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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)

O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres

1. A busca de culpados (sempre deve existir algum...)
Dentre todos os mitos já explorados e a serem examinados nesta avaliação serial dos equívocos mais renitentes no meio acadêmico, nenhum parece tão poderoso quanto o que pretende que os países ricos, que teriam outrora alcançado o seu desenvolvimento graças a uma série de políticas por eles hoje recusadas aos países emergentes, estariam agora ativamente empenhados em impedir que esses países, eufemisticamente ditos em desenvolvimento, possam galgar, igualmente, a escada da prosperidade econômica e os degraus da capacitação industrial e tecnológica, tornando-se, como eles, desenvolvidos.
Continuemos, pois, o exame dos equívocos selecionados nesta série[1] pela análise crítica de um dos exemplos mais notórios da "teoria conspiratória da história", a tese do complô dos ricos contra os pobres, a presumida ação mancomunada dos desenvolvidos contra o crescimento e o progresso material dos países pobres ou menos desenvolvidos. O conjunto de "teses" defendidas pelos partidários do que classifico desde já como mais uma falácia, não deixa de apoiar-se em exemplos históricos que estariam aparentemente em linha com os argumentos dos defensores dessa teoria conspiratória, em especial no que se refere às políticas setoriais (industrial e comercial, em especial) e à suposta ação clarividente do Estado "empreendedor".
2. Friedrich List: versão século XXI
O mais conhecido defensor contemporâneo dessa teoria é o economista coreano, atualmente na Cambridge University, Ha-Joon Chang, que se utiliza da famosa imagem forjada pelo seu predecessor alemão de 150 anos atrás, Friedrich List, para afirmar que os países ricos estão querendo "chutar a escada" que os levou a ser o que hoje são. Este é, aliás, o título de um de seus livros mais famosos.[2]
Sua obra mais recente, Bad Samarithans, também publicada no Brasil, segue na mesma linha.[3]Promovida pela Ordem dos Economistas do Brasil, a obra constituiu o centro de atração de um seminário realizado em São Paulo, em janeiro de 2009, sob a responsabilidade da Ordem e da Fundação Getúlio Vargas, em torno de um programa de estudos focado na revisão do pensamento econômico sobre o desenvolvimento.
Seguindo as idéias de Chang, o coordenador da Escola de Economia da FGV-SP, Paulo Gala, acredita que "as experiências de maior sucesso observadas nos anos recentes, Coréia do Sul e Taiwan, nos anos 70 e 80, e China e Índia nos 90, basearam-se justamente em políticas contrárias às recomendações de Washington".[4] Como já tratamos do problema do Consenso de Washington em ensaio anterior desta série,[5] não iremos nos debruçar novamente sobre mais esse mito do pensamento acadêmico. Mas caberia registrar os "seis mitos neoliberais" que este professor brasileiro considera que vêm sendo propostos pelas instituições símbolo da globalização capitalista e que, em sua opinião, se revelaram incapazes de produzir os resultados prometidos.
Os "seis mitos neoliberais", vários deles fictícios, seriam os seguintes: "1) os países ricos atualmente alcançaram seu sucesso através de políticas comprometidas com o livre mercado; 2) o neoliberalismo funciona; 3) uma globalização neoliberal não pode e não deve ser interrompida; 4) o modelo americano de capitalismo neoliberal representa o ideal, o qual todos os países em desenvolvimento devem replicar; 5) o modelo do Leste Asiático é idiossincrático, o modelo americano é universal; 6) países em desenvolvimento precisam de disciplina fornecida pelas instituições internacionais e por instituições politicamente independentes (Banco Central, por exemplo)".[6] Não vou agora rebater argumentos que são mistificadores, em sua maior parte, inclusive porque o autor em nenhum momento traz qualquer comprovação de que esse tipo de proposição simplista venha sendo defendido pelas organizações "neoliberais" (eu apenas recomendaria que ele lesse mais história do mundo, estudasse um pouco mais de economia e observasse a realidade, simplesmente). Para preservar o foco, vamos tratar aqui apenas dos argumentos centrados sobre a "teoria do complô", que constitui todo um capítulo na história das falácias acadêmicas.
3. Uma história secreta do capitalismo?
O subtítulo do mais recente livro de Ha-Joon Chang já constitui, por si só, uma prova eloqüente em favor de uma tese, aliás, uma verdadeira teoria, muito disseminada em certos meios acadêmicos. Colocada de maneira simplista, mas nem por isso menos correta, essa tese diz mais ou menos o seguinte: os países ricos — durante os momentos iniciais de sua decolagem econômica, e na fase de consolidação do desenvolvimento social — puderam exercer toda a latitude de políticas econômicas: desde as mais liberais — quando podiam, ou precisavam — até as mais protecionistas e subvencionistas — estas últimas, de maneira mais intensa ou freqüente, e sem que alguma entidade "ortodoxa", do tipo do FMI ou o Banco Mundial, viesse lhes dizer o que deveriam ou poderiam adotar como políticas macroeconômicas e setoriais — até que puderam garantir para si um processo de crescimento sustentado, marcado pela autonomia tecnológica e a plena soberania sobre suas principais políticas públicas.
Uma vez alcançado o estágio em que se encontram, ou seja, de países líderes nas classificações de prosperidade econômica e do avanço tecnológico, eles se empenham todos — como se tivessem combinado tudo em algum local secreto de planejamento de maldades capitalistas — em impedir que países retardatários e os subdesenvolvidos, de maneira geral, os imitem, copiem o que fizerem, enfim, que os alcancem, do alto de seu progresso econômico e capacitação tecnológica. Numa reedição prolongada da falácia original de List e, de maneira tão perversa quanto calculada, os países ricos "chutam a escada" que permitiria aos atrasados chegar onde eles chegaram; constroem, assim, um fosso intransponível entre eles, um grupo pequeno de egoístas desenvolvidos, e todo o resto do mundo, um imenso conjunto de eternos condenados ao atraso e à pobreza (e, no mesmo movimento, levados a transferir renda para os de "cima", como agravante).
Trata-se de uma caricatura, claro, mas apenas em parte. Vejamos a síntese que faz seu principal defensor, e prefaciador, no Brasil, Luiz Carlos Bresser Pereira, desse tipo de teoria propagada com maior competência por Chang: "Em Maus Samaritanos, Ha-Joon Chang faz uma crítica devastadora da teoria econômica ortodoxa ou neoclássica ao mostrar que suas propostas de política econômica são para uso externo, não sendo utilizadas pelos países ricos que as propagam" (p. xiii). Não contente em aderir à teoria conspiratória da história, Bresser Pereira agrava o seu caso, insistindo na tese do complô dos ricos contra os pobres seguidores infelizes do terceiro mundo. Vejamos o que ele diz, numa reconstituição histórica do processo de desenvolvimento econômico em escala mundial: "Desde a Revolução Industrial a teoria econômica tem sido um instrumento para justificar internamente o capitalismo e para evitar que os demais países que ficaram atrasados no seu processo de industrialização também cresçam e lhes façam concorrência" (p. xiii). Trata-se, sem dúvida alguma, de uma grave acusação a todos os teóricos da economia ortodoxa ou neoclássica, que poderiam invocar, se fosse o caso, o sentido moral de sua atividade, posto que transformados em simples feitores de uma espécie de "colonização mental" conduzida a partir de seus centros de estudo. Seria risível, se não fosse eticamente questionável.
O professor da FGV-SP parece apreciar piadas históricas, já que Bresser Pereira tem prazer em reincidir na teoria: "A onda ideológica neoliberal que tem início nos anos 1970 tem como uma de suas motivações essa neutralização [dos concorrentes dos países em desenvolvimento], como objetivo nunca confessado, e jamais plenamente consciente" (p. xiv). Todos os elementos da teoria conspiratória estão presentes, posto que, segundo Bresser, Chang não hesita em "criticar os ‘maus samaritanos’ — os agentes dos países ricos e do neoliberalismo que aconselham mal os países em desenvolvimento, que afirmam estarem ajudando-os quando, de fato, estão criando obstáculos ao seu desenvolvimento" (p. xv). Esses agentes seriam uma combinação de professores adeptos da teoria neoclássica, os funcionários e consultores das organizações internacionais mais importantes na área econômica (FMI, BIRD, OMC) e os representantes dos países ricos que conduzem programas de ajuda e de cooperação técnica para os países pobres.
Mas não vale a pena continuar a falar da tese principal por meio de intérpretes de segunda mão; melhor ir direto ao original. Dois equívocos parecem estar em causa na construção desse tipo de mito que recebeu a poderosa contribuição de um economista que se lança de maneira ousada (embora leviana) nos caminhos da história: (a) a falácia de que os países ricos se tornaram o que eles são atualmente em virtude de um conjunto racional de políticas direcionadas a tal objetivo, aplicadas de forma sistemática e consciente, a despeito de contrariarem o pensamento econômico liberal de sua época; (b) e outra falácia, já pertencente à "teoria conspiratória da história", é a de que esses países têm-se empenhado, desde então, em impedir que os pobres os alcancem, armando ardilosamente um complô para obstar a que os atrasados cheguem ao topo da escada.
Esses dois argumentos se baseiam numa leitura seletiva, incompleta e deformada da história, e são incapazes de se sustentar pela lógica de funcionamento do sistema capitalista (na verdade, da economia de mercado), ou pelo seguimento da experiência concreta de diferentes países engajados desde então no caminho do desenvolvimento, alguns bem sucedidos, outros, infelizmente, não.
4. Políticas estatais como fator de desenvolvimento?
Chang, tanto no seu livro anterior, Chutando a Escada, como neste atual, Maus Samaritanos, conta a mesma história, embora com argumentos ligeiramente diferentes, mas por meio do mesmo uso seletivo dos dados históricos. Na verdade, não é tanto da história que ele pretende falar — inclusive porque não se trata de um historiador econômico, nem, aliás, de um economista historiador — mas da "história" presente, ou o que ele pretende por tal. Essa "história" seria dominada pelas políticas neoliberais e pela imposição das "regras do Consenso de Washington" aos países em desenvolvimento, o que resultaria, assim segue a teoria do complô, em que estes não possam o que antes fizeram os países ricos.
Todos sabem quais são essas políticas e não seria preciso estender-se em demasia em sua descrição: políticas macroeconômicas estáveis e responsáveis, redução do peso do Estado, liberalização comercial e do regime de investimentos estrangeiros, defesa dos contratos e dos direitos de propriedade intelectual, banco central independente, etc. Existe em vários setores críticos — mas que provavelmente nunca leram os textos originais — uma grande confusão entre, de um lado, o que pode ser eventualmente recomendado pelos conselheiros das instituições de Bretton Woods e, de outro lado, as regras originais do economista John Williamson, que detém o copyright — ou pelo menos os
moral rights — sobre o chamado Consenso de Washington. Este "consenso", em sua versão original, não compreendia nem a taxa de câmbio fixa (ele recomendava flexível), nem a liberalização do setor financeiro (ou dos movimentos de capitais, para ficar em algo mais tangível).
