimento privado.

Qual contribuição os dividendos retidos pela Petrobras podem dar ao resultado fiscal do governo se liberados neste ano?

Para o fiscal, isso importa muito. Não está no Orçamento, mas é claro que o ministro da Fazenda (Fernando Haddad) considera importante o pagamento de dividendos, porque estamos num momento muito crucial em que falta arrecadação para chegar à meta de déficit zero. A arrecadação forte de janeiro e fevereiro não salva o ano. Qualquer arrecadação é importante - e esta do dividendo da Petrobras é grande. Então, se forem pagar mais à frente, ajuda, sim, nas projeções dos números de (resultado) primário (receitas menos despesas, sem levar em conta o pagamento dos juros da dívida).

A arrecadação forte no primeiro bimestre empurra a revisão da meta do primário mais para frente?

Teremos mudança da meta. Não em março, já que o próprio Ceron (Rogério Ceron, secretário do Tesouro) tem dito que as projeções dessa revisão vão ficar perto do limite da banda (definida pelo novo arcabouço fiscal), ou seja, um déficit de 0,25% do PIB. Pode haver um contingenciamento pequeno para chegar nessa projeção. A mudança inevitavelmente vai ter de acontecer em algum momento, talvez na preparação da Lei de Diretrizes Orçamentárias do ano que vem. O governo não quer que sejam acionados em 2025 e 2026 os gatilhos previstos caso a meta não seja cumprida. Na prática, não precisaria mudar. Só tomar ações para chegar mais perto, contingenciar mais.

Acionar os gatilhos, com suas penalidades, ao invés de mudar a meta, não seria melhor aos olhos do investidor?

A reação do mercado na mudança da meta vai depender muito da forma como ela for feita. Se mudar a meta sem contingenciar muito, vai dar uma sinalização de que a meta pode ser mudada sempre e de que não há preocupação com a despesa. Quer dizer, o crescimento do PIB é muito mais importante do que fazer um corte de gastos e tentar chegar perto da meta. Mudar a meta com um contingenciamento forte é diferente de mudar a meta sem esforço. Agora, tudo vai depender do timing. Todo o contexto importa. Se acontecer junto com a queda de juros dos Estados Unidos, e a depender da mensagem do Federal Reserve, pode ser que acabe absorvendo (uma piora da percepção fiscal) mesmo se não houver esforço.

A perda de popularidade do presidente Lula não reduz a chance de um corte de gastos razoável?

Parece que não vai acontecer nenhum tipo de corte de gasto relevante, pelo contrário. Talvez não tenha novo gasto porque existe um teto, mas pode ter desoneração. Essa queda de popularidade veio de uma forma inesperada para nós, porque a economia está muito bem. O dado da Pesquisa Mensal de Comércio veio muito acima do teto das expectativas, o que aumenta as projeções para o PIB do primeiro trimestre. O desemprego está baixo, a inflação tem vindo muito positiva. O repique de preços de alimentos não pode explicar uma perda de popularidade porque é bem transitório.

A evolução dos gastos também preocupa quando se olha para o limite do arcabouço, que permite um aumento, acima da inflação, de no máximo 2,5% das despesas? Esse teto pode estourar no ano que vem?

Tem uma probabilidade porque a nova regra do salário mínimo impacta muito a Previdência. Ano que vem o salário mínimo já vai crescer, em termos reais, cerca de 3%, porque é o PIB de dois anos antes (2023, quando o PIB cresceu 2,9%). No ano de 2026, é o PIB de 2024, que também não parece ruim. Se o PIB crescer 2% ao ano, vamos ter de fazer uma nova reforma da Previdência, porque toda reforma vai ser consumida com o aumento do gasto da Previdência derivado da regra do salário mínimo, que foi aprovada sem discutir os impactos no fiscal. Outra coisa, o número dos beneficiários de todos os programas sociais está explodindo. Também vai impactar, se continuar nesse ritmo. É por isso que grande parte do mercado vê como subestimada a estimativa (do governo) de déficit do INSS deste ano.

O arcabouço corre risco no ano que vem?

Em 2025, o arcabouço está em risco, porque despesas em educação e saúde vão crescer 100% com a receita, o salário mínimo vai impactar muito a Previdência. Vai ser difícil caber tudo dentro do teto. Para caber, vai ter de fazer um corte significativo das discricionárias, que nem sei se vai ser factível, mesmo que o governo queira. Talvez tenha de ter um ajuste nesse limite, talvez algumas despesas fiquem fora do limite.

Isso prejudicaria a credibilidade do arcabouço?

No fim do governo Bolsonaro, foram feitas quatro mudanças constitucionais para aumentar o teto. Algumas delas foram um pouco traumáticas, mas depois o mercado aceitou. Se esse aceite vai se repetir em 2025, vai depender do cenário internacional, do nível do juro de dez anos nos EUA, se a China vai crescer 5% ou 3%. Isso sem falar na meta de primário. A probabilidade não é pequena de ter de alterar o arcabouço.

Qual é a sua expectativa para o comunicado que será divulgado na quarta-feira pelo Copom?

O Banco Central já comunicou que vai tirar o forward guidance (ferramenta usada pelos BCs para delinear o curso futuro da política monetária) em algum momento, não necessariamente nesta reunião. E o mercado absorveu bem que vai tirar. O BC quer ter menos amarras num momento de incertezas nos cenários internacional e doméstico. O mercado já absorveu, mas é claro que se tirar agora vai diminuir um pouco a chance de haver mais duas reduções de 0,50 ponto porcentual da Selic. O cenário mais provável é de o Banco Central avisar que vai tirar para não provocar nenhum tipo de estresse.

De qualquer forma, o cenário é favorável à continuidade da redução dos juros, certo?

Sim, porque a taxa de juros está muito restritiva e o cenário de inflação é positivo para este ano. As expectativas de inflação do Focus devem cair mais, há espaço para os juros continuarem a cair, mas o BC não quer passar a mensagem de que vai para um nível estimulativo. Quando retirar o forward guidance, vai querer passar a mensagem de que a taxa ainda precisa continuar restritiva. Um dos principais motivos é que a atividade está se comportando melhor do que o esperado. Na inflação de serviços, os relacionados ao mercado de trabalho estão fortes. Não é aconselhável ir para uma taxa estimulativa.


segunda-feira, 11 de março de 2024

Presença militar no Governo Federal: de que se alimenta, o que se pode esperar - Entrevista com Gunter Axt (2020)

 

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Gunter Axt: Presença militar no Governo Federal: de que se alimenta, o que se pode esperar - Entrevista

 Uma excelente entrevista por um historiador conhecido.


Gunter Axt: Presença militar no Governo Federal: de que se alimenta, o que se pode esperar
Parêntese (Porto Alegre, RS), 4/06/2020
Por Luís Augusto Fischer



Gunter Axt é doutor em História Social pela USP (2001), fez estágio pós-doutoral junto ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (2006) e junto ao PPG em Direito da UFSC (2014-2016). Foi professor visitante na Université Denis Diderot, Paris VII, junto ao Institut de la Pensée Contemporaine (2009).
Seu livro mais importante é Gênese do Estado Moderno no RS, resultado de sua tese de doutorado (Porto Alegre: editora Paiol, 2011). Tem organizado vários livros, entre os quais se salienta As Guerras dos Gaúchos (Porto Alegre: editora Nova Prova, 2009).




Parêntese – Essa superpresença de militares no atual governo federal tem similar na história da república brasileira? E de outras repúblicas modernas? 
Gunter Axt – Militarização de governos pode ter aspectos positivos ou negativos e é identificada em quatro eixos: presença física de indivíduos, investimento em Defesa, difusão de doutrinas na administração pública e percepção da política como guerra (e do opositor como inimigo). 
No que tange ao primeiro, existem governos democráticos com forte influência militar (como a Coreia do Sul), assim como nem toda ditadura é dirigida por militares (Julio de Castilhos e Borges de Medeiros, embora com apoio militar, impuseram ditadura civil no Rio Grande do Sul, entre 1893 e 1928; Getúlio Vargas fez o mesmo no Estado Novo, entre 1937 e 1945). Mas evidências históricas mostram que em geral democracias são mais sólidas quando as FFAA são controladas por civis, com transparência e expertise, se tornando mais instáveis quando esse controle diminui. Países dirigidos exclusivamente por militares tendem a ser mais sacudidos por golpes e proclamações, varados por derrubadas e perseguições, gerando instabilidade institucional, que espanta investimentos. As FFAA são vitais para quase todas as nações e fazem muitas coisas boas pela população, mas o militarismo exacerbado pode levar a desastres, como aconteceu no Iraque, na Alemanha (por duas vezes), na Argentina (onde as FFAA jamais recuperaram prestígio, tamanho o debacle), etc… No extremo, se o que impera é apenas a força, caminha-se para um estado anárquico, fraturado por facções, como aconteceu no Haiti.
Com o fim da Guerra Fria em 1989, difundiu-se a ideia de que militares não mais erodiriam governos civis: da Indonésia ao Brasil, as FFAA entregaram o mando, às vezes com relutância, outras com alívio. Na última década, contudo, sua participação vem aumentando, como na Hungria, na Turquia… No Egito, Abdel Sissi, depois de pilotar um golpe, foi reeleito com 97% dos votos. Estudos recentes indicam que mesmo nos Estados Unidos e na Europa a resistência a possíveis governos militares vem diminuindo, o que tem sido indicado como sintoma de doença da democracia. Muitas são as causas, como pressão de potências autoritárias (a exemplo de Rússia e China), crescimento econômico frustrante, aumento da desigualdade, desgaste da elite liberal global, escândalos de corrupção, sensação de ampliação da insegurança e de instabilidade cultural-identitária. Nesse sentido, portanto, o Brasil estaria alinhado a essa tendência. 
Aqui, o fenômeno tem tradição e não aconteceu de repente. Desde a época colonial nossos militares recebem formação que inclui eventualidade de colaboração na administração pública, o que muitas vezes foi feito com denodo e excelente desempenho. Num país continental como o Brasil, as FFAA são vitais para garantir a soberania do território e assistência ao povo em locais remotos. Os militares gerenciam iniciativas fantásticas, como a base na Antártica, ou o monitoramento de nossas ilhas. O saber técnico e o senso de missão são valorizados, especialmente em momentos de crise. Em 2018, o Presidente Michel Temer decretou as duas primeiras intervenções federais da Nova República, em Roraima e no Rio de Janeiro, tendo esta sido dirigida por um general (Braga Neto, hoje na Casa Civil), com apoio da classe média.
Contudo, a atual situação chama a atenção, porque a proporção de ministros militares no governo é superior à verificada na Venezuela, que há anos se afastou da democracia e entrou em relação promíscua com as FFAA. Na nossa história, apenas o governo de Castelo Branco (que cavalgava uma “revolução”) teve mais ministros militares do que Bolsonaro: 12 no total. Os generais e marechais de 1964 a 1985 insistiam ser o regime civil, tanto é que trajavam à paisana. Nessa época, ministérios considerados estratégicos (seja em razão da infraestrutura, em caso de defesa, seja em razão da guerra cultural) se converteram em redutos castrenses, como o do Interior, das Comunicações, dos Transportes e da Educação, sem falar em empresas como Itaipu e Petrobrás. Mas outros, não. Golbery foi O militar na chefia da Casa Civil. E era um intelectual, estrategista, de certo modo até estranhado por colegas de farda como “oficial de gabinete”, intrigante.  No governo atual, infelizmente, não há nenhuma inteligência militar que chegue minimamente próxima da de Golbery. Além de nove ministros, estima-se que quase 3 mil cargos estejam ocupados por militares. Em parte, são chamados porque o bolsonarismo, uma ideologia que menospreza a ciência, descarta a liberdade e banaliza a morte, é animado por incompetentes, de forma que os quadros que trabalham precisam ser buscados em uma corporação organizada. 
O ranking da Defesa é em números absolutos liderado pelos Estados Unidos, que, em números relativos, estão em quarto lugar, atrás da Arábia Saudita, Israel e Rússia, e seguidos pela Índia, França, Turquia, Reino Unido e China. Portanto (com exceção da Arábia, Rússia e China), fica claro que países democráticos estão compromissados com investimentos em Defesa. Os Estados Unidos são o caso clássico das FFAA sob controle civil, cujo símbolo foi a demissão do General Mac Arthur pelo presidente Truman em plena Guerra da Coreia. Lá, militares da ativa não se metem em funções civis, e os da reserva, quando o fazem, jamais falam em nome das FFAA. 
O Brasil tem FFAA de médio potencial ofensivo (alguns estimam ser a 22ª mais poderosa do planeta), mas saiu do regime militar nos anos 1980 com um dos mais baixos investimentos na área, relativamente ao PIB e à população. Além disso, cerca de 80% do seu orçamento é destinado às despesas permanentes, não ao reaparelhamento e a novos projetos. No governo Bolsonaro, a fatia da Defesa cresceu. As áreas social e acadêmica amargaram duros cortes, mas o orçamento militar foi bem menos contingenciado. Isso mostra que a corporação ganhou importância e pode estar identificando esse benefício à relação próxima estabelecida com o governo. 
P – Que doutrina anima essa presença militar?
GA  Sobre a doutrina, ou há uma completamente nova, ou a tradição de pensamento estratégico impactou pouco a atual administração. O liberalismo anti-estatista da Escola de Chicago esgrimido por Paulo Guedes não tinha aderência entre militares, pelo contrário, eles sempre apostaram no desenvolvimentismo keynesiano; e, certamente, a anti-diplomacia de Ernesto Araújo, eivada de sabujice aos Estados Unidos, ofende a tradição autonomista, soberana e lhana das nossas FFAA, sintonizada ao pragmatismo responsável de Rio Branco. O forte discurso anti-intelectualista e obscurantista do bolsonarismo também é estranho às FFAA, que prestigiaram o conhecimento e a ciência. Embora sempre tenham se preocupado com a “esquerdização” das universidades, e precipitado cassações de cientistas, como no famoso “Massacre de Manguinhos”, de 1970, nossos militares investiram nas instituições acadêmicas e criaram ferramentas importantes, como o CNPQ, hoje até sob ameaça de extinção.
Ainda mais desconcertante é o apoio desse governo ao armamento generalizado da população ao arrepio de qualquer controle, de modo a acabar beneficiando o crime organizado, milícias e grupos fascistas, como o tal 300. As FFAA se empenharam historicamente em conter a influência de milicianos no país, torcendo o nariz para eles mesmo quando contavam com sua colaboração, como na Revolução paulista de 1932. Na fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, vários generais se acoelharam em defesa das hemorroidas presidenciais: foi uma humilhação histórica para o Exército. Além disso, aquele festival de palavrões constrangeria qualquer militar, justamente porque eles têm apreço pela dignidade no espaço público, jamais se expressando daquele modo na frente de mulheres, ou num compromisso oficial. Qualquer um que entre numa instalação militar constatará o zelo com o patrimônio público e a fidalguia. 
Por outro lado, surgem já alguns elementos menos centrais a impregnar a administração. Em razão de sua natureza, militares precisam alimentar paranoias. Com o fim do comunismo real e com a aliança com a Argentina, sobrou o fantasma da internacionalização da Amazônia, que tem algumas premissas corretas (como abusos de certas ONGs), mas se ampara numa visão antiquada de desenvolvimento, associada ao slogan dos anos 1970: “integrar para não entregar”, prevendo amplo desmatamento e expansão da mineração. Há também o ranço para com a imprensa e para com o Congresso, ambos datados do fim do período monárquico, quando a corporação foi infectada pelo vírus do Positivismo – que trouxe coisas boas, como o anticlericalismo e o prestígio da Engenharia, mas introduziu essa ideia salvacionista e autoritária que pretende dar ordem unida às instituições. Também é típico dos nossos militares uma disputa com o Judiciário pela herança do Poder Moderador (moderação dos grandes conflitos políticos), que pertencia ao Imperador. Não que qualquer um possa se arrogar a essa condição e exercê-la com eficácia, mas existe essa picuinha corporativa, coisa antiga, como invoca a “Campanha Civilista” de Rui Barbosa em 1910, ou a crise dos habeas corpus durante a ditadura de Floriano Peixoto, que chegou a tentar nomear um médico (Barata Ribeiro, avô do humorista Agildo Ribeiro) para o STF. 