Não é o caso de dirimir essa confusão neste momento, tanto porque isto não parece preocupar aqueles que criticam de maneira leviana as "regras" de Washington, em primeiro lugar o próprio Chang. Sua principal missão é a de desmantelar essas regras, posto que elas seriam prejudiciais aos interesses atuais dos países em desenvolvimento. Usando mais suas impressões do que a pesquisa histórica, Chang recomenda o contrário: sua sugestão é a de que os países pobres façam aquilo que ele imagina que os países hoje ricos teriam feito nas etapas iniciais de crescimento e consolidação de seus processos de autonomia tecnológica.
E quais seriam essas políticas? Elas são muito diversas, obviamente, sendo que em alguns casos sequer houver políticas claramente definidas ou implementadas de maneira contínua segundo um plano pré-determinado. Mas Chang, em sua leitura seletiva dos dados históricos, identifica basicamente dois conjuntos de políticas que teriam sido usadas pelos países ricos em sua caminhada racional para o desenvolvimento: políticas industriais, do tipo "indústria infante" — tal como recomendado por List e, antes dele, pelo Secretário americano do Tesouro, Alexander Hamilton —, e comerciais. As principais medidas seriam o apoio direto às indústrias nacionais na fase inicial de instalação, por meio de subsídios, incentivos fiscais, proteção tarifária e outros tipos de defesa comercial e dirigismo setorial. Ele é bastante detalhista na coleta de medidas governamentais, ao longo do século XIX (e mesmo antes), que teriam sido mobilizadas para sustentar a industrialização desses países. O resultado entusiasma os dirigistas de várias épocas e de vários países, sobretudo aqueles que também pretendem criticar o suposto complô dos ricos e dos "washingtonianos".
O fato é que os argumentos de Chang são distorcidos, seus "fatos" são incompletos e falham, lamentavelmente, em estabelecer as relações causais efetivas entre as medidas industrializantes apontadas por ele e o desenvolvimento dos países considerados, processo necessariamente mais complexo do que sua visão simplista da história. Ele não considera uma série imensa de outros fatores institucionais — tal como destacada por historiadores econômicos como Douglass North, por exemplo — e passa completamente por cima dos fatores culturais e educacionais que sustentaram — não apenas a industrialização, mas — a transformação tecnológica abrangente que teve lugar em vários desses países (alguns deles não necessariamente industriais, mas "essencialmente agrícolas", como Dinamarca e Nova Zelândia).
É, por outro lado, igualmente simplificadora sua visão de que foram aquelas medidas estatais que provocaram a industrialização e o crescimento econômico; como se os países ricos tivessem "planejado" racionalmente seu processo de desenvolvimento, por uma série de medidas encadeadas no tempo, e estruturalmente integradas umas às outras, todas elas com o objetivo expresso — e talvez pré-determinado — de provocar essa modernização. Ele certamente não considera a contraditória e muitas vezes improvisada colcha de retalhos que constitui a trama da história real, na qual, indivíduos, grupos de pressão, ideologias e, não menos importante, reações defensivas ou "imitativas", interagem de modo desordenado, ao sabor das relações de forças que se estabelecem na sociedade, para produzir um resultado que está longe de ser aquele desejado por categorias específicas de atores sociais.
A história não é certamente um livro branco, no qual governos supostamente esclarecidos podem ditar ordens e regras para sua implementação racional: ela é, bem mais, um pesado carro de bois que avança lentamente por uma estrada esburacada, com interrupções e deslizes que pouco têm de intencional ou planejado. Mesmo admitindo-se a existência de políticas claras para favorecer este ou aquele resultado antevisto — como costumam ser as medidas de subsídio industrial, de proteção tarifária ou de apoio logístico — é muito difícil ao honesto historiador econômico separar fatores estruturais e contingentes no complexo processo de desenvolvimento dos países atualmente ricos; a começar que eles não estavam desenhando políticas de desenvolvimento e sim respondendo a impulsos que lhes vinham de dentro e de fora, e nem sempre, aliás, pela mão dos governos.
Haveria muito mais a dizer sobre a peculiar leitura da história do professor Chang. Mas a discussão poderia nos levar muito longe, no espaço limitado deste ensaio. Bastaria, talvez, dizer isto: se o protecionismo comercial e as políticas dirigidas em apoio ao setor industrial fossem o sucesso que ele alega, nesse caso, os países da América Latina, que, durante várias décadas, praticaram ambos em doses altamente concentradas, deveriam ser hoje não apenas nações altamente industrializadas, como tecnologicamente desenvolvidas, o que obviamente não é o caso. Por outro lado, em sua própria Coréia natal, Chang deixa de ver todos os fatores institucionais e educacionais que favoreceram o seu desenvolvimento, e se concentra unicamente nas políticas industrializantes e de cunho comercial, que teriam, supostamente, impulsionado o crescimento e a transformação tecnológica. Em conclusão, como economista, Chang pode até ter seu valor de mercado, mas como historiador ele falha miseravelmente em comprovar as suas teses.
5. A arte de chutar escadas: uma fábula fabulosa
O que dizer, então, da outra parte deste mito ridículo, que consiste em afirmar que os países na vanguarda do progresso industrial atuam deliberadamente para impedir outros de os seguirem na "escada" do desenvolvimento? Essa tese é tão ridícula — como compete a uma "boa" teoria conspiratória da história — que nem valeria o esforço de desmenti-la, se não fosse a existência de tantos crédulos nos países retardatários, sempre em busca de um bode expiatório para culpá-lo pela sua industrialização deficiente ou seu desenvolvimento insatisfatório. Mais uma vez Chang falha em trazer as "provas históricas" desse tipo de argumento, e apenas avança as recomendações dos atuais "conselheiros washingtonianos" como a evidência de que os países ricos desejam manter todos os demais no fundo do poço do não-desenvolvimento: para isso, eles "chutam a escada", num sentido metafórico, claro, pois a única coisa que fazem seria recomendar políticas que inviabilizariam a "subida da escada", mantendo os retardatários na eterna dependência dos que estão no topo.
Curioso que esses mesmos "alpinistas industriais" investem nos retardatários, e não apenas para contornar barreiras comerciais e outras restrições ao capital estrangeiro, como sabemos por todos os exemplos dos movimentos de capitais de risco na história econômica mundial. Mais curioso ainda é que todo esse ardor obstrucionista não impediu os Estados Unidos e a Alemanha, no século XIX, e os demais países avançados, na passagem da segunda revolução industrial — grosso modo a partir dos anos 1870 — de galgarem eles também a escada da industrialização e do desenvolvimento econômico. Seria por que a história só começa, de verdade, quando as ex-colônias pretendem se industrializar? Mas tanto o Japão "feudal", como a Coréia "colonial" desmentem a visão conspiratória do bloqueio dos ricos exercido contra os pobres periféricos, como isso também é cabalmente desmentido por outros exemplos atuais em outras regiões.
Certo, Chang e seus seguidores poderiam argumentar que os "asiáticos" — que são os exemplos que ele seguidamente invoca para comprovar a sua "teoria" — justamente não seguiram as recomendações do Consenso de Washington e por isso puderam se desenvolver com base em políticas ativas; aquelas mesmas supostamente utilizadas outrora pelos países ricos e que agora eles não mais recomendam aos retardatários (ao contrário, buscam impedir por todos os meios). A história é, contudo, mais complexa. Assim como Chang não conseguiu estabelecer relações de causalidade entre as suas "políticas ativas" e o progresso industrial e tecnológico nos países hoje ricos, ele tampouco consegue provar de maneira cabal que são essas políticas que estão na origem do desenvolvimento relativo dos países asiáticos.
O fato é que os países de desenvolvimento rápido na Ásia — e também em algumas outras regiões, como no Brasil, tempos atrás — conseguiram "construir" condições institucionais que puderam atender, eventualmente, a alguns dos "requerimentos" — talvez necessários, mas certamente não suficientes — que os colocaram no caminho da autonomia tecnológica e industrial; entre eles fatores de natureza fiscal, tributária, logística e, acima de tudo, de cunho cultural e educacional compatíveis com as "regras" do desenvolvimento. O processo é certamente complexo e reduzi-lo a medidas de política industrial ou comercial, quaisquer que sejam os méritos respectivos dessas últimas, pode tornar impossível o ato de manter-se fiel ao registro histórico e à realidade de determinadas experiências concretas.
De resto, existem tantos exemplos de sucesso quanto de fracasso na história da industrialização contemporânea — como a Europa do Sul ou a América Latina, até um período ainda recente da história econômica mundial — e estes últimos, curiosamente, não são enfatizados por Chang em sua "reconstituição" do desenvolvimento de uns e outros. O trabalho do historiador — a fortiori do "planejador" de desenvolvimento, também — envolve presumivelmente a consideração de todos os casos relevantes, e não apenas os de sucesso. É verdade que aprendemos tanto, ou mais, com os casos de fracasso — e mesmo com desastres espetaculares — pois são eles que podem nos indicar a combinação errada da "receita" do desenvolvimento — se é que ela existe —, quando os fatores de sucesso podem ser múltiplos e difíceis de determinar.
Como, aliás, indica a história da própria humanidade — na qual a maior parte dos povos ainda vegeta em baixos níveis de prosperidade e de bem-estar — o mundo é feito bem mais de "fracassos" que de "sucessos", ainda que esses conceitos sejam altamente dúbios, para não dizer completamente equivocados. Dos 35 a 40 bilhões de seres humanos que já viveram na superfície do planeta, provavelmente um número muito reduzido, equivalente, digamos, a 5% desse total, desfrutou, até hoje, de uma esperança razoável de vida, com o gozo simultâneo de bons padrões de alimentação e de bem estar. A afluência material — isto é, a "libertação" da penúria, da fome e da doença — ainda é algo relativamente "recente" na história da humanidade, correspondendo, talvez, aos últimos dois ou três séculos de avanços na agricultura e de progressos industriais.
Ao se questionarem "por que o mundo todo não é desenvolvido?",[7] os historiadores economistas acabam chegando aos verdadeiros fatores de progresso material e de avanços tecnológicos que, longe de terem sido provocados por "políticas industriais e comerciais", têm a ver, basicamente, com os ganhos de produtividade do trabalho humano ao longo do tempo e em diferentes sociedades, aspecto eminentemente vinculado ao desenvolvimento cultural, de modo geral, e à educação básica e técnica, de modo particular. Estes são fatores que um economista historiador — mas Chang não é um — deveria considerar na avaliação das diferentes experiências nacionais de desenvolvimento, não um aspecto, apenas, da ação governamental em favor deste ou daquele ramo industrial.
Quanto ao complô dos países ricos para "chutar a escada" dos retardatários, bem, ficou, é verdade, faltando tratar desse "aspecto" da história com maior grau de detalhe. Mas a crença é tão ridícula que me constrange ter de levantar argumentos para derrubar hipótese tão fantasiosa. Para começar, ela contraria a "lógica" — se alguma existe — da economia de mercado (e do capitalismo, diriam alguns marxianos mais razoáveis) que consiste em ampliar continuamente a "esfera da acumulação" — para retomar esse linguajar barroco — e conectar os mercados de forma contínua. Como já tinha explicado Marx em 1848, o capital busca sempre derrubar barreiras feudais e muralhas de modos de produção ancestrais, para instalar suas máquinas infernais, que seriam teoricamente suscetíveis de submeter à sua dominação implacável os povos de todo o mundo, ainda que convertidos em um "exército industrial de reserva" (logicamente, para deprimir os salários dos trabalhadores na pátria de origem do capital; para o que mais seria?). Por que, nessas condições, desejaria o capital restringir as possibilidades de desenvolvimento capitalista na periferia? Deixo a resposta — se é que existe alguma, racional, quero dizer — aos adeptos da teoria do bloqueio capitalista.
A rigor, essa tese já era inoperante, inaplicável e "fantástica" na época do próprio mentor de Chang, o economista alemão Friedrich List — que publicou seu livro de economia política em meados do século XIX — e parece-me que ela continua a ser tudo isso, 150 anos depois. De fato, a teoria conspiratória não se sustenta, e só consegue desmoralizar seus partidários, a menos, claro, que eles sejam imbuídos dessa crença numa "história secreta do capitalismo", que só consegue causar
frisson naqueles imbuídos do "secreto desejo" de enterrar o (mal)dito sistema. A verdade é que, numa economia de mercado, que combina diversos tipos de capitalismos, o processo de desenvolvimento adota caminhos diversos, nenhum deles controlável por alguma força social específica, e muito menos por governos ou atores sociais estrangeiros. Nessas condições, imaginar que capitalistas e burocratas do FMI e do Banco Mundial se reúnam na calada da noite — ou talvez nas reuniões anuais do Fórum Econômico Mundial — para encontrar maneiras de impedir países pobres de ascender na escala do desenvolvimento, cozinhando para eles receitas de não-desenvolvimento, acreditar nisso representa bem mais do que defender alguma teoria conspiratória da história e redundaria, simplesmente, em ofender a mais comezinha inteligência econômica (além de fazer pouco caso, obviamente, da própria inteligência dos burocratas e dirigentes de países pobres, ou pelo menos daqueles que não foram "comprados" pelos primeiros).
Quem adota esse tipo de postura — histórica ou econômica — também costuma enveredar por outras teorias fantasiosas para explicar o sucesso de alguns e a "derrota" de outros, posto que as teorias conspiratórias se retro-alimentam e produzem, de contínuo, novas razões para velhos fracassos, como, por exemplo, a persistente pobreza e a imensa desigualdade na maior parte dos países latino-americanos. Muitos — espera-se, ao menos, que este número seja decrescente — acreditam que isso se deve à exploração imperialista e à existência de estruturas capitalistas produtoras de miséria e de desigualdade; mas eu não preciso antecipar o que penso a respeito, não é mesmo? (disso tratarei em futuro ensaio). Os que assim "pensam" — se o verbo se aplica — não estão apenas ofendendo a simples verdade dos fatos e distorcendo a natureza do processo histórico; eles também estão diminuindo suas próprias chances de ascenderem a uma explicação mais consistente sobre as verdadeiras causas do atraso de alguns povos e do progresso de outros. De certa forma, eles estão "chutando a escada" que os levaria a um patamar superior de conhecimento.
Mas este parece ser o destino de muitas falácias acadêmicas: baseadas num contato superficial com a realidade, elas acabam desenvolvendo uma explicação de "senso comum" que não é apenas redutora e simplista, mas que se alimenta de suas próprias crenças equivocadas.
Até a próxima falácia...
[2] Cf. Ha-Joon Chang, Kicking Away the Ladder:Development Strategy in Historical Perspective (Londres: Anthem Press, 2002), já publicado no Brasil:
Chutando a Escada: estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica (São Paulo: UNESP, 2004).
[3] Cf. Ha-Joon Chang, Bad Samarithans:
The Myth of Free Trade and the Secret History of Capitalism (Londres: Bloomsbury, 2007);Maus Samaritanos: o mito do livre-comércio e a história secreta do capitalismo (Rio de Janeiro: Elsevier, 2009).
[4] Cf. Paulo Gala, Apresentação a Maus Samaritanos, op. cit., p. ix.
[5] Ver, deste autor, "Falácias acadêmicas, 2: o mito do Consenso de Washington", in Espaço Acadêmico, n. 88, setembro 2008; link:http://www.espacoacademico.com.br/088/88pra.htm.
[6] Cf. Gala, idem, p. x.
[7] Ver, a este propósito, o trabalho, já antigo, de Richard A. Easterlin, "Why Isn't the Whole World Developed?", The Journal of Economic History, vol. 41, n. 1, The Tasks of Economic History, (Mar. 1981), p. 1-19; disponível:
http://links.jstor.org/sici?sici=0022-0507%28198103%2941%3A1%3C1%3AWITWWD%3E2.0.CO%3B2-Y. Cabe reconhecer que esse autor foi excessivamente otimista em suas suposições mais importantes — sobre a disseminação cada vez mais rápida dos elementos culturais e educacionais que "produziram" desenvolvimento em vários países —, mas talvez ele tenha razão no longo prazo. Infelizmente, esse prazo tem-se revelado desnecessariamente mais longo do que o desejável para muitos povos, mas fatores políticos, não técnicos ou econômicos, podem explicar esse atraso inexplicável para os padrões da racionalidade ocidental.

O mito do Consenso de Washington - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)

O mito do Consenso de Washington

Washington-capitol
Mais um poderoso inimigo, mas algo fantasmagórico
Continuando minha série sobre as “falácias acadêmicas” – inaugurada por artigo sobre o mito do neoliberalismo, pretendo agora tratar do segundo mito mais abusado dos últimos 20 anos, aquele que pretende que, em algum momento, a América Latina se dobrou a um conjunto de injunções vindas de Washington e aplicou esse pacote “neoliberal” com uma inconsciência ingênua que teria beirado a irresponsabilidade. Esse “pacote” de prescrições relativas à condução macroeconômica nos países latino-americanos recebeu o nome – inclusive porque ele foi auto-atribuído – de “Consenso de Washington” (doravante: CW). Os problemas reais e supostos do CW – e o mito daí decorrente – começam justamente por esse “acidente geográfico”, não puramente circunstancial, posto que reveladores de uma coincidência infeliz: o selo de origem o condenou a ser visto, desde o início, com desconfiança, quando não o situou no limite da rejeição e do repúdio ideológico por parte de toda uma categoria de “produtores acadêmicos”.
Caberia registrar, com efeito, que as famosas regras de política econômica – na verdade, tão desconhecidas quanto vilipendiadas – jamais teriam assumido a importância que podem ter assumido no debate político-midiático do continente se o fato de elas terem sido elaboradas (não necessariamente aplicadas concretamente) e divulgadas a partir da “capital do Império” não trouxesse esse estigma de nascimento, quase um pecado original, que praticamente converteu o CW numa entidade virtual, numa figura metafísica, geralmente vazia de conteúdo, mas inacreditavelmente repleta de ataques condenatórios e de slogans acusatórios que beiram o ridículo, pela superficialidade das diatribes e a inconsistência das acusações.
Leio, por exemplo, num livro do marxista paquistanês, mas exilado em Londres desde sempre, Tariq Ali, recentemente editado no Brasil, Piratas do Caribe (Rio de Janeiro: Record, 2008), o seguinte trecho: “A América Latina é um continente em que uma alternativa essencialmente social-democrata ao capitalismo neoliberal está crescendo a partir das bases e contaminando a política por todos os lados.” (p. 9)
Como alternativa, Tariq Ali se refere aos atuais “piratas” do Caribe: Hugo Chávez, da Venezuela, Daniel Ortega, da Nicarágua, Rafael Correa, do Equador, e Evo Morales, da Bolívia. Os dois últimos, aliás, seriam dificilmente enquadráveis na categoria “piratas do Caribe”, mas podemos deixar esse outro acidente geográfico de lado e ir ao essencial, uma vez que esse livro representa uma condenação explícita do CW e um libelo contra as políticas e medidas econômicas identificadas com tal “receituário neoliberal”. O mais surpreendente no livro de Tariq Ali – provavelmente decepcionante para o governo brasileiro – é a condenação formal da administração em curso no Brasil, como estando justamente identificada com o CW. O que afirma Ali, que deve descontentar absolutamente os governantes atuais do Brasil?
“Há uma ironia no fato de que tanto seus aliados em Washington e na Europa quanto seus opositores em casa concordam em ver Lula como um Tony Blair tropical. Como seu equivalente inglês [Ali escreveu quando Blair ainda era o primeiro-ministro britânico], está pronto a agradar praticamente em qualquer nível, cercado de assessores e camaradas totalmente leais ao CW e corruptos até a alma”. (p. 53) [Lula] “De fato se tornou um Tony Blair tropical, sucedendo a Tatcher protagonizada por Fernando Henrique Cardoso.” (p. 54)
Acredito que muitos no Brasil, e em outros países da América Latina, tenderiam a concordar com o que escreveu Tariq Ali, uma vez que os “manifestos de oposição” contra a política econômica do governo Lula – muitos deles circulando pouco tempo depois da inauguração do governo – receberam significativo volume de assinaturas, demonstrando grande adesão nas faculdades de ciências sociais aplicadas e de humanidades em geral. [Para uma visão geral dos argumentos mais recorrentes nesses manifestos, e uma crítica a eles, remeto a meu artigo: “Onde foram parar os manifestos econômicos de oposição?”, Espaço Acadêmico, nº 41, outubro de 2004. Acredito, também, que a rejeição demonstrada por esses acadêmicos à política econômica do governo brasileiro atual – e, de forma geral, aos supostos ditames do CW – represente, em primeiro lugar, uma ignorância parcial ou total do que sejam, efetivamente, as medidas de política econômica preconizadas no tão famoso quanto desconhecido consenso.