Por fim, a percepção da política como embate e do opositor como inimigo foi disseminada no país sobretudo pelo republicanismo, chegando a nos levar à excruciante guerra civil entre 1893 e 1895 (na qual pereceram pelo menos 12 mil brasileiros, além de incontáveis mutilados) e a inúmeros atentados (sendo o assassinato do Senador Pinheiro Machado em 1915 um dos mais célebres). Nessa época, grassava a praga das Fake News e dos jornais facciosos. Tudo isso pareceu em forte declínio com a redemocratização, pois a Constituinte de 1987/8 funcionou como uma espécie de pacto social, depois do longo período de repressão e de censura imposto pelas FFAA. Infelizmente, a esquerda ressuscitou o monstro, disseminando o discurso do “nós contra eles”, aparelhando blogs, invectivando contra a imprensa, promovendo manifestações de rua em exagero, empurrando o politicamente correto goela abaixo de todos e até forjando os primeiros perfis falsos nas redes sociais. Era óbvio que isso iria provocar reação, que veio em tom mais forte do que o esperado e projetando o conflito para outro nível. Gente que não participava da política, mas se sentia difusamente oprimida pelo discurso de facção do PT, aderiu a um novo movimento de massas, tangido pelas redes sociais, que assume cada vez mais feição fascista, no qual signos e metodologia militarizados estão amplamente presentes. É claro que o debate, o contraponto e a pluralidade produzem renovação da democracia, mas no momento em que a intolerância fascista se expande, as instituições democráticas ficam sob ameaça. 
P – Significa o quê essa presença?
GA – O significado é ambíguo. Não identifico, ainda, unidade de pensamento e diretrizes entre os militares que estão no governo. Além de pautas corporativas, foram sensibilizados por estímulos que os uniram, sendo o último deles a greve de caminhoneiros de maio de 2018, que colocou o país de joelhos. Ali perceberam que poderiam ser chamados a agir para manter as comunicações do País, independentemente de estarem ou não na política; que um movimento poderia derrubar o presidente da República e que a crise institucional se avolumava. Até aí, estavam animados pelo sentimento de missão, que se confundiu também com o forte antipetismo. 
Então, essa presença começou para muitos com uma promessa de renovação ética e de impulso modernizante, na economia, na política. E, de modo algum, era representativa das FFAA, porque se tratavam de indivíduos, já na reserva, portanto, sem comando de tropas. Mas com o desenrolar de inúmeras crises produzidas pelo comportamento errático e corrosivo do presidente, não apenas a corporação começou a ser mais envolvida, como essa participação passou a ser menos percebida como vanguarda de modernização e de ética e mais como barreira de contenção a excessos tresloucados, já que as FFAA demonstraram sobejamente nas últimas décadas seu compromisso com a Constituição e sua condição de entes de estado, não de governo. 
A sobrevida do Ministro Mandetta e a rejeição da nomeação de Osmar Terra para substituí-lo na Saúde, por exemplo, me parecem uma derrota do chamado Gabinete do Ódio e do olavismo e uma vitória de um grupo empenhado na contenção dos arroubos mais violentos e estrambóticos. Vejo da mesma forma a recente nomeação do competente economista Roberto Fendt para a Secretaria de Comércio Exterior, com a missão de recompor as relações com a China, desgastadas por declarações destrambelhadas de ministros lunáticos na Educação e nas Relações Exteriores. Mas isso pode estar mudando. 
No extremo oposto, a normalização das proclamações do General Heleno sugere escalada antidemocrática, não apenas porque afrontam o Congresso, o Supremo e até a Procuradoria-Geral da República, mas porque despertaram o espírito de corpo, como mostra a nota assinada por 89 colegas da turma de 1971 das Agulhas Negras. Heleno é o tipo do general com currículo impressionante e respeitado entre os pares, mas que vocaliza os mais profundos recalques da categoria contra a imprensa, a classe política, o desenvolvimento sustentável, a diplomacia multilateral e o Judiciário. 
Creio que os militares embarcaram nesse governo por idealismo e sincera vontade de ajudar o país, mas agora se dividem entre os que não sabem como sair e os que estão gostando das boquinhas e mamatas, já que as comissões dobram os salários. O bolsonarismo não é hegemônico entre comandantes, mas cresce entre graduados e oficiais subalternos (tenentes e capitães), basta ver o que escreveram em redes sociais alguns dos recentes nomeados para o Ministério da Saúde. Os militares brasileiros, no geral, não querem protagonizar um golpe, mas podem ser levados pelas circunstâncias a endurecer o regime. 
Por outro lado, também me parece verdade que dirigentes fragilizados tendem a inflar a presença de militares em seus governos, como forma de transmitir imagem de força e de confiança que não têm. Isso aconteceu com Salvador Allende, deposto no Chile em 1973. Nesse sentido, o senso de missão pode estar impedindo militares de abandonar o governo em momento de crise e os impele a ocupar posições estratégicas para preparar a transição para o próximo mandatário, na iminência de um impeachment, sobre o qual se fala abertamente em Brasília. Mas a cobra pode morder o próprio rabo e, de repente, eles podem aumentar progressivamente as concessões no sentido da preservação artificial de um governante combalido.
A História mostra ser difícil remover os militares do poder depois que se acostumam às benesses. Além disso, quanto mais a política entra por uma porta do quartel, mais a disciplina sai por outra. FFAA politizadas se tornam facciosas, se convertem em fonte de instabilidade, não de ordem. De garantia à nação, podem se transformar em seus algozes. FFAA politizadas caem rapidamente em desprestígio, interno e externo. Golbery e Geisel fizeram esse diagnóstico e conceberam a chamada “abertura lenta e gradual” para se livrar do abacaxi. Tudo indica que o General Edson Pujol, Comandante do Exército, tem isso bem em mente, mantendo-se discreto e apartando a tropa das vivandeiras (inclusive as que saíram dos quartéis e hoje desfilam de terno e gravatas). A cada provocação descabelada proferida por Heleno, ou por Ramos, sai na imprensa uma entrevista ou artigo do competente Santos Cruz, dos nossos poucos generais com genuína e respeitada experiência de campo, como que vocalizando o bom senso que deve estar provavelmente em sintonia com o General Pujol.  Mas é claro que, independentemente do desfecho, as definições da política no Brasil no horizonte próximo passarão pelos militares, algo que não vivenciávamos com tal intensidade desde a morte de Tancredo Neves, em 1985.
P – Os militares são basicamente do Exército, com presença bem menor da Marinha e da Aeronáutica. Por quê?
GA – Sem participação de oficiais superiores saídos de seus quadros, Marinha e Aeronáutica provavelmente identificaram a chapa de 2018 como uma aventura do Exército, articulada por generais e protagonizada por um tenente que fora empurrado para a reforma por mau comportamento, que construíra seu sucesso político sobre os pilares da mentira e da indisciplina. A sentença condenatória de Bolsonaro de fevereiro de 1988 elaborada por um Conselho de Justificação composto por três qualificados coronéis assinala “desvio grave de personalidade e uma deformação profissional”. Geisel disse no início dos anos 1990, com todas as letras, que o então deputado federal não representava as FFAA e, além disso, era um “mau militar”. 
O Exército resolveu, do modo temerário, desprezar sua própria história. Apesar de rejeitado pelos superiores, Bolsonaro seguiu adorado por capitães, tenentes e graduados, porque assumiu desde 1986 o papel de líder sindical, reclamando para a categoria melhores soldos e condições. Numa instituição hierarquizada, a expressão dessas demandas é considerada indisciplina. Mas como ele havia passado para a reserva, podia. Nos anos 1980 e início dos anos 1990, os militares (que até há pouco estavam no comando) foram atingidos pela crise do estado. Então, havia espaço para pregação sindical. E Bolsonaro surfou nessa onda. Além disso, ele claramente se comportava como expressão daquilo que Delfim Neto chamou de “tigrada”, isto é, a turma que funcionara nos porões da ditadura e que fora silenciada a contragosto depois do fiasco da bomba no Rio Centro, em 1981. Então, esses foram seus canais, até ele se agarrar à pregação contra o suposto “kit gay” e, com isso, se projetar nacionalmente, para além de seu nicho original.