Em vista dessa realidade, pretendo, no presente ensaio, apresentar o CW em sua integralidade original e discutir, em seguida, alguns exemplos práticos de sua aplicação (ou falta de) em países selecionados, tratando inclusive de alguns casos considerados paradigmáticos. Estes estão muito próximos de nós, sendo representados, respectivamente, pelo Chile – como suposto exemplo de adesão ao CW – e pela Argentina, que seria um eloqüente exemplo de seu fracasso. O mesmo Tariq Ali, por acaso, afirma o seguinte sobre a Argentina: “A Argentina é um caso interessante a ser estudado. O seu colapso foi uma mensagem para o mundo como um todo, não apenas para a América Latina. Se você seguir os ditames de Washington, isso é o que pode acontecer também com você.” (p. 57). Tariq Ali está, obviamente, equivocado sobre o que ocorreu exatamente na Argentina, mas o seu “indiciamento” constitui, aliás, um típico exemplo da superficialidade, dos equívocos e da ignorância sobre o CW, de resto fartamente exibidos por outros críticos em nossas academias.
Tendo já abordado, parcialmente com base nas regras do CW, da suposta adesão do Brasil ao que seria o “neoliberalismo” desenhado em Washington – ver meu artigo “A indiscutível leveza do neoliberalismo no Brasil: uma avaliação econômica e política da era neoliberal”, Espaço Acadêmico, nº 10, março de 2002, pretendo dispensar aqui um novo tratamento do caso brasileiro, pelo menos em detalhe. Vamos ao que interessa, portanto, em relação a essas famosas regras.
As famosas regras do Consenso de Washington, em versão resumida
Trata-se de dez regras de ajuste econômico, formalizadas por ocasião de um seminário realizado em Washington, no final dos anos 1980, ao cabo de dez anos de reformas econômicas conduzidas em diversos países da América Latina. O encontro tentava, justamente, fazer o balanço do que, exatamente, tinha sido aprendido na região (e fora dela) como experiência prática da penosa fase de crises recorrentes dos anos (e décadas) anteriores, ademais dos problemas estruturais e características sistêmicas desde sempre: inflação renitente, emissionismo irresponsável, choques do petróleo, crise da dívida, moratória, desequilíbrios cambiais e de balanço de pagamentos, pobreza generalizada, desigualdades extremas etc.
O que ocorreu, portanto, não foi uma decisão dos órgãos oficiais de Washington, vinculados de alguma forma à elaboração de “prescrições” de política econômica – que seriam as duas “sisters in the woods”, FMI e BIRD, e o Departamento do Tesouro dos EUA –, mas sim um “resumo-síntese” de um consenso puramente acadêmico, que não pretendia ser apresentado como “receituário” obrigatório de implementação de políticas econômicas “neoliberais. Tratava-se apenas como um trabalho de reflexão e uma colaboração intelectual ao esforço de ajuste e de reformas.
O CW deve, portanto, ser entendido exatamente pelo que ele foi, ou é, e não pelo que seus supostos inimigos ideológicos pretendem que ele seja: uma contribuição ao esclarecimento de políticas que “deram certo”, não um “pacote” imposto desde o alto. Este é o quadro situacional e o contexto intelectual pelos quais devem ser avaliados o CW – e seus desenvolvimentos posteriores – e como tais considerados em qualquer trabalho de avaliação que se pretenda fazer em torno dele, como o que agora se empreende. Vamos, agora, à sua substância.
Resumidamente, ele toca nos seguintes pontos: disciplina fiscal, reorientação das despesas públicas, reforma tributária, liberalização financeira e comercial, taxa cambial, abertura aos investimentos estrangeiros, privatização, desregulação e garantia de contratos e direitos de propriedade. Caberia recordar, desde já, que as regras do CW não foram estabelecidas por economistas liberais para orientar governos desejosos de uma política econômica “ortodoxa”. Trata-se de um conjunto de prescrições de política econômica, formalizadas a posteriori – como acontece geralmente com os modelos econômicos, que nada mais são do que a formalização genérica de uma experiência passada, geralmente bem-sucedida, pois raramente se constroem modelos a partir de fracassos –, para tentar sintetizar o que estava acontecendo com países como Chile e México, que desde o início dos anos 1980 tentavam enquadrar-se no chamado mainstream economics, depois de décadas de políticas erráticas e experiências substitutivas.
O autor das propostas foi o economista John Williamson, que, num artigo intitulado “O que Washington entende por reforma da política [econômica]” [1], fazia o balanço de quase dez anos de ajuste na América Latina, depois da crise da dívida externa, em 1982. Os países mais avançados nesse processo de ajuste eram o Chile e o México. Ao contrário do que muitos pensam, portanto, foram as políticas já adotadas de forma independente por países da região que serviram de “modelo” para que o economista, a partir das medidas concretas de política econômica de seus governos, apresentasse seu esquema de “receitas bem-sucedidas de ajuste”. Essas receitas cobriam dez áreas de reformas econômicas e políticas, nomeadamente as seguintes:
1) disciplina fiscal;
2) prioridades nas despesas públicas;
3) reforma tributária;
4) taxa de juros de mercado;
5) taxa de câmbio competitiva;
6) política comercial de integração aos fluxos mundiais;
7) abertura ao investimento direto estrangeiro;
8) privatização de estatais ineficientes;
9) desregulação de setores controlados ou cartelizados;
10) direitos de propriedade.
Em sua versão original, as regras enunciadas por Williamson pouco se ocupavam de equilíbrio no balanço de pagamentos, da liberalização financeira, de desregulação bancária, não implicavam a diminuição do papel do Estado (como acusam, sem razão, muitos críticos apressados) e não necessariamente condicionavam o sucesso dessas políticas à manutenção de uma baixa taxa de inflação. John Williamson afirmava expressamente que suas regras eram mais “instrumentos de política”, do que um conjunto de objetivos ou resultados que devessem ser elevados à categoria de dogma. Elas estavam longe, portanto, de representar um remédio para economias doentes, pois que tinham sido concebidas como um conjunto de princípios para, justamente, manter as economias latino-americanas em estado “saudável”, sem a necessidade de correções de rumo brutais, com intervenção do FMI e pacotes de ajuda “impostos de fora”.
Em relação à acusação de que essas regras condenavam as economias latino-americanas à recessão, cabe registrar que o CW nunca pretendeu, nem poderia, ser um “receituário de desenvolvimento”; ele estava unicamente destinado a fornecer “instrumentos de política econômica” para facilitar o processo de reformas e de ajuste num momento de crise, como era o caso da dívida externa. Esses instrumentos deveriam, assim, fornecer as condições mínimas da estabilidade, após a qual políticas especificamente desenhadas para estimular ou facilitar o desenvolvimento econômico deveriam ser concebidas e implementadas pelos governos da região.
As regras do Consenso de Washington, explicadas em detalhe
Vejamos agora cada um dos pontos de maneira mais argumentativa.
1. Disciplina fiscal
Todos aqueles que conhecem a história econômica da América Latina têm presente o quadro de descalabro financeiro cercando as finanças públicas da maior parte dos países. Na verdade, nem precisaria conhecer essa história trágica para saber que desequilíbrios orçamentários levam à acumulação de dívida pública, sustentada em emissões contínuas de títulos governamentais, daí à elevação dos juros e a um ciclo infernal de novas emissões apenas para cobrir o serviço (juros) da dívida. Basta considerar apenas o orçamento doméstico, ou suas próprias receitas e despesas, para saber que déficits contínuos na conta corrente produzem uma conta salgada que corre o risco de se tornar inadministrável. Como, a rigor, governos não vão à falência, e sempre possuem a capacidade de avançar sobre as rendas dos cidadãos e das empresas, o processo pode levar a conseqüências extremas, deixando uma “herança maldita” para o governo seguinte ou as futuras gerações.
Não se trata, propriamente, de um problema confrontando escolas econômicas ou orientações políticas distintas, ainda que o próprio Williamson se permita cutucar alguns crentes do “estímulo fiscal”. Diz ele que “os crentes de esquerda no estímulo keynesiano, por meio de grandes déficits orçamentários, são quase uma espécie em extinção”. Trata-se, basicamente, da sustentabilidade das contas públicas, e aqui o ideal seria não permitir que o déficit orçamentário não excedesse uma dada relação entre a dívida pública e o PIB. Pelos critérios de Maastricht, como se sabe, o déficit orçamentário permitido é de, no máximo, 3% do PIB, sendo que a dívida pública não deveria exceder 60% do PIB. Talvez sejam relações razoáveis, mas tudo depende de como está sendo construído esse déficit – se for para investimento é obviamente melhor do que para novas despesas correntes continuadas – e de qual é o perfil da dívida em função do nível dos juros e do calendário de amortização.
Uma trajetória que contemple, por exemplo, aumentos generosos de salários para o funcionalismo público – em total desproporção do que se paga no setor privado – e criação de novos cargos públicos em função de critérios totalmente políticos, sem correspondência quanto ao nível e qualidade dos serviços públicos, pode constituir uma receita segura para uma bomba-relógio de natureza fiscal, da mesma forma como a concessão de aposentadorias e pensões em clara dissociação com os recolhimentos havidos na fase ativa dos beneficiários. O Brasil, justamente, parece enfrentar alguns desses problemas na presente fase, o que certamente vai ter repercussões mais graves alguns anos mais à frente. Tampouco adianta, como também se pratica por aqui, cobrir essas novas despesas buscando novas fontes de arrecadação ou aprofundando a “extração” fiscal sobre os contribuintes e as empresas: o único resultado desse tipo de medida é reduzir o espaço da poupança privada – que deveria ser usada para o investimento empresarial – o que obviamente terá efeitos negativos sobre a taxa de criação de empregos, de crescimento da renda e outros impactos que os economistas chamam de convite à irresponsabilidade política: inflação e fuga de capitais.
2. Prioridades nas despesas públicas
Deixando de lado despesas militares – que são consideradas um domínio da segurança nacional, fora, portanto, do alcance de simples tecnocratas – todas as outras despesas são passíveis de racionalização e, eventualmente, de redução, pela via dos ganhos de eficiência. Existem três fontes de gastos públicos que parecem inevitáveis em toda e qualquer circunstância: gastos previdenciários (supondo-se um regime de repartição, e não de capitalização); investimentos públicos, sobretudo em infra-estrutura; saúde e educação, considerados corretores de desequilíbrios existentes no mercado (devendo, portanto, beneficiar os mais pobres).
É óbvio, mesmo para o mais “direitista” dos economistas, que prioridade nas despesas públicas não quer dizer redução de gastos sociais, e sim eliminação ou pelo menos diminuição de outras despesas evitáveis, como os subsídios públicos. Existem muitos subsídios, diretos e indiretos, que poderiam ser cortados ou reduzidos, e nem todo mundo têm consciência de que eles existem. Quando o governo, por exemplo, escolhe não aumentar o preço da gasolina em compasso com a cotação do petróleo nos mercados internacionais, ele pode estar subsidiando o transporte da classe média, em detrimento do número muito maior que usa transporte público. Quando ele concede empréstimos governamentais a industrias “estratégicos”, aplicando uma taxa de juros que é a metade daquela que ele mesmo usa para remunerar seus títulos da dívida pública, ele está subsidiando uma categoria privilegiada da população.
Mas mesmo os gastos com saúde e educação podem estar profundamente distorcidos por um perfil exageradamente concentrado destes últimos na educação superior, por exemplo, que no Brasil contempla, como sabemos, muito mais recursos do que os alocados aos dois níveis anteriores. Da mesma forma, quando o governo permite que operações de mudança de sexo sejam cobertas pelo sistema geral de saúde pública ele pode estar, ipso facto, retirando recursos que poderiam ir para cuidados preventivos ou saneamento básico para populações de baixa renda.
3. Reforma tributária
Não existe, a rigor, nada de liberal no sistema tributário, um expediente a que recorrem todos os governos conhecidos desde a noite dos tempos. Trata-se de uma extração forçada, para fins supostamente públicos, mas cuja incidência repercute de modo diferenciado segundo a base escolhida e a forma de “captura” da renda pessoal.
Existem, basicamente, duas grandes formas de coleta de recursos pelo Estado: de maneira direta sobre a renda dos cidadãos individualizados (com uma aplicação progressiva das alíquotas definidas), e de maneira indireta sobre o consumo de todos os cidadãos (o que recomendaria taxar menos produtos básicos, que serão os mais amplamente, e talvez exclusivamente, adquiridos pelos mais pobres, e de forma mais “agressiva” produtos supérfluos ou de consumo conspícuo). Outras taxas são cobradas sobre serviços específicos, dependendo de quem os use (estradas, aeroportos, etc.).
Com relação ao imposto de renda, o consenso parece ser de que a base deveria ser ampla e as alíquotas marginais reduzidas (para evitar elisão e evasão fiscal, fuga de capitais, etc.). Por outro lado, impostos indiretos excessivos acabam penalizando os mais pobres de maneira desproporcional, que podem pagar mais impostos (em relação à renda pessoal) do que os ricos. Esse fenômeno é muito conhecido em vários países latino-americanos, mas poucos governos têm a coragem de enfrentá-lo, uma vez que os impostos sobre os consumos são mais fáceis de cobrar e passam quase despercebidos (quando sua incidência não está expressa no preço dos produtos). Não é preciso dizer nada sobre o imposto de transações financeiras, que é cumulativo ao longo da cadeia produtiva e, portanto, altamente irracional do ponto de vista social e da capacidade competitiva de um país.
4. Taxa de juros de mercado
Isto significa, simplesmente, que ela não dever ser manipulada pelos governos e sim determinada pelo equilíbrio da oferta e da procura por dinheiro na economia. Se o governo precisa fixar alguma taxa, que ela seja positiva (ou seja, superior à inflação, caso contrário provocaria fuga de capitais). Ela também deve ser moderada, de forma a estimular o investimento e, se possível, neutra entre os desejos dos poupadores por uma taxa estimulante e os dos investidores por uma taxa adequada ao seu retorno. Uma taxa muito “positiva” pode ter um efeito devastador sobre a dívida pública.
Um mercado de créditos extremamente concentrado ou cartelizado tende a produzir altas taxas de juros, razão pela qual um setor financeiro aberto à competição representa um bom estímulo à manutenção de taxas de mercado moderadas. Se o governo, por outro lado, pretende determinar de forma muito intrusiva o que os banqueiros podem ou devem fazer com seus depósitos – ou seja, estabelece muitas regras para o crédito direcionado a setores, ademais do alto volume de depósito compulsório – ele pode contribuir para juros anormalmente elevados.
5. Taxa de câmbio competitiva
Da mesma forma como os juros, o câmbio também deve ser determinado pelo mercado, o que parece coincidir com a escolha da vasta maioria dos países que adota o regime de flutuação de suas moedas. John Williamson diz preferir uma “taxa de câmbio em equilíbrio fundamental”, o que, no caso de um país em desenvolvimento, significa que ela deve ser “suficientemente competitiva para promover uma taxa de crescimento das exportações que faça a economia crescer à taxa máxima permitida pelo seu potencial de oferta, ao mesmo tempo em que mantém o déficit de transações correntes em uma proporção tal que possa ser financiado em bases sustentáveis”. Ele acrescenta que a taxa de câmbio não deveria ser mais competitiva do que essa relação; do contrário, ela poderia produzir pressões inflacionárias desnecessárias, assim como limitar os recursos disponíveis para o investimento doméstico.
Essa taxa de câmbio competitiva é o elemento essencial de uma política econômica orientada para fora, na qual as restrições de balanço de pagamentos são superadas essencialmente pelo crescimento das exportações, não por um programa de substituição de importações. Uma orientação para fora e exportações crescentes – sobretudo em setores não tradicionais – constitui uma fórmula de sucesso para uma economia dinâmica.
6. Política comercial de integração aos fluxos mundiais
A visão mercantilista da maior parte dos políticos – em especial na América Latina – faz com que eles vejam com bons olhos as exportações, mas condenem como se fosse um pecado as importações. Na verdade, abertura às importações é relevante para ajustar o setor produtivo a um setor exportador que possa ser competitivo internacionalmente, do contrário o excesso de proteção penalizará a oferta doméstica e tornará o país mais pobre. Licenciamento de importações constitui, aliás, uma fonte inevitável de corrupção, cabendo tão somente um sistema tarifário transparente.
7. Abertura ao investimento direto estrangeiro
Como já indicado, a liberalização dos fluxos financeiros não é considerada uma prioridade. Em contrapartida, o fechamento ao investimento direto estrangeiro pode ser visto como propriamente contraproducente. O IED traz não apenas capital, mas conhecimento e é um grande indutor de ganhos de produtividade. Ele pode ser conseguido, também, por conversão da dívida; mas tende a ser desestimulado em virtude de reações nacionalistas que podem ser economicamente prejudiciais. Em geral, empresas estrangeiras contribuem muito mais para o desempenho exportador e, portanto, o IED é também um gerador de divisas.
8. Privatização de estatais ineficientes
Como regra geral, empresas privadas são geridas de forma mais eficiente do que suas equivalente estatais, inclusive por uma questão de estímulos ligados ao lucro e pela falta de uma fonte fácil de recursos baratos. A privatização também traz ganhos fiscais diretos e indiretos, uma vez que o Estado se desobriga de fazer investimentos para os quais o seu Tesouro pode estar depauperado. Com exceção de muito poucos setores públicos (como o fornecimento de água, por exemplo), serviços “coletivos” podem ser fornecidos de maneira eficiente por empresas privadas, sob um regime de concessão monitorado por um sistema regulatório preferencialmente aberto a regras de competição em mercados relativamente abertos.
Não é necessário, tampouco, lembrar o assalto a empresas públicas conduzido por políticos ávidos por práticas clientelísticas, o que por sua vez redunda em desvios financeiros, quando não em corrupção aberta. Empresas públicas tendem a distorcer as condições de concorrência e as regras do jogo num setor determinado, em função do acesso que elas podem conseguir aos mecanismos decisórios do Executivo. Por fim, nas condições atuais de capacitação técnica e educacional dos recursos humanos e de amplo acesso a capitais e tecnologia, a rationale que presidiu ao estabelecimento de tantas estatais na América Latina e alhures – qual seja: a falta de capacidade técnica e de capitais no setor privado – não mais se justifica em bases racionais.
9. Desregulação de setores controlados ou cartelizados
A América Latina é uma das regiões mais reguladas e burocratizadas no plano internacional, com tantos controles estatais que o “capitalismo de compadrio” e os estímulos à corrupção aparecem quase como inevitáveis. Monopólios e cartéis, ou seja, falta de competição, são uma das fontes mais comuns de preços altos, má qualidade nos produtos e serviços, corrupção e comportamentos rentistas inaceitáveis numa economia moderna. A regulação não se exerce apenas no fornecimento de bens ou serviços, mas também no cipoal de regras que determinam a entrada e saída de capitais, a remessa de lucros, os fluxos de tecnologia sob licenciamento, o ingresso de investimentos diretos, a existência de barreiras à entrada em novas atividades, bem como taxas e contribuições de todo tipo.
Para exercer o devido controle – que ele mesmo se impôs – sobre todos esses setores, o Estado precisa contar com um exército de funcionários, nem sempre pagos adequadamente e, portanto, abertos, em princípio, a possibilidades de corrupção ou a condutas pouco transparentes. A desregulação não significa descontrole ou ausência de regras; ao contrário: ela costuma andar junto com agências reguladoras, criadas em função de uma visão de longo prazo das necessidades do país, não na perspectiva de um governo temporário, e mantidas de forma independente à equipe que ocupa por um tempo limitado os mecanismos do Estado.
10. Direitos de propriedade
O CW não pretende tanto se referir aqui à propriedade intelectual – embora esta também seja insuficientemente protegida na América Latina – quanto chamar a atenção para o respeito aos contratos e para a estabilidade de regras. A instabilidade jurídica aumenta os custos de transação e é responsável por uma perda concomitante do PIB da região. Juízes que pretendem fazer justiça social terminam por “criar” leis, em lugar de apenas interpretar e aplicar a legislação em vigor.
O que aconteceu, antes e independentemente do Consenso de Washington?
A “interpretação” deformada feita por certos setores acadêmicos na América Latina a propósito de processos de ajuste e reforma empreendidos por alguns países pretende que o CW tenha sido responsável por todos os problemas acumulados na região ou pelos desafios na agenda dos atuais governantes. Eles atribuem a “onda neoliberal” que percorreu alguns países desde o início dos anos 1980 a uma espécie de diretiva emitida em Washington e implementada de forma canônica por governos submissos ou suficientemente enfraquecidos economicamente para não resistir às pressões combinadas dos EUA e das entidades do capitalismo global.
Como vimos anteriormente, o CW foi, na verdade, estabelecido a posteriori, depois que alguns países decidiram se lançar na penosa via dos ajustes e da reforma, a começar pelo México – a primeira vítima da crise da dívida de 1982 – e depois pelo Chile – o que não tem nada a ver com a ditadura de Pinochet, orientada por uma visão anacrônica, tão dirigista e estatizante quanto certos modelos “desenvolvimentistas”, estimulados antes e depois desses experimentos inovadores. Como todo modelo, o CW é em grande medida artificial, consistindo numa tentativa de síntese das medidas que supostamente teriam resultado em desempenho econômico satisfatório nas fases seguintes. Trata-se, obviamente, de uma simplificação de uma complexa realidade e de um conjunto de variáveis bastante sensíveis a um “mix” determinado de políticas, que jamais pode se desenvolver da mesma forma em dois países diferentes.