Em 2018, três generais de prestígio avalizaram a candidatura do tenente: Heleno, Mourão e Villas Boas, este então figura de grande liderança na classe. A corporação estava, como mencionei, sendo empurrada de volta para a política, o que começou com o desconforto com certa parcialidade da Comissão da Verdade, avançou com a intervenção no Rio de Janeiro, se consolidou com a greve dos caminhoneiros e se cimentou com a Operação Lava Jato, que desnudou os terríveis esquemas de corrupção da história recente, envolvendo especialmente a esquerda, à qual os militares não eram exatamente simpáticos. O juiz Moro se transformou numa espécie de herói entre eles. E aquele solta-não-solta do ex-presidente Lula protagonizado por um desembargador do TRF 4 os alarmou enormemente. Então, o quadro perfeito se armou, mas para o Exército, não para as outras Armas, que se mantiveram em atitude prudente. 
Há também aí um componente histórico. A doutrina do soldado-cidadão, isto é, do militar interveniente na política, impregnou mais o Exército, em razão da farta difusão do Positivismo entre seus quadros. A Marinha chegou a se opor ao arbítrio. Até hoje, um de seus mártires é o Almirante Saldanha da Gama, morto em combate contra as tropas governamentais em 1895, tendo se batido pelo parlamentarismo e, até, pela restauração monárquica. 
P – No tempo do Império, as Forças Armadas eram concebidas contra inimigo externo, certo? Na República, além de o Exército ter sido protagonista da instauração do novo regime, ele foi empregado contra o povo sublevado, como em de Canudos. Mas parece que foi no tempo da Guerra Fria que os militares brasileiros se pensaram como guardiães da pátria contra um inimigo comunista, que era internacional mas agora estava instalado dentro do país. Como as Forças Armadas se concebem hoje em relação a seus objetivos estratégicos? A doutrina anticomunista da Guerra Fria ainda tem força? Por quê?
GA – A proclamação da República em 1889 foi uma quartelada, talvez o mais funesto golpe que sofremos, porque suscitou em seguida, antes da virada do século, mais dois golpes de estado, várias derrubadas de governos estaduais, uma sangrenta guerra civil que durou quase três anos, conflagrando o Sul do Brasil e bombardeando o Rio de Janeiro, sem falar na perda da nossa Armada, na invasão de nosso território pela França e pela Inglaterra e na maior desorganização já registrada na nossa economia. O tenebroso governo do Marechal Floriano Peixoto, pior governante que o Brasil já teve, foi responsável por um PIB de -7,5%.  Nem Collor de Mello conseguiu marca tão ruim (PIB de -1,2%).
No Império, o Exército também foi empregado contra inimigos internos, como aconteceu nas revoltas do período regencial, aí incluída a Revolução Farroupilha. Mesmo antes de Canudos, foi lançado contra populares, como na Cabanagem (1835-40), onde morreram cerca de 40 mil pessoas. Depois, entre 1912 e 1917, caboclos foram massacrados no Contestado, no Oeste de Santa Catarina, produzindo cerca de 9 mil vítimas. A última conflagração interna na qual o Exército participou foi em 1964. 
O regime pós-1964 de fato desenvolveu a doutrina do inimigo interno (tomando-a de empréstimo aos Estados Unidos) a ser combatido e descreveu o cenário da época como guerra civil. Mas a definição é incorreta, porque pressupõe exércitos contendores lutando com razoável proximidade de meios e, na época, o que se tinha era um estado armado e estruturado enfrentado por forças precárias e dispersas que tentavam fomentar guerrilhas. Aplica-se erradamente, aliás, o conceito de guerra a Canudos e ao Contestado, que foram insurreições populares, e deixa-se de usá-lo para a Federalista (1893-1895), que foi de fato uma guerra civil. 
Embora o fantasma do “perigo vermelho” tenha se difundido na Guerra Fria, no Brasil remonta à fracassada revolução da Aliança Nacional Libertadora, de 1935, que os militares consideram até hoje uma traição indigna. Aquilo foi um erro de Luís Carlos Prestes. A intensa participação de oficiais e suboficiais no malfadado intento unificou as FFAA, até então severamente fraturadas, em torno do combate ao inimigo comum. O anticomunismo ferrenho ali nascido levou água ao moinho que instalou o Estado Novo em 1937 e provocou 1964. 
As FFAA redefiniram seus objetivos estratégicos nas últimas décadas. Resolveram abandonar a política ainda no regime militar, porque perceberam a extensão do equívoco, que as estava destruindo, além de abastardar o país, e apostaram na profissionalização. A doutrina de segurança nacional tornou-se não apenas passado, mas inconstitucional no contexto pós-1988, na qual o papel das FFAA está bem definido. No entanto, é claro que os militares discutem cenários estratégicos e daí podem propor diretrizes para a segurança da nação. 
Fala-se muito hoje em guerra híbrida – informacional, cibernética, tecnológica, etc. – mas não há uma sugestão de resposta clara. Na ESG os militares parecem essencialmente preocupados com questões anedóticas e antiquadas, tais como uma delirante invasão da França ao território amazônico, a distribuição de bombas ou venenos pelos Correios (cada vez mais em desuso em razão das ferramentas eletrônicas) e a aquisição redentora de caças, quando na guerra moderna os drones ganham em importância, assim como a parafernália cibernética. Nossos militares ainda não entenderam sequer que o WhatsApp e as Fake News, por exemplo, se tornaram questão de segurança nacional. Eles próprios hoje se informam no WhatsApp, como mostrou recente matéria do jornal O Estado de São Paulo, e integram um governo que abriga o tal Gabinete do Ódio, espalhando malquerenças, mentiras e facciosismo. Alimentam visões paranoicas, enxergando na mídia tradicional comportamento “golpista”. Também não se houve falar de planos de contingência para áreas de estrangulamento infraestrutural. O que acontece se nosso sistema de distribuição elétrica sofrer um ataque em um nó? O fiasco do governo federal na preparação antecipada à epidemia do Covid 19 ilustra bem essa questão: e com o protagonismo dos generais Braga e Pazuello, o Exército está atraindo para si a responsabilidade pelo desastre. Mesmo na questão amazônica e fronteiriça nosso despreparo é evidente – a forma melancólica como fomos surpreendidos por guerrilheiros colombianos no Destacamento Traíra em 1991 me parece emblemática.
Com a intervenção federal no Rio de Janeiro, em 2018, fiquei com a impressão de que uma nova doutrina surgia em torno da necessidade de combate ao narcotráfico e à corrupção. Ou seja, apareciam indícios de que o Exército passaria a se envolver mais na formulação e gerenciamento de políticas de segurança pública. Isso contemplaria um refluxo do papel das universidades e das ONGs na matéria, algo sugerido de modo muito explícito no filme Tropa de Elite. Creio que avançava a percepção de que o meio acadêmico estava atrapalhando e que havia, além disso, excesso de leniência da legislação penal. Acho que às Polícias Militares também estaria reservado um protagonismo crescente, enquanto as Polícias Civis estariam sendo esvaziadas. Note que, com o aumento da violência no Brasil, nos últimos anos, bem como dos escândalos de corrupção, cresceu na área jurídica um núcleo punitivista, com perda de terreno dos chamados garantistas. Esse movimento aposta num aumento de encarceramentos e no empoderamento das polícias militares, o que, em tese iria ao encontro de um contexto de militarização. 
Bem, apesar do modo tosco, isso de fato vem sendo genericamente implantado no Governo Bolsonaro. Porém, há falhas no suposto projeto: as promessas de novo marco jurídico do juiz Moro para o combate do crime organizado e à corrupção acabaram em parte frustrando, em razão do contexto político conhecido. Além disso, não se vê reflexão dos militares sobre o papel das milícias. Historicamente, o Exército valeu-se do concurso de milicianos, em diversos momentos – quem realmente perseguiu a Coluna Miguel Costa-Prestes, por exemplo, foram milicianos, e não militares –, mas sempre desdenhou e desconfiou dos voluntários, fazendo, a partir do Estado Novo, de tudo para desmobilizá-los. Até porque em várias situações os milicianos criaram problemas por agirem contra diretrizes do Exército, como o Coronel João Francisco Pereira de Souza, na fronteira do Rio Grande do Sul, que apoiou revoluções no Uruguai, entre 1897 e 1904, contrariando o governo Federal. Por sua vez, o regime militar de 1964 se empenhou em controlar as polícias militares, intervindo em seus comandos. Agora, o movimento seria em sentido contrário?
Então, fica a questão: por que não se vê ações mais contundentes do Exército contra os milicianos? Será que as FFAA deixaram de os considerar uma ameaça? A valorização das Polícias Militares contempla carta branca para extra-legalidades, como de resto aconteceu na repressão à subversão sob o regime de 1964? Aliás como os militares estão vendo hoje os cursos de doutrinação para policiais militares promovidos pelo astrólogo Olavo de Carvalho? No Ceará, a recente paralização, além de ilegal, escancarou o alinhamento dos grevistas com o neo-pentecostalismo e o bolsonarismo. Então, de repente o Exército não considera mais essa insubordinação e partidarização da segurança pública uma ameaça? Ou considera, mas foi surpreendido e não sabe o que fazer?
Atualmente, o eixo histérico e histriônico formado pelo Chanceler Ernesto Araújo, o Deputado Eduardo Bolsonaro e o olavismo pretende forjar para o Brasil um inimigo externo, que encarnaria, além do “marxismo cultural” e das ONGs, a China! Bem, duvido que os militares brasileiros estejam dispostos a comprar a tese da atrição com a China, hoje principal parceira comercial do país e uma das maiores potências bélicas do planeta. Por outro lado, acho lamentável que não apareça nenhuma reflexão consistente entre os militares sobre decisões complexas e altamente estratégicas como o 5G – afinal, há risco em recebermos aqui a empresa Huawei de braços abertos?
Esse mesmo núcleo está como que forçando um conflito armado com a Venezuela. Isto exigiu intervenção mediadora do General Mourão no início do governo, para evitar a deterioração excessiva das relações com um vizinho. Mas a contenção foi parcial, porque numa medida sem precedentes em nossa história o Itamaraty retirou todo seu pessoal do país, o que significa que milhares de brasileiros que lá estão ficam desamparados. Isso é quase uma declaração de guerra. Não tenho dúvidas de que é o que querem os bolsonaristas, até porque assim teriam um inimigo externo para distrair a atenção aqui. Mas não consigo ver nossos militares se envolvendo numa rusga dessas com um vizinho, em pleno século XXI, ainda mais considerando que Rússia China e Iran se afirmam como aliados da Venezuela.
Além disso, a esdrúxula proposta de transferência da embaixada do Brasil para Jerusalém, que encanta o segmento neopentecostal, nos criaria um problema desnecessário com os países árabes, que são importantes parceiros comerciais do Brasil. No limite, ao nos envolvermos num conflito que não é nosso, não estaríamos atraindo para cá retaliações inclusive bélicas? 
Por outro lado, se se tenta criar um inimigo para o Brasil, o país está pela primeira vez alinhado automaticamente aos Estados Unidos (e não ganhamos até agora nada com isso). É verdade que tivemos dois ensaios tímidos disso no início da República (1890) e no início do governo do Marechal Dutra (1946), mas nossos militares, apesar da aliança histórica com os Estados Unidos, sempre mantiveram altivez. Bolsonaro chegou a falar em base americana no território brasileiro, uma completa e desnecessária submissão, que foi afastada, mas arrendamos a Base de Alcântara, que era um dos projetos estratégicos das FFAA. A bandeira dos Estados Unidos e a de Israel sobem e descem a rampa do Palácio do Planalto no mesmo nível do estandarte brasileiro, o que, para militares dignos e soberanos, só poderia ser interpretado como ofensa grave. É esse o projeto das nossas FFAA de agora em diante?
Então, tudo isso para concluir que nossos militares nunca estiveram tão mal em termos de capacidade de formulação estratégica. 
P – A impressão é que, a cada nova geração (mais ou menos 30 anos), o a política brasileira recorre aos militares, ou, por outro, os militares se sentem habilitados e intervir no poder. É isso mesmo? Que sentido faz isso? Tem a ver com confiança do povo nas instituições militares? Ou será como que um costume a continuada experiência de intervenção do Exército na política?
GA – Acho que os militares entraram na política com o golpe de 1889 e nela ficaram até a promulgação da Constituição de 1988. Todos os governos civis nesse meio tempo ampararam-se na força militar ou funcionaram como concessões dela. Houve momentos nos quais a intervenção foi explícita, concreta. A chamada República Velha foi sacudida por levantes e revoluções. O Exército não foi fator moderador, mas fortemente desestabilizador, o tempo inteiro. 
Antes mesmo dos anos 1920, tivemos o Contestado, as “salvações” com intervenções nos estados durante o governo Marechal Hermes da Fonseca… Salvador e Manaus chegaram a serem bombardeadas!! O governo Arthur Bernardes (1922 a 1926) se deu praticamente todo sob estado de sítio, recurso utilizado também por outros presidentes. A década de 1930 foi igualmente agitada. Os tenentes pegaram gosto pela coisa em 1922 e não largaram mais o osso. A revolução de 1924 arrasou a cidade de São Paulo e só terminou com a internação na Bolívia da Coluna Costa-Prestes em 1927.
Os militares, obviamente, protagonizaram a Revolução de 1930, que inclusive engajou vários tenentes exilados, que foram depois aproveitados em posições executivas. O mandato de Getúlio, até o Estado Novo (instaurado com indispensável apoio dos generais) foi de agitação contínua nos quartéis. Ainda em 1938 tivemos o putsch Integralista, no qual, aliás, muitos se engajaram (como o pai do Presidente Figueiredo, por exemplo). 
Depois do Estado Novo, tivemos o governo do Marechal Dutra, o suicídio de Vargas (repleto de tensão com militares antes e depois), as tentativas de golpe contra Juscelino Kubitschek, a Legalidade, a rebelião dos sargentos, a greve dos marinheiros…. Houve pronunciamentos em 1954, 1955, 1956… Em 1961, estivemos à beira da guerra civil. Foi apenas com o regime de 1964, que se estendeu muito mais do que os próprios previam, que militares perceberam como a política podia ser nefasta para a própria instituição e, pressionados também pela sociedade civil, dela resolveram se retirar, se profissionalizando, finalmente. 
Aliás, contrariamente ao que seria de se supor, o aparelhamento e a modernização das FFAA são descurados nos momentos nos quais os militares intervêm de modo mais explícito na política brasileira. As FFAA já estavam defasadas em relação ao Chile e à Argentina quando o golpe de 1889 sobreveio. A Revolução de 1893 as destruiu. O Marechal Hermes foi um ótimo ministro da Guerra, mas como presidente (1910-1914), não cuidou da organização das Forças. O Brasil só teve uma missão militar estrangeira (francesa) depois da Guerra Mundial – a polícia de São Paulo começou com a experiência em 1906. A instabilidade dos anos 1920 e 1930 foi péssima para a modernização das FFAA. Mesmo do regime de 1964 não saíram tão bem aparelhadas. Sem falar na corrosão da disciplina causada pela política. O Ministro do Exército Silvio Frota (de quem o hoje general Heleno era assessor) ainda tentou dar um golpe no General Geisel em 1977. 
A imagem das FFAA nos anos 1980 estava desgastada, não apenas por causa do fastio com o arbítrio, mas porque eles entregaram a economia em frangalhos. E podia ser pior: na Argentina, onde as FFAA preferiram levar em 1982 o país à guerra com o Reino Unido para se manter no poder, o país foi mais prejudicado e os militares jamais recuperaram o antigo prestígio. Aqui, nas últimas três décadas, os militares se empenharam eficazmente em reconstituir essa figura. Conseguiram! E agora a estão despejando pelo ralo no governo Bolsonaro.
Sim, eu acho que há aí alguma estranha confluência de fatores. Talvez – por termos tratado com tanta indignidade o Imperador Dom Pedro II, que, com todos seus defeitos, foi um dos nossos melhores estadistas e, talvez, um dos mais republicanos de nossos governantes –, estejamos até hoje numa espécie de loop karmático. Ou seja, 1889 pode ter instalado uma maldição da qual até hoje não nos livramos. 
Os brasileiros de fato, talvez por incultura e ingenuidade, apostam em salvadores da Pátria. E parece que gostam de serem tutelados. O interessante é que quebram a cara e não aprendem. Collor foi o último salvador. Deu errado. Antes, apostaram em Jânio Quadros e, depois, nos militares. Lula também assumiu ares de santidade.
Ora, a receita para se eleger um presidente estável e minimizar as chances de erro é combinar três aspectos, independentemente do viés ideológico: um candidato com suporte de um grande partido, experiência política e administrativa. Collor tinha partido insignificante e vinha de um estado pequeno. Deu no que deu. Fernando Henrique estava amparado numa aliança partidária sólida, tinha sido senador e Ministro. Foi bem. Lula presidia o grande PT, mas nunca tinha administrado nada, de modo que precisou chamar a “gerentona” Dilma para sair do impasse. Dilma fora secretária de estado e ministra, mas não tinha nenhuma experiência político-eleitoral e, de fato quando a crise começou, tudo o que fez foi piorá-la. Temer também tinha os três, conseguiu terminar o mandato, apesar de todos os revezes. Bolsonaro: partido minúsculo e sem tradição, nenhuma experiência administrativa e trajetória política medíocre. Precisa falar mais?
P – Como tu avalias a experiência de governos de centro-esquerda, de FHC a Dilma, na relação com as forças armadas?
GA – Sarney, pelo menos no início, também foi de centro-esquerda. Seu governo viveu a crise militar mais severa da Nova República, justamente com a denúncia da Operação Beco Sem Saída, pela qual Bolsonaro foi julgado em 1988, e em razão do caso de Apucarana, no Paraná, onde um certo Capitão Walter tomou de assalto a Prefeitura em 1987. As ações, sabe-se, estavam interligadas e faziam parte de um complô para protestar por melhores soldos. Os dois foram condenados em primeira instância, mas o STM afrouxou, pois, no fundo, os militares agradeciam a ousadia de ambos em defesa dos proventos da classe. Além disso, o Comandante do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, era, a essa altura, detestado por muitos comandados e colegas, de modo que a soltura dos condenados pelo STM foi uma humilhação endereçada a ele. Por fim, é claro, por meio do STM, os militares aplicavam um corretivo à imprensa, que os vinha zurzindo desde Abertura de Geisel e Golbery. 