Interpretações de processos complexos são naturalmente sujeitas a caução, na medida em que não se pode isolar experimentos reais para fins de simulação ou teste controlado. Espíritos ingênuos tendem a confundir o CW com essa coisa diáfana chamada neoliberalismo e este, a rigor, não tem quase nada a ver com o CW, pois eles pertencem a dois universos diferentes. Em todo caso, em qualquer discussão sobre o “neoliberalismo” latino-americano sempre são trazidos em evidência os casos da Argentina, como exemplo de “fracasso”, o do Chile, como modelo supostamente bem sucedido – embora nem sempre com medidas em sintonia com a “ortodoxia” presumida do CW – e, eventualmente, o do México, o país que, alegadamente, teria iniciado o ciclo de conversões “neoliberais” desde o início dos anos 1980.
O que parece evidente, numa análise prima facie, é que há uma concentração quase obsessiva sobre o caso argentino para “demonstrar” o fracasso das receitas “neoliberais” para promover crescimento e igualdade na América Latina. Não se pode analisar em profundidade o desenvolvimento do ciclo completo do ajuste e reformas nessa vasta região; mas se pode, ao menos, examinar o caso argentino, para verificar se ele se conforma, ou não, ao suposto modelo prêt-à-porter, que seria disseminado pelos “profetas” de Washington como via milagrosa para o crescimento sustentado.
Vejamos, portanto, como se pode avaliar a experiência argentina, em função dos mesmos critérios que orientaram a primeira versão do CW (existem, pelo menos, duas outras, mais centradas sobre as políticas sociais ou sobre o papel das instituições na implementação das políticas recomendadas). Como julgar a Argentina, por meio do benchmark das regras estabelecidas no CW?
O “neoliberalismo” argentino:
1) disciplina fiscal: a Argentina esteve longe de cumprir este requisito básico do CW, de que são prova os contínuos déficits provinciais – problema associado ao federalismo também presente em outros países –, bem como o crescimento irresponsável da dívida pública, até o ponto inevitável da ruptura e do calote;
2) prioridades nas despesas públicas: o governo do presidente Menem passou toda a primeira metade dos anos 1990 empenhado em modificar a Constituição para sustentar seu projeto de reeleição, embora não tenha obtido um mandato com a mesma extensão que pretendia;
3) reforma tributária: ela foi feita de forma parcial, tanto que a capacidade “extratora” do Estado argentino sempre foi muito baixa, comparativamente com a carga fiscal do Brasil, cuja burocracia da Receita sempre foi muito eficiente para fechar vários “buracos” na teia tributária;
4) taxa de juros de mercado: de fato, os juros foram liberalizados, mas os desequilíbrios crescentes acumulados do lado fiscal e a falta de competitividade dos produtos argentinos, por força de uma inflação ainda importante, levaram o Estado a aumentar progressivamente o nível dos juros, em descompasso com as necessidades de investimento no país;
5) taxa de câmbio competitiva: trata-se, provavelmente, da mais eloqüente negação de uma regra tida como essencial pelo autor do CW. A Argentina, ou melhor, o ministro Domingo Cavallo, fixou formalmente o valor do peso em dólar (1 por 1), no plano que teve início em 1991, preservando a mesma camisa de força durante dez anos seguidos. O regime de conversibilidade, assegurado por um sistema de “currency board”, constituiu, provavelmente, a mais significativa ruptura da Argentina com um elemento central do CW;
6) política comercial de integração aos fluxos mundiais: de fato, ocorreu uma significativa liberalização comercial ao início do processo de estabilização; mas os desequilíbrios cambiais e inflacionários acumulados ao longo do tempo levaram a forte perda de competitividade externa, o que determinou nova onda de protecionismo tarifário, de expedientes para-tarifários (como uma “taxa de estatística”, por exemplo), além de outros mecanismos defensivos (antidumping e salvaguardas extensivas);
7) abertura ao investimento direto estrangeiro: de fato ocorreu, numa primeira fase, mas inviabilizada depois pela alta valorização do peso e a perda de competitividade adquirida em função da amarra cambial;
8) privatização de estatais ineficientes: o processo ocorreu, nem sempre de forma transparente, ou aberta à concorrência pública, e os recursos auferidos não serviram de abatimento da dívida pública, que continuou numa trajetória de crescimento;
9) desregulação de setores controlados ou cartelizados: ela foi conduzida sem preparação ou planejamento adequados, processo que resultou em novos monopólios privados, não controlados por nenhuma agência reguladora;
10) direitos de propriedade: o “capitalismo de compadrio”, a transformação dos sindicatos em negócios rendosos para as máfias nele encasteladas e diversas outras práticas arbitrárias dos agentes públicos continuaram a alimentar um ambiente de negócios pouco propício a um crescimento sustentável no país platino.
Muito antes desses processos pouco condizentes com a estrita racionalidade econômica ocorrerem na Argentina, o Chile já tinha enveredado pelo caminho dos ajustes e da reforma, itinerário por certo facilitado pela ausência de “perturbações” democráticas, mas nem por isso isento de percalços próprios da ideologia militar, tão centralizadora, estatizante e dirigista quanto a ideologia econômica de outros regimes militares na região. Na verdade, o processo de “disciplinamento” econômico dos militares chilenos se deu apenas após uma grave crise bancária, a persistência de focos inflacionários importantes, alto desemprego e desequilíbrios no abastecimento alimentar, o que determinou o apelo a economistas identificados com a “escola de Chicago” e os princípios liberais da escola “austríaca” de Von Mises e Hayek.
O importante a registrar é que muito tempo antes de qualquer “consenso” se formar em Washington, ou de técnicos do FMI ou do Tesouro americano virem a Santiago – o que, aliás, nunca ocorreu, fora das visitas de trabalho do FMI para fins de artigo IV – formular recomendações ou prescrições de política econômica, o Chile já tinha decido empreender vasta reforma de seu sistema econômico, num sentido amplamente liberalizante. Em outros termos, foi o Chile quem deu a “receita” para a construção de um “modelo” de ajuste e reformas, não o contrário. Foram essenciais em seu processo de ajuste e reformas, a manutenção da disciplina fiscal, a liberalização comercial e financeira – o que não significou, em absoluto, liberdade completa para os capitais, mas, sim, mecanismos de esterilização dos fluxos puramente financeiros, como a famosa “quarentena” –, políticas de atração de investimentos diretos e uma cuidadosa gestão monetária que trouxe a inflação chilena a níveis “europeus”. Em suma, o Chile fez o seu “dever de casa”, mas isso não significou converter-se de forma acrítica ao “neoliberalismo”, seja lá o que isso queira dizer. O Chile de fato desregulou, privatizou, liberalizou, mas tudo isso de forma planejada, consciente e administrada pelo Estado.
A julgar pelo desempenho respectivo de cada um dos países, não é preciso lembrar quem acumulou crescimento ao longo de mais de dez anos – a ponto de ter sido chamado de “tigre” ou “puma” latino-americano – e quem soçobrou na crise e na moratória, derrubando presidentes como quem brinca com um castelo de cartas. Longe de representar uma “derrota” do neoliberalismo, como pretendem alguns, de forma totalmente equivocada, o caso argentino é um exemplo cabal de reformas incompletas, mal conduzidas ou de erros primários de gestão macroeconômica, a começar pelo câmbio fixo e pela indisciplina fiscal, em total desacordo com as prescrições – se houvesse – do CW. De outra parte, longe de representar qualquer tipo de “vitória” para o mesmo CW, o caso do Chile é um modelo de pragmatismo e de cautela da implementação de medidas – elas sim – ortodoxas de política econômica, que asseguraram seu crescimento durante praticamente toda a década de 1990 e a estabilidade do poder de compra de sua moeda.
Concluindo de forma inconclusiva: não existem soluções-milagre em economia
Como examinado ao longo deste breve ensaio analítico do famoso CW e sua não-aplicação, de fato, na maior parte dos paises latino-americanos, o panorama regional é suficientemente diversificado para descartar qualquer explicação simplista do tipo pretendido por certos “analistas acadêmicos” para o sucesso de alguns e o fracasso de outros. A Argentina não fracassou devido ao CW, assim como o Chile não foi bem sucedido devido a uma aplicação submissa de suas recomendações, ainda que muitas das “receitas” empregadas neste país andino guardem uma grande interface filosófica e prática com aquelas regras (mais de puro bom senso, ou de julgamento sereno das experiências econômicas bem sucedidas, do que de aplicação cega de alguma “pomada maravilha” macroeconômica).
Muito da “agitação intelectual” em torno do suposto neoliberalismo desses países não encontra, assim, suporte na realidade. Dessa forma, o mito do CW pode ser considerado uma criação da esquerda latino-americana, que precisava dispor de um novo inimigo ideológico, na figura do neoliberalismo, depois que outros velhos mitos – como, por exemplo, aquele preferido pelo mais “perfeito idiota latino-americano”, o escritor uruguaio Eduardo Galeano: o do subdesenvolvimento induzido pela dominação imperialista – entraram em desuso, por uso e abuso na fase anterior. O que sobrou, finalmente, de toda essa agitação em torno de um conceito que não merecia essa publicidade mal concebida e mal dirigida? Praticamente nada, a não ser: slogans de um lado, e silêncio do outro.
Isso não impediu, obviamente, o manancial de bobagens que continuam a ser disseminadas em torno de um suposto neoliberalismo dominador, que teria ocupado todos os desvãos das políticas econômicas dos países latino-americanos ao longo de duas décadas. Quando se vai examinar a realidade, a única constatação possível de ser extraída é que os supostos inimigos ideológicos do neoliberalismo e do CW não sabem do que estão falando, nem apresentam dados fiáveis para confrontá-los à realidade. Nessas condições, qualquer diálogo racional é impossível. Mas diálogo é provavelmente a última coisa que desejam os agitadores de slogans...

[1] Cf. Williamson, John, “What Washington Means by Policy Reform”, in idem (org.), Latin American Adjustment: How Much Has Happened? (Washington: Institute for International Economics, 1990, p. 7-20): http://www.petersoninstitute.org/publications/papers/paper.cfm?ResearchID=486; acesso em setembro de 2008.

* Publicado originalmente em 22/03/2009.

O mito do neoliberalismo - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)

O mito do neoliberalismo

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1. Da pouco nobre arte de ser falaz
Falácia, segundo os bons dicionários, é a qualidade ou o caráter do que é falaz, que, por sua vez, é um adjetivo sugerido como sendo o equivalente de enganador, ardiloso ou fraudulento, ou, ainda, quimérico, ilusório ou enganoso. Pois bem, ao longo de minhas “peregrinações” acadêmicas, tenho tido a oportunidade de deparar-me com exemplos de afirmações, argumentos, postulações, teses ou artigos inteiros que correspondem ao caráter enganador ou, até mesmo, fraudulento contido nesse adjetivo. Comecemos esta série por um dos mais recorrentes em nossos tempos.
Como sabem todos aqueles que convivem com a literatura acadêmica na área de ciências sociais, nenhum conceito tem sido tão equivocadamente mencionado no ambiente universitário, nas últimas duas décadas, quanto o epíteto “neoliberal”, junto com o seu correspondente coletivo e doutrinal, o “neoliberalismo”. A incidência estatística de seu (mau) uso é tão notória, que se poderia falar de uma verdadeira epitetomania anti-neoliberal, dirigida contra todas as políticas econômicas associadas, de perto ou de longe, ao chamado mainstream economics, este representado pelas correntes ortodoxas de pensamento e suas práticas econômicas correspondentes.
Junto com o substantivo usado e abusado de globalização, ou, ainda, o tão mais detestado quanto praticamente desconhecido programa econômico do “consenso de Washington”, o neoliberalismo converteu-se, simultaneamente, em um xingamento e em um slogan de uso praticamente obrigatório por todos aqueles que pretendem desqualificar e condenar as políticas e as práticas da escola econômica convencional. Eles o fazem, supostamente em nome de uma outra orientação, de uma doutrina ou de uma escola, que seriam, alegadamente, heterodoxas, alternativas e até mesmo opostas às primeiras. Os argumentos e teses utilizados para esse tipo de condenação são pouco compatíveis com um trabalho analítico sério, ou seja, capazes de passar pelos testes da coerência, relevância, compatibilidade com os dados da realidade e passíveis de aferição, independentemente dos próprios argumentos que sustentam a acusação.
Nesse sentido, o neoliberalismo já se converteu em um mito acadêmico, isto é, deixou de significar uma realidade empírica, aferível por dados extraídos de alguma situação concreta, para passar a representar uma entidade nebulosa, definida de modo muito pouco precisa, aplicada a diferentes conjunturas de países e políticas vagamente caracterizadas como pertencendo ao domínio dos “livres mercados”, em oposição ao que seria uma regulação estatal mais estrita. Não se é neoliberal por vontade própria, mas apenas por ter sido assim catalogado por aqueles que detêm o monopólio dessa classificação, que são, invariavelmente, os opositores de supostas idéias “neoliberais”.
Por certo, existem muitos outros abusos acadêmicos em relação a diversos conceitos que são usados indevidamente no panorama pouco rigoroso das nossas “humanidades”, entre eles o de classe, o de imperialismo, o de burguesia e vários do mesmo gênero. Contudo, o manancial de falácias que brota sem cessar a partir do uso inadequado do adjetivo “neoliberal” é provavelmente o mais abundante e o mais disseminado de que se tem registro desde os anos 1980. São tantas as variedades de uso e as manifestações qualitativas – ainda que superficiais – em torno desse termo, que fica difícil ignorá-lo como o campeão absoluto de referências numa série analítica que pretende, justamente, examinar alguns exemplos de falácias acadêmicas. Seu uso é tão corrente e banal que pode ser espinhoso selecionar uma “falácia” representativa de toda uma corrente de pensamento que se propõe aqui submeter ao crivo da crítica argumentada e sistemática.
Encontrei, porém, no contexto de minhas leituras, um texto suficientemente representativo de uma falácia acadêmica associada ao dito conceito e perfeitamente ilustrativo do mito mencionado no título deste ensaio. Vou proceder à citação do texto em questão, submetendo o trecho selecionado à crítica que pretendo fazer de toda uma orientação doutrinal muito comum nos meios ligados à comunidade universitária que se move em torno das chamadas humanidades. Os únicos critérios que me guiam na releitura crítica do texto em questão são aqueles que se espera encontrar em todo e qualquer trabalho acadêmico: clareza na descrição ou exposição dos fatos, coerência na apresentação dos argumentos, relevância do discurso para a realidade de que se pretende tratar e sua adequação aos dados dessa própria realidade.
2. As novas roupas do velho imperialismo, em sua fase neoliberal
Deparei-me, num típico volume que deve figurar entre as leituras obrigatórias ou recomendadas de vários cursos dentro dessa área, com a seguinte afirmação:
“...o produto social da globalização, o neoliberalismo tem sido o mais dramático possível. Em pouco tempo esse novo regime de acumulação desagregou sociedades, tornou os ricos mais ricos e ampliou a pobreza em praticamente todos os cantos do mundo, especialmente as nações da periferia, onde a barbárie social vem esgarçando o tecido social e incrementando a violência em todos os sentidos.” (autor: Edmilson Costa; artigo: “Para onde vai o capitalismo? Ensaio sobre a globalização neoliberal e a nova fase do imperialismo”; in Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari (coord.), Relações Internacionais: Múltiplas Dimensões; São Paulo: Aduaneiras, 2004, p. 201-233; cf. p. 206.)
Existe ainda outra frase extraída do mesmo artigo que me parece adequada ao propósito de avaliar criticamente o mito do neoliberalismo em certo pensamento acadêmico contemporâneo, embora esta acima me pareça uma perfeita síntese de tudo o que existe de equivocado e falacioso no “pensamento” universitário em torno desse conceito onipresente e polivalente. Vejamos em todo caso o complemento ideal a ela:
“O neoliberalismo é a síntese de todo esse processo de mudanças profundas que estão ocorrendo no sistema capitalista: funciona como uma espécie de gerenciador ideológico, político, econômico, social e cultural dessa nova fase do imperialismo. Trata-se de uma ideologia primitiva para os tempos atuais, com postulados do século XVIII e meados do XIX, época do capitalismo concorrencial, mas com um apelo espantoso ao senso comum. A ideologia neoliberal procura manipular os sentimentos mais atrasados das massas, revigorando os preconceitos, açulando o individualismo, distorcendo o significado das coisas, reduzindo os fenômenos à sua aparência, de forma a ganhar os corações e mentes para o jogo do livre mercado e da livre iniciativa.” (Idem, op. cit., p. 219)
Não vale a pena alertar para a incoerência de se destacar o caráter “primitivo” de uma ideologia que, sendo de meados do século XIX, tem mais ou menos o mesmo grau de “primitivismo” que o marxismo, nem para a inconsistência de se vincular a defesa do livre mercado e da livre iniciativa a “sentimentos atrasados das massas”, já que a mesma ideologia estaria, supostamente, “açulando o individualismo”. Pedir um mínimo de coerência analítica seria exigir demais de um autor que, manifestamente, distorce o “significado das coisas”, reduz o fenômeno do liberalismo à sua aparência, com o provável objetivo de ganhar os corações e mentes de alguns estudantes para o livre jogo dos seus argumentos ilusórios. Passemos, portanto, a examinar cada uma das partes dessas afirmações, elas mesmas espantosas, em relação ao neoliberalismo, com a atenção que nos requer este exemplo consumado de fraude intelectual (se é verdade que este último adjetivo se aplica ao caso em questão).
3. O neoliberalismo como produto de uma imaginação confusa
Em primeiro lugar, o neoliberalismo nunca foi um “produto social da globalização”. Esta é um processo tão velho quanto os empreendimentos marítimos dos mercadores fenícios da antiguidade e as aventuras em mares desconhecidos dos navegadores ibéricos do final do século XV. Em suas manifestações mais comuns, ela vem sendo aceita tranquilamente até pelos mais empedernidos opositores desse processo, aqueles que, sob inspiração francesa, acreditam que “um outro mundo é possível” e que pedem por “uma outra globalização”, que deveria ser não assimétrica e, preferencialmente, não capitalista. Quanto ao neoliberalismo, a rigor, ele não tem nada a ver com a globalização, podendo ser teoricamente encontrado em diversos sistemas econômicos, bastando com que as práticas econômicas se ajustem ao que se tem, via de regra, como os fundamentos do sistema liberal: liberdade de iniciativa, pleno respeito à propriedade privada e aos contratos, defesa do individualismo contra as intrusões do Estado e, de modo amplo, um conjunto de instituições e práticas que buscam garantir, tanto quanto possível, a liberdade dos mercados.
A rigor, o neoliberalismo não existe, sendo apenas e tão somente um revival, ou renascimento, de uma velha escola de pensamento econômico e de orientações em matéria de políticas econômicas que se filiam ao antigo liberalismo doutrinal que surge na Grã-Bretanha a partir dos séculos XVII e XVIII. Aliás, nenhum “neoliberal” consciente e conseqüente se classificaria dessa maneira: ele apenas diria que segue os princípios do liberalismo (econômico ou político, não vem ao caso diferenciar aqui os dois sistemas, que não são idênticos, mas tampouco estranhos um ao outro) e ponto final; todo o resto seria dispensável. Neoliberal é, como já referido, um epíteto criado pelos opositores do liberalismo ou, se quisermos, um conceito que busca evidenciar, justamente, o retorno do antigo liberalismo, depois de um longo intervalo marcado por práticas e orientações claramente intervencionistas e estatizantes.
Mas continuemos. Deixemos de lado a caracterização de “dramático” aplicada a esse “produto”, pois isto corresponde a uma apreciação inteiramente subjetiva do autor, carente de qualquer fundamentação empírica. Esclareça-se, de imediato, que o “produto” não conforma, absolutamente, um “novo regime de acumulação”, que seria, supostamente, uma forma de organização social da produção e da distribuição de bens e mercadorias historicamente inédita para os padrões conhecidos do capitalismo. Ora, o liberalismo – e seu sucedâneo contemporâneo, que seria “neo” – está longe de ser novo e menos ainda de conformar um regime de acumulação, posto que configurando uma filosofia ou orientação geral nos terrenos da política e da economia. Acumulação é um termo geralmente associado ao pensamento econômico marxista, que denota formas genéricas de apropriação dos resultados sociais do processo de produção, o que pode ocorrer em regime de livre concorrência, de monopólio, de propriedade estatal ou de modalidades mistas dessas configurações produtivas. Aparentemente este autor demonstra pouco rigor na sua utilização do ferramental conceitual marxista; em benefício próprio, deveria ser mais cuidadoso com sua terminologia estereotipada.
Pretender, agora, que esse “novo regime” desagregou sociedades equivaleria a afirmar que o neoliberalismo foi responsável pela desestruturação de várias nações que conheceram a aplicação de políticas neoliberais. Olhando-se, honestamente, um mapa dinâmico do planeta, o que poderíamos constatar é que as únicas sociedades verdadeiramente desestruturadas da atualidade são algumas nações africanas que conheceram processos traumáticos de instabilidade política e social, algumas até atravessando guerras civis abertas e conflitos étnicos ou religiosos intermitentes, ou surtos violentos de conflitos tribais que se arrastam na quase indiferença das nações mais ricas do planeta, estas efetivamente “neoliberais” ou simplesmente liberais.
Com efeito, se podemos caracterizar algumas sociedades como mais liberais do que outras, estas parecem ser as nações do chamado arco civilizacional anglo-saxão (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia), sendo elas seguidas como menor rigor doutrinal (e maior pragmatismo) pelos países nórdicos ou escandinavos (Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia). Quanto aos países da Europa ocidental, essencialmente capitalistas em seu “modo de produção”, eles têm alternado práticas e políticas liberais – ou politicamente “direitistas”, para sermos simplistas – com outras tantas práticas e políticas mais social-democráticas, geralmente conduzidas por partidos de esquerda ou progressistas. No fundo, não se vê bem como distinguir essas políticas entre elas, a não ser no plano da retórica eleitoral.