Mas, apesar desse conflito, o saldo foi positivo, pois o General Leônidas bancou a posse do vice, José Sarney, depois da morte de Tancredo Neves, e liderou o Exército em direção à democratização e à profissionalização. Além disso, foi no governo Sarney que se iniciou a aproximação entre os Exércitos do Brasil e da Argentina, condição para que se avançasse rumo ao Mercosul.
O governo FHC não foi exatamente de centro-esquerda, mas social-democrata, incorporando componentes do Liberalismo. Conseguiu recuperar um projeto da Constituição de 1946, criando o Ministério da Defesa, que uniu as três Armas e reforçou o controle civil sobre elas. Esperava-se ali grave resistência, mas os militares se comportaram de modo digno e profissional. O saldo foi positivo para o país. 
Novo desafio veio com Lula, que no início dos anos 1980 havia sido processado pela Justiça Militar, sob os auspícios da Lei de Segurança Nacional, em São Paulo e em Manaus, tendo, inclusive, sido preso. Mas como dizia o General Leônidas Pires Gonçalves, Lula não era considerado anti-sistêmico, como o eram Leonel Brizola e Carlos Prestes, o primeiro envolvido na rebelião dos sargentos de 1963 e o segundo protagonista da Intentona de 1935. Então, apesar de tudo, Lula pertencia a uma esquerda palatável, que participava da mesa de negociações. Assim, os militares seguiram agindo de modo profissional, engolindo até mesmo ministros sem a menor intimidade técnica com o campo, como o Embaixador Jose Viegas Filho, que, ainda por cima, pertencia a outra corporação burocrática hierarquizada, a diplomacia. É provável que isso tenha sido silenciosamente percebido como um capitis diminutio. Viegas, ao final, renunciou a saiu criticando as FFAA.
Dos ministros do período, Nelson Jobim se destacava pela autoridade, pois fora deputado constituinte brilhante, ministro da Justiça, presidente do STF, com excelente trânsito pelo PMDB e pelo PSDB. Mas tinha arroubos com oficiais em público que certamente devem ter constrangido a classe, sem mencionar que se vestia de roupa camuflada para incursões na selva, como se militar de carreira o fosse, o que deve ter causado péssima impressão no meio. 
Um problema foi o tratamento radical dado a certas reservas indígenas. A demarcação contínua da Raposa Serra do Sol inviabilizou o Estado de Roraima e criou uma ameaça à soberania na fronteira. Foi um erro da administração Lula, confirmado pelo STF, infelizmente. E tenho a impressão de que o Ministro Celso Amorim estava mais preocupado em garantir autonomia dos índios do que em aparelhar convenientemente as FFAA. É evidente que isso criou enorme mal estar.
Surpreendentemente, um dos ministros que mais caíram no gosto dos militares foi Aldo Rabelo, originário do PCdoB. Foi considerado um sujeito cordial, atento às demandas da categoria e bem enfronhado nos assuntos da Defesa. Hoje, alguns radicais da reserva se queixam de seu passado comunista, mas a verdade é que, na época, ouviam-se elogios a Rabelo em Brasília, nas três Armas. 
No governo Temer, a coisa mudou de figura, pois pela primeira vez um general (Joaquim Silva e Luna) comandou a pasta, num claro indicativo de que os militares estavam reassumindo posições na política. Por outro lado, o protagonismo foi do Exército, não da Marinha ou da Aeronáutica. 
O período todo foi de contenção nos gastos com a Defesa, diante das dificuldades vividas pelo país, mas isso parecia estar sendo superado a partir do segundo governo Lula, com a licitação para a compra dos caças, por exemplo. A missão no Haiti, a pedido da ONU, ajudou a projetar internacionalmente as FFAA brasileiras. Foi um aspecto positivo. Mas, na prática, seguimos investindo pouco, aliás, destinando menos de 10% dessa fatia do orçamento para o reaparelhamento. Foi um erro. Entendo as urgências que o país enfrentava na área social e no campo econômico, mas devemos repensar de forma madura nosso orçamento para a Defesa daqui para a frente, não para que as FFAA não se sintam estimuladas a aderir a alguma facção política que lhes prometa investimentos, mas porque elas têm contribuições importantes a dar. 
Outro grande problema foi a condução parcial da Comissão da Verdade. Os militares se sentiram traídos, como se a Lei da Anistia estivesse sendo suspensa apenas para eles, enquanto seguia valendo para os outros. Além disso, eles passaram a comparar com cada vez mais desgosto o tratamento dispensado às famílias dos soldados mortos –  como, por exemplo, aquele cabo do 2º Exército de São Paulo, atingido em um atentado a bomba, do qual Dilma inclusive teria participado –  com as indenizações milionárias distribuídas até a pessoas que tinham ficado apenas algumas horas detidas. Esse desequilíbrio foi interpretado como revanchismo e gerou um grande mal-estar, que Bolsonaro, muito a propósito, soube explorar. 
Os militares não gostavam dos colegas do serviço de Informações, o famigerado SNI, que se sobrepôs a todos de forma arrogante e intrigante. Mas no momento em que a classe começou a ser atacada, se fechou em copas e se uniu em corporativismo. O relatório da Comissão da Verdade pareceu-lhes estar revivendo os fantasmas da guerrilha do Araguaia e da Intentona de 1935. Isso reascendeu o medo do comunismo. 
Não tenho dúvidas de que as famílias das vítimas da repressão tinham direito a explicações e a memória. E creio que muitos militares concordavam com essa premissa. Mas, no conjunto, aquilo tudo poderia ter sido melhor conduzido. Para piorar, quanto mais fragilizada Dilma ficava, mais se isolava e mais apelava para a vitimização de gênero, aspecto que irritou os meios conservadores, que a esta altura já estavam incomodados com exageros do politicamente correto, cuja visibilidade era negativamente projetada como no caso das alunas “mijonas” da Universidade Federal de Pelotas, de 2015. 
Finalmente, cabe observar que nenhum desses governos se propôs a rediscutir o currículo da formação dos oficiais, o que me parece uma falha. É um absurdo que nossos oficiais conheçam tão pouco de história militar e da história do próprio país. Poucos saberiam, por exemplo, explicar porque o Brasil demorou tanto para se impor na Guerra do Paraguai, apesar da notória superioridade bélica, possuindo o último tipo do armamento a Minié. Essa lacuna os torna reféns de uma narrativa mitômana, que não reconhece fragilidades da própria instituição (e, portanto, não identifica corretamente a necessidade de superá-las) e que romantiza sua relação com a política. Mesmo com a nova geração de militares formados em tempos democráticos, o velho espírito do soldado cidadão e a perspectiva lunática de poder moderador da República seguem animando certo ethos militar brasileiro, o que só pode ser resolvido por meio do estudo. No entanto, ninguém se preocupou seriamente com isso. Os militares brasileiros pouco sabem sobre sua própria história, e aquilo que sabem, em geral, é conto da Carochinha. É por isso também que alunos da ESG produziram recentes ridicularias, tais como imaginar uma guerra entre a França e o Brasil em pleno século XXI. Aí, quando uma ideologia militarista tosca como, o bolsonarismo, circula entre oficiais subalternos, acaba arrebanhando adesões. 
Enfim, nenhum ministro da Defesa do período conseguiu ser considerado uma liderança entre a categoria. E acho que estavam mais preocupados em enquadrar os militares do que os ouvir de fato e integrá-los melhor ao novo país que se construía no pós-1988. Exigiu-se deles sacrifício financeiro e silêncio, mas quando a coisa apertou no Rio de Janeiro, lembraram de convocá-los para salvar a pátria. 
P – Como seria uma relação ideal, na tua visão, das Forças Armadas com a academia e a opinião pública? Há exemplos de relações profícuas de parte a parte? Em que países? 
GA – As FFAA têm de ser uma reserva moral e estratégica da nação, mobilizadas em defesa da soberania e comprometidas com a ciência, o humanismo e a preservação das instituições democráticas. Os militares, pela sua higidez e preparo, têm muito a agregar no debate sobre a formulação de políticas públicas, bem como na execução de algumas delas, mas ninguém quer ver as FFAA envolvidas em questões comezinhas da política, sustentando artificialmente governos combalidos e ineptos, que ofendem as instituições que estamos tentando construir. Eu gostaria de ver os militares sendo capazes de discutir melhor a sua própria história. Também acho que os civis deveriam os ouvir mais. Creio que parte dos problemas que vivemos hoje em dia têm relação com um diálogo meio de surdos que vigorou. 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