Em nenhum outro continente ou região podemos distinguir países e sociedades verdadeiramente “neoliberais”, se formos rigorosos na utilização desse conceito. De fato, pretender que países latino-americanos, que empreenderam programas de ajuste e de estabilização macroeconômica depois de longas e recorrentes crises econômicas trazidas por processos inflacionários e de desequilíbrio no balanço de pagamentos, sejam ou tenham sido “neoliberais” – qualquer que seja o entendimento que se dê a esse conceito – representaria abusar em demasia desse conceito, retirando-lhe qualquer precisão metodológica e adequação à realidade empírica que nos é dada observar ao longo das últimas décadas.
Olhando com lupa, talvez se pudesse dizer que o Chile se apresenta como um país mais “neoliberal” do que a média dos latino-americanos. Ora, não se pode dizer que a sociedade chilena esteja “desestruturada”, a qualquer título. Colocando a lupa em outras sociedades da região, o que se observa é que existem, sim, alguns países bem mais desestruturados: os primeiros que aparecem são a Bolívia, a Venezuela e o Equador, com a possível inclusão da Argentina nesse conjunto. Pois bem, dificilmente se poderia dizer que eles estão assim por causa do neoliberalismo. Ao contrário. Em cada um deles, o que se observou, ao longo dos últimos anos, por acaso coincidentes com seus respectivos processos de desestruturação, foi, justamente, a aplicação de políticas dirigistas, estatizantes, intervencionistas, heterodoxas e, até, socialistas; ou seja, tudo menos políticas liberais. O autor deve estar com suas lentes embaçadas por preconceitos ideológicos, o que o impede de constatar a simples realidade de políticas econômicas que são efetivamente aplicadas nos diversos países considerados.
4. O neoliberalismo produz miséria e é sinônimo de barbárie?
O que dizer, em seguida, da suposta ação do neoliberalismo, que teria ampliado “a pobreza em praticamente todos os cantos do mundo, especialmente as nações da periferia”? Trata-se, mais uma vez, de afirmação desprovida de qualquer fundamentação empírica, não se podendo apoiá-la em praticamente nenhum exemplo de sociedade reconhecidamente “neoliberal”, qualquer que seja. A África, como vimos, afundou de fato na pobreza e na desesperança – embora ela venha crescendo novamente nos últimos anos –, mas essa evolução dificilmente poderia ser creditada à ação do neoliberalismo. Desafio o autor do texto selecionado a provar o contrário.
Quanto às duas nações “periféricas” que mais progressos fizeram na elevação gradual de uma miséria abjeta para uma pobreza aceitável, a China e a Índia, o que se observou, nas últimas duas décadas, foi um conjunto de reformas, várias ainda em curso, conduzidas justamente na direção de mecanismos de mercado, não de orientações estatizantes ou de planejamento centralizado. A renda per capita tem se elevado, progressivamente, em ambos os países, especialmente na China, que deu saltos espetaculares na redução da pobreza e na abertura de setores inteiros de sua economia à livre iniciativa e ao capital estrangeiro (todo ele capitalista e, supostamente, neoliberal). Quanto à Cuba socialista, ela conseguiu realizar a proeza de passar da maior renda per capita da América Latina em 1960 – não escondendo o fato de que ela era bem mal distribuída – para um patamar abaixo da média, em 2006, confirmando o consenso de que o socialismo é bem mais eficiente em repartir de modo relativamente igualitário a pobreza existente do que em criar novas riquezas.
Pode-se, talvez, alegar que as mudanças econômicas ocorridas na China vêm sendo feitas sob a égide do planejamento estatal e sob a firme condução do Estado chinês, que mantém controle sobre setores ditos estratégicos da economia do país. Essa realidade não elimina o fato de que todas as reformas operadas apresentam um caráter essencialmente capitalista e, portanto, tendencialmente neoliberal, ainda que não na versão “quimicamente” pura do modelo original anglo-saxão. O estilo ou a forma não pode sobrepor-se à essência do sistema, caberia registrar. Neste caso, nosso autor ou é cego ou é intelectualmente desonesto, ao não querer reconhecer esses dois processos de “enriquecimento capitalista”, que se desenvolvem sob os olhos de todo o planeta há aproximadamente duas décadas. Suas lentes estão completamente fora de foco ou muito sujas, aparentemente. Um pouco de estatística não lhe faria mal.
O fato de que, em vários desses processos – tanto em países desenvolvidos quanto em países em desenvolvimento –, os ricos estejam se tornando mais ricos não impede o outro fato concomitante de que os pobres estejam se tornando menos miseráveis. Quem não quiser tomar minha afirmação como um argumento de fé, pode conferir os dados apresentados por estudiosos da distribuição mundial de renda, como Xavier Sala-i-Martin, cujas evidências e conclusões já resumi neste artigo: “Distribuição mundial de renda: as evidências desmentem as teses sobre concentração e divergência econômica”, Revista Brasileira de Comércio Exterior (Rio de Janeiro: Funcex, ano XXI, n. 91, abril-junho 2007, p. 64-75; disponível: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1716DistMundRendaRBCE.pdf).
Se existem sociedades nas quais a “barbárie social vem esgarçando o tecido social e incrementando a violência em todos os sentidos”, como pretende o autor, elas estão longe de representar um modelo de “acumulação” ou de organização social da produção que seja liberal ou neoliberal, sendo mais efetivamente caracterizadas pelo autoritarismo político e pelo extremo intervencionismo econômico do Estado, quando não entregues à violência política, religiosa ou tribal, pura e simples, como parece ser o caso de alguns países do continente africano ou do Oriente Médio.
A afirmação carece, assim, de qualquer embasamento na realidade, sendo uma construção puramente mental de um autor manifestamente enviesado contra o que ele crê ser “neoliberalismo”, quando nenhum exemplo concreto desse sistema é discutido ou sequer aventado. Para um autor como esse, ser contra o neoliberalismo significaria se posicionar contra o livre comércio, contra o ingresso do capital estrangeiro, contra a administração em bases de mercado de inúmeros serviços públicos, contra a fixação dos juros e da paridade cambial pelo livre jogo da oferta e demanda de crédito e de moeda, enfim, preservar o controle estatal de inúmeras atividades com impacto social.
Se formos examinar, contudo, os dados econômicos relativos à renda, riqueza e prosperidade de um conjunto significativo de países, estabelecendo duas colunas, nas quais se colocaria, de um lado, os mais “neoliberais” – abertura ao comércio e aos investimentos, menor regulação estatal de atividades de produção e distribuição, fluxo livre de capitais e fixação dos juros e câmbio pelo mercado – e, de outro, os países menos propensos à abertura e mais inclinados à regulação estatal, e certamente quanto ao movimento de capitais – como são em grande medida os da América Latina, do Oriente Médio e da quase totalidade da África – teríamos uma correspondência quase perfeita entre maiores coeficientes de abertura, isto é, maior grau de “neoliberalismo”, e maior renda e prosperidade. O “quase perfeita” vem por conta de países de grande mercado interno – como os EUA – que apresentam pequeno coeficiente de abertura externa (apenas no que tange ao peso do comércio exterior no PIB), sem no entanto deixar de serem abertos às importações e atrativos aos capitais estrangeiros. Ou seja, a liberalização em comércio e em investimentos e um ambiente de negócios favorável à iniciativa privada constituem, sim, poderosas alavancas para a formação de riqueza e a distribuição de prosperidade.
5. O neoliberalismo é um mito, mas alguns ingênuos não sabem disso
Em qualquer hipótese, porém, o neoliberalismo é um mito, tanto pelo lado das acusações infundadas dos anti-neoliberais, como pelo lado dos promotores da própria doutrina liberal, uma vez que todos os Estados modernos, sem exceção, apresentam graus variados de intervenção no sistema econômico e de regulação da vida social. Uma série estatística sobre níveis de tributação e gastos públicos, ao longo do século XX, revelaria um avanço regular e constante da intermediação estatal nos fluxos de valor agregado e de dispêndio total, confirmando o papel sempre relevante do Estado na repartição setorial da renda total e na correção das desigualdades mais gritantes introduzidas pelos regimes puros de mercado. Aliás, falar em “Estado liberal” é uma total contradição nos termos, tanto o substantivo desmente o seu suposto adjetivo.
O que estava, contudo, em causa na análise conduzida neste ensaio de simples avaliação crítica de um dos mitos mais difundidos na academia não era, propriamente, a evolução econômica das modernas sociedades de mercado, e sim a afirmação – que vimos totalmente desprovida de qualquer fundamentação empírica – de que existe algo chamado neoliberalismo sendo ativamente praticado pelos Estados modernos e de que essa doutrina e prática seriam responsáveis por todas as misérias da sociedade contemporânea. Trata-se de uma das fabulações mais inconsistentes de que se tem notícia na produção acadêmica tida por séria e responsável.
Os dados disponíveis, revelados por organismos internacionais e por uma variedade razoável de organizações independentes, confirmam a melhoria sustentada dos padrões de vida em diferentes regiões do planeta, tanto mais rápida e disseminada quanto mais integrados estão esse países e regiões aos fluxos mundiais de comércio, tecnologia e investimentos. Assim, considerar que a “acumulação” neoliberal ampliou a pobreza em todos os cantos do mundo, aprofundou as desigualdades e provocou o cortejo de misérias que são registradas em áreas jamais tocadas por políticas e práticas neoliberais – qualquer que seja o entendimento que se dê ao conceito em questão –configura um tipo de fraude que só consegue ser repetido impunemente em salas de aula universitárias porque a academia brasileira é pouco responsável no “controle de qualidade” dos cursos da área de humanas e nos métodos de avaliação de docentes manifestamente despreparados para cumprir o programa do qual são encarregados. Para sermos mais precisos, estamos em face de uma desonestidade intelectual que só encontra paralelo em apresentações de mágicos de circos mambembes.
Termino por aqui minha primeira análise de uma falácia acadêmica detectada em livros utilizados em universidades brasileiras. De fato, o mito do neoliberalismo – que não guarda a mínima correspondência com a realidade verificável – oferece um exemplo concreto desse tipo de prática, mais comum do que se pensa, aliás, em nosso ambiente universitário. A um simples trecho selecionado de um artigo do autor aqui examinado pode-se aplicar o conjunto de caracterizações dicionarizadas e conectadas ao termo “falácia”: enganador, ardiloso, fraudulento, quimérico e ilusório. Outros exemplos certamente existem: eles também serão trazidos a exame no momento oportuno. Concluo com um aviso à maneira dos franceses: à suivre...

* Publicado originalmente em 09/03/2009.