"Quase-moeda" que deu vida ao real, URV completa 30 anos, Edmar Bacha, entrevista - Lu Aiko Otta (Valor Econômico)

"Quase-moeda" que deu vida ao real, URV completa 30 anos

Depois de seis planos fracassados, país encontrou alternativa em ideia de dez anos antes, que favoreceu estabilidade e elegeu um presidente

 

Lu Aiko Otta/ Valor Econômico/ 27 de fevereiro de 2024


Não muito tempo atrás, funcionários de uma fazenda no interior de São Paulo pediram ao patrão para receber os salários em datas variadas. Era uma tentativa de driblar os supermercados, que sempre subiam os preços na véspera dos pagamentos. Assim era a vida no período da hiperinflação: uma corrida maluca entre salários e preços, na qual os trabalhadores sempre saíam perdendo.

Mal comparando, é a triste realidade vivida na Argentina nos dias de hoje. Enquanto aqui no Brasil a batalha é para colocar a inflação dentro da meta de 3% ao ano, lá a taxa chegou a 254% nos 12 meses encerrados em janeiro.

Porém, não é o caso de fazer como algumas torcidas de times brasileiros, que tripudiam dos hermanos queimando as desvalorizadas cédulas de peso. O Brasil passou por processo pior, com a taxa anual batendo nos 3.000%. Só se livrou da hiperinflação com a edição do Plano Real, em 1994, após uma sequência de seis tentativas fracassadas de estabilizar os preços (Cruzado, Cruzado II, Bresser, Verão, Collor I e Collor II) ao longo de cinco anos.

Na sexta-feira, 1-de março, completam-se 30 anos da entrada em vigor da Unidade Real de Valor (URV), uma "quase-moeda" que preparou o terreno para a chegada do real. Foi uma inovação que permitiu ao país migrar de uma economia com inflação muito alta, acima de 40% ao mês, para um cenário de taxas bem menores, sem choques nem congelamento de preços. Em julho de 1994, quando a URV deu lugar ao real, a taxa havia recuado para 6,84%. No mês seguinte, estava em 1,86%.

O Plano Real não só estabilizou preços como também foi ponto de partida para uma série de reformas que estão até hoje na base da economia brasileira. Além disso, elegeu um presidente: Fernando Henrique Cardoso, senador eleito pelo PSDB de São Paulo e ministro da Fazenda na elaboração do plano.

Nas palavras de um dos "pais" do Real, o economista Edmar Bacha, Fernando Henrique foi o "milagre" que viabilizou o plano. "Sem ele, nada disso teria acontecido", afirmou, em entrevista ao Valor. Outro "pai", Pérsio Arida, diz que a existência de uma liderança política capaz e de uma boa equipe técnica tomou possível o que parecia não ser.

O plano foi gestado no governo de Itamar Franco, que assumiu a Presidência da República em definitivo em dezembro de 1992, quando Fernando Collor de Mello renunciou ao cargo, às vésperas de o Congresso decidir seu impeachment. Itamar estava no cargo desde outubro daquele ano, quando Collor foi afastado em função do julgamento.

De início, Fernando Henrique chefiou o Ministério das Relações Exteriores. Mas, em maio de 1993, ficou sabendo por seu secretário-geral, Luiz Felipe Lampreia, que Itamar o havia anunciado como ministro da Fazenda. Perplexo,

telefonou para o presidente e ouviu como resposta: "Sua nomeação foi bem recebida". A história está no livro de memórias do ex-presidente: "A Arte da Política - A História que Vivi" (Civilização Brasileira, 2015).

FHC seria o quarto ministro da Fazenda de Itamar em oito meses de governo. Sua equipe trabalhava apenas aguardando a próxima crise para ir para casa.

De início, conta Bacha, integrante da equipe, a ideia era fazer um ajuste fiscal, algo que faltara nos planos de estabilização anteriores, e esperar o fim do mandato de Itamar. O ajuste veio com o Plano de Ação Imediata (PAI), cujo foco foi atacar o excessivo "engessamento" do Orçamento brasileiro. Na época, o Congresso concordou que 20% das verbas com destino obrigatório fossem livremente alocadas pelo governo.

"O pessoal fala que o PAI foi a preparação do Real, não foi nada", afirma Bacha. "O PAI era o que achávamos que dava para fazer, até que tivéssemos na Presidência alguém que entendesse do riscado, com quatro anos pela frente."

Essa ideia de deixar a estabilização para depois foi abandonada porque Fernando Henrique percebeu que estava diante de uma oportunidade política única, revela Bacha. "Ele era muito respeitado no Congresso, na sociedade e tinha uma relação especial com o Itamar."

A equipe precisava ser reforçada. Isso, porém, pareceu desnecessário no início de setembro de 1993, quando Itamar demitiu o então presidente do Banco Central, Paulo César Ximenes, por divergência envolvendo uso de cheques pré-datados.

"Quando o Itamar demitiu o Ximenes, eu falei: "Bom, ok, vamos embora para casa. Acabou a brincadeira"", conta Bacha. "E aí que aconteceu essa coisa maluca, inexplicável, um milagre."

FHC foi conversar com o Itamar. "Deve ter dito que ia se demitir", arrisca. Naquele momento, o risco que Itamar corria, caso perdesse seu ministro da Fazenda, era entrar em um processo de enfraquecimento político que poderia terminar em impeachment. Independentemente do diálogo que possa ter havido, o fato é que Fernando Henrique saiu da audiência com carta branca para tocar o plano.

Nessa condição, foi possível a ele trazer para seu time o economista Pedro Malan, então negociador da dívida externa brasileira, para comandar o Banco Central. E Pérsio Arida para a presidência do BNDES.

A URV foi inspirada em um paper que havia sido escrito dez anos antes, em 1984, pelos economistas Pérsio Arida e André Lara Resende. Eles propuseram um plano de estabilização que ficou conhecido como "Larida". A ideia era romper a dinâmica de alta de preços criando um sistema com duas moedas: a antiga, inflacionada,  e uma nova, que teria seu valor corrigido diariamente. No Plano Real, a moeda corrigida foi a URV, inicialmente, e depois o real.

Em 1º de março, uma URV valia 647,50 cruzeiros reais, equivalente à cotação de um dólar. Salários, benefícios previdenciários e contratos do setor público foram convertidos em URVs. Assim, ficaram com seu valor protegido contra a inflação, enquanto os preços seguiram na moeda antiga. Os assalariados perceberam vantagem com o plano. Frango e iogurte entraram no carrinho das famílias de baixa renda.

Bacha aponta para uma espécie de simbiose: o Plano Real pavimentou o caminho para que Fernando Henrique vencesse as eleições. Por outro lado, o plano não teria sobrevivido sem a vitória do tucano.

O Real escapou da sina dos planos anteriores, de funcionar por um tempo e depois naufragar, porque as circunstâncias políticas permitiram que fosse consolidado. Foi um trabalho que durou os oito anos dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Envolveu uma série de medidas para modernizar a economia, como as privatizações, a criação das agências reguladoras e adoção do tripé macroeconômico que persiste até hoje: câmbio flutuante, o uso da taxa de juros para combater a inflação e superávit fiscal.

Nesse sentido, o Real foi uma política de Estado, avalia Joelson Sampaio, professor da Fundação Getulio Vargas. "É um legado que nenhum governo teve a ousadia de mudar", afirma. O sistema de metas de inflação baseado na taxa de juros é alvo de críticas, diz, mas é algo que traz o benefício de controlar a inflação.

Democracia mantém a economia nos trilhos desde o Real, diz Persio Arida - entrevista (Valor)

Democracia mantém a economia nos trilhos desde o Real, diz Arida

Estabilidade perdura mesmo com políticas pouco responsáveis, afirma economista

Lu Aiko Otta/ Valor Econômico/27 de fevereiro de 2004

Com um ou outro momento preocupante, a estabilização de preços possibilitada pelo Plano Real perdura há 30 anos. Isso ocorre a despeito de políticas pouco responsáveis ocasionalmente adotadas no país, sobretudo nos anos anteriores às eleições.

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A força que mantém a economia nos trilhos é a democracia, na visão de Pérsio Arida - que, junto com André Lara Resende, foi autor do paper que deu origem ao Real, o chamado "Plano Larida". A estabilidade de preços tornou-se um bem da sociedade brasileira e os políticos que ousam ameaçá-la são punidos nas urnas, explica ele nesta entrevista ao Valor.

Arida também faz uma comparação entre o Real e os seis planos de estabilização fracassados.

Avaliando os dias de hoje, ele considera que o tripé macroeconômico implantado com o Real (câmbio flutuante, taxa de juros voltada a combater a inflação e superávit primário) está "um pouco manco", por causa dos recentes resultados negativos nas contas federais. No entanto, confia que o problema será resolvido. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Qual a importância da Unidade Real de Valor (URV)?

Pérsio Arida: A URV teve extraordinária importância porque foi o que possibilitou que o Plano Real fizesse uma transição relativamente suave de uma inflação muito alta, que beirava 30% ao mês, para uma inflação muito baixa. Mas o papel dela se esgotou nessa transição.

Valor: E qual a importância do Plano Real?

Arida: Eu acho que se desdobra em dois aspectos. Primeiro, foi um impulso inicial para uma série de reformas modernizantes. Ao longo dos oito anos seguintes, que foi o período do presidente Fernando Henrique Cardoso, acabaram os monopólios na exploração do petróleo e telecomunicações, foi aprovada Lei de Responsabilidade Fiscal, o novo regramento para concessões, a criação de agências reguladoras, as grandes privatizações. Tudo isso aconteceu naquele período. As bases de funcionamento do Brasil moderno, do ponto de vista econômico, foram plantadas durante os oito anos que se seguiram ao Plano Real. E sempre com a justificativa, correta, de que o Real, se não fosse acompanhado de reformas modernizantes, poderia ser posto a risco.

Valor: E o segundo significado?

Arida: É reforçar a autoestima do país. Mostra que quando há uma liderança política que entenda da natureza dos problemas e um bom time técnico, o Brasil faz coisas que não se imaginava serem possíveis. O Real é um plano que nunca havia sido feito antes, inteiramente original. E a liderança do Fernando Henrique também foi única. Era um político - portanto, capaz de conversar bem com o Senado, com a Câmara. Era um bom comunicador em termos de opinião pública e também era um intelectual, o que possibilitou que ele entendesse a dinâmica cio Plano Real, que não é simples, é revolucionária.

Valor: Qual a importância da Unidade Real de Valor (URV)?

Pérsio Arida: A URV teve extraordinária importância porque foi o que possibilitou que o Plano Real fizesse uma transição relativamente suave de uma inflação muito alta, que beirava 30% ao mês, para uma inflação muito baixa. Mas o papel dela se esgotou nessa transição.

Valor: E qual a importância do Plano Real?

Arida: Eu acho que se desdobra em dois aspectos. Primeiro, foi um impulso inicial para uma série de reformas modernizantes. Ao longo dos oito anos seguintes, que foi o período do presidente Fernando Henrique Cardoso, acabaram os monopólios na exploração do petróleo e telecomunicações, foi aprovada Lei de Responsabilidade Fiscal, o novo regramento para concessões, a criação de agências reguladoras, as grandes privatizações. Tudo isso aconteceu naquele período. As bases de funcionamento do Brasil moderno, do ponto de vista econômico, foram plantadas durante os oito anos que se seguiram ao Plano Real. E sempre com a justificativa, correta, de que o Real, se não fosse acompanhado de reformas modernizantes, poderia ser posto a risco.

Valor: E o segundo significado?

Arida: É reforçar a autoestima do país. Mostra que quando há uma liderança política que entenda da natureza dos problemas e um bom time técnico, o Brasil faz coisas que não se imaginava serem possíveis. O Real é um plano que nunca havia sido feito antes, inteiramente original. E a liderança do Fernando Henrique também foi única. Era um político - portanto, capaz de conversar bem com o Senado, com a Câmara. Era um bom comunicador em termos de opinião pública e também era um intelectual, o que possibilitou que ele entendesse a dinâmica cio Plano Real, que não é simples, é revolucionária.

Valor: O Real deu certo depois de seis tentativas fracassadas de estabilização da economia. Por quê?

Arida: Eu acho que tem uma diferença importante entre o primeiro plano [Cruzado, 1986], os planos seguintes e o último plano, o Real. O Plano Cruzado, que era um congelamento temporário de preços e salários, foi anunciado de surpresa e foi desvirtuado politicamente, porque deveria ter sido acompanhado por uma redução do déficit público, uma política monetária restritiva, mas na verdade nada disso pôde ser feito, porque tinha eleições à frente, em outubro. Foi um plano que teve uma popularidade instantânea, até porque vinha do sistema democrático.

Valor: Como assim?

Arida: A inflação foi de 12% a 200% ao ano sem que não tivesse nenhum plano de estabilização, porque estávamos na ditadura. Num governo democrático, quem consegue estabilizar preços será bem-sucedido nas umas. O Cruzado foi extraordinariamente popular, mas acabou virando um plano eleitoreiro, que falhou como plano, mas ficou como possibilidade no imaginário coletivo. Se olharmos os vários planos subsequentes até o Real, foram sempre motivados pela ideia de fazer um Cruzado que desse certo. Cruzado tinha gatilho salarial, vamos tirar o gatilho salarial. O Cruzado tinha liquidez excessiva, vamos tirar a liquidez excessiva. O Cruzado tinha taxa de juros baixas, vamos fazer plano de taxas juro muito altas. Juros altos foram o foco do Plano Verão, tirar a liquidez excessiva, o foco do plano Collor. Cada plano ia sendo feito buscando corrigir o que deu errado no Cruzado. Acontece que a partir do Cruzado houve uma dinâmica de preços muito diferente da que prevalecia antes.

Valor: O que aconteceu?

Arida: Antes, a dinâmica de preço era assim: se não acontecesse nada, a inflação deste mês era mais ou menos a inflação do mês anterior. Depois do Plano Cruzado, passou-se a uma dinâmica de expectativas. Todo mundo sabia que o Cruzado era popular. Os empresários também sabiam e achavam que era questão de tempo até haver outro plano semelhante. Então, começavam a subir os seus preços para que, quando esses fossem congelados, tivessem um lucro acumulado que lhes permitisse passar bem pelo congelamento. Fomos assim de congelamento em congelamento, quase como profecias que se autorrealizavam. Depois da última tentativa de ajuste dessa forma, que foi o Plano Collor 2, o país se cansou. Ficou claro que não iria haver um outro congelamento de preços, e nós, no Plano Real, deixamos isso muito claro o tempo todo. Então, essa dinâmica expectacional desapareceu, o que criou as condições para fazer o Plano Real.

Valor: O sucesso, depois de tantos fracassos. 

Arida: Sem dúvida. Mas não podemos ter uma visão ingênua sobre o sucesso. O sucesso de um plano de estabilização não pode ser julgado por três ou seis meses, mas por um período prolongado. O Real passou por vários momentos de risco. Por exemplo, a flutuação cambial em 1999, o déficit público crescente na época lulista. Mas passou bem por esses momentos.

Valor: Como resistiu?

Arida: Eu acho que o segredo aqui, de novo, é a dinâmica democrática. Uma estabilidade de preços é um valor do povo brasileiro. O governante sabe que, se der inflação, ele estará politicamente morto. Então, os políticos, toda vez que a inflação ameaça subir, deixam de lado os planos, digamos, eleitoreiros ou populistas, e tratam de fazer o necessário para combater a inflação. Isso faz com que exista, devido às eleições, um sistema de pressão sobre a casta política. O Brasil entrou em uma outra fase com a independência do Banco Central, mas, se olharmos historicamente, o Banco Central, desde o Plano Real, foi, de fato, independente, exceto por um ou outro momento. É mais um aspecto que mostra que os governantes sabiam que, se interferissem no Banco Central e a taxa de inflação subisse, seria muito oneroso politicamente.

Valor: É possível dizer que o Plano Real está consolidado?

Arida: Eu diria que, com o sistema democrático em funcionamento, existe o incentivo para os políticos manterem a inflação baixa. Então, eu hoje não vejo uma ameaça ao Real, porque o Banco Central é independente, e os políticos, se por algum motivo houver erros ou desvios de política econômica, vão tratar de fazer as correções necessárias até mesmo por autossobrevivência. É claro que sempre há o risco dos ciclos eleitorais, do governante fazer políticas irresponsáveis no ano da eleição porque a inflação demora um pouco para subir e, quando estiver mais alta, ele já estará eleito. Esse risco, como eu falei, tende a se autocorrigir: se o governo gastar demais no seu último ano para se reeleger, vai ter que gastar de menos no ano seguinte, porque se não a inflação o prejudicará, politicamente falando.

Valor: O sr. mencionou um conjunto de reformas que foram feitas no governo Fernando Henrique. Como avalia o quadro hoje?

Arida: O governo Fernando Henrique, ainda que não na partida, conseguiu implementar o chamado tripé macroeconômico, que é câmbio flutuante, taxa de juros voltada para combater a inflação e superávit fiscal. Nos primeiros anos lulistas, o tripé foi mantido. Mas depois, gradativamente, o superávit fiscal foi minguando. Hoje, temos déficit. O tripé está um pouco manco, porque tem dois pés no lugar, e o terceiro, mais ou menos. Mas eu creio que isso vai ser corrigido